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"A homeopatiaé totalmente
inaceitável. Sãocopos de água
a 50 euros"
Entrevista ao médico AntónioVaz Carneiro
"Tive dois doentes com cancrosmetastizados que recusaram
tratamentos e curaram-se"
"O álcool em pequenasquantidades é um
alimento excelente"
"As pessoas saudáveiscom mais de 65 anos não
deviam tomar suplementosvitamínicos"
//PÁGS. 22-29
António Vaz Carneiro."Há uma posiçãoanti-cientrficaa nível mundial"
Médico e professor naFaculdade de Medicina de
Lisboa, Vaz Carneiro fala dