15
PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2016 (13 a 15 de outubro de 2016) Entre a tela e o campo: a ‘competente’ gestão empresarial dos afetos na Escola do Amor 1 Emanuelle Gonçalves Brandão Rodrigues 2 Mestre em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco Karla Regina Macena P. Patriota 3 Professora dos cursos de Publicidade e Propaganda e de Mestrado e Doutorado na Universidade Federal de Pernambuco Resumo O desafio prioritário que nos moveu na produção deste texto, fruto de uma pesquisa maior iniciada em 2014, é o de mostrar como o discurso sobre os afetos, na Igreja Universal do Reino de Deus IURD, segue a mesma lógica da economia de mercado. Para isso, lançamos mão de uma abordagem sociodiscursiva (que vê o campo como elemento-chave) que nos permitiu analisar as técnicas empregadas pelo casal Cardoso (apresentadores da Escola do Amor) como meios para se alcançar determinados fins, principalmente a partir de noções recorrentes no mundo corporativo e que seguem a lógica da felicidade institucionalizada pelos sistemas especializados da contemporaneidade. Palavras-chave: Religião; Gestão econômica; Casamento-empresa; The Love School. Introdução O que não falta no mundo hoje são os discursos ditos ‘competentes” ou especialistas. Prova disso, são as abundantes e assertivas fórmulas, que reclamam para si a legitimidade de quem ‘sabe o que diz’, estas que, na contemporaneidade, abarrotam as prateleiras das livrarias na seção de autoajuda. São narrativas ancoradas em estruturas de gestão e pautadas em histórias de vida circunscritas ao cotidiano das pessoas comuns, que têm ressonância porque emergem em um universo fragmentado, típico da contemporaneidade, e que segundo Campos (1997, p.325-326), é 1 Trabalho apresentado no Grupo de Trabalho 01 COMUNICAÇÃO E CONSUMO: cultura empreendedora e espaço biográfico, do 6º Encontro de GTs de Pós-Graduação- Comunicon, realizado nos dias 14 e 15 de outubro de 2016. 2 Mestre em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e bacharela em Comunicação Social Relações Públicas pela Universidade Federal de Alagoas (Ufal). E-mail: [email protected] 3 Doutora em Sociologia e mestre em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), é professora dos cursos de Publicidade e Propaganda e Mestrado e Doutorado da UFPE. E-mail: [email protected].

Entre a tela e o campo: a ‘competente’ gestão ...anais-comunicon2016.espm.br/GTs/GTPOS/GT1/GT01-EMANUELLE_RODRIGUES... · Com mais de 20 anos de experiência em terapia e aconselhamento

  • Upload
    lambao

  • View
    216

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Entre a tela e o campo: a ‘competente’ gestão ...anais-comunicon2016.espm.br/GTs/GTPOS/GT1/GT01-EMANUELLE_RODRIGUES... · Com mais de 20 anos de experiência em terapia e aconselhamento

PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2016 (13 a 15 de outubro de 2016)

Entre a tela e o campo: a ‘competente’ gestão empresarial dos afetos na Escola

do Amor1

Emanuelle Gonçalves Brandão Rodrigues2

Mestre em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco

Karla Regina Macena P. Patriota3

Professora dos cursos de Publicidade e Propaganda e de Mestrado e Doutorado na

Universidade Federal de Pernambuco

Resumo

O desafio prioritário que nos moveu na produção deste texto, fruto de uma pesquisa maior iniciada em

2014, é o de mostrar como o discurso sobre os afetos, na Igreja Universal do Reino de Deus – IURD,

segue a mesma lógica da economia de mercado. Para isso, lançamos mão de uma abordagem

sociodiscursiva (que vê o campo como elemento-chave) que nos permitiu analisar as técnicas

empregadas pelo casal Cardoso (apresentadores da Escola do Amor) como meios para se alcançar

determinados fins, principalmente a partir de noções recorrentes no mundo corporativo e que

seguem a lógica da felicidade institucionalizada pelos sistemas especializados da

contemporaneidade.

Palavras-chave: Religião; Gestão econômica; Casamento-empresa; The Love School.

Introdução

O que não falta no mundo hoje são os discursos ditos ‘competentes” ou especialistas.

Prova disso, são as abundantes e assertivas fórmulas, que reclamam para si a legitimidade de

quem ‘sabe o que diz’, estas que, na contemporaneidade, abarrotam as prateleiras das livrarias na

seção de autoajuda.

São narrativas ancoradas em estruturas de gestão e pautadas em histórias de vida

circunscritas ao cotidiano das pessoas comuns, que têm ressonância porque emergem em um

universo fragmentado, típico da contemporaneidade, e que segundo Campos (1997, p.325-326), é

1 Trabalho apresentado no Grupo de Trabalho 01 – COMUNICAÇÃO E CONSUMO: cultura empreendedora e

espaço biográfico, do 6º Encontro de GTs de Pós-Graduação- Comunicon, realizado nos dias 14 e 15 de outubro de

2016. 2 Mestre em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e bacharela em Comunicação Social –

Relações Públicas pela Universidade Federal de Alagoas (Ufal). E-mail: [email protected] 3 Doutora em Sociologia e mestre em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), é professora

dos cursos de Publicidade e Propaganda e Mestrado e Doutorado da UFPE. E-mail: [email protected].

Page 2: Entre a tela e o campo: a ‘competente’ gestão ...anais-comunicon2016.espm.br/GTs/GTPOS/GT1/GT01-EMANUELLE_RODRIGUES... · Com mais de 20 anos de experiência em terapia e aconselhamento

PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2016 (13 a 15 de outubro de 2016)

um dos fundamentais motivos para a produção de discursos, por parte do mercado, que visam à

instrumentalização dos sentimentos, com “um conjunto de receitas, uma filosofia totalizante e

regras comportamentais, que mesmo simplistas ofereçam alguma promessa de integração

biográfica”.

Contudo, mesmo em meio à abundância de discursos circulantes, entendemos que não são

todos que estão autorizados a dizer qualquer coisa. A autoridade, por conseguinte, parte da

legitimidade, da competência de um poder que, por princípio, vem de baixo, do reconhecimento

do grupo. Exatamente como postulou Bourdieu (2012, p.145), nos termos de que “o

reconhecimento da legitimidade mais absoluta não é outra coisa senão a apreensão do mundo

comum como coisa evidente, natural, que resulta da coincidência quase perfeita das estruturas

objectivas e das estruturas incorporadas”, resultado, por conseguinte, das interações efetuadas nos

diferentes campos por meio de trocas simbólicas. Estas, devemos dizer, condicionadas à posição

ocupada por cada agente e ao acúmulo de capital de simbólico, elementos determinantes sobre as

formas de relação no campo.

Tendo tal perspectiva como ‘norte’ e considerando que ideais e identidades são

construídos no discurso, seguimos a risca a proposição de Hall (2013, p.109) de que “precisamos

compreendê-las como produzidas em locais históricos e institucionais específicos, no interior de

formações e práticas discursivas específicas, por estratégias e iniciativas específicas”. Esse,

portanto, é o desafio prioritário que nos move na produção deste texto. Fruto de uma pesquisa

maior, iniciada em 20144, e que incorporou, entre seus objetivos, o de mostrar como o discurso

sobre os afetos, na Igreja Universal do Reino de Deus – IURD, segue a mesma lógica da

economia de mercado, lançaremos mão da abordagem sociodiscursiva (que vê o campo como

elemento-chave), imprescindível para a análise que intencionamos aqui.

A nossa proposição, deste modo, é analisar a atuação da IURD, em especial, na sua

“Escola do Amor”, lócus discursivo que corrobora, de forma inequívoca para o entendimento de

que “(...) o caminho para a vida feliz tende a ser pavimentado, atualmente, por apropriações

informais e ecléticas de saberes e práticas de uma renovada cultura psicológica e de um estendido

4 O presente artigo é um pequeno recorte da dissertação Pedagogias de um “amor inteligente”: empreendorismo e

racionalização dos afetos na Escola do Amor da Igreja Universal do Reino de Deus, defendida no PPGCOM da

UFPE, em dezembro de 2015, de autoria de Emanuelle Rodrigues e orientação de Karla Patriota.

Page 3: Entre a tela e o campo: a ‘competente’ gestão ...anais-comunicon2016.espm.br/GTs/GTPOS/GT1/GT01-EMANUELLE_RODRIGUES... · Com mais de 20 anos de experiência em terapia e aconselhamento

PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2016 (13 a 15 de outubro de 2016)

campo terapêutico” (FREIRE FILHO, 2010b, p.4), campo este que, a nosso ver, a Igreja

Universal do Reino de Deus sabe, como nenhuma outra denominação religiosa, solidificar.

Casamento-empresa: a gestão empresarial na esfera familiar

“Há um elemento de ação humana que não pode ser analisado dentro do modo econômico

e maximizante e que foge à nossa compreensão quando o analisamos dessa forma. Esse elemento

é o aspecto empresarial de toda ação humana.” (BOETKE, 1996, p.239). A ação que o autor se

refere tem a ver com o planejamento sistemático do futuro com vistas a prevenir-se de possíveis

crises, logo, trata-se de um agir economicamente orientado. Porém, para além da perspectiva da

economia tradicional, que vê as escolhas como um problema de matemática aplicada, a ação

humana

abrange também a percepção do quadro de fins e meios dentro do qual a atividade

econômica vem a surgir. O homo agens (o “agente humano”) não apenas tem a

propensão a perseguir objetivos de forma eficaz, uma vez claramente identificados

fins e meios, como possui também a consciência alerta, ou perspicácia, para

identificar que fins devem ser perseguidos e que meios estão disponíveis

(BOETKE, 1996, p.239-240).

Como um agente da mudança – de si e, consequentemente, do mundo ao redor –, o

indivíduo é percebido, sob esse ponto de vista, como alguém capaz de orientar suas ações para

alcançar os objetivos traçados. Estes, por sua vez, são construídos a partir de uma lógica de

campo que se estrutura nas relações objetivas, daquilo que é desejado por um determinado grupo

que não apenas socializa subjetividades, ou seja, um habitus – disposições incorporadas

(BOURDIEU, 2012) –, mas mantém permanentemente uma luta pelo poder de hierarquizar e

impor uma visão legítima do mundo. Nesse processo constante de luta, alguns agentes acumulam

mais capital simbólico, sobressaindo-se em relação aos demais – e “inspirando” mais que outros.

Disso decorre o reconhecimento compartilhado da palavra, do que pode ser dito por alguns e por

outros não, de quem pode dar o melhor exemplo e ganhar visibilidade versus quem deve ser

“apagado” da cena.

Quando Renato e Cristiane Cardoso afirmam que a melhor forma de homens e mulheres

resolverem seus problemas conjugais é “tratar seu casamento como uma empresa” (CARDOSO;

CARDOSO, 2012, p.59), o fazem porque são portadores daquilo que Chauí (2015) chama de

Page 4: Entre a tela e o campo: a ‘competente’ gestão ...anais-comunicon2016.espm.br/GTs/GTPOS/GT1/GT01-EMANUELLE_RODRIGUES... · Com mais de 20 anos de experiência em terapia e aconselhamento

PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2016 (13 a 15 de outubro de 2016)

“discurso competente”, daqueles que exercem o poder de impor uma visão legítima, em

detrimento dos “incompetentes, que executam ordens ou aceitam os efeitos das ações dos

especialistas” (CHAUÍ, 2015, p.18). Com mais de 20 anos de experiência em terapia e

aconselhamento de casais, são considerados especialistas em relacionamento conjugal. Autores de

vários livros sobre o tema, já palestraram em mais de 30 países e são apresentados como

responsáveis pela criação de uma série de projetos que visam dar “orientações práticas para

aqueles que reconhecem o valor da vida conjugal e desejam resguardá-la do risco da separação”.5

Tido como um “tipo de trabalho”, uma “empresa”, o casamento é figurativizado numa

instituição que precisa ser gerida profissionalmente e de forma competente por motivações

racionais. Dela se espera “lucros” para todos os integrantes, que devem agir como equipe. Esta,

por sua vez, possui um único líder, o homem, responsável por guiar e pensar pelo todo. Já a

mulher é vista como seu braço direito, a quem cabe a tarefa de manter tudo organizado de acordo

com a missão da empresa, pois “quando se faz auxiliadora dele, ajudando-o a alcançar seus

objetivos, ela se torna preciosíssima para ele” (CARDOSO; CARDOSO, 2012, p.133), que “deve

aceitar essa ajuda [...], pois ela é um recurso que Deus usa para ajudá-lo a ter equilíbrio”

(CARDOSO; CARDOSO, 2012, p.128).

O casal ratifica, de forma constante, que se trata de “um processo lógico e racional, não

emotivo” (CARDOSO; CARDOSO, 2012, p.81), apresentando, paralelamente, as “ferramentas”

necessárias para a gestão eficaz não só do casamento, mas da família6 como um todo, usando

exemplos verdadeiramente pedagógicos – deles e de seus ‘pacientes’7 – para se entender a

aplicabilidade do que é exposto. Recorrendo ao conceito de interdiscurso, como um conjunto de

discursos que se articulam entre si, pertencendo ou não a uma mesma formação discursiva

(MAINGUENEAU, 2008), é possível inferir sobre a heterogeneidade constituinte do discurso da

marca The Love School como não apenas arbitrária, mas um recurso estratégico para alcançar

alocutários múltiplos e também segmentados, agrupados entre os públicos consumidores, atuais e

potenciais.

5 Informações retiradas de http://entretenimento.r7.com/love-school-escola-amor/quem-somos-10042015. Acesso em 01 mai.

2016. 6 Especificamente o núcleo família – pai, mãe e filhos. 7 O termo ‘paciente’ não é usado no discurso do casal de apresentadores, contudo, optamos por seu uso aqui para evidenciar o

aspecto terapêutico de sua influência nas orientações prescritas.

Page 5: Entre a tela e o campo: a ‘competente’ gestão ...anais-comunicon2016.espm.br/GTs/GTPOS/GT1/GT01-EMANUELLE_RODRIGUES... · Com mais de 20 anos de experiência em terapia e aconselhamento

PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2016 (13 a 15 de outubro de 2016)

O discurso sobre o casamento-empresa ganha sentido em um universo de outros discursos

na apropriação cíclica de domínios de campos distintos, por vezes de essência ‘antagônica’, mas

geralmente complementares, o que defendemos ser o diferencial, em termos de posicionamento

de marca, da The Love School. Recorrem, primeiramente, às noções do mundo corporativo, que,

aponta Ehrenberg (2010, p.20), tem buscado na mitologia esportiva as referências para a

construção de um modelo de indivíduo empreendedor, visionário e com espírito de equipe, sendo

o esporte “uma técnica de fabricação da autonomia, uma aprendizagem do governo de si mesmo

que se desenrola tanto na vida privada quanto na vida pública”.

Às noções de empresa e equipe se unem, em segundo lugar, nos termos ligados ao campo

da psicologia, como terapia, consultório, pacientes etc, autenticando o caráter especialista do

discurso do casal Cardoso. Todavia, é importante ponderar que a relação entre os discursos

corporativos e afetivos não é nova, mas tem se constituído em um longo processo que deriva, em

essência, da assimilação do estilo afetivo pelo comportamento econômico e, juntamente, do

desenvolvimento do capitalismo ao longo do último século. Assim, “a linguagem da afetividade e

da eficiência produtiva foram se entrelaçando cada vez mais, uma moldando a outra” (ILLOUZ,

2011, p.25), resultando na equivalência, em termos discursivos, entre saúde e autorrealização.

Por fim, em meio à constelação de domínios, que se fundem no discurso em questão,

vemos emergir o discurso pedagógico da escola para validar todos os outros, instituindo códigos

de valores que transitam no campo do ensino. Ao se apresentarem como professores e se

dirigirem aos diversos públicos como “alunos”, Renato e Cristiane estabelecem uma distância de

“conhecimento” com os outros, reiterando seu lugar de autoridade, como portadores de um saber

especializado, fruto de anos de dedicação e experiência. Afinal, são empreendedores,

empresários, terapeutas e professores ‘do amor’. Por conseguinte, é transitando em vários campos

que o casal organiza sua identidade a partir da posição de destaque que ocupa em cada um deles e

da incorporação de diversos habitus, validando todas as cenas em que emergem seus enunciados.

Considerando os três grandes domínios que materializam o discurso da marca, a relação

mais evidente entre eles está no modo de conceber a vida, logo, o casamento também, como

aquilo que deve ser manipulado e gerido competentemente e com base na razão. Outro importante

domínio emerge nesses enunciados: o religioso. Sacrifício e investimento, apesar de serem

Page 6: Entre a tela e o campo: a ‘competente’ gestão ...anais-comunicon2016.espm.br/GTs/GTPOS/GT1/GT01-EMANUELLE_RODRIGUES... · Com mais de 20 anos de experiência em terapia e aconselhamento

PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2016 (13 a 15 de outubro de 2016)

utilizados com muita recorrência em outros campos, neste, e em especial, no âmbito da Igreja

Universal, remete a um sentido de despojamento de tempo, oferta de dinheiro e crença no “divino

retorno”, alicerces estruturantes da Teologia da Prosperidade - TP8.

“Para um casamento funcionar, você tem que investir no racional”9 é uma afirmação

constante do casal, atitude considerada necessária para o funcionamento da relação: “antes,

durante, depois do namoro ao casamento, sempre é tempo de investir na relação”10

. Após sofrer

por mais de uma década problemas comuns a todo casamento, Renato e Cristiane endossam que

“para resolver qualquer problema são preciso duas coisas: o querer mudar e a ajuda certa”.11

Cristiane explica que ao tomar essa atitude, sempre considerando a responsabilidade de cada um

pelo direcionamento de sua vida e a superação das crises, sua relação foi restaurada: “antes eu só

via o problema do meu parceiro, Renato, e nós não resolvíamos os nossos problemas depois do

casamento. Quando eu comecei a olhar pra mim e resolver os meus problemas pessoais foi

quando nós começamos a ter felicidade no casamento”.12

Com tais entendimentos como

norteadores, a receita para escrever o livro ‘Casamento Blindado’ foi simples e didática:

Exemplos pessoais, tarefas estimuladoras e ferramentas práticas para resolver os

problemas na raiz. [Renato] Agora com mais de dois milhões e meio de cópias

vendidas, e pelo segundo ano consecutivo na lista dos livros mais vendidos, o

Casamento Blindado saiu do Brasil e ganhou o mundo. […] [Cristiane] E a cada

casamento refeito, a cada relação bem sucedida, a cada família reconstruída,

sentimos que o nosso objetivo vem sendo alcançado. Isso porque acreditamos que

apesar das altas taxas de divórcio, as pessoas querem continuar casadas, serem

8 Com um peculiar discurso banhado de autoajuda, valorização do individuo, cura divina, prosperidade material e

poder da fé através da confissão da palavra e no Nome de Jesus, a TP é a base teológica da IURD e demais igrejas

agrupadas no neopentecostalismo. 9

Renato (24:39) em CANAL THE LOVE SCHOOL.Todo mundo quer casar. Disponível em:

<https://www.youtube.com/watch?v=LBKDDeV6p8Q&list=PLQ5Pn_wB-6D09brTGaL1HIN5kqhtbsF3t&index=2>

Acesso em Jun.2015 10

Cristiane (02:46) em CANAL THE LOVE SCHOOL.Namoro nos dias atuais. Disponível em:

<https://www.youtube.com/watch?v=Y-S-PpcG73Q&list=PLQ5Pn_wB-6D0yOm3RjwtPrmgiXH-U1f0A&index=2>

Acesso em Jul.2015. 11

CANAL THE LOVE SCHOOL. Profissão e relacionamento. Disponível em:

<https://www.youtube.com/watch?v=ji1pACiqEZY&list=PLQ5Pn_wB-6D09brTGaL1HIN5kqhtbsF3t> Acesso em

Jul.2015 12

Cristiane (Idem, 57:01)

Page 7: Entre a tela e o campo: a ‘competente’ gestão ...anais-comunicon2016.espm.br/GTs/GTPOS/GT1/GT01-EMANUELLE_RODRIGUES... · Com mais de 20 anos de experiência em terapia e aconselhamento

PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2016 (13 a 15 de outubro de 2016)

felizes, só não sabem como. E quando leem o livro descobrem que isso é possível

sim.13

Ao percebermos como os discursos da Escola do Amor são orientados na sua propagação

midiática ou nos espaços outros nos quais circulam (templos, palestras, livros etc), a concepção

de gestão como apresentada por Weber (2014) se faz basilar, principalmente para entendermos

como a noção de economia e “ação economicamente orientada” estão presentes nas falas de

Renato e Cristiane. No primeiro caso, falamos de “gestão econômica” quando há o exercício

pacífico do poder que, a princípio, é economicamente dirigido, havendo caráter racional quando

pensada “com referência a fins e de acordo com um plano.” Logo, “uma gestão econômica é

formalmente ‘racional’ na medida em que a ‘previdência’, essencial em toda economia racional,

pode exprimir-se e, de fato, se exprime em considerações de caráter numérico e calculável”

(WEBER, 2014, p.37 e p.52). Refere-se, segundo o autor, aos processos e objetos econômicos

que têm um sentido visado particular, mas uma definição que, para, além disso, deve abranger

a moderna economia aquisitiva, não podendo, portanto, partir das “necessidades de

consumo” e sua “satisfação”, senão, por um lado, do fato (que também se aplica ao

puro interesse em ganhar dinheiro) de que certas utilidades são desejadas, e, por

outro lado, do fato (que também se aplica à pura economia de satisfação de

necessidade, mesmo em sua forma mais primitiva) de que se procura satisfazer

esse desejo mediante determinadas provisões (por mais primitivas ou

tradicionalmente arraigadas que sejam) (WEBER, 2014, p.37-38, grifo do autor).

Entretanto, o autor deixa claro que há distinções entre “ação economicamente orientada” e

“gestão econômica”, visto que a primeira, em oposição à segunda, define-se como uma ação que é

primariamente orientada, mas que considera a “situação econômica” em seu curso, podendo

tomar outro rumo, ou que é determinada pela própria situação econômica, “mas que não se

orienta por ela em primeiro lugar ou não o faz de maneira pacífica” (WEBER, 2014, p.38). No

âmbito corporativo, a noção de gestão econômica parece bastante evidente, seja no bojo das

relações externas, como entre os indivíduos que figuram o público interno da empresa. Meios e

fins são ideias que flutuam nesses espaços e estão intrinsecamente ligadas também a questões de

outras ordens, como o desejo. Porém, o que nos interessa aqui é tangenciar tal relação – e os

sentidos provenientes dela – entre “gestão econômica”, “empresa” e “família”.

13

Cristiane (00:17) em CANAL THE LOVE SCHOOL.Especial: Casamento Blindado. Disponível em:

<https://www.youtube.com/watch?v=zwV26z6J8OY> Acesso em fev. 2015.

Page 8: Entre a tela e o campo: a ‘competente’ gestão ...anais-comunicon2016.espm.br/GTs/GTPOS/GT1/GT01-EMANUELLE_RODRIGUES... · Com mais de 20 anos de experiência em terapia e aconselhamento

PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2016 (13 a 15 de outubro de 2016)

De acordo com Illouz (2011), o sofrimento psíquico e sua recuperação se tornaram “um

negócio de imensa lucratividade e uma indústria muito próspera” (ILLOUZ, 2011, p.63). A

junção entre os discursos religioso e os de autoajuda potencializa as proposições do casal Cardoso

na medida em que oferece, em comparação à concorrência da marca, um universo de soluções

para todo tipo de problema afetivo, pois recorre a saberes de diferentes campos. Ainda mais

quando consideramos os diferentes domínios discursivos que ancoram seus enunciados.

Com o argumento de que educação matrimonial e os conhecimentos úteis relativos ao

casamento são raros, Renato ressalta que sua missão de vida é “fortalecer casamentos, educar

casais e solteiros e lutar para que menos casamentos acabem em divórcio” (CARDOSO;

CARDOSO, 2012, p.17). Para tanto, sob a chancela da marca The Love School, são vendidos uma

série de produtos com a proposta de mostrar às pessoas como elas próprias são capazes de

mudarem suas vidas, pois, em suas palavras, “o problema não tem sido a falta de amor, mas sim a

falta de ferramentas para resolver os problemas inerentes ao viver a dois” (CARDOSO;

CARDOSO, 2012, p.12 grifos dos autores).

Seus argumentos são suficientemente fortes porque falar em gestão empresarial da família

e do casamento é utilizar a razão como princípio da ação que, organizada em termos de economia,

deve se orientar primeiramente pelo fim aplicado (WEBER, 2014), sendo as técnicas apresentadas

pelo casal Cardoso os meios para se alcançar determinados fins de acordo com um plano. Essa

questão do plano e do planejamento, noções recorrentes no mundo corporativo, segue a lógica da

felicidade institucionalizada pelos sistemas especializados que, nesse caso, se refere ao modelo

ideal de autorrealização - incorporado e difundido pelo casal. Tal autorreferenciação é rotineira

em seus discursos: “falamos a partir de experiências pessoais em nosso casamento, e também de

anos de aconselhamento de casais” (CARDOSO; CARDOSO, 2012, p.17).

A busca pela autorrealização como atitude ideal de um indivíduo “saudável” no contexto

da modernidade tardia – que perpassa a cultura afetiva nos modelos ocidentais – figura a

proposição de Boetke (1996, p.239), de que toda ação humana é uma “tentativa contínua de

substituir o atual estado das coisas insatisfatório por um imaginado estado futuro melhor. Os seres

humanos precisam ajustar e reajustar, de maneira mais eficaz, seus meios de alcançar os fins que

perseguem”. Desse modo, ação e racionalidade podem ser entendidos como conceitos inter-

Page 9: Entre a tela e o campo: a ‘competente’ gestão ...anais-comunicon2016.espm.br/GTs/GTPOS/GT1/GT01-EMANUELLE_RODRIGUES... · Com mais de 20 anos de experiência em terapia e aconselhamento

PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2016 (13 a 15 de outubro de 2016)

relacionados (BRUNKHORSTT, 1996), como tem se mostrado evidente no discurso da The Love

School. É certo que – e isso temos discutido ao longo das nossas pesquisas – a marca ancora-se

fortemente na teologia de resultados iurdiana, a TP, mas estende-se para outros campos além do

religioso, ora silenciando sua pertença, ora evidenciando-a de forma estratégica.

A visita ao ‘Reino de Deus’: as modalizações discursivas do casal Cardoso

Parafraseando Bourdieu, Amossy (2011, p.120) explica que “a ação exercida pelo orador

sobre seu auditório não é de ordem linguageira, mas social [...], visto que o princípio da eficácia

da palavra não está em sua ‘substância propriamente linguística’”. A validade da fala deriva, em

parte, de um ser que é também um fazer, algo que se constitui, necessariamente, numa situação de

troca.

Tendo em vista que nosso objeto é essencialmente midiático, não somente porque é

veiculado em meios de comunicação de massa, mas por serem estes elementos estruturantes dos

discursos e estratégias da Igreja Universal, ir a campo é um exercício esclarecedor na medida em

que nos mostra como tais meios interferem no processo de interação social in loco, em um

ambiente teoricamente não midiático – embora haja a presença constante e, às vezes, onipresente

da mídia. Por três meses seguidos, de abril a junho de 2015, visitamos semanalmente o templo de

Salomão14

às quintas-feiras. Imergimos em campo, participamos de cultos, reuniões, palestras,

lançamentos de livros e outros eventos pontuais. Participamos, especificamente, das reuniões da

Terapia do Amor, culto exclusivo da IURD sobre família e relacionamentos afetivos. Nossa

escolha se deveu ao fato de que a reunião passou a ser conduzida por Renato Cardoso e ser

fortemente ligada à marca estudada (The Love School ou A Escola do Amor).

As reuniões são divididas em duas partes: o culto, que dura cerca de uma hora e meia, e a

palestra da Escola do Amor. Os anúncios, no programa televisivo e na internet, só mencionam a

“palestra”. Apesar de cenários diferentes, a ideia de “escola” permeia a fala e a maneira como

deslizam no palco, inclusive utilizando o recurso dos telões com slides didáticos e extremamente

figurativos de suas falas. Maingueneau (2002) definirá esse “quadro” pelo qual se modula a fala

14

Sede mundial da IURD, no Brás, em São Paulo. Considerado o segundo maior espaço religioso do Brasil, é uma

construção inspirada no Templo bíblico de Salomão, em Jerusalém.

Page 10: Entre a tela e o campo: a ‘competente’ gestão ...anais-comunicon2016.espm.br/GTs/GTPOS/GT1/GT01-EMANUELLE_RODRIGUES... · Com mais de 20 anos de experiência em terapia e aconselhamento

PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2016 (13 a 15 de outubro de 2016)

como um tipo de cena: a cenografia, aquilo “é ao mesmo tempo fonte do discurso e aquilo que ele

engendra; ela legitima um enunciado que, por sua vez, deve legitimá-la”, é “a enunciação que, ao

se desenvolver, esforça-se para constituir progressivamente o seu próprio dispositivo de fala”

(2002, p.88 e p.87, grifo do autor).

O discurso pedagógico, por conseguinte, age sobre os alocutários como um meio válido

para se ensinar como todos podem alcançar a eficácia de suas ações através de ações inteligentes,

utilizando recursos do mundo corporativo que aludem à ideia de casamento-empresa e casal-

equipe. Seu discurso sempre evidencia o lugar de fala e o ethos incorporado pelos Cardoso (de

um lado o ethos da mulher virtuosa, auxiliadora (Mulher V) e, do outro, o do homem valoroso e

inteligente (Homem H)). Todavia, no templo, sem os silenciamentos ideológicos que os espaços

midiáticos, muitas vezes, suscitam15

, mas com a presença de domínios de outros campos

discursivos (além de seguir os ensinamentos bíblicos, as pessoas devem ser empreendedoras, nas

diversas esferas da vida, produtivas e conselheiras).

Discursos que se cruzam, complementam-se ou até mesmo são divergentes e/ou

contraditórios. O que vem à tona em nossa observação é a presença estruturante – e onipresente –

desse “novo” espírito do capitalismo: fluido, multifacetado e volátil, ele se apropria das críticas,

incorporando diversos estilos, mas especialmente o “afetivo terapêutico” (ILLOUZ, 2011),

ampliando o mercado de aconselhamento e tornando-o um espaço “natural” e propício para se

educar, controlar e produzir indivíduos ‘saudáveis’.

Foi, portanto, imprescindível o nosso mergulho e interação no campo constituinte,

fundante e promotor desses discursos. Nossa interação, sem dúvidas, respaldaria o olhar que

intencionávamos ter. Segundo Goffman (1989, p.23) “a interação (face a face) pode ser definida,

em linhas gerais, como a influência recíproca dos indivíduos sobre as ações uns dos outros,

quando em presença física imediata”. No contexto tecnológico contemporâneo, isso também é

possível por meio da interação em tempo real com aquele que está do outro lado da tela. Então,

podemos ir além e dizer que apesar de haver a troca sem necessária contiguidade física, o que

muda, por exemplo, quando esta ocorre em um templo, é o sentimento gerado pela comunidade e

15

Tais silenciamentos foram abordados e analisados em trabalhos anteriores nossos.

Page 11: Entre a tela e o campo: a ‘competente’ gestão ...anais-comunicon2016.espm.br/GTs/GTPOS/GT1/GT01-EMANUELLE_RODRIGUES... · Com mais de 20 anos de experiência em terapia e aconselhamento

PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2016 (13 a 15 de outubro de 2016)

pela proximidade com os atores que protagonizam e conduzem a cena. É a exclusividade do

“estar no teatro” enquanto a maioria só pode ter acesso à palavra por outras fontes.

Nesse quadro, o ethos ocupa um lugar determinante, mas nada mais tem de

construção discursiva. [...] Ele consiste na autoridade exterior de que goza o

locutor. [...] porque sua fala concentra o capital simbólico acumulado pelo grupo

de quem ele é mandatário e do qual ele é o procurador (AMOSSY, 2011a, p.120-

121).

Nesse sentido, Amossy (2011, p.121) se ancora em Bourdieu para afirmar que “a eficácia

discursiva não pode ser compreendida fora da troca entre os participantes”. Analisando, de forma

participativa, todos os espaços e plataformas que o casal Cardoso se insere, percebemos não só as

transformações na maneira de construir seu discurso, mas as modalizações que desenvolvem nas

diferentes cenas. Consideramos para os fins desta pesquisa a definição de Schwartz e Schwartz

(apud HAGUETTE, 1995) de observação participante como um processo no qual a presença do

observador numa situação social é mantida para fins de investigação científica. O observador está

em relação face a face com os observados, e, participando com eles em seu ambiente natural de

vida, coletando dados16

.

Ao término do período de visita ao templo e à junção de todos os dados levantados, ficou

mais que evidente a importância do campo em uma análise de abordagem sociodiscursiva. Ao

mesmo tempo em que algumas discussões se findaram após esse período, hipóteses surgiram

abrindo espaço para um estudo mais reflexivo sobre o objeto. Para além de representações de

gênero, de poder ou da relação já conhecida da IURD com o mercado religioso, nosso objeto nos

direcionou para outro lugar, que diz respeito a uma reconfiguração eminente e em curso de um

“novo” fazer religioso, definido não apenas por crenças religiosas, mas que se apropria de saberes

e legitimidades de outros campos para se firmar social e mercadologicamente.

A racionalização dos afetos como estratégia mercadológica na IURD – Algumas

considerações finais

Seguindo um discurso lógico de proposições de caráter racional, a IURD estabelece como

modelos de conduta toda e qualquer ação baseada na “razão”, pois, como afirma Edir Macedo nos

16

O papel do observador participante pode ser tanto formal como informal, encoberto ou revelado. (1955, p.19 apud

HAGUETTE, 1995, p.71), na medida em que ele modifica e ao mesmo tempo é modificado pelo contexto.

Page 12: Entre a tela e o campo: a ‘competente’ gestão ...anais-comunicon2016.espm.br/GTs/GTPOS/GT1/GT01-EMANUELLE_RODRIGUES... · Com mais de 20 anos de experiência em terapia e aconselhamento

PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2016 (13 a 15 de outubro de 2016)

cultos, “é tudo uma questão de ‘toma lá, dá cá”. Logo, a relação entre o crente e o Divino é

permeada de um caráter utilitário (RODRIGUES, 2003), e organizada por meio da troca: ao

ofertar (dinheiro, o ‘perfeito sacrifício’17

), o fiel tem a chancela de exigir de Deus aquilo que é

seu por direito. Ainda assim, Renato afirma que não é o objetivo deles fazerem proselitismo

religioso, “caso você não seja um cristão”, mas sem Deus no circuito, ‘seus esforços serão em

vão’. (CARDOSO; CARDOSO, 2012, p.18).

Ao revestirem-se de um caráter utilitário, a fé e o amor propostos pela IURD se tornam

produtos vendáveis, alimentando a ideia racional como concebem a vida do indivíduo: uma

empresa. Tal perspectiva reforça a aplicação de uma lógica de mercado no âmbito da vida

privada, exigindo dos seus atores performances desejáveis e apropriadas, características de uma

situação de concorrência. O discurso do casal Cardoso é sedutor porque ativa, de forma bastante

convincente, o desejo de todos aqueles – fiéis ou não – que buscam a felicidade em seus

relacionamentos, construindo elaborações imaginativas de um casamento próspero, duradouro e

feliz – formulação muitas vezes distante da moderna sociedade individualizada.

Ao encarnar em suas vidas os conselhos que dão aos consumidores fiéis e aos fiéis-

consumidores, o casal Cardoso comprova a veracidade dos resultados prometidos, construindo,

em congruência com seu discurso empreendedor, uma imagem de si positiva e que são

relacionadas com a adesão religiosa e a credibilidade que a Igreja Universal postula. A crise,

assim como a atitude e os anos de experiência autenticam o lugar de fala do casal: de sucesso.

Se na esfera religiosa, como postula Hervieu-Leger (2008), a identidade é uma tarefa

individual na qual o crente reivindica o seu direito de “bricolar” e escolher suas crenças, na esfera

empresarial também cabe a cada um fazer-se a si mesmo como um indivíduo de sucesso. A vida,

nesse sentido, torna-se um empreendimento que exige de seus agentes alta performance. O

sucesso está ao alcance de todos e as figuras exemplares que, em um estágio anterior da moderna

sociedade capitalista, o encenavam servem, na atual conjuntura, como “suportes de uma

pedagogia comum que, doravante, nos obriga a sermos empresários de nossa própria vida”

(EHRENBERG, 2008, p.29).

17

Assim como Deus ofereceu, em sacrifício vicário, seu filho Jesus em favor da humanidade, o mesmo as pessoas devem fazer

com seu dinheiro, fruto de seu trabalho, esforço diário. O converso precisa materializar a fé através do seu dinheiro,

transformando-o em dízimos e ofertas (RODRIGUES, 2003).

Page 13: Entre a tela e o campo: a ‘competente’ gestão ...anais-comunicon2016.espm.br/GTs/GTPOS/GT1/GT01-EMANUELLE_RODRIGUES... · Com mais de 20 anos de experiência em terapia e aconselhamento

PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2016 (13 a 15 de outubro de 2016)

O empreendedorismo migra, então, do mundo dos negócios para a esfera da vida privada

(EHRENBERG, 2008), o que está em total acordo com o discurso proferido por Renato e

Cristiane, principalmente quando dizem que uma das maneiras dos casais melhorarem suas

performances no casamento e resolverem os problemas provenientes da convivência diária é tratar

essa instituição como empresa. E enfatizam: “o segredo das empresas de sucesso é não usar a

emoção para resolver problemas, e sim a razão” (CARDOSO; CARDOSO, 2012, p.63), tão

somente porque “a fé não é uma coisa religiosa, e sim algo extremamente inteligente. Quando

aprende a usar sua fé com inteligência, você consegue tirar proveito da fé para resolver problemas

do cotidiano” (CARDOSO; CARDOSO, 2012, p.89).

As análises das apropriações e das costuras discursivas de Cristiane e Renato os revelam

como agentes autorizados ao falarem e ensinarem modos de vivência no âmbito das relações

afetivas. Isso ocorre porque seu ethos (pré-discursivo e discursivo) os legitimam para isso. São

jovens, bonitos, felizes e realizados, mas como todos os demais casais, já passaram por situações

críticas em seus relacionamentos. Foi, porém, através do uso da razão – ligada à noção de “fé

racional” (MACEDO, 2010), como sistematizada no seio da IURD – que conseguiram superar

seus problemas e ajudarem pessoas de todo o mundo.

O ethos religioso iurdiano acaba por coincidir, dessa forma, com um ethos empreendedor,

configurando adequadamente o cenário religioso moderno. Neste, as igrejas precisam repensar as

formas de comunicação com os públicos e adequar seu discurso aos desejos de consumo de uma

modernidade que, ao mesmo tempo em que produz um universo de incertezas, se “re-apropria do

sonho de realização antes oferecido pela utopia religiosa, projetando e prometendo, sob formas

seculares diversas, um mundo de abundância e de paz, finalmente, realizado” (HERVIEU-

LEGER, 2008, p.39).

Analisar, portanto, a forma como constroem seu discurso e, consequentemente, um tipo

peculiar de “pedagogia dos afetos” que integra diversos domínios discursivos como religião,

autoajuda, psicologia e empreendedorismo, só seria possível através de um estudo minucioso de

seu histórico e de suas práticas sociais e discursivas – na mídia, na literatura e nas suas palestras.

