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*Docente da Universidade da Região de Joinville - Univille. Mestre em Educação. FAP/UNIVILLE
A privatização das terras devolutas localizadas no território catarinense nos primórdios da
República.
ELEIDE ABRIL GORDON FINDLAY*
Introdução
As características peculiares do povoamento de Santa Catarina, e da região da baia da
Babitonga, objeto de meus estudos, tem sua maior expressão na estrutura fundiária baseada na
pequena propriedade, na distribuição de terras devolutas pelos governantes provinciais
convictos de que tal prática se constituía em um “instrumento de ordem”, na medida em que
os pedidos costumeiramente eram atendidos, e na criação de colônias estrangeiras.
O conceito de propriedade foi se modificando como resultado do processo histórico da
constituição das sociedades. Na sociedade brasileira a propriedade, desde o processo de
colonização até o final do século XIX, deixou de significar um bem coletivo para passar a
uma concepção individual, exclusiva e plena, própria dos princípios liberais.
O Estado Liberal e o Direito Moderno se constituíram no suporte ideológico do caráter
mercantilista da terra, e que ao transformá-la em uma mercadoria retirou-lhe a sua
característica de ser um bem natural para se constituir em um produto do capital.
No Brasil, desde a Constituição de1824, esta concepção estava consagrada ao afirmar que a
inviolabilidade dos direitos civis e políticos garantiam o direito de propriedade em toda a sua
plenitude. O direito sagrado e inviolável da propriedade foi incorporado às constituições
nacionais a partir da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, oriunda da Revolução
Francesa. Ao lado da liberdade e igualdade, os direitos individuais sustentaram a concepção
individualista de propriedade.
Quanto às terras devolutas e sua ocupação, desde a Lei 601 de 1850, a Lei de Terras, estava
proibida a sua distribuição pelos governantes provinciais, ao mesmo tempo em que
evidenciava o estatuto das terras devolutas como patrimônio do Estado e que somente
poderiam ser adquiridas pela compra ou autorização dos governantes.
No entanto, a Constituição Republicana, de 1891 transferiu para os Estados da Federação a
autonomia política, legislativa e administrativa sobre as minas e terras devolutas nos seus
2
respectivos territórios, cabendo a União apenas a porção de território que fosse indispensável
para a defesa das fronteiras, fortificações, construções militares e estradas de ferro federais.
A política de terras adotada pelos governantes estaduais no inicio do período republicano tem
sido objeto de estudo da historiografia nacional, mas infelizmente, não com a mesma
amplitude e dimensão destinada ao período colonial e imperial.
De acordo com os estudiosos da política de terras dos governadores da Primeira República,
pelo fato da União ter transferido para a jurisdição dos Estados o poder de legislar sobre a
concessão, discriminação e legitimação das que fossem possuídas, colocou sob o arbítrio dos
Estados e oligarquias locais o enfrentamento da questão fundiária.
Este momento da vida nacional foi marcado por inúmeras transformações política,
econômicas e sociais entre elas o avanço do capitalismo industrial, o progresso técnico, as
transformações do mundo do trabalho, a imposição do trabalho livre, enfim, de um Estado
Liberal e do Direito Moderno.
Santa Catarina sob a influência das mudanças ocorridas durante o Império e, já no regime
republicano, presenciará o nascimento e crescimento do capital industrial, representado pela
indústria madeireira, alimentar, carbonífera e têxtil. (GOULART FILHO, 2002: 72). Porém,
como consequência da política imigratória financiada pelo governo Imperial, crescem as
atividades comerciais e artesanais produzidas nas pequenas propriedades.
Na questão fundiária o regime republicano viu o aprofundamento da privatização do espaço
público sob o manto da descentralização, já que, as invasões e ocupações que os particulares
(posseiros) realizavam, não foram, ou não quiseram ser impedidas pelos poderes públicos.
A situação social imperante no campo, neste período, caracterizada pela presença do
"coronelismo", fenômeno amplamente analisado na bibliografia especializada, garantiu a
permanência do modelo altamente concentrador de apropriação territorial. Em razão dessa
prática política, generalizou-se rapidamente, em todo o território nacional, a apropriação de
terras públicas por particulares.
Como alerta Lidia Maria Osório da Silva (1996:12) a questão da terra no início do regime
republicano moveu-se entre dois eixos o da existência ou não de uma política de terras
3
devolutas e a existência de uma legislação favorável ao apossamento subordinada às
condições sociais concretas do campo.
Dessa forma, tendo como parâmetro o estabelecido pelas Constituições nacionais em relação à
propriedade individual e plena e, também, o fato de que as terras devolutas
constitucionalmente estarem sob a tutela dos Estados, aqui se pretende deslindar as políticas
estatais desenvolvidas pelos governantes catarinenses no regime republicano e federativo,
para fazer frente a um desafio herdado do Império, as formas disponibilizadas de acesso à
terra aos homens brancos pobres e aos libertos.
Estruturação jurídica de propriedade
No processo histórico da construção da sociedade catarinense o ordenamento jurídico
desempenhou papel significativo na constituição da história fundiária, ou agrária, do Estado.
Evidentemente que a legislação não pode ser descolada dos múltiplos elementos que
estruturam a realidade social. Maria Yedda Linhares (1997) afirma que o estudo da história
agrária na realidade contempla além das normas jurídicas, a história econômica e social de
qualquer localidade, e que por este motivo deve contemplar inúmeras questões que estão
dadas previamente.
Nesta perspectiva visando entender os diversos fatores que nortearam o estabelecimento de
uma política fundiária em um momento em que o país passava por transformações na política,
com o advento da República e o Estado liberal, e na economia, com o crescimento do capital
mercantil, além de mudanças produtivas, na estrutura agrária, e jurídica, entende-se que a
análise dos atos legais, que contribuíram para a consolidação da propriedade mercantilista
assentada em princípios liberais, é de fundamental importância.
De acordo com Mariângela Conceição Vicente Bergamini de Castro (2008:27) ao se analisar a
configuração da propriedade no Direito Moderno convém não desprezar a influência de
algumas características do Estado Liberal: a emergência social da classe burguesa
enriquecida; a consagração do individualismo, a supermacia constitucional e o império da lei
princípio da soberania popular e do governo representativo; a doutrina dos direitos e garantias
individuais e a existência de um liberalismo econômico, movido pela lei do mercado e com
mínima intervenção estatal.
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O Direito Moderno incorporou a concepção de propriedade oriunda da Declaração dos
Direitos do Homem ao definir a propriedade como um direito sagrado e inviolável. Para
Castro neste momento o ordenamento jurídico constitui-se em um “núcleo ideológico de uma
concepção de propriedade que progressivamente se incorporaria aos textos constitucionais dos
séculos XIX e XX”. (CASTRO, 2008:34).
Na modernidade, segundo Foster (2003), o ideário liberal burguês se corporificou na mente e
na legislação das sociedades. O legislador brasileiro deu prioridade à propriedade privada no
seu sentido mais amplo e pode ser verificado na primeira Constituição Republicana, ao
atribuir aos Governos estaduais a responsabilidade em relação as terras devolutas. Dispondo
as autoridades estaduais do poder de legislar sobre tais terras tenderam a seguir o modelo da
Lei de Terras, de 1850. De acordo com o autor “E, seguindo a filosofia da referida Lei,
repetida, corporificada e executada liberalmente, por todos os estados-membros, enorme
porções do patrimônio público foram privatizados nos setenta anos seguintes” (FOSTER,
2003:10).
A Constituição Republicana de 1891, em seu Art. 66, ao transferir para os Estados da
Federação a autonomia política, legislativa e administrativa sobre as minas e terras devolutas
nos seus respectivos territórios, restringiu à União apenas a porção de território que fosse
indispensável para a defesa das fronteiras, das fortificações, das construções militares e
estradas de ferro federais.
No entanto, como alerta Foster, a voracidade dos governantes não os impediu de se
apoderarem das terras destinadas à União,
[...] Os estados da Federação, no entanto, ávidos de resolver suas questões de terras,
paulatinamente foram se assenhoreando de fato das ditas devolutas e, diante do
imperturbável sono do poder central, foram se investindo de “titularidades” na zona
fronteiriça, para conceder áreas inseridas nos seus respectivos territórios, dentro
daquela, algumas vezes criteriosamente, algumas vezes excentricamente, para se dizer
o mínimo e, por outras, leviana, arbitraria e dolosamente.(FOSTER,2003:74)
O início do período republicano em relação ao ordenamento jurídico sobre a destinação e
ocupação de terras devolutas, ou públicas, foi objeto de análise de estudiosos, e muitos são
unanimes em expor sua decepção com os caminhos trilhados pelo sistema judiciário tendo em
vista a dimensão histórica do conceito de propriedade.
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Assim se expressou Fabio Comparato em sua análise sobre a política agrária no Brasil, quanto
à República e as terras devolutas,
Também a república entre nós, para empregarmos conhecida expressão de Sérgio
Buarque de Holanda, "foi um lamentável mal-entendido”. [...]. Mal-entendido bem
mais profundo estava no fato de que o novo regime político inaugurava, em nossa
História, uma das fases de maior predominância dos interesses privados sobre o bem
comum do povo; ou seja, o avesso do princípio de supremacia da res publica, no
lídimo sentido romano da expressão. (grifo do autor) (COMPARATO, 2008: s.p).
As reflexões de Ligia Osório Silva sobre a história da terra em relação ao período republicano
indicam que,
Com a República e a passagem das terras devolutas para o domínio dos estados,
agudizou-se ainda mais o efeito perverso da lei de 1850, com o agravante de que
foram pouquíssimas as iniciativas no sentido do estabelecimento de uma política de
colonização ou assentamento que minimamente contrabalançasse a proliferação dos
latifúndios improdutivos. Protegidos pela aplicação perversa da cláusula que garantia
as posses (cultura efetiva e morada habitual), multiplicaram-se os "grilos" e continuou
o processo de passagem das terras devolutas para o domínio privado sem controle dos
poderes públicos e sem que estes manifestassem grande preocupação com o uso anti-
social das terras apropriadas (SILVA, 1997:17).
Ainda,segundo a autora, o regime republicano presenciou uma polêmica em torno do conceito
de terras devolutas. Em seu entender tratou-se de uma questão provocada pela ambiguidade
do termo, já que em seu sentido mais tradicional remontava ao instituto da sesmaria, o de
terras devolvidas, e aquele mais próximo do direito moderno, as não legalmente adquiridas.
Para além da discussão terminológica, a polêmica encobria uma estratégia “de setores da
sociedade para derrubar definitivamente a possibilidade de o Estado desenvolver projetos
referentes às terras devolutas”. (IDEM).
O regime republicano, na visão de Celso Frederico Marés, frustrou as esperanças populares,
posto que,
O século XX, assim, se abre para o Brasil com uma perspectiva de crise, de não
solução, no campo jurídico e político do problema fundiário. A terra tinha se
transformado em propriedade e a República, que era esperada por alguns como
a possibilidade da redenção, acabou por aprofundar os problemas locais. (MARÉS,
2003:78)
Alberto da Silva Jones em seu estudo sobre a legalidade e o processo de grilagem afirma que
“o saque às terras públicas e ocupadas por posseiros e indígenas” (2004: 06) sempre esteve
presente no período republicano, notadamente, pelo artifício da compra por preço vil de terras
pertencente ao Estado. A expansão da produção agrícola e a ampliação das condições da
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infraestrutura para o transporte da mercadoria aprofundou a prática da apropriação das terras
frente a sua valorização.
As terras devolutas em território catarinense
A modernização dos meios de produção, a aceleração do padrão de crescimento e a aurora
burguesa, para utilizar uma expressão de Prado Junior, assinalam o momento de
transformação econômica que deságua na republica burguesa. Este momento foi descrito por
Caio Prado Junior da seguinte maneira,
A larga expansão das forças produtivas e o progresso material a que assistimos nos
últimos decênios do Império ainda se ativarão mais com o advento da República. Os
anos que se seguem e o primeiro decênio do século atual assinalam o apogeu desta
economia voltada para a produção extensiva e em larga escala, de matérias-primas e
gêneros tropicais destinados à exportação. (PRADO JUNIOR, 2008:207)
De acordo com o autor a transformação do regime de trabalho, o trabalho livre, impulsionou o
trabalhador a se estabelecer por conta própria. Mas esse trabalhador iria se defrontar com
obstáculos intransponíveis para aquisição de uma propriedade, já que uma das possibilidades
seria o grande fazendeiro, diante de uma das sucessivas crises da agricultura, retalhar sua
propriedade. Para Prado Junior “Um dos mais importantes fatos da moderna fase da
economia agrária brasileira é o processo de retalhamento da propriedade fundiária rural e o
aparecimento em escala crescente, da pequena propriedade, quase ausente no passado”
(PRADO JUNIOR, 2008: 249).
O Estado de Santa Catarina, desde o inicio de seu processo de povoamento destacou-se por
atender aos ordenamentos jurídicos relativos à questão de terras, posto que, de maneira geral,
a dimensão espacial das terras concedidas por intermédio de carta de sesmaria, doação de
terras e nos lotes coloniais se aproximavam das indicadas pela legislação. De tal prática
resultou uma estrutura baseada na pequena propriedade.
A necessidade do povoamento do território catarinense se constituiu em constante
preocupação de seus governantes, e, a possibilidade da venda das terras devolutas, ou
públicas, a partir da República além de abrir enormes possibilidades para atingir tal objetivo,
se transformou aos olhos das autoridades em um excelente instrumento de aumento do
patrimônio público.
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Na mensagem enviada à Assembleia Legislativa, em 1889, ao se referir as terras devolutas o
governante reconhecia que ainda estava por ser cumprida a determinação da Lei 3397 de 24
de novembro de 1888 que em seu Art.7º §3,
Ficam concedidos a cada uma das Províncias do Império, no mesmo ou em
diversos lugares do seu território, 360.000 hectares de terras devolutas, para
serem aplicadas á colonização, ou vendidas a particulares em lotes,
previamente medidos e demarcados segundo o sistema que for estabelecido
pelas respectivas Assembleias Províncias.
São excluídas desta concessão as terras situadas ao lado das vias navegáveis,
das estradas de ferro do Estado e das que gozarem da sua garantia; podendo o
Governo concede-las gratuitamente ás companhias ou estradas de ferro e de
navegação para fundação de núcleos coloniais. (MEDEIROS, 1889:25)
E enfatizava não pretender abrir mão da possibilidade de aumentar o patrimônio da
Província, e por este motivo ordenou que fosse feita a “discriminação das fertilíssimas terras
devolutas do Distrito Sahy a fim de estabelecer-se um núcleo colonial de nacionais e
estrangeiros, ou dividir-se em lotes para vender a particulares, conforme for estabelecido pela
Assembleia Provincial” (IDEM).
O governador Tenente Coronel Felippe Schmidt , em 1902, lamentava a situação econômica
do Estado, e as consequências em relação ao mercado de terras, ao ressaltar que “a falta de
numerário, decorrente da desvalorização dos produtos agrícolas, vai por sua vez afetar uma de
nossas fontes de renda- a venda de terras e pagamento da divida colonial”. (SCHMIDT,
1902:33). E, apesar do pequeno número de lotes medidos e concessões efetivadas, o
governante reafirmava a concepção, sempre presente nas ações governamentais desde o
período imperial, relativas à dimensão espacial das concessões. Informava o governante que
nas concessões que tinha feito predominava a preocupação de evitar “a cessão em globo de
grande porção de terras o que, podendo produzir uma renda aparentemente avultada, iria
entregar à especulação dos grandes concessionários uma área cuja colonização somente com
morosidade seria levada a efeito”. (SCHIMIDT, 1902: 33).
A questão do patrimônio público e sua discriminação constituiu-se em uma preocupação
governamental que pode ser observada na mensagem do Vice-Governador Vidal José de
Oliveira Ramos Junior à Assembleia Legislativa em 1903, ao se referir ao relatório do
Secretario Geral dos Negócios do Estado no qual era possível se analisar “as medidas que
devem ser prontamente adotadas, não só para evitar a espoliação do patrimônio do Estado,
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como para reivindicar extensas áreas de terras, incorporadas ao domínio privado por meio de
fraudulentas legitimações e fantásticas medições” (RAMOS JUNIOR, 1903:27).
Essa questão permaneceu na pauta do debate governamental a ponto de em 1911, o
Governador Vidal José de Oliveira Ramos Junior, se referir à questão das térreas devolutas da
seguinte maneira:
A discriminação das terras devolutas é uma necessidade que se vai acentuando dia a
dia, pelos grandes embaraços que a falta de conhecimento exato da extensão e dos
limites e confrontações das terras publicas, cria ao serviço de colonização e
localização de imigrantes.
O assunto é digno da vossa atenção e reclama providencias, em minha opinião,
inadiáveis.
Durante o ano findo foram feitas 574 concessões de terras devolutas, medindo 56.078
hectares, 3 legitimações e 18 medições de posses criminosas.
Foram extraídos 414 títulos definitivos. O número de requerimentos relativos aos
serviços de terras informadas em 1910 atinge a soma de 1701. (RAMOS, 1911:44).
As informações contidas na Sinopse da administração do Estado relativas ao quatriênio 1910-
1914 dimensionam a importância da privatização das terras devolutas, posto que de acordo
com o governante no período citado “procederam-se a 9 legitimações de terras que
representam 10.869 hectares. No mesmo período forma feitas 1935 concessões de terras
devolutas, representando mais ou menos 58.050 hectares e expedidos 1.130 títulos
definitivos” (RAMOS, 1914:193).
Com a expansão do serviço de terras públicas e o reconhecimento da importância do mercado
de terras devolutas para a renda governamental, o Governador Felippe Schmidt em 1917,
além de reconhecer que as agências do Comissariado de terras eram insuficientes, entendia
que diante da importância de tal serviço para a formação da renda, deveria ser analisada a
possibilidade do aumento do preço dessas terras, posto que Santa Catarina fosse o Estado em
que “as concessões são feitas a mais barato preço, o que talvez se precise modificar tendo-se
em vista a grande procura e rápida valorização das terras” (SCHMIDT, 1917:41). Para tanto
estabeleceu o preço da venda das terras devolutas entre 1,2 a 2 reis por metro quadrado, sem
incluir os custos da medição e dos emolumentos1 sobre os títulos expedidos. De acordo com o
governante, “Esse fato aliado ao maior incremento que se deu ao serviço de medições e ainda
1 Emolumentos são taxas remuneratórias de serviços públicos, tanto notarial, quanto de registro, configurando
uma obrigação pecuniária a ser paga pelo próprio requerente.Fundamentação: Artigos 98, §2º; e 236, §2º, ambos
da CF.7 de abr de 2010
9
à maior procura por parte dos colonos, tem feito crescer todos os anos a arrecadação
proveniente da venda das terras”, com a ressalva de que “Todas as concessões de terras que
tenho feito são em lotes geralmente de 30 hectares, para terras de cultura e até de 90 hectares
para as de criação”. (IDEM, p.24). E justificava sua sistemática de concessões com o seguinte
argumento:
Para melhor aproveitamento das terras e rápido desenvolvimento das novas colônias, muito
convém que sejam formados pequenos núcleos, racionalmente divididos em lotes, afim de
melhor aproximar os novos povoadores e facilitar a ação administrativa, relativamente à
viação, instrução e policiamento. (IDEM, p.25).
Quanto ao serviço de colonização, informava o governador Felippe Schmidt,
[...] Atualmente o serviço de colonização quase que se limita somente à venda de lotes
a indivíduos nacionais, ou a estrangeiros já domiciliados no Estado, porque a
conflagração europeia estancou, por completo, todas as correntes migratórias.
Ainda assim o serviço de colonização feito com elementos nacionais ou já aqui
domiciliado, se por um lado desloca parte de uma população para um ponto em
prejuízo de outro, vai concorrendo para o aumento da nossa produção agrícola e para
que sejam desbravadas e conhecidas regiões ate então desabitadas e incultas e que
começam agora a ser povoadas. (SCHMIDT, 1918:48).
A contribuição da colonização para ocupação de fronteiras abertas e, consequentemente a
possibilidade de aumento da produção agrícola, sempre foi muito louvada e estimulada pelos
governantes catarinense. Com a consciência da posição econômica do estado no cenário
nacional, a necessidade de estímulos visando o desenvolvimento da agricultura era
considerada fundamental. Para tanto entendia o governante em 1923 que “Com uma vida
industrial apenas em formação, é da terra que Santa Catarina continua a tirar grande parte de
sua riqueza, feição econômica que devemos conservar com carinho e que decorre da própria
generosidade do nosso solo e da índole e tradições de nossa gente” (LUZ, 1923:48). E
prosseguia,
Quanto mais solida e prospera for a nossa atividade agrícola, tanto mais seguro, o
mais rápido e mais salutar será também o nosso desenvolvimento fabril, que, apesar
de modesto, já conquistou renome para o trabalho catarinense no resto do país.
Amparar e desenvolver o trabalho dos campos há de ser, por muito tempo, o ponto
principal da política econômica em nosso Estado (IDEM).
Porém, destacava a situação na área litorânea,
Se, na pecuária, nos últimos tempos, temos um bom caminho andado no sentido de melhorá-la,
forçoso é reconhecer que a nossa lavoura, ao menos nos velhos municípios do litoral, se
conserva rotineira e decadente, notando-se, aqui e ali, tendência ao êxodo do campo, com
grande mal para as populações roceiras e para a economia do Estado. (IDEM: 49)
Ao mesmo tempo em que alertava,
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É tempo, pois, de sistematizar e intensificar uma ação pelo levantamento da lavoura, ensinar o
nosso pequeno agricultor a recolher do trabalho da terra a soma de bem estar e independência
que ela lhe pode dar, fortalecer, por toda parte, o sentimento rural, nobilitando o individuo e
engrandecendo a coletividade (IDEM: 49).
Da mesma forma que seus antecessores, o governador exaltava a característica da estrutura
fundiária do Estado estar assentada na pequena propriedade,
Ao clima e constituição do solo que se prestam as mais varias culturas, associa-se o regime de
pequena propriedade, que permite a cada um ser o dono de uma gleba, com a invejável
independência de poder produzir na sua terra todo o necessário para a manutenção.
O que noutras partes as procura conseguir por leis especiais, que impeçam a formação de
latifúndios e facilitem a divisão dos existentes, temo-lo aqui, pelos próprios processos por que
nos correr dos tempos se operou o povoamento de nossas terras, e convém assinalar que, a esse
respeito as nossas condições são as melhores dentre os Estados brasileiros, conforme
demonstrou o censo de 1920 que registrou para cerca de 90% de nossas propriedades rurais
uma área inferior a 100 hectares.
Essa face da nossa organização agrícola, da qual tantas vantagens defluem, tem o Governo
curado de preservar e estimular, para o que, invariavelmente, tem exigido, mas concessões de
grandes áreas, a colonização e consequente parcelamento das mesmas, em determinados
prazos. (IDEM: 50).
Com relação às terras devolutas a situação em 1923, de acordo com o relatório do governador,
apesar da situação política, o mercado de terras foi bastante animado, posto que os dados
indiquem que somaram 206 o número de concessões de terras que representavam 292.476.554
metros quadrados, excluindo-se as áreas de terras concedidas em virtude de contratos
especiais. Foram expedidos 686 títulos de terras, inclusive os destinados a pagamento de
estradas, com a área total de 3.519.226 hectares.
O mercado de terras prosperava a um ritmo que entusiasmava as autoridades a ponto de o
Governo estadual aprovar em 1923 os decretos nº7 de 24 de janeiro, e nº 18 de 28 de fevereiro
e nº 19 de 5 de março, que alteraram os preços de venda das terras devolutas e as tabelas de
emolumentos sobre títulos de metragem. O governador Hercílio Pedro da Luz justificou sua
atitude mediante o fato de os preços das terras vigorem há mais de vinte anos e a crescente
procura e valorização das terras justificavam sua atitude.
Mercado de terras tão promissor e bem sucedido que, já em 1924, o governador Antonio
Pereira da Silva e Oliveira reconhecia que diminuíam as áreas de terras devolutas, apesar
dessa constatação, no transcorrer de 1923 foram realizadas 468 concessões de terras, numa área
de 193.674.064 metros quadrados e num valor aproximado de 486.303$000, excluídas as terras
concedidas por contratos especiais, para pagamento de construção de estradas. E a arrecadação das
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taxas de mediação e emolumentos de títulos subiu em decorrência dos atos legais emitidos pelas
autoridades governamentais que reajustaram o preço das taxas.
A ocupação de áreas de terras devolutas, no entanto, não foi acompanhada de uma melhor situação da
agricultura do Estado, posto que, em 1924 o governante observava que,
Está reclamando sérios cuidados o trabalho dos campos, em que se ocupam seguramente nove
décimos da nossa população. Decaem velhas culturas, como as de arroz, feijão e farinha de
mandioca, mal grado a animação dos mercados; replantam-se indefinitamente as mesmas
sementes, sem os cuidados da seleção; e só lentamente e a muito custo vão abrindo caminho os
processos racionais de cultura. Zonas rurais, outrora celeiros de frutos da terra, e de
povoamento muito antigo, vão ficando abandonadas e colorindo de vassourais, porque durante
séculos, tudo se tirou da terra, mas nada se lhe restituiu. (OLIVEIRA, 1924:39)
E em relação à situação da população afirmava
Estabelece-se o êxodo das populações dessas zonas, que ou emigram para as cidades, onde vão
viver de salário, ou caminham para o oeste, à procura de terras novas, onde a coivara recente
produz com mais fartura e menos trabalho, pouco se importando com se despedirem do torrão
natal, a que se acham vinculados por muitas gerações, mas que dolorosamente espoliaram.
(IDEM)
E conclui o governante,
Formaram-se, dessa sorte, verdadeiros vazios de trabalho entorno das nossas velhas cidades
marítimas e tornaram-se desaproveitadas extensas regiões, cujo amanho seria mais
compensador do que em qualquer outra parte, pela proximidade dos mercados de consumo e
consequente melhor colocação do produto. Não nos deve faltar energia para reanimar e
restaurar esses velhos centros rurais, quando a possuiu para conquistar os sertões e abrir
colônias e povoados nas matas isoladas do extremo oeste. Basta que encaremos o problema
com decisão, para o resolver, ou pelo repovoamento paulatino dessas terras com elementos
novos, aproveitando-se a imigração que ora, em levas numerosas, procura o nosso Estado, ou
estimulando nessas zonas o trabalho agrícola, com os próprios elementos nelas estabelecidos,
pela introdução ou restabelecimento de culturas compensadoras. (IDEM: 50).
Ao final da primeira República o governante reconhecia que
Já não tem o Estado as preocupações do problema imigratório, por não mais dispor de grandes
extensões de terras devolutas que permitam a colonização em larga escala.
A não ser nos municípios do ex-Contestado, as terras devolutas constituem tão pequenas
disponibilidades que a sua concessão deve ser feita com muita parcimônia, pois, convém
permaneçam como reserva para atender o natural crescimento das populações locais.
(KONDER, 1928:76)
Dessa forma, pode-se observar que ao longo do período inicial da República, a política de
terras adotada teve por base a venda de terras devolutas destinadas à colonização estrangeira
ou nacional que objetivava ao mesmo tempo a ocupação e o incremento do patrimônio
publico por intermédio da expansão do mercado de terras, submetido à lógica capitalista da
privatização dos espaços públicos.
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Considerações finais
As práticas desenvolvidas pelas autoridades catarinenses durante as primeiras décadas do
século XX indicam que, diante dos atos constitucionais que transferiram administração das
terras devolutas para os Estados, os governantes vislumbraram a grande possibilidade de
incremento do patrimônio público.
No período a questão fundiária foi enfrentada através da “política de mercado”, ou seja, a
venda das terras devolutas visando o povoamento das fronteiras abertas e o desenvolvimento
da agricultura. No entanto, ao se analisar as mensagens e relatórios das autoridades o caráter
ideológico do discurso que permeou as ações governamentais desnuda-se, posto que, era
recorrente a preocupação com a diminuição do movimento imigratório e suas consequências
para o mercado de terras e para o patrimônio público.
A transformação da terra em mercadoria, em objeto de compra e venda, e, portanto em
excelente fonte de renda governamental, induziu as autoridades a se preocuparem com o
processo de discriminação das terras públicas, e com a majoração dos preços das terras diante
da crescente procura e valorização das terras.
Depreende-se, portanto, que ao se constituir em uma mercadoria à disposição da economia de
mercado, ao transformar-se em propriedade privada, e por sua característica de produtora
natural de bens e matéria prima, a ideia de propriedade patrimoniada resultará na concepção
de que toda a terra do país estaria destinada a ser privada e produtiva.
Ao final da primeira república o governo do Estado de Santa Catarina, assim como o restante
do país, viu predominar a concepção e a prática identificada com a modernidade capitalista
que transformou a terra em mercadoria e, portanto, em uma propriedade privada individual,
de acordo com a concepção econômica, jurídica, política e social próprio do fundamento
liberal. As autoridades governamentais renderam-se a realidade de que a terra passou a ser
uma mercadoria como outra qualquer, e que, trazia consigo uma reserva de valor, sujeita a
especulação do capital.
Referência Bibliográfica
13
CASTRO, Mariângela Conceição Vicente Bergamini de Castro. O principio da função
social da propriedade: empresa. Marília, 2008. Dissertação de mestrado em Direito,
Universidade da Marília.
FOSTER, Germano de Rezende. A privatização das terras públicas. Barueri: Manole, 2003.
GOULART FILHO, Alcides. Formação econômica de Santa Catarina. Florianópolis:
Cidade Futura, 2002.
JONES, Alberto da Silva Jones- O mito da legalidade do latifúndio: legalidade e grilagem no
processo da ocupação das terras brasileiras (do Instituto da Sesmaria ao Estatuo da Terra). Disponível
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