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Entre o sol e a lua

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Copyright © 2016 by Ana Paula Caroti Copyright © 2016 by Novo Século Editora Ltda.

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Série Esmeralda

Ana Ferrarezzi

_____________São Paulo, 2016

TALENTOS DA LITERATURA BRASILEIRA

SOL E A LUAENTRE O

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Entre o Sol e a LuaCopyright © 2016 by Ana Paula CarotiCopyright © 2016 by Novo Século Editora Ltda.

coordenação editorial

Vitor Donofrio

editorial

Giovanna PetrólioJoão Paulo PutiniNair FerrazRebeca Lacerda

aquisições

Cleber Vasconcelos

preparação

Livia First

composição de capa e diagramação

Nair Ferraz

revisão

Denise de Camargo

ilustração de capa

Alexandre Santos

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)(Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)

Ferrarezzi, AnaEntre o Sol e a Lua / Ana Ferrarezi.Barueri, SP: Novo Século Editora, 2016.(coleção talentos da literatura brasileira. série esmeralda)

1. Ficção brasileira I. Título. II. Série

16-02449 cdd-869.3

Índice para catálogo sistemático:1. Ficção: Literatura brasileira 869.3

novo século editora ltda.Alameda Araguaia, 2190 – Bloco A – 11o andar – Conjunto 1111 cep 06455-000 – Alphaville Industrial, Barueri – sp – BrasilTel.: (11) 3699-7107 | Fax: (11) 3699-7323www.novoseculo.com.br | [email protected]

Texto de acordo com as normas do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (1990), em vigor desde 10 de janeiro de 2009.

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Meu filho, saiba que tudo nesta vida é possível quando se tem

perseverança, dedicação e muita paciência. Amo você mais do que tudo nessa vida!

Mamãe

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Prezado leitor,

Presenteio você com um verdadeiro tesouro: a Série Esmeralda. Mas, antes de iniciar esta leitura, sinto que é necessário oferecer-lhe alguns es-clarecimentos.

A Série Esmeralda nasceu de uma inspiração. Confesso que, desde criança, interessei-me em ler sobre mitologia, lendas e folclores de diver-sas culturas; em especial, as da América do Sul. Naturalmente, devorei inúmeros livros e textos disponíveis sobre contos e lendas brasileiras.

Decidi escrever uma série que explora um pouco sobre a personalida-de de cada entidade folclórica. Nesta série, procurei trazer um pouco so-bre o que consegui adquirir durante esse tempo, dando uma visão madura e atualizada, muitas vezes escondidas. No entanto, para adequar o enredo, fui obrigada a criar algumas entidades e distorcer outras, e não me mantive inteiramente fiel à representação de todas elas. Por isso, não recomendo que utilize este livro como fonte de pesquisa acadêmica.

Na verdade, espero que esta história sirva de motivação para você fazer a sua própria pesquisa e aprofundar-se sobre as riquíssimas lendas e fol-clores por detrás dos personagens deste livro.

Dito isso, convido você a explorar o fantástico mundo da Série Esmeralda, a aventurar-se em meio aos seus mistérios, a surpreender-se.

Você entenderá, ao se deparar com o universo refletido nestas páginas, que me mantive inteiramente fiel a uma coisa: presentear o leitor com um verdadeiro tesouro.

Boa leitura!Ana Ferrarezzi

Carta ao leitor

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Conto original

Foi uma verdadeira surpresa para o Sol. Ele vagava e observava atenta-mente o movimento ao seu redor, até que encontrou a Lua, surgindo detrás da Terra. Como jamais vira esse curioso astro circulando a Terra? Intrigado, decidiu clareá-la. Foi assim, em meio à luz, que encontrou seu brilho, sua sensualidade e a fantástica entidade que o observava de volta com curiosa magia. Seu coração entrou em combustão, como se fosse capaz de ferver toda uma constelação. Naquele momento, invadido por um sentimento profundo de desejo e paixão que nunca conhecera, se rendeu.

A Lua circulava a Terra. Conhecido por eles como Ci1, o planeta Terra era mesmo belo e extraordinariamente complexo, ele reconheceu.

Então voltou a sua atenção ao satélite, o objeto de seu fascínio. Soube que essa Lua era representada por Jaci.

– Jaci… Jaci… Jaci… – Guaraci, que representava o Sol, repetia seu nome como se compusesse uma melodia infindável. Só silenciava quando via que os olhos tímidos de Jaci o observavam de volta. Ao contrário da vonta-de de Guaraci, não era fácil interagir com ela. Jaci se escondia detrás da Terra e, quando Guaraci finalmente se deparava com ela, tinha pouco tempo para contemplá-la. Além disso, toda vez que buscava falar com ela, sua voz não conseguia alcançá-la e simplesmente era obrigado a vê-la partir.

1 Consultar glossário de nomes e termos próprios na página 511. (N.E.)

Prólogo

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Infortúnio! A distância entre eles o enfurecia, e Guaraci pediu a interven-ção de seu amigo Rudá, a entidade detentora do divino dom de compreender o amor em todas as suas formas. Uma inteligência rara, um guia, um conse-lheiro e um mestre na arte de amar e vincular. Rudá apareceu como mensa-geiro para mediar esse romance que parecia impraticável ao frustrado Gua-raci. Felizmente, o amor não reconhece qualquer barreira física, diferença entre luz e escuridão, dia e noite, tampouco o conceito da impossibilidade. Rudá sabia que deveria haver uma forma de viabilizar esse romance.

Rudá encontrou no eclipse uma fabulosa solução e propôs a Guaraci que o provocasse.

Finalmente, Jaci e Guaraci puderam se encontrar! Sem perder tempo, se amaram intensamente. O encontro os surpreendeu de tal maneira que não conseguiam mais se distanciar. Em consequência, o eclipse perdurou por dias. O Sol deixou de direcionar o sistema que tanto dependia dele. Então, Rudá foi obrigado a intervir pela segunda vez. E aconselhou ambos a se materializarem em formas humanas.

Eles aceitaram o conselho do amigo, percebendo que o sentimento era profundo demais para viverem separados. Concordaram em viver na Ter-ra, em forma humana, obedecendo às condições impostas. Eles não eram humanos, não representavam Ci. Apesar da forma, jamais seriam inteira-mente humanos. Representariam os seus elementos – Sol e Lua – remo-tamente. Também envelheceriam junto ao sistema solar, manteriam suas memórias e seus talentos na íntegra, pelo tempo que o sistema solar existir. Caso fossem obrigados a abandonar seus corpos, eventualmente retorna-riam em outro corpo como se jamais tivessem partido. Essa é a condição dada a todas as entidades que optam por viver em forma humana.

Em pouco tempo, muitas entidades seguiram Guaraci e Jaci. Passaram a habitar a Terra, para viver ao lado dos humanos, aceitando a mesma con-dição imposta.

Rudá, como eterno conselheiro do amor, também ajudou o casal em outros momentos. Sabendo que Jaci sofria de cólicas demasiadamente do-lorosas, preço pago sempre depois de fazer amor com Guaraci, dono de uma energia volumosa que a queimava por dentro, Rudá os trouxe um pre-sente. Uma caixa de bronze. Um dispositivo para guardar temporariamente parte do poder de Guaraci, para que ambos pudessem gozar seus momen-tos sem se importar em moderar sua força ou seu calor.

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Anos se passaram depois daquele imemorial tempo. O amor aflorou en-tre Jaci e Guaraci, e eles viviam em Ci, que os hospedou, assim como faz com todas as entidades, como uma verdadeira mãe. Viviam em eterna lua de mel.

Então, um dia, Guaraci foi obrigado a subir ao Sol, deixando Jaci sozi-nha. Uma viagem rápida e aparentemente sem consequências para buscar se alinhar melhor ao elemento. Ao contrário das expectativas de Guaraci, e como a vida nos reserva diversas imprevisibilidades, durante esse período, um portal minúsculo se abriu.

Os portais – “atalhos” – conectavam dois espaços indefiníveis. Eram uma espécie de túnel ligando dois pontos improváveis e que, nesse caso, abria-se em um ponto da Terra, terminando em outra extremidade, justa-mente perto de Uauiara que, curioso, passou por ele. O propósito de Uauia-ra era fazer uma visita – não perderia a oportunidade! Uma visita curta, tão curta como um piscar de olhos, quase que despercebida. Sua intenção era conhecer os animais marítimos nessa extremidade da Terra.

No entanto, ao passar pelo portal, Uauiara foi surpreendido pela for-mosura de Jaci, que se banhava nas águas límpidas de uma lagoa em meio à floresta tropical. Encantou-se profundamente pela bela moça que, afinal de contas, estava sozinha. O que haveria de mal em mais uma conquista?! Poucos segundos foram suficientes para Uauiara ferver como um dragão, atirar-se sobre sua presa, abraçando-a e levando-a até o fundo do lago. Inun-dou-a de sua energia, invadiu seus sentidos e a manipulou para que se en-tregasse a ele sem reservas. Uauiara nunca falara. Nem uma palavra sequer. Jovem orgulhoso, dotado de inegável e invejável beleza, por que perderia tempo com palavras já que possuía o encantamento de manipular o desejo alheio com os olhos?

Jaci, assustada com a energia estranha dentre as águas, se deixou inun-dar dos prazeres inimagináveis dos sentidos. Era impotente diante da força desse rapaz oportunista, foi levada. Uauiara a possuiu sem tardar, os olhos de uma terrível felicidade manipulavam os sentimentos de Jaci. Ele os con-duzia com a perspicácia e segurança de um mestre em tal arte. Jaci fora subjugada ferozmente. Completamente dominada, permitiu que a traição durasse dias.

Foi uma frase única de Jaci: “Traí Guaraci” que acordou Uauiara para a maleficência de seu ato. Todos conheciam e invejavam o amor entre Jaci

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e Guaraci. Uauiara sabia da existência desse amor, mas só agora conheceu Jaci. Não precisou de muito tempo para concluir a precária situação em que se metera. Jaci havia traído Guaraci; sim, ele mesmo, Guaraci! Pior! Ela o traiu com ele! Como seria explicar tal façanha para Guaraci?

Como haveria de saber? Jaci não disse nada! Aliás, ele tinha de con-fessar que deu muito pouco tempo para ela reagir. Poderia dizer que “não sabia”? Poderia dizer que apenas coletou a moça e inundou-a de seu poder para atalhar, porque ela o nocauteou com seu poder de sedução? Poderia dizer que a possuiu, diversas vezes por sinal, sem ao menos perguntar seu nome? Por que não falou com ela? Não! Seria incrivelmente pior explicar ou justificar. A verdade não somente o tornaria um traidor, mas também um violento e imperdoável manipulador. Não… por pior que isso pudesse parecer, Uauiara concluiu que cometera um erro, apenas isso. Outro desli-ze em sua vida já intensamente errante. Além do mais, será que ele chegou a explicar para a confusa moça à sua frente o que se passou? Quem ele era? Não importava! Passou! Seu desejo passou! Ele a havia possuído e agora, felizmente para ele, e para ela, havia terminado!

Então ele liberou Jaci à margem do lago, exausta pela experiência de desejo consumado. Foi nesse momento, por mais difícil e estranho que fos-se, que precisou falar pela primeira vez. A palavra doeu em seu pescoço de início, como um bloco de argila ao ascender para fora da boca:

– Des… Desculpe. – Ele engasgou, e forçou-se a prosseguir. – Sou Uauiara.Como se seu nome pudesse explicar os atos. Naturalmente, Jaci não

aceitou desculpas. Sentiu-se violentada, confusa com os sentimentos que a envolviam. Por que se deixou levar tão facilmente por essa entidade que sequer se apresentou? Será que seu amor por Guaraci era mesmo forte? E por que seu amor por Guaraci não a protegeu da sedução desse ele-mento? Infelizmente, não conseguia pensar. Ela estava confusa, triste. Não sabia como falar a Guaraci. Conscientemente. Consentiu com o desejo de Uauiara. Uma cruel realidade que a levou ao desespero voraz. Então, ela viu apenas uma solução: precisava de tempo e precisava se distanciar deste mundo. Precisava ficar sozinha, não havia alternativa. Ela teria que se desmantelar ou desistir da forma humana e retornar para a Lua. E foi exatamente o que fez.

Quando Guaraci retornou do Sol, encontrou um recado de Jaci sobre uma folha de bananeira, escrito com seu próprio sangue, em cima da caixa

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de bronze de Rudá: “Minha vergonha foi não conseguir reagir ao Uauiara. Deixei-me ser possuída sem lutar e, com isso, eu o traí. Traí o meu amor por você. Perdoe-me, se puder”.

Guaraci se sentiu, pela segunda vez, desesperado. Um vazio, um senti-mento de perda nunca experimentado antes era tão intenso que esmagava seu coração e contraía seu pulmão, provocando cãibras no peito. Sem en-tender tal dor, Guaraci apertou o peito com as mãos, no esforço de expulsar esse incômodo desconhecido. A imagem de Jaci angustiada apertava seu peito e roubava seu ar.

Justamente Uauiara!, Guaraci pensou, indignado.Uauiara era uma entidade que se incumbia de cuidar dos peixes. Além

disso, era extremamente impulsivo, um amante formidável e incapaz de se controlar diante da formosura feminina. Como se a natureza fosse uma mulher vaidosa e quisesse retribuir sua admiração, presenteou-o com um dom especial de persuadir e manipular o desejo. Um sedutor irresistível, um bruxo que manipulava sentimentos, ele utilizava seu poder de galan-teador para persuadir mulheres e possuí-las. Uauiara era descuidado. Ele tinha uma maneira peculiar de seduzir com seu olhar que as penetrava profundamente. Jaci não teria qualquer chance ao lado dele.

Confuso, Guaraci correu em busca de sua companheira. Encontrou somente seus pertences e resquícios de pó da Lua. Sinal de que ela havia se desmantelado.

Explodindo em chamas, ele chamou seu amigo Rudá, mais uma vez, para interceder por ele. Mas Rudá não pôde ajudar, já que Jaci não queria contato e nada pode ser imposto no que se refere ao amor.

Desesperado, Guaraci anunciou sua partida. O solo então subiu, ele-vando Guaraci e Rudá até desaparecerem no céu. O anúncio de Guaraci foi tão doloroso que desestabilizou, pela primeira vez, o sistema e desenca-deou a abertura de outro portal ainda maior, ligando a Terra com um ponto do cosmos remoto.

A Terra ganhou um novo e sombrio habitante. Tau, personificação da destruição, que, ao sentir-se adotado por Ci, não perdeu tempo, assumiu a forma humana e passou a interagir com humanos.

Pouco tempo se passou e Guaraci, já em seu elemento, notou uma drás-tica mudança de atitude nos humanos. Antes eram pacíficos e viviam em plena harmonia com Ci em uma Terra sem maldade. Não experimentavam

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doenças porque conheciam Ci como verdadeiros anfitriões e sabiam o que po-deriam ingerir e no que tocar. Também não conheciam violência, porque não precisavam disso. Afinal, eles coabitavam o planeta com harmonia, dividiam tudo e não conheciam o conceito territorial do poder e da ambição. No entan-to, algo mudou. Os humanos se tornaram possessivos, territoriais e perdidos.

Curioso e preocupado, Guaraci buscou o motivo dessa péssima mu-dança. Para o seu desespero, encontrou Tau. Infelizmente, Guaraci, por en-clausurar-se na confortável solidão de seu elemento, abriu guarda. Deixou de proteger a Terra da destruição. Já era tarde, pois Tau se instalou em Ci.

No entanto, nada foi mais diabólico e inaceitável como a isca que Tau criou para conquistar uma bela índia, uma ninfa com corpo escultural e olhos negros.

Kerana, neta de Rupave e Sypave, os primeiros humanos na Terra, ten-tou resistir a Tau, mas não conseguiu.

Guaraci não pôde mais testemunhar tanta injúria. Ele abordou Aracy, uma entidade primária incrivelmente evoluída a ponto de ser capaz de pro-ver sinergia e amor aos inúmeros e incontáveis sistemas solares, e contou sobre o ocorrido. Pediu para Aracy intervir e resgatar Kerana.

Geralmente Aracy não mediaria, mas, sabendo dos desastrosos efeitos que resultariam da união de Tau com uma mulher, desceu para a Terra.

Ao abordar Kerana, Aracy perguntou se ela queria voltar para a Terra. Afinal, não poderia resgatar alguém se este alguém não quiser ser resgata-do. Infelizmente, foi o livre-arbítrio que deu a Tau sua primeira conquista.

Indignada pela inconsequente resposta de Kerana, Aracy amaldiçoou todos os frutos dessa relação. Também deu a Kerana parte dos poderes de Tau, para que ela fosse amaldiçoada também. Inevitavelmente, amaldi-çoou Tau, por agora ser obrigado a conviver com Kerana a seu lado en-quanto existir.

Guaraci, ainda mais frustrado ao se sentir traído por essa humana, já que não conseguia compreender sua escolha, se recluiu ainda mais.

A Terra se tornaria um lugar inóspito para viver em breve.Juntos, Tau e Kerana tiveram sete filhos; os sete monstros lendários. Es-

ses monstros viviam entre os humanos, pois tinham a forma humana, mas, quando ameaçados, se transformavam em criaturas horríveis.

Não demorou para Tau instigar a discórdia.

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A verdadeira Primeira Guerra na Terra foi anunciada. Um evento tão antigo que, para a alegria dos humanos, perdeu-se em meio à nebulosa memória dos tempos.

Um terrível e desastroso período. A Terra já se dissolvia entre elementos confusos e furiosos. As águas inundavam os continentes; vulcões entraram em enormes erupções, matando a maioria dos seres à sua volta. Todos os alimentos apodreceram ou foram transformados em pó. O mundo se cobriu de cinzas. E um ar sufocante perambulava entre nuvens escuras e carregadas.

Animais esfomeados saíam dos rios e das matas em busca de alimentos, devorando os humanos. Seres enfurecidos surgiam por todos os lados, do mar, do céu, da terra. Criaturas monstruosas que se misturavam aos ani-mais furiosos, exterminando uns aos outros e criando na Terra uma arena mortal. Tudo estava envolto em um inferno sufocante. Esse mundo corria em direção à aniquilação da vida.

Os humanos passaram a buscar sua esperança em um grupo de mulhe-res cuja obstinação era a maior arma. Iacy, entidade munida da habilidade de combate, guerreira incrível, se apaixonou imediatamente pela obstina-ção e pela garra desse grupo. Pediu a bênção de Tupã para acolhê-las e treiná-las com os seus conhecimentos de combate.

Tupã atendeu Iacy. As icamiabas eram lutadoras perfeitas, tinham parte da força de Tupã e a sensibilidade da mulher. Manejavam o arco e a flecha com perícia extraordinária. As icamiabas reforçaram a resistência em uma guerra que parecia durar uma eternidade.

Mas, para a surpresa de todos, foi uma humana, Porâsý, tia de Kerana, que ganhou a primeira batalha. Um portal abriu e Porâsý percebeu a opor-tunidade. Ela correu em sua direção e se fez de isca, sacrificando a própria vida para livrar o mundo de um dos sete monstros lendários, Teju Jagua, o filho mais velho de Tau e Kerana.

Teju Jagua, louco de raiva, buscava capturar a moça a qualquer custo. Ele se transformou em criatura, moveu-se por debaixo da terra, cavando buracos com garras afiadas, mãos ásperas e bico de pássaro que permitiam uma impressionante rapidez. Ora sobre a terra, ora por debaixo da terra, Teju Jagua moveu-se como um lagarto. Ele não percebeu o portal à sua frente. Foi sugado.

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Guaraci precisava de motivação para voltar, e a encontrou ao ser pro-fundamente tocado pela coragem daquela humana. Desceu à Terra e trou-xe consigo a simbiose. A guerra finalmente acabou.

Ficou a amargura. Todos passaram a coletar os cacos despedaçados em meio aos destroços. Os humanos conheceram a amargura da perda cruel e insensata de entes queridos.

Rudá, esforçando-se para confortar a humanidade durante esse mo-mento tão triste, encontrou Iacy amargurando suas perdas no meio do tron-co de uma árvore. Ele a resgatou. Com o tempo, viu-se encantado. Pois é, o amor pode surpreender até o próprio amor. Demorou um tempo para ele conseguir conquistar Iacy, pois ela estava completamente trancada para o amor, mas, por fim, conseguiu seu intento.

Enfim, levou alguns anos para Jaci retornar. Outros anos para Uauiara conseguir coragem e pedir o perdão do casal. Levou alguns séculos, e algu-mas vidas ao lado de sua Jaci, até que ambos pudessem perdoar Uauiara.

Mesmo assim, mesmo após receber o perdão de Guaraci e Jaci, Uauiara teve a difícil tarefa de perdoar a si mesmo. Então, tornou a agir ao lado do grupo e, aos poucos, criou-se um laço entre todos com a sinergia do amor.

Cada uma dessas entidades passou a trabalhar com o objetivo único de manter esse sistema solar saudável, possibilitar vida em Ci. Cada entidade trabalhava em conjunto. Mesmo assim, mantinham a obstinação pessoal motivada pela necessidade de seu elemento, como havia de ser.

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Rio de Janeiro, quinta-feira, 20 de janeiro de 1994

O Sol estava a pino. A sensação térmica era a de estar no meio do de-serto, pela escassa brisa que circulava entre os prédios altos no centro da cidade. Lina havia combinado de almoçar com Alcinoe e parou seu carro em frente à empresa Assendent, uma das maiores empresas do setor de fornecimento de tecnologia e inovação sustentável.

Ela desligou o motor. Enquanto aguardava João aparecer, espiou a ja-nela do terceiro andar da Assendent. Foi automático. Era onde trabalhava o seu companheiro, Gabriel, com quem se relacionava há tanto tempo que não se dava o trabalho de fazer as contas. Ora amantes, ora amigos, ao longo dessa longa existência, não dava para negar que a ligação entre eles era intensa.

Ela sorriu e ruborizou ao lembrar-se da noite passada. Gabriel a sur-preendeu. Lina balançou sua cabeça na tentativa de controlar sua vontade de invadir aquela empresa para implorar um replay.

Pensando bem, o fato de Gabriel tê-la forçado a suportar sensações inigualáveis na noite anterior não a deveria impressionar, pois esse era um de seus maiores dons. Afinal, Gabriel era Rudá.

Lina lembrou-se da última vez em que o reencontrou. Os humanos celebravam o final da Segunda Guerra Mundial nas ruas da França. Ela andava pelas ruas, exausta, mas aliviada com o fim daquela intensa e explí-cita crueldade. Gabriel estava em uma vala, acuado e abatido, envolvido por um cobertor úmido para proteger-se da chuva. Não tinha forças para

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Em busca de Jaci

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comemorar junto com a população. Na época, ele se chamava Andrew e lutou exaustivamente para lembrar a população do sentimento do amor. Dias depois desse reencontro, reataram o namoro, de início, para unir for-ças e, quem sabe um dia, elaborar a cruel experiência da guerra.

Uma guerra que ela daria tudo para esquecer. Mas, ao contrário de sua vontade, carregaria cada detalhe sórdido desse período em sua memória milenar.

Quantos homens, mulheres e crianças morreram…Ela balançou a cabeça como a jogar as cenas da guerra para longe. Não

dava para esquecer. Não dava para elaborar. O que lhe restou foi conviver com outra amarga memória que a assombraria até o final de sua existência.

Lina passou a mão pela nuca e, incomodada, esticou-se no banco de seu carro.

– Está sozinha? – perguntou um rapaz de terno azul, loiro, de olhos verdes e rosto bem feito. Seu tom era sugestivo, sedutor. Belo e impertinen-te. Jamais conseguiria competir com Gabriel. Mais ainda, ela não tinha tempo e nem queria. Sim, ela era livre para escolher.

Livre escolha.Lina, Gabriel e seus amigos acumulavam vidas em meio a uma mile-

nar existência. Eram obrigados a se reinventar de tempos em tempos para integrar-se à sociedade, viver diversas vidas, acumular nomes, morar em diversas cidades, experimentar diversas culturas. No entanto, um ponto si-milar ao humano era o livre-arbítrio. Detinham a liberdade de escolher livremente. Em contrapartida, eram obrigados a lidar com suas escolhas, pela memória intacta de uma longa existência e também sob a pena de conviver com as consequências.

Lina varreu o rapaz com a mão e saiu do carro, seu querido Jipe 88. Fe-chou seus olhos e fez careta, reagindo ao bafo do verão. Olhou para o relógio de rua, que marcava meio-dia em ponto. Logo em seguida, o mesmo relógio marcou quarenta e cinco graus centígrados. Ela olhou em volta a multidão que passava se abanando e suando. Homens com ternos quentes, que envol-viam seus corpos como casulos de penitência. Sentiu pena daqueles que se viam obrigados a andar de terno, ignorando a realidade de que trabalhavam em um clima quente, tropical, escravos das normas empresariais de boa apa-rência. Como a sociedade tinha configurado um comportamento tão avesso à realidade do clima? A cultura moderna, em um determinado momento,

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torceu a coerência. Passou a imitar tendências sem questionar se elas cabem no ambiente no qual se vive. Lembrou que Gabriel, Cristiano e Cauã faziam o mesmo; afinal, viviam nesse mundo insano.

Cauã (o Guaraci, ou a estrela central do sistema solar), Cristiano (Uauiara, ou a forma original que mais o afeiçoava: o boto-cor-de-rosa) e Alcinoe (sua amiga e mais próxima icamiaba) também eram donos da As-sendent, junto com Gabriel.

Impaciente com a demora, Lina esticou seu pescoço em busca de João. Não poderia ficar parada ali o dia inteiro! Ela iria falar com um atendente na portaria, mas um choque no meio das costas a forçou a segurar no capô do carro.

Lina buscou controlar sua respiração. Automaticamente olhou para as nuvens, pois sabia o que esse choque significava. Era Tupã manifestando-se diretamente com ela. Ele fazia isso com uma azucrinante frequência que aumentava nesses últimos anos. Lina não conseguia explicar sua relação íntima com Tupã, o real motivo por ele comunicar-se diretamente com ela, mas lembrou-se do dia em que ele lhe deu o seu consentimento para adotar o grupo de guerreiras humanas e criar uma nova entidade: as icamiabas.

Tupã, uma entidade extremamente evoluída, que orientava diversos sistemas solares para manter a simbiose, se comunicava com todos, inclu-sive com Cauã, por mensagens públicas em meio aos raios e trovões. Mas, com ela, se comunicava também por sensações. Ela não entendia o motivo dessa íntima relação.

Estranhas e, recentemente, berrantes. Essas mensagens diretas entre Tupã e Lina, antes amenas como uma suave corrente elétrica, gradativa-mente foram aumentando para agora se tornarem verdadeiramente doloro-sas, como se abraçasse os fios descobertos de um poste de luz na rua. Um sinal, cada vez mais explícito, de Tupã informando que o Sol sentia falta da orientação de Guaraci.

Um alerta… como se ela não soubesse… De fato, Cauã deixou de orientar o Sol e se afundou na amargura. Ele

sofria. Lina presenciava sua agonia diretamente. Convivia com Cauã e tes-temunhava de camarote sua saudade sem fim. Depois de tanto tempo sem Jaci a seu lado, Cauã já não domava o Sol, e este parecia confuso, queiman-do em uma perigosa solidão. Seu tempo estava acabando e precisava achar Jaci, a entidade da Lua.

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Onde está Jaci?, ela pensou, cansada. Não foi a primeira vez que Jaci se distanciou de Guaraci, mas foi a pri-

meira vez que ela demorou quinhentos anos para retornar. Um tempo que dispersou todos, separando-os para viver suas vidas. No entanto, quando notaram o sinal de Jaci surgir no Rio de Janeiro, perceberam que Guaraci precisaria de ajuda e voltaram. Na ocasião, ela morava com Gabriel em Pa-ris. Cauã havia retornado ao Paraguai, após passar um longo período na In-glaterra; Alcinoe, na Amazônia; e Cristiano, na Itália. Desde quando notou sua estrela cair, anunciando seu retorno, todos decidiram se reunir no Rio.

Infelizmente, eles a perderam antes mesmo de a encontrar. Então a busca se iniciou, e Lina já se sentia frustrada. Buscavam Jaci há mais de vinte anos.

Lina afastou suas preocupações assim que viu João aparecer na gara-gem. Ele deveria estar ocupado manobrando os carros, concluiu.

Eles se cumprimentaram e ela estendeu as chaves do carro. Firmou seus lábios ao sentir outro choque. Procurou se distrair, alisando a mão em seu jipe. Lina adorava seu carro e não o trocava por nenhum outro. Não lhe dava luxo ou conforto, mas a acompanhou em diversos percalços. Gabriel tinha poucos argumentos para fazê-la trocar de carro. Se alegasse a segurança, sa-bia que não iria funcionar. Ela é Iacy, chefe das icamiabas, e, se algum ladrão decidisse, por obra do azar, incomodá-la em um péssimo dia, encontrar-se-ia em meio à órbita em poucos segundos. De fato, alguns acabaram sendo arre-messados à órbita, mas isso não vem ao caso. O fato é que os argumentos de Gabriel cessaram completamente quando Mauro converteu seu carro para motor elétrico. Seu amigo Mauro, o Mairata, uma entidade absolutamente genial, um verdadeiro solucionador de problemas, transformou o carro de todos logo em seguida. E chegaram a vender a inovação.

Mas seu tempo estava acabando. Ou, melhor, o tempo de todos estava por um fio. O planeta Terra sofria. Lina, ao lado das suas icamiabas, bus-cava de todas as formas gerenciar os sintomas dessa desarmonia. Estavam exaustas. Mas, além disso, para temperar esse caldeirão fervente com pi-menta malagueta, algo muito maior acontecia em paralelo. Guaraci ago-nizava a perda de Jaci e já não escondia sua amargura nem ao Sol nem às outras tantas entidades ao redor. Como resultado, todas as entidades se preocupavam com a gradativa omissão de Guaraci. Algo cada vez mais evi-dente com o passar do tempo. Além disso, outro desafio já tinha data para acontecer: o alinhamento planetário, quando a aproximação dos planetas

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converge e confunde suas energias. As entidades têm a função de direcio-nar seus elementos e evitar que essa fusão de energias resulte em choques ou congruências que possam ser catastróficas para os seres vivos, os planetas e o equilíbrio do sistema solar.

Cadê Jaci?!Lina encarou o Sol novamente e sentiu outro choque. Seus músculos

tencionaram pela força dessa mensagem. Sei… sei, pensou. Ela respondeu à mensagem fechando os olhos e limpou sua testa suada com a palma da mão.

– Quente… – reclamou sozinha. Lina pensava em Jaci com preocupação. Tentava articular as ideias

para definir um caminho ao seu encontro. Mas não conseguia pensar com muita clareza. Sem Jaci, o alinhamento seria um verdadeiro caos. Afinal, quem mediaria a energia entre a Lua e a Terra? Sem Jaci, a Lua se tornaria um satélite secundário sem rumo. Uma espaçonave sem piloto.

Uma buzina cortou abruptamente seus pensamentos, um carro atrás de seu Jipe. Em meio ao devaneio, Lina percebeu que estendeu as chaves, de fato, mas seus dedos cravaram no chaveiro e João a aguardava. Ela sorriu rapidamente e as entregou. João rapidamente dirigiu o carro para dentro da garagem da Assendent.

Lina se manteve parada na calçada. Encarou o imenso e imponente prédio envolvido por vidro e mármore da Assendent. A empresa foi inaugu-rada há vinte anos, assim que chegaram ao Brasil e procuraram se ocupar, enquanto aguardavam Jaci crescer. Lina se incumbiu de achá-la. A empre-sa se tornou uma potência no setor de inovação. Trabalhavam com fábricas de construção de eletrodomésticos, vendendo soluções mais econômicas e ecológicas. Uma empresa que atuava basicamente com joint venture, ou empreendimento conjunto. Ela fornecia suas inovações para empresas e explorava a possibilidade de melhorar o rendimento com menos energia. Substituíam equipamentos danosos ao meio ambiente por outros menos agressivos. Uma empresa cujo único fim era fornecer inovação e não tinha a menor intenção de atuar independentemente. Eles costumavam ligar-se a um projeto único em cada empresa. Quando o projeto terminava, a asso-ciação era dissolvida automaticamente. A ideia era compartilhar a técnica e as reduções de custos e potencializar os pontos fortes de cada uma. A empresa compartilha seu equipamento, sua marca, enquanto a Assendent aumenta a capacidade produtiva, fornece a mão de obra e sua estrutura.

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Também sustenta estratégias de marketing, vendas e distribuição. Sim, era um trabalho completo, mas a Assendent lucrava com essa parceria. Princi-palmente Ci, a Terra, ganhava.

Agora estavam diante de um novo projeto: captação da energia solar, seu armazenamento e uso otimizado por um período prolongado de tempo.

Voltou sua atenção à imponência do prédio moderno, com uma estru-tura parcialmente sustentável. Era uma incrível visão. Sim, parecia impres-sionante. De fato, era – para outros, por não os conhecer assim como Lina. Pelo tempo que tinham de existência e pela memória acumulada, era um feito bastante natural.

Lina aguardou à frente do prédio. Estava impaciente. Sozinha, ela tendia a perder-se em memórias e pensamentos. A inatividade a deixava inquieta e a cansava mais do que a batalha mais exigente. Mas, onde está Alcinoe?, pensou irritada com o atraso. Alcinoe era sua amiga há quase cin-co séculos. Uma icamiaba intrigante que, inexplicavelmente, tinha ligação estreita com todos. Muito mais estreita do que as outras icamiabas…

Repentinamente, Lina sentiu uma estranha vibração, como se o tem-po-espaço houvesse permitido algo extraordinário perto dela. Uma im-pressão súbita de ser observada. Seus olhos, munidos de um poder de concentração incrível, averiguaram o entorno. Não havia nada. Ela con-trolou sua energia e procurou se acalmar. Nesse momento, Alcinoe saiu da empresa. Lina deu uma última olhada à sua volta antes de abraçar a amiga. Elas seguiram a um restaurante para o qual Lina apontou do outro lado da rua.

– Boa ideia, Lina. Vamos almoçar por perto – Alcinoe comentou e adi-cionou, elevando uma sobrancelha. – Hoje está complicado.

Ao se acomodarem no restaurante, Lina não comentou sobre o senti-mento que tivera há pouco. Ela conhecia a reação de sua amiga. Alcinoe, uma verdadeira guerreira, obcecada pela luta, era capaz de desistir do al-moço e sair à procura de um possível adversário. Certamente, diante do desequilíbrio de Cauã e da precariedade da situação, seria uma atitude justificável, mas nada funcional para o dia em curso.

Alcinoe sentou ainda mais quieta do que o normal. Como Lina a conhecia, sabia que isso significava uma coisa. Cristiano pulara a cerca novamente. Não… não exatamente pulara a cerca. Eles não tinham um relacionamento firmado como o de Lina e Gabriel. O fato era que Lina

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não conseguia rotular aquele compromisso incomum desse casal explosivo. Além do mais, Cristiano não saberia ser diferente. Ele era Uauiara, o boto. O que ela poderia esperar dele?

Alcinoe amava profundamente Cristiano. Obviamente, Cristiano res-pondia à sedução de Alcinoe com a promiscuidade de sua essência, mas jamais permitia se aprofundar em sua relação. Apesar de uma certeza exata, como o resultado preciso de uma equação matemática, de que Cristiano não iria assumir uma relação monógama com Alcinoe, ela persistia. Lina aceitou essa persistência como componente intrínseco à sua obstinação. O que mais poderia dizer?

– Como o pegou dessa vez? – Lina perguntou, sabendo que Alcinoe gostava de desabafar. Geralmente, Alcinoe falava, amaldiçoava e, logo em seguida, corria para os braços de Cristiano. Às vezes, minutos após terminar o discurso.

O silêncio de Alcinoe foi interrompido pelo garçom, que trouxe as ta-ças com água. Lina pediu salada para as duas, o garçom anotou rapidamen-te e se afastou.

Lina olhou com cuidado para Alcinoe.– Amiga, você tem que respeitar a essência de Cristiano. Ele jamais

mudará. Como se muda a essência dele? Ele é o boto! – exclamou espal-mando as mãos rapidamente.

– Sei… – Alcinoe respondeu. – Fale isso para meu coração, ele não o liberta. Fico ansiosa quando ele não me procura. E quando me procura, e vejo que jamais pode ser meu, sinto-me abandonada. Anseio uma nova vida, mas temo que a minha memória me traia e me direcione para perto dele. Não sei mais a quem recorrer… estou recorrendo a tudo: à análise para me conhecer melhor e à religião para me dar esperança. Não sei mais o que fazer… vamos mudar de assunto?

Lina assentiu e trouxe à tona o segundo assunto mais discutido depois das puladas de cerca de Cristiano.

– Conseguiu alguma pista de Jaci? – Finalmente perguntou Lina.Um brilho novo modificou o rosto de Alcinoe, sua postura abatida se

refez em um porte obstinado. Era assim que Lina gostava de ver sua amiga e sorriu pela nova feição de Alcinoe.

– Nossa… já fiz de tudo. Sua estrela caiu aqui, disso temos certeza… Mas ela não está na região do Rio de Janeiro! Sua família deve ter se

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mudado. – Alcinoe bebeu um gole de água e continuou. Lina já parecia mais aliviada ao ver sua amiga esquecer Cristiano por um breve instante. – Mapeamos cada região, cidade e bairro desta cidade e da redondeza. Não temos uma pista sequer.

– Cauã está cada dia mais insuportável – lembrou Lina, ao olhar para o Sol fulminando através do outro lado da janela.

– Sim. O Sol está cada dia mais desorganizado – Alcinoe concordou. Foram interrompidas novamente com um estranho bilhete entregue

pelo recepcionista. Lina abriu.

“Prezadas,O que vocês procuram está localizado em torno da região de Campinas.Boa sorte.”

– Quem entregou esse bilhete? – Lina interrogou o recepcionista.O recepcionista deu de ombros, elevou sua sobrancelha e voltou para

a recepção. Lina não perdeu tempo com o recepcionista e saiu do restaurante cor-

rendo ao lado de Alcinoe, deixando tudo para trás. Precisavam achar o ele-mento que havia deixado o bilhete. No entanto, pela rua do centro da cidade, onde estavam, circulava uma verdadeira multidão. Seria impossível achá-lo.

Então, Lina entregou o bilhete para Alcinoe e disse: – Por que não?Sim, por que não? Poderia ter sido um amigo. Por que elas virariam

as costas para uma oportunidade, uma informação como essas? Depois de tudo que vivenciaram ou interferiram? Nada, absolutamente nada, por mais estranho que parecesse, deveria ser ignorado ou castrado pela ideia degradante da impossibilidade. Não para eles.

Tudo, absolutamente tudo nesse vasto universo é possível.Então, por que não? Afinal, o futuro, seja ele qual for, está diante delas

como algo vivo e misterioso, e esse recado é tudo o que elas têm para segui-rem algo provável.

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