Diante desse estudo no qual imergimos a fundo na história e nas práticas do casal, o que fica mais

evidente é a busca incessante, por parte da Igreja Universal, de se expandir para diversos

Page 14: Entre a tela e o campo: a ‘competente’ gestão ...anais-comunicon2016.espm.br/GTs/GTPOS/GT1/GT01-EMANUELLE_RODRIGUES... · Com mais de 20 anos de experiência em terapia e aconselhamento

PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2016 (13 a 15 de outubro de 2016)

mercados, entre eles, o de autoajuda, através da difusão do que chamaremos aqui de “pedagogias

da felicidade” e do “amor inteligente”.

Por fim, se, por um lado, o discurso testemunhal do casal Cardoso é perpassado por uma

cultura terapêutica que se materializa, principalmente, nas suas narrativas autobiográficas de

autoajuda, por outro, baseia-se na teologia de resultados, basilar nas práticas e discursos da IURD,

a TP. Ao se cruzarem, esses dois campos discursivos parecem dar um tom particular ao relato,

tornando-o muito mais mobilizador. Ao falar sobre suas crises, identificam-se com uma variada

gama de consumidores, mostrando como é possível superá-las. A mensagem é clara e, por muito

tempo se corporificou em slogans como “Pare de sofrer!” ou “Um milagre espera por você!”,

ambos massificados na Igreja Universal.

Assim sendo, impossível é não considerar que estamos diante de uma fórmula assertiva,

proposta pela IURD, fácil de ser aceita e amplamente consumida, pois sua oferta está, inclusive,

além da própria validação testemunhal. Ela encerra um desejo latente, universalizante no tempo

presente e que emerge como “essa felicidade que supomos, árvore milagrosa, que sonhamos.

Toda arreada de dourados pomos”, que como completa o poeta Vicente de Carvalho (1965),

“Existe, sim: mas nós não a alcançamos, porque está sempre apenas onde a pomos, e nunca a

pomos onde nós estamos”18

. Logo, não é por acaso que se constrói eficazmente a ideia de

felicidade ‘alcançável’ no discurso empreendedor da Igreja Universal.

Referências

AMOSSY, Ruth. O ethos na intersecção das disciplinas: retórica, pragmática, sociologia dos campos. In:

AMOSSY, Ruth (org). Imagens de si no discurso: a construção do ethos. 2ª Ed. São Paulo: Contexto,

2013. P.119-144.

BOETKE, Peter J. Função empresarial. In: Dicionário do Pensamento Social do Século XX. / Ed. por

William Outhwaite, Tom Bottomore. Trad. Eduardo Francisco Alves, Álvaro Cabral.Rio de Janeiro: Jorge

Zahar Ed., 1996, 239-241.

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012.

BRUNKHORSTT, Hauke. Ação coletiva. In: Dicionário do Pensamento Social do Século XX. / Ed. por

William Outhwaite, Tom Bottomore. Trad. Eduardo Francisco Alves, Álvaro Cabral.Rio de Janeiro: Jorge

Zahar Ed., 1996, 2-5.

18

Trecho de poema extraído do livro "Poemas e canções", Ed. Saraiva - São Paulo, 1965.

Page 15: Entre a tela e o campo: a ‘competente’ gestão ...anais-comunicon2016.espm.br/GTs/GTPOS/GT1/GT01-EMANUELLE_RODRIGUES... · Com mais de 20 anos de experiência em terapia e aconselhamento

PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2016 (13 a 15 de outubro de 2016)

CAMPOS, Leonildo Silveira. Templo, Teatro e Mercado: organização e marketing de um

empreendimento neopentecostal. Petrópolis: Vozes, 1997.

CARDOSO, Renato; CARDOSO, Cristiane. Casamento blindado: o seu casamento à prova de divórcio.

Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2012.

CHAUI, Marilena. Intelectual engajado: uma figura em extinção? Disponível em:

<http://www.ces.uc.pt/bss/documentos/intelectual_engajado.pdf > Acesso em out.2015.

EHRENBERG, Alain. O culto da performance: da aventura empreendedora à depressão nervosa. São

Paulo: Ideias & Letras, 2010.

FREIRE FILHO, João. A felicidade na era de sua reprodutibilidade científica: construindo “pessoas

cronicamente felizes”. In: FREIRE FILHO, João (org). Ser feliz hoje: reflexões sobre o imperativo da

felicidade. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2010. P.49-82.

_______. Fazendo pessoas felizes: o poder moral dos relatos midiáticos. In: Encontro da Associação

Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação (Compós), 19. Anais... Rio de Janeiro, 2010.

GOFFMAN, Erving. A representação do eu na vida cotidiana. 4ª ed. Vozes: Petrópolis, 1989.

HAGUETTE, Teresa M. F. Metodologias qualitativas na Sociologia. 4ª ed. Petrópolis: Vozes, 1995.

HALL, Stuart. Quem precisa de identidade? In: SILVA, Tomaz Tadeu (org). Identidade e diferença: a

perspectiva dos Estudos Culturais.13ª ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2013, p.103-133.

HERVIEU-LÉGER, Daniele. O peregrino e o convertido: a religião em movimento. Petrópolis: Vozes,

2008

ILLOUZ, Eva. O amor nos tempos do capitalismo. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.

MACEDO, Edir. Fé Racional. Rio de Janeiro: Unipro, 2010.

MAINGUENEAU, D. Análise de textos em comunicação. São Paulo: Cortez, 2002.

_______. Cenas da Enunciação. São Paulo: Parábola Editorial, 2008.

RODRIGUES, Kleber Fernando. Teologia da Prosperidade, sagrado e mercado: um estudo sobre a

Igreja Universal do Reino de Deus em Caruaru-PE. São Paulo: Edições ABHR: Edições FAFICA, 2003.

WEBER, Max. Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. 4ª ed. Brasília: Editora

Universidade de Brasília, 2014.