14
Educação, Teoria Crítica e Literatura: Emancipação X Elitismo 1 Benito Eduardo Araujo Maeso 2 Falar sobre as imbricações da teoria crítica em diversas áreas do saber, mapeando parte de sua penetração nos campos da teoria literária, educação e filosofia, obriga-nos a voltar no tempo e observar alguns fatos históricos que podem apontar um possível problema na recepção do pensamento da chamada Escola de Frankfurt no Brasil, notadamente da produção de Theodor Adorno. É necessário contestar, e até eliminar totalmente, certas leituras feitas sobre os teóricos frankfurtianos ao longo do tempo, principalmente as resultantes dos esforços teóricos da área de comunicação, jornalismo e propaganda. A influência frankfurtiana dentro da universidade brasileira começa a se dar apenas no final da década de 60. Conforme ORTIZ (2003) as primeiras traduções de artigos de Adorno, Benjamin e Horkheimer ocorrem apenas em 1969 (na compilação Teoria da Cultura de Massa , organizada por Luis Costa LIMA). Posteriormente, Gabriel COHN (1975) publica nova 1 Texto de introdução à mesa coordenada de mesmo nome apresentada na Semana de Letras 2015 do Curso de Letras da UFPR. Vários elementos abordados neste artigo são fruto dos debates ocorridos na preparação com os alunos inscritos na coordenada (Juliana Viani, André Luiz Cavanha e José Olivir Freitas), que merecem reconhecimento do autor neste trabalho. 2 Professor de Filosofia do IFPR (Instituto Federal do Paraná). Mestre em Estética e Filosofia da Arte (USP) e doutorando em Filosofia Política (USP/UFPR).

Educação, Teoria Crítica e Literatura - Emancipação x Elitismo Para Envio

Embed Size (px)

DESCRIPTION

artigo semana de letras 2015

Citation preview

Page 1: Educação, Teoria Crítica e Literatura - Emancipação x Elitismo Para Envio

Educação, Teoria Crítica e Literatura:Emancipação X Elitismo1

Benito Eduardo Araujo Maeso2

Falar sobre as imbricações da teoria crítica em diversas áreas do saber,

mapeando parte de sua penetração nos campos da teoria literária, educação e

filosofia, obriga-nos a voltar no tempo e observar alguns fatos históricos que

podem apontar um possível problema na recepção do pensamento da

chamada Escola de Frankfurt no Brasil, notadamente da produção de Theodor

Adorno. É necessário contestar, e até eliminar totalmente, certas leituras feitas

sobre os teóricos frankfurtianos ao longo do tempo, principalmente as

resultantes dos esforços teóricos da área de comunicação, jornalismo e

propaganda.

A influência frankfurtiana dentro da universidade brasileira começa a se

dar apenas no final da década de 60. Conforme ORTIZ (2003) as primeiras

traduções de artigos de Adorno, Benjamin e Horkheimer ocorrem apenas em

1969 (na compilação Teoria da Cultura de Massa, organizada por Luis Costa

LIMA). Posteriormente, Gabriel COHN (1975) publica nova coletânea,

Comunicação e Indústria Cultural, na qual mais textos dos integrantes da

Escola de Frankfurt são trazidos a debate na academia brasileira. Ocorre uma

coincidência histórica entre a consolidação de uma indústria cultural realmente

poderosa no país e a assimilação acadêmica da teoria crítica a esta indústria.

Desta forma, a absorção do debate acaba se dando mais por meio das

faculdades de comunicação do que na sociologia ou na filosofia.

os conceitos permitem diagnosticar melhor as mudanças advindas com o desenvolvimento de um mercado de bens culturais que se expande a nível nacional. (…). Por outro lado, o estudo dos meios de comunicação de massa são

1 Texto de introdução à mesa coordenada de mesmo nome apresentada na Semana de Letras 2015 do Curso de Letras da UFPR. Vários elementos abordados neste artigo são fruto dos debates ocorridos na preparação com os alunos inscritos na coordenada (Juliana Viani, André Luiz Cavanha e José Olivir Freitas), que merecem reconhecimento do autor neste trabalho.2 Professor de Filosofia do IFPR (Instituto Federal do Paraná). Mestre em Estética e Filosofia da Arte (USP) e doutorando em Filosofia Política (USP/UFPR).

Page 2: Educação, Teoria Crítica e Literatura - Emancipação x Elitismo Para Envio

contemporâneos das Faculdades de Comunicação, que a meu ver determinam, de uma maneira um tanto esquemática, a forma de se perceber a problemática da cultura de massa no Brasil. Curiosamente, nelas se combinou os conceitos da Escola com uma análise de conteúdo de origem francesa, tornando difícil a compreensão do debate ideológico, tal como ele se coloca nos textos do Instituto. (ORTIZ, 2003 : online)

Esta incursão na história é necessária para que seja possível desfazer

dois dos equívocos mais comuns em relação à produção frankfurtiana e à

Teoria Crítica: sua circunscrição aos processos de comunicação e seu

pretenso elitismo. A teoria crítica não é da comunicação, mas sim da

sociedade, o que certamente engloba as técnicas de comunicação dita de

massa (de onde deriva o conceito extremamente complexo de indústria

cultural) mas não se subsume ou se resume a este fenômeno. Restringir a

teoria crítica à análise da mídia acaba por promover uma leitura bastante

simplificada do real escopo do pensamento de Adorno e Horkheimer sobre o

funcionamento da indústria cultural, o que será explicitado na sequência.

Tornou-se um truísmo, da mesma forma, atribuir a Adorno uma visão

elitista sobre o processo da formação e produção dos bens culturais (para

alguns, a “aura de elitismo” na contraposição entre “alta cultura” e

“massificação da arte” é muito acentuada, cfe. TREVIZAN, 2014 : 24). Não é

possível negar que Adorno via com acentuada reserva manifestações como o

jazz e o cinema3, mas não se trata, de forma alguma, de uma contraposição

simplista entre alta e baixa cultura, na qual a cultura dita de massa (ou em

teoria produzida pela massa) seria considerada inferior por uma origem popular

em contraponto à cultura refinada, dos salões e museus.

A dita indústria cultural não é criticada por uma pseudo-banalização do

bem cultural, supostamente ao alcance de uma plebe ignara, ou uma simples

redução da cultura dita legítima, refinada ou da chamada grande arte à posição

de mercadoria, mas principalmente pela elevação da mercadoria (no conceito

marxiano) ao status de cultura, isto é, o fato da mercadoria se tornar o sistema

simbólico pelo qual regulamos nossas vidas e damos significado ao mundo que

nos cerca (conforme CHAUÍ, 2013). A cultura, na visão dos teóricos

3 Para ORTIZ (1986, online), o que pode ser visto como elitismo seria na verdade um efeito ilusório da visão pessimista dos autores sobre as possibilidades de emancipação do ser humano nas sociedades administradas, e não uma crença na superioridade de um tipo de produção cultural de forma específica.

Page 3: Educação, Teoria Crítica e Literatura - Emancipação x Elitismo Para Envio

frankfurtianos, não está dividida por posição social ou econômica, mas sim por

um critério bastante específico: autenticidade (é importante notar que, neste

sentido, eles são representantes legítimos do pensamento iniciado no

romantismo e no idealismo alemães do século XIX). Cultura é uma produção

humana – ou toda a produção humana – e sua estandardização sob o signo da

mercadoria, da velocidade e do pastiche é vista por estes pensadores como o

problema a ser entendido e combatido.

O oxímoro Indústria Cultural4 guarda em seu interior o mesmo conflito

que o humano/indivíduo/sujeito enfrenta na sociedade administrada - a aporia

entre um sistema cuja lógica, permeada pelas leis do capital, exige e executa a

reprodução de padrões identitários já formatados e destinados a finalidades

específicas contra a necessidade e impulso de expressão autêntica tanto do

indivíduo que busca a consciência de si (sua autonomia no sentido kantiano)

como da coletividade em busca de uma organização condizente com sua

realidade.

Replicar e condicionar industrialmente este Geist somente é possível por

meio da alienação, no sentido do não-reconhecimento de si e do outro, e da

veiculação de uma ideologia específica que ocupe o lugar da cultura desta

sociedade. É por isso que o segredo da Indústria Cultural está em fazer com

que a lógica da mercadoria dite o modo de vida da sociedade e do indivíduo,

por extensão. Mais do que peças na máquina, somos produtos na prateleira.

Desta forma, o caráter de entretenimento da Indústria Cultural opera uma dupla

função: direcionar este conflito do sujeito em relação ao Eu para um

apaziguamento provisório e simultaneamente reforçar a inexorabilidade do

sistema por meio da difusão velada ou não da ideologia que o suporta.

O termo Cultura de Massa, inclusive, é vigorosamente combatido pelos

autores alemães, pois soaria como uma expressão autêntica da dita massa que

seria apenas veiculada pelos mass media, sem nenhum tipo de ideologização

ou mediação no processo. Para Adorno, os processos que ocorrem na

realidade histórica atual – e nossa percepção desta realidade – estão

condicionados pelos processos econômicos visíveis, por exemplo, na Indústria

Cultural, que replica a ideologia dominante em um processo de duas vias: na

4 O contraste entre a indústria, uma organização sócio-político-econômica que busca incessantemente sua auto-replicação, e a cultura/arte, entendida como tudo aquilo que não é voltado apenas à autopreservação.

Page 4: Educação, Teoria Crítica e Literatura - Emancipação x Elitismo Para Envio

primeira, os bens culturais padronizados já trazem em si uma resposta a

qualquer aresta ou questionamento que possa surgir. Na segunda, a produção

cultural em todas as suas instâncias é subordinada à lógica de replicação do

capital. Na sociedade de consumo do capitalismo tardio, “cultura e estética se

amalgamam com a produção e a propaganda para criar um estilo de vida

focado no consumo de bens, serviços, imagens de massa e espetáculos”

(KELLNER, apud CARSON, 2011 : online), perdendo capacidade de operarem

como fatores de deslocamento do ponto de visão. O efeito disso é a perda da

capacidade de reconhecimento de si e do outro, substituída por uma pseudo-

consciência de si mediada “entre opções disponibilizadas pelo mercado”

(SAFATLE, 2002 : online) e, por conseguinte, acomodada em si e para si.

Este é o centro do conceito de Adorno e Horkheimer, que pouco ou nada

tem a ver com uma ideia de cultura abastada versus cultura dita popular. Arte é

resistência e incômodo na visão destes autores: se a produção cultural provoca

questionamento, estranhamento ou nos tira de centro5, de alguma forma, é isso

que importa, e não se é feita por um arquiduque europeu ou por Mestre

Vitalino. A teoria crítica se insurge contra o mundo do sempre-igual e vê na arte

o potencial de rompimento da estandardização da consciência, o potencial de

libertação do ser pela produção da diferença livre. O que isso teria de elitista,

aos olhos de alguns, é algo que ainda parece difícil de decifrar.

Este conceito de autenticidade e de estranhamento na teoria crítica,

invisível a muitos teóricos da comunicação, pode ser estendido não apenas à

produção artística (por conseguinte à literária) como também para o processo

educacional, se o entendermos como forma de emancipação do indivíduo e de

reconhecimento de si e do outro. Dedicaremos algumas linhas a cada um

destes campos.

Na produção literária, se ficarmos apenas em um autor tratado pela

Escola de Frankfurt, o checo Franz Kafka é um excelente exemplo dos efeitos

do deslocamento como um espaço político, isto é, de interação e de

reorganização de formas de entendimento, lugares de fala e atuação no mundo

– aquilo que Deleuze chama de literatura menor ou minoritária, que se desvia

do modelo majoritário/familiar/burguês do romance. Em seu ensaio sobre

5 A predileção de Adorno por compositores ditos “difíceis”, como Schoenberg, e pelo atonalismo, chamado de “música degenerada” pelos nazistas, apontam nessa direção.

Page 5: Educação, Teoria Crítica e Literatura - Emancipação x Elitismo Para Envio

Kafka, Adorno revela qual é, em sua visão, a chave para o entendimento do

autor checo: “insistir nos aspectos que dificultam o enquadramento e que, por

isso mesmo, requerem interpretação” (ADORNO, 1998 : 239). A recusa em ser

absorvido facilmente. Aquilo que nos obriga a interrogar o mundo e desnudar

seus paradoxos, escondidos por baixo de um manto de aparente coerência. O

não-enquadramento ao qual o filósofo se refere remete à necessidade de

ruptura do sempre-igual para o resgate da autonomia do pensamento. É daí

que vem a “força de maelstrom” (ADORNO, 1998 : 239) da obra do escritor

checo – e tal força estaria presente em toda produção literária que, de alguma

forma conseguisse realizar esta operação de não-identidade.

A tradução do mundo operada por este tipo de literatura não se resume

a fazer um retrato de seu tempo: sua universalidade reside no fato das

assincronias que lhe dão a força da expressão não se encontrarem resolvidas.

Ou seja, para ADORNO (1998 : 241), “enquanto a palavra do enigma não for

encontrada, o leitor permanece preso”. Enquanto não se decifrar o

funcionamento do tecido que gera e é gerado por estas contradições, não há

como entendê-las ou superá-las. A busca desta decifração das condições do

mundo exige um duplo olhar sobre o objeto da análise. Um olhar crítico.

Essa é a ferramenta de resistência em relação ao mundo homogêneo

que nos cerca. “Só o trabalho do pensamento, consciente de si mesmo,

consegue escapar a esse poder alucinatório e, segundo o idealismo de Leibniz

e de Hegel, a filosofia” (ADORNO, 1985 : 181). Ter a consciência de si é a

difícil tarefa em um mundo no qual a própria noção do Eu já está

predeterminada, de acordo com Adorno, pelas assim chamadas “ferramentas”

que condicionam o processo de formação de consciências: a indústria cultural

como difusora da ideologia do capital. Por este prisma, pensar - criticamente –

é resistir a esse semipensamento formatado, é deslocar seu ponto de visão e

ver o mundo com outros olhos. Seria esta também a tarefa da educação.

Esta imbricação entre o educar, o escrever e o filosofar, como formas de

nomear, revelar e entender o não-idêntico (ou aquilo que ainda não pode ser

dito, o Outro, a Alteridade) parece fornecer a possibilidade de superar a

armadilha na qual o filósofo frankfurtiano enxerga nossa sociedade: a ascensão

de uma sociedade antissocial só pode ser evitada pelas gerações futuras, visto

que a barbárie já ocorreu.

Page 6: Educação, Teoria Crítica e Literatura - Emancipação x Elitismo Para Envio

Como hoje em dia é extremamente limitada a possibilidade de mudar os pressupostos objetivos, isto é, sociais e políticos que geram tais acontecimentos, as tentativas de se contrapor à repetição de Auschwitz são impelidas necessariamente para o lado subjetivo. (...) É necessário contrapor-se a uma tal ausência de consciência, é preciso evitar que as pessoas golpeiem para os lados sem refletir a respeito de si próprias. A educação tem sentido unicamente como educação dirigida a uma auto-reflexão crítica. (ADORNO, 2003 : 121)

Por isso, Adorno enxerga a educação como emancipatória, como a

melhor possibilidade concreta de evitar que a barbárie ocorra novamente. O

novo imperativo moral da humanidade, evitar que Auschwitz se repita, significa

em seu âmago a ideia de que a desumanização – a insensibilidade ao que é

diferente, a imposição de um pensar/ser único que não é próprio do sujeito,

mas sim da ideologia dominante – precisa ser combatida: “A barbárie

continuará existindo enquanto persistirem as condições que geram esta

regressão” (ADORNO, 2003 : 119), notadamente se de alguma forma tais

condições sejam reproduzidas e perpetuadas em sala de aula.

É possível estabelecer uma ponte entre esta visão e a pedagogia de

Paulo Freire, reconhecidamente um modelo no qual o processo de

aprendizagem se constrói por meio de uma troca constante entre os indivíduos

engajados neste fluxo. Desta troca, o educador brasileiro postula a

possibilidade de um imperativo ético calcado também na promoção da

diferença:

O respeito à autonomia e à dignidade de cada um é um imperativo ético e não um favor que podemos ou não conceder uns aos outros. O professor que desrespeita a curiosidade do educando, o seu gosto estético, a sua inquietude, a sua linguagem, mais precisamente, a sua sintaxe e a sua prosódia; o professor que ironiza o aluno, que o minimiza, que manda que “ele se ponha em seu lugar” ao mais tênue sinal de sua rebeldia legítima, tanto quanto o professor que se exime do cumprimento de seu dever de propor limites à liberdade do aluno, que se furta ao dever de ensinar, de estar respeitosamente presente à experiência formadora do educando, transgride os princípios fundamentalmente éticos de nossa existência. (FREIRE, 2011 : 66, negritos nossos)

Page 7: Educação, Teoria Crítica e Literatura - Emancipação x Elitismo Para Envio

O imperativo da alteridade não se trata de fazer o professor falsamente

“descer ao nível de conhecimento da base” (TREVIZAN, 2014: 24),

desconsiderar e desqualificar o cabedal de conhecimentos já produzido pela

humanidade ou apelar para uma postura condescendente na qual o aluno tudo

pode e o professor não pode colocar limites a comportamentos antissociais,

como certas visões estereotipadas buscam fazer parecer. A crítica à educação

centrada na severidade, na relação vertical do sujeito detentor de

conhecimento para o sujeito dito aprendiz, a imposição ao bel-prazer de limites,

buscando o enquadramento do discente em padrões de severidade

progressiva, também é tão ineficaz quanto a permissividade completa. Adorno

observa que a ideia educacional da severidade desemboca em um sadismo de

personalidade:

Pessoas que se enquadram cegamente em coletivos convertem a si próprios em algo como um material, dissolvendo-se como seres determinados. Isso combina com a disposição de tratar outros como sendo uma massa amorfa.(ADORNO, 2003: 129)

Dialeticamente falando, ao mesmo tempo em que o coletivismo e a

uniformidade de pensamento abrem espaço para a personalidade autoritária

(como no nazismo ou no stalinismo), a individualização excessiva, a perda do

sentido primevo de alteridade, também desencadeiam os mesmos processos

de encapsulamento e auto-referencialidade do Eu detectados por Adorno tanto

nos nazistas como na sociedade administrada do capitalismo tardio. Da mesma

forma, não é possível impor a alguém que se torne um ser autônomo nem crer

que a autonomia virá por um passe de mágica em um determinado ponto:

“Ninguém é sujeito da autonomia de ninguém. (...) A autonomia, enquanto

amadurecimento do ser-para-si, é processo, é vir-a-ser” (FREIRE, 2011: 67). O

exercício do autoritarismo em sala, seja por coerção, ferramentas disciplinares

ou pelo uso do conhecimento como agente de constrangimento é tão perigoso

quanto o professor “licencioso”, pois ambos aniquilam a liberdade e a

curiosidade do ser discente. (FREIRE, 2011: 68)

A relação entre teoria do conhecimento e eticidade é evidente: só pode

surgir um ser-para-si a partir de um ser-que-sabe-saber. Não podemos

esquecer que somos sempre o Outro de outra pessoa. Negar isto e se ver

Page 8: Educação, Teoria Crítica e Literatura - Emancipação x Elitismo Para Envio

como o único referencial seguro do saber (ou suas experiências como as

únicas dignas de crédito) seria o maior elitismo que uma pessoa poderia

cometer, o equivalente educacional da personalidade autoritária e da tentativa

de conformação forçada do Outro ao Eu. Ao professor cabe a tarefa crucial da

promoção deste sentido de alteridade em si e nos alunos, em concomitância

com a construção do saber em todos os sujeitos da aprendizagem.

É neste sentido também que a dialogicidade verdadeira, em que os sujeitos dialógicos aprendem e crescem na diferença, sobretudo, no respeito a ela, é a forma de estar sendo coerentemente exigida por seres que, inacabados, assumindo-se como tais, se tornam radicalmente éticos. (FREIRE, 2011: 68)

Em síntese, a equivocada acusação de elitismo em relação à Teoria

Crítica mira, paradoxalmente, exatamente nos elementos que são os motores

de seu mecanismo promotor da emancipação: a inconformidade/negação aos

padrões ideológicos resultantes da massificação orientada da produção dos

bens culturais e a promoção da alteridade contida no reconhecimento das

capacidades e saberes dos sujeitos envolvidos no processo de reconhecimento

de si e do outro em si. Desta disposição e abertura ao Outro, da recusa ao

sempre-igual, surgiriam as ferramentas que possibilitariam aos seres humanos

superarem a ilusão do Eu rígido, pertencente a uma elite, dominador do

mundo, do semelhante e do diferente. É daquilo que é visto por alguns como

elitismo – a recusa ao pensamento único, mascarado de popular - que surge

exatamente um antielitismo adorniano, da maneira mais dialética possível.

Observação: o que se buscou nos diversos trabalhos desta coordenada, da

qual este texto funcionou à guisa de introdução, foi exatamente este processo

de estranhamento e de alteridade de posições: por meio do debate e do

deslocamento/desloucamento de autores e análises, não apenas combater

visões limitadas sobre estes conceitos como também provocar este

estranhamento necessário à criação de novas possibilidades, ou, usando

terminologia deleuziana, linhas de fuga para pensar o novo a partir do

existente.

Page 9: Educação, Teoria Crítica e Literatura - Emancipação x Elitismo Para Envio

___________

Referências bibliográficas

ADORNO, Theodor W. Educação e emancipação. 3ª edição. São Paulo : Paz e Terra, 2003

ADORNO, Theodor W. Indústria Cultural e Sociedade. 2a ed. São Paulo : Paz e Terra, 2004

ADORNO, Theodor W. Prismas, Crítica cultural e sociedade. São Paulo : Editora Ática, 1998

ADORNO, Theodor W. Teoria Estética. Lisboa : Edições 70, 1988

ADORNO, Theodor W. Três estudos sobre Hegel. São Paulo : Unesp, 2013

ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro : Jorge Zahar Editor, 1985

ANDERS, Gunter. Kafka: pró e contra. Tradução, posfácio e notas Modesto Carone. São Paulo: Cosac e Naify, 2007

BOSI, Alfredo. Literatura e resistência. 1ª reimpressão. São Paulo : Companhia das Letras, 2008

CARSON, Benjamin D. Towards a Postmodern Political Art: Deleuze, Guattari, and the Anti-Culture Book. Rhizomes: Cultural Studies in Emerging Knowledge 7 (2003). Ohio, EUA. Disponível em: <:http://www.rhizomes.net/issue7/carson.htm :> Acesso em 14 jun 2015

CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo : Saraiva, 2010

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Kafka: toward a minor literature. Minneapolis : University of Minnesota Press, 1986

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 43. ed., São Paulo: Paz e Terra, 2011

MAESO, Benito Eduardo Araujo. Kafka: estética e política do estranhamento. 2013. 180 f. Dissertação (Mestrado) – Curso de Estética e Filosofia da Arte - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013. Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8133/tde-01072013-090825/>

ORTIZ, Renato. “A Escola de Frankfurt e a questão da Cultura”. Revista brasileira de Ciências Sociais v.1 n.1, São Paulo, jun. 1986. Disponível em. <:http://www.anpocs.org.br/portal/publicacoes/rbcs_00_01/rbcs01_05.htm:> Acesso em 14 jun 2015.

Page 10: Educação, Teoria Crítica e Literatura - Emancipação x Elitismo Para Envio

SAFATLE, Vladimir. Para introduzir a experiência intelectual de Theodor Adorno. In: ALMEIDA, Jorge; BADER, Wolfgang, Pensamento alemão no século XX. São Paulo: Cosac e Naify, 2009.

SAFATLE, Vladimir, Pós-modernidade: utopia do capitalismo. Revista Virtual Trópico, 2002. Disponível em <:http://www.revistatropico.com.br/tropico/html/textos/2446,1.shl :>. Acesso em 14 jun 2015

TREVIZAN, Suelen. Antiantielitismo, in Revista Boca do Inferno. Curitiba, Ed. 28. pp 24-25. Novembro/2014