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1 ENTRE LÁ E AQUI: O RECONTO DE UMA LENDA AFRICANA E UMA PESQUISA COM LEITORES JUVENIS Jacqueline de Almeida Universidade Luterana do Brasil - ULBRA “A África é o país que tem menos água e muita fome” 1 Inicio este trabalho partindo da fala de um dos jovens leitores participantes de uma pesquisa ainda em construção. O estudo aqui apresentado vincula-se a um projeto mais amplo, no qual investigo modos de representar e ensinar relações étnico-raciais na literatura infanto-juvenil. Neste recorte, trago os primeiros resultados de um encontro entre jovens leitores e o reconto de uma lenda africana. Desde a publicação da Lei 10.639/03, que institui a obrigatoriedade do ensino da história e da cultura africana e afro- brasileira, as escolas e os professores vêm sendo desafiados a incluir nos seus planejamentos uma nova leitura sobre o lugar da África e do seu povo na história da humanidade. Mas como organizar programas e currículos para (re) contar histórias que foram (ou ainda são) silenciadas ou marcadas por diversas formas de exclusão? Particularmente, a história da África por aqui aportou através do processo histórico da escravidão. Os fios que teceram essas narrativas, tanto nos livros didáticos como nos literários, ganharam consistência no imaginário coletivo e tornaram simplificada e estereotipada a história de um povo negro diaspórico, vítima da dominação e da crueldade do branco. Hoje, é possível perceber que esses longos séculos de desumanidade e de informações deturpadas trouxeram consequências negativas não somente para o “continente negro”, como também para os afrodescendentes do mundo todo. Ao contrário do que registra a história, o sistema escolar contemporâneo pronuncia a necessidade de mobilizar novas discussões acerca da diversidade étnica e cultural. De acordo com Antônio Sampaio Dória (2008), vários estudos no Brasil vêm mostrando a falta de direção para a discussão da temática étnica no campo da educação. A falta de preparo e a dificuldade em lidar com o tema é diretamente mencionada pelos professores da rede básica de ensino. Nesse sentido, Dória (2008) aponta que se os livros 1 AND, 13 anos Diário de Campo, 2014

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ENTRE LÁ E AQUI: O RECONTO DE UMA LENDA AFRICANA E UMA

PESQUISA COM LEITORES JUVENIS

Jacqueline de Almeida

Universidade Luterana do Brasil - ULBRA

“A África é o país que tem menos água e muita fome” 1

Inicio este trabalho partindo da fala de um dos jovens leitores participantes de uma

pesquisa ainda em construção. O estudo aqui apresentado vincula-se a um projeto mais

amplo, no qual investigo modos de representar e ensinar relações étnico-raciais na

literatura infanto-juvenil. Neste recorte, trago os primeiros resultados de um encontro

entre jovens leitores e o reconto de uma lenda africana. Desde a publicação da Lei

10.639/03, que institui a obrigatoriedade do ensino da história e da cultura africana e afro-

brasileira, as escolas e os professores vêm sendo desafiados a incluir nos seus

planejamentos uma nova leitura sobre o lugar da África e do seu povo na história da

humanidade. Mas como organizar programas e currículos para (re) contar histórias que

foram (ou ainda são) silenciadas ou marcadas por diversas formas de exclusão?

Particularmente, a história da África por aqui aportou através do processo histórico da

escravidão. Os fios que teceram essas narrativas, tanto nos livros didáticos como nos

literários, ganharam consistência no imaginário coletivo e tornaram simplificada e

estereotipada a história de um povo negro diaspórico, vítima da dominação e da crueldade

do branco. Hoje, é possível perceber que esses longos séculos de desumanidade e de

informações deturpadas trouxeram consequências negativas não somente para o

“continente negro”, como também para os afrodescendentes do mundo todo. Ao contrário

do que registra a história, o sistema escolar contemporâneo pronuncia a necessidade de

mobilizar novas discussões acerca da diversidade étnica e cultural.

De acordo com Antônio Sampaio Dória (2008), vários estudos no Brasil vêm

mostrando a falta de direção para a discussão da temática étnica no campo da educação. A

falta de preparo e a dificuldade em lidar com o tema é diretamente mencionada pelos

professores da rede básica de ensino. Nesse sentido, Dória (2008) aponta que se os livros

1 AND, 13 anos – Diário de Campo, 2014

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de literatura enfocando o preconceito fossem adotados desde as séries iniciais, esse

“silêncio” sobre o assunto poderia ser quebrado. O autor compreende a literatura como um

objeto artístico que não apenas reflete ideologias correntes, “mas atua no sentido de

inquietar as mentes dos seus leitores, constituindo-se em crítica e possibilidade de

transformação da realidade” (DÓRIA, 2008, p. 17).

No âmbito legal, a Lei 10.639, implementada há mais de dez anos, que reconhece a

diversidade étnico-racial e valoriza a história e a cultura dos povos africanos e afro-

brasileiros, trouxe consideráveis avanços para essas discussões. No entanto, como

argumenta Nilma Nilo Gomes (2010), ainda existe certo desconhecimento sobre a Lei e o

que ela representa. Para a pesquisadora e escritora de obras infantis, muitos gestores não

implementaram a Lei por acreditarem que ela não abrange a sociedade como um todo.

Seria tal como “uma lei dos negros e para os negros” (Gomes, 2010, p.7).

Entretanto, o mercado editorial brasileiro, por certo dialogando com a Lei, vem

ampliando o número de obras literárias infantis e juvenis que apresentam personagens

negros como protagonistas e/ou tematizam narrativas de tradição oral africana. Embora o

currículo das escolas de ensino fundamental e médio não esteja adequadamente

organizado e os profissionais esbarrem na dificuldade em lidar com o tema, como aponta

o estudo de Dória (2008), grande parte dessas publicações vem chegando às escolas

públicas através de programas oficiais, como é o caso do Programa Nacional Biblioteca da

Escola (PNBE).

Executado pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), em

parceria com o Ministério da Educação (MEC), o PNBE consiste em um programa que

seleciona, adquiri e distribui obras literárias e de referências às escolas públicas. Em suas

várias direções, o Programa vem ampliando o seu alcance e buscando por obras

diversificadas do ponto de vista temático, dos gêneros e formatos. Particularmente sobre a

distribuição de gêneros da tradição oral como, por exemplo, o reconto africano, uma

pesquisa recente desenvolvida por Cosson (2012), registra importantes discussões sobre a

produção desse tipo narrativa. Conforme o autor, acredita-se que ao receber registro

escrito, as narrativas de tradição oral tendem a assumir caráter didático. Seria o caso das

parlendas, dos mitos, dos trava-línguas, dos recontos, entre outras obras.

Face a essas discussões, compreendo que a escola é o lugar privilegiado para

promover e ampliar os debates acerca da temática étnico-racial. Logo, a inserção dos

livros literários do Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE) nos espaços escolares

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não pode passar despercebida. Assim, para a realização do meu projeto de dissertação foi

analisado um conjunto de obras que tematizam aspectos da cultura africana e afro-

brasileira no acervo do PNBE/13 e um estudo de recepção de cinco obras literárias

infanto-juvenis. Neste artigo, apresento a obra A tatuagem – Reconto do povo luo

(2012), de Rogério Andrade Barbosa, e as primeiras observações registradas no campo de

pesquisa.

A pesquisa foi realizada em uma escola pública, de ensino fundamental e médio,

localizada no município de Cachoeirinha, região metropolitana de Porto Alegre. Entre os

recursos metodológicos utilizados no projeto, apresento trechos da entrevista semi-

estruturada (pré-leitura) e algumas análises das atividades pós-leitura. Os sujeitos da

pesquisa correspondem a um grupo de 20 alunos (11 a 15 anos), de uma turma de 6º ano,

do ensino fundamental. Contudo, partindo da perspectiva teórica do campo dos Estudos

Culturais, compreendo que os significados são constantemente produzidos nas narrativas

literárias, nos meios de comunicação e em todas as instâncias culturais que estão

incorporadas na vida cotidiana. Desse modo, os jovens leitores foram convidados a pensar

sobre a temática étnico-racial a partir da leitura de um reconto africano.

O reconto africano: O que existe lá, do outro lado do oceano?

O trabalho produzido no contexto “A diferença ligada à etnia em livros brasileiros para

crianças – análise de três tendências contemporâneas” (SILVEIRA; KIRCHOF; BONIN,

2012), mostra que a literatura infanto-juvenil contemporânea tem buscado constantemente

por representações não estereotipadas do negro e da cultura africana. Entre essas

tendências, destaco um tipo de narrativa em que os personagens negros estão inseridos em

tramas cujos principais conflitos não focalizam diretamente situações de discriminação.

Geralmente, essas narrativas investem em mensagens pedagógicas muito explícitas acerca

da negritude. Para os autores, os ensinamentos desses livros giram em torno da questão do

respeito à diversidade e da valorização de aspectos ligados à africanidade.

O livro selecionado que corresponde a esse tipo de tendência é Tatuagem – Reconto

do Povo Luo, de Rogério Andrade Barbosa (2012). A narrativa traz a história de uma

garota de quinze anos da etnia Luo, chamada Duany. Antes de apresentar a história de

Duany e do seu povo, há que considerar aspectos importantes que o leitor encontra nas

primeiras páginas do livro. O tom pedagógico aparece inicialmente na forma de três

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paratextos: um mapa maior que ilustra a região da África, onde habita o povo Luo, a

saber, na região do Quênia; outro mapa menor que traz todo o continente africano e os

respectivos oceanos Atlântico e Índico; e um texto explicativo sobre a região, o clima, os

modos de sobrevivência e outras características da etnia Luo.

O primeiro momento de contato com os alunos foi dedicado a uma conversa aberta e

espontânea, na qual registro como entrevista semi-estruturada. A minha primeira pergunta

foi sobre a África:

Pesquisadora: O que vocês sabem sobre a África?

Tay: Que lá as pessoas não têm comida. Os animais morrem de fome. O pouco que

eles têm, eles têm que dividir com os animais.

And: Eles se matam entre si.

Pesquisadora: Mas como eles são?

Cam: São negros. É muita gente ... as famílias são muito grandes.

Tay: Eles têm aquela doença... o ebola. São poucos que sobrevivem. Os que

sobrevivem ainda ficam com a doença.

Entrevista semi-estruturada com a turma A, sexto ano do ensino fundamental -

(05/11/2014)

Nesse momento de pré-leitura, os alunos expressaram suas opiniões sobre a África e o

povo africano. Os repertórios pessoais e os códigos midiáticos, principalmente dos últimos

meses em que os noticiários enfatizaram o sofrimento provocado pelo vírus ebola e os

números assustadores de infectados e mortos, foram mobilizados pelos leitores. Também é

possível observar a presença de animais convivendo com o homem. Tais considerações

emergem a visão de uma África homogênea, como um lugar selvagem, exótico e muito

distante do que se entende por civilização. A cor da pele – negra – e a falta de recursos

básicos como água e comida, também foi relatada pelos sujeitos participantes da pesquisa.

Logo, dando continuidade ao trabalho com os jovens leitores, dei início à leitura da

obra. Retomando brevemente a narrativa, o reconto traz a história de Duany, uma menina

de quinze que ajuda a mãe e a irmã na moenda do milho e em outros afazeres domésticos,

“tarefas naturais para uma menina” (BARBOSA, 2012, p. 7). Como todas as meninas da

aldeia, estava na idade de casar e por isso passava o resto do seu tempo “ajeitando o

cabelo, o cinto de contas em volta da cintura e os colares pelo pescoço. Andava seminua,

como era de costume entre homens e mulheres da etnia luo” (p.7). Desde pequenas, por

volta dos sete anos, as meninas tinham o costume de fazer tatuagens em seus corpos.

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Quanto mais belas as tatuagens de uma garota, maior admiração ela despertava entre os

seus pretendentes.

O destino de Duany começa a mudar quando ela e outras meninas resolvem

procurar um tatuador renomado fora da aldeia. No dia combinado, Duany se atrasa para o

encontro e acaba tomando outro caminho. No meio da mata, Duany encontra uma serpente

gigantesca. A píton se comunica com a garota e mente estar possuída por um espírito

ancestral. Duany acredita na serpente, pois os mais velhos contavam que os juogi,

espíritos dos mortos, habitavam os corpos de determinados animais. Então, a serpente

promete realizar o maior desejo da garota que é a tatuagem mais bela de todas. As duas

ficam entrelaçadas durante um longo tempo. A serpente acaba imprimindo na “epiderme

negra da jovem as marcas brilhantes e coloridas de suas escamas” (p. 17). No entanto,

Duany deveria atender aos chamados da serpente e não poderia revelar o segredo das

tatuagens.

Ao retornar à aldeia, a garota desperta a admiração de todos, principalmente do jovem

guerreiro Rumbe, considerado o melhor lutador da região. Porém, com o passar do tempo,

o comportamento da garota vai mudando. Ela já não suportava mais esconder o segredo

das tatuagens. Um dia, através de um sonho com seu avó, Duany recebe as instruções para

construir uma cabana reforçada para proteger-se da fúria da serpente. A garota pede a

ajuda dos rapazes e, quando encontra-se protegida dentro da cabana, através de um cântico

longo e angustiado revela o segredo. De longe, a serpente ouve o lamento de Duany e

resolve atacar a aldeia. Todos os jovens guerreiros acabam fugindo com medo da serpente,

exceto Rumbe. O forte rapaz enfrenta a píton sozinho e a corta em pedaços. Dias depois,

nos festejos do final da colheita, os dois belos jovens resolvem casar.

Após a leitura da obra, os leitores receberam as atividades de interpretação. As

atividades foram estruturadas com duas questões dissertativas e uma proposta de desenho.

Na primeira questão, procurei explorar os paratextos. Solicitei que os leitores escolhessem

uma região do mapa e discorressem sobre ela (clima, paisagem, língua, população, etc).

Abaixo segue alguns resultados da atividade:

Sujeitos da pesquisa Região Resultados da Atividade 1

Din

11 anos

Quênia

“Eu acho que tem muitas tribos e muitos povos

com culturas diferentes, que caçam para

sobreviver e outros usam os frutos das árvores.”

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SI

(sem identificação)

Quênia “Eles eram pretos e carnívoros.”

Vit

10 anos

Quênia

“Com muitas árvores e muitos bichos e muitas

tribos e muitos índios, também deve ser um lugar

bonito.”

Ste

11 anos Etiópia “Negros, pobres, seminus, caçadores, de religião,

com ebola.”

Iru

13 anos

Etiópia “É um lugar um pouco quente, eles comem

carnes e também são canibais, eles caçam para

sobreviver.”

Cam

12 anos

Etiópia

“Eles são negros, o clima é quente, tem muitos

animais, eles caçam sempre acreditam em

deuses.”

Ray

15 anos

Etiópia “Negros, seminus, caçadores, de religião, com

ebola.

Jad

13 anos

Etiópia “Lá na Etiópia eles são negros e comem animais

e caçam.”

SI

(sem identificação)

Sudão “Eu acho que é quente, as pessoas são pobres,

tem muita seca e tem muitas pessoas que morrem

de sede.”

Ray

14 anos

Sudão “São tribos indianas que fazem festas chamadas

batuque.”

SI

(sem identificação)

África “Eles são carnívoros, negros e com ebola.”

Fonte: Atividade pós-leitura - questão 1 - ( 05/11/2014)

Seguindo o pensamento de Silveira (2012), compreendo que a leitura supõe a

ampliação das experiências do leitor e o coloca em contato com outras vozes que

traduzem outras experiências, outras maneiras de entender coisas “reais” (SILVEIRA,

2012, p. 192). Logo, as representações construídas no imaginário dos leitores de uma

África miserável, devastada pela fome, pela doença e pelo isolamento, contrastam com as

possíveis representações de um “real” harmonioso entre o homem africano e a natureza,

abordado no livro. Também pode ser observado nas expressões verbalizadas pelos leitores

que o modo de vida aparentemente “primitivo” de um povo que sobrevive da pesca e da

caça, numa aldeia distante, parece remeter a outro universo de significados e

representações “naturalizadas”: as representações dos povos indígenas.

Diante dessa pluralidade de informações, busco os estudos de Stuart Hall (2003) na

tentativa de compreender como esses leitores construíram essas representações

estereotipadas do povo e das regiões africanas. Para o teórico, “a África é o significante, a

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metáfora, para aquela dimensão de nossa sociedade e história que foi maciçamente

suprimida, sistematicamente desonrada e incessantemente negada” (HALL, 2003, p. 41).

Já o significado não vem pronto; ele é imaginado, construído e moldado a partir dos

códigos culturais em circulação. Não se pode negar que a África viveu durantes séculos

sob o domínio dos colonizadores e que o fenômeno da diáspora africana espalhou os

negros pelas Américas e por outras partes do mundo. Esse doloroso processo contribuiu

para a escrita de uma “história única” (ADICHIE, 2009). Seria possível reescrever essa

história? Caberia à literatura reescrevê-la?

No seu discurso “O perigo de uma história única”2, a escritora nigeriana Chimamanda

Ngozi Adichie (2009) discorre sobre sua experiência de leitura desde a infância. Ela diz

que todos os personagens eram brancos e de olhos azuis e brincavam na neve. Distante

desses costumes trazidos pelos livros norte-americanos e britânicos, Chimamanda tentava

compreender porque não poderia se identificar com tudo o que havia lido. A mudança

ocorreu quando descobriu os livros infantis africanos. Havia poucos disponíveis e também

não era fácil de encontrar: “Percebi que pessoas como eu, meninas com pele de cor de

chocolate, cujo cabelo crespo não dava pra fazer rabo-de-cavalo, também poderiam existir

na literatura”.

Frente a esses embates, a pergunta é como se produz uma “história única”? Para a

escritora nigeriana é ter uma visão singela de um povo e mostrá-la como uma única coisa

repetidas vezes e isso é o que eles serão nessa narrativa. Adichie (2009) ressalta que,

sobretudo, é impossível falar sobre essa construção homogênea sem mencionar a questão

do poder. Nesse sentido, a pergunta adequada é como essas narrativas são contadas?

Quem tem o poder de narrar? Para Adichie (2009) são essas histórias únicas que ainda

formatam os estereótipos, superficializam a experiência de um povo e, essencialmente,

negligenciam todas as outras narrativas.

De acordo com Stuart Hall (2003), os sinais e os traços dessa cultura africana singular

influiu, de forma imutável, por gerações. Atualmente, enormes esforços vêm sendo

empreendidos por escritores e outros estudiosos na tentativa de produzir a África

novamente. Logo, o que se encontra, principalmente no campo literário, é uma

reconstrução fundada na ancestralidade, na religiosidade, na relação do negro com os

2 Depoimento de Chimamanda Ngozi Adichie, gravado em Oxford, em julho de 2009, ao TED (Technology,

Entertainment, Design). Disponível em <http://www.ted.com/…/chimamanda_adichie_the_danger_of>.

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elementos da natureza, com os guardiões da memória, entre outras representações

afirmativas da africanidade. Entretanto, Hall diz que:

Na cultura popular negra, estritamente falando, em termos etnográficos, não existem

formas puras. Todas essas formas são sempre o produto de sincronizações parciais,

de engajamentos que atravessam fronteiras culturais, de confluências de mais de

uma tradição cultural, de negociações entre posições dominantes e subalternas, [...]

do ato de significar a partir de materiais preexistentes (HALL, 2003, p. 343).

Partindo para a segunda questão da atividade pós-leitura, solicitei aos leitores juvenis

que fizessem um desenho que expressasse alguma característica da etnia luo ou uma ideia

central da narrativa que leram. A beleza da garota negra com o corpo seminu, adornado

por colares e brincos, apareceu em grande parte das ilustrações. No entanto, a serpente

predominou na maioria dos desenhos construídos pelo grupo. Desse modo, compreendo

que o animal exótico provavelmente tornou-se o elemento mais marcante para os leitores.

Diferente das percepções negativas atribuídas anteriormente à África e ao povo africano,

nesta questão, parece que os leitores se apropriam de outros sentidos. Como pode ser

observado no desenho :

Fonte: Atividade pós-leitura - questão 2 - GAB, 11 anos (05/11/2014)

Tentando compreender tais aproximações com a mensagem pedagógica e afirmativa

proposta pela obra, percebo que a escolha por determinadas imagens e focos narrativos,

nesta questão, foram acolhidos pelos leitores. Logo, a presença do animal exótico

(serpente gigantesca) e de outros elementos da natureza, remetem aparentemente a um

universo simbólico de crenças, mitos e rituais não somente identificados com a etnia luo,

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mas com outras etnias africanas. Partindo para a última questão, solicitei aos leitores que

comentassem sobre o final da história. Eles também poderiam modificar o final da

narrativa, caso fosse a vontade deles. Nessa etapa, eles ficaram divididos:

Jad: Sim. Porque o guerreiro não podia lutar sozinho com a cobra. Os outros tinham

que ajudar a lutar.

Tai: Não. Porque ele matando a serpente mostrou o quanto ele amava a Duany.

Iru: A Duany não podia ter contado o segredo da serpente porque a serpente ajudou

a Duany e o Rumbe não podia ter lutado sozinho e não podia ter matado a serpente.

Emi: Não mudaria porque achei muito legal e muito interessante. Gostei muito da

história. O autor pensou muito para fazer essa história.

Fonte: Atividade pós-leitura - questão 3 - (05/11/2014)

Analisando a presença do personagem Rumbe, de acordo com Joaquim Rosário

(1989), percebo que as atitudes do herói aparecem dentro de parâmetros culturais

definidos pelo povo luo. Tais parâmetros representam a consciência coletiva que vigia e

protege os valores da aldeia, uma característica marcante nas narrativas de tradição oral

africana. Já o comportamento da personagem Duany foi, por vezes, desobediente em

relação aos costumes das moças da aldeia. O desejo da garota pelas mais belas tatuagens e

pela conquista do jovem guerreiro culminaram na atitude vingativa da serpente. No

entanto, o final feliz consagrou a vitória do bem sobre o mal:

Fonte: Atividade pós-leitura - questão 2 - RAY, 15 anos ( 05/11/2014)

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Por fim, não poderia encerrar tais análises e discussões sem abordar o caráter

pedagógico. Isso significa que os livros literários não são escritos apenas para contar

histórias, mas para, através das histórias, transmitir ensinamentos e valores.

Particularmente no reconto de lendas africanas, seja nos paratextos, na narrativa central ou

nas ilustrações, há sempre uma forma de “educar” os olhos dos leitores para o “ser negro”

ou o “ser africano”. Assim, os valores que emergem das ações dos enredos e da

construção das personagens “acabam por atuar como autênticas pedagogias culturais”

(SILVEIRA, 2012, p. 22).

Ainda breves apontamentos

Neste breve recorte de uma pesquisa mais ampla, tais abordagens permitiram repensar

as demandas que a Lei 10.639/03 vêm provocando no âmbito educacional, seja nas

produções de livros didáticos, nas obras literárias e no próprio currículo escolar. Todavia,

adequar o currículo ao ensino da história e cultura africana e afro-brasileira não é uma

tarefa simples. As dificuldades esbarram na falta de formação dos professores, no número

insuficiente de materiais e, ainda, na resistência em relação ao tema.

Se por um lado, o mercado editorial brasileiro vem lançando inúmeras obras que

tematizam a diferença étnico-racial; por outro, cabe questionar se essas abordagens não

estão, sobretudo, centradas em essencialismos e naturalizações. Em especial sobre o

reconto de lenda africana, em que medida os dados culturais a respeito da África foram

tratados? “Que negro é esse na cultura negra?” (HALL, 2003, p. 335). Perante essas e

outras indagações, há uma mensagem pedagógica explicita que diz: é preciso conhecer o

“outro”.

Nessa perspectiva, A Tatuagem – Reconto do Povo Luo, de Rogério Andrade

Barbosa (2012), assume um tom informativo e pedagógico nas primeiras páginas do livro

ao apresentar os paratextos. No primeiro contato com os leitores e após a leitura, ao

promover reflexões sobre África e o povo africano, percebi que a visão homogênea e

estereotipada prevalecia nas discussões. O que Adichie (2009) chama de “história única”.

Num segundo momento pós-leitura, percebi que as estratégias afirmativas investidas pela

obra e a presença de personagens negros belos, corajosos e fortes fizeram-se presentes e

marcantes para os leitores. Por outro lado, a serpente gigantesca tomou conta da narrativa

e de todas as atenções. Tal perspectiva poderia estar relacionada às representações de uma

África selvagem e exótica, ainda muito presente no repertório dos leitores.

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Contudo, a obra selecionada cumpriu com o seu papel politicamente correto ao

apresentar dados culturais que permitiram ampliar o conhecimento do jovem leitor em

relação aos saberes africanos. Por outro lado, o caráter predominantemente pedagógico e o

tom celebratório fundado na ancestralidade e nos mitos, apareceram no decorrer da

narrativa de forma intencional e ingênua. Por fim, direcionando as considerações finais

para a pesquisa com os leitores juvenis, tanto nas conversas abertas quanto nas atividades

realizadas pós-leitura, percebi que os leitores negociaram com os significados e

construíram suas próprias representações, ainda que, por vezes, influenciados pelos

códigos culturais da corrente dominante. Por acreditar no caráter múltiplo e inesgotável

dos signos literários, as análises feitas aqui são apenas uma possiblidade de interpretação.

Tal qual o capacidade interpretativa de cada leitor e a polissemia de uma obra literária.

Referências

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Gaivota, 2012.

BRASIL, MEC. Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE): Leitura e bibliotecas nas

escolas públicas brasileiras/ Secretaria de Educação Básica; Coordenação Geral de Materiais

Didáticos. Brasília: Ministério da Educação, 2013.

COSSON, Rildo José Mota. Avaliação pedagógica de obras literárias. Educação, vol. 35, n.

3, pp. 308 - 318. PUCRS: Porto Alegre, 2012.

DÓRIA, Antônio Sampaio. O preconceito em foco: análise de obras literárias infanto-

juvenis: reflexões sobre história e cultura. São Paulo: Paulinas, 2008.

GOMES, Nilma Lino. Implantação da Lei 10.639 esbarra na gestão do sistema e das escolas.

Nação Escola 2, 2010, p. 6-9.

HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora

UFMG; Brasília: Representação da UNESCO, 2003.

ROSÁRIO, Lourenço Joaquim da Costa. A narrativa africana de expressão oral: transcrita

em português. Lisboa: Instituto de Cultura e Língua Portuguesa; Luanda: Angolê, 1989.

SILVEIRA, Rosa Maria Hessel; KIRCHOF, Edgar Roberto; KAERCHER, Gládis; BONINI,

Iara; [et al.]. A diferença na literatura: narrativas e leituras. São Paulo: Moderna, 2012.

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________________________; KIRCHOF, Edgar Roberto; BONIN, Iara Tatiana. A diferença

ligada à etnia em livros brasileiros para crianças – análise de três tendências

contemporâneas. Disponível em www.cchla.ufrn.br Acesso em dezembro de 2014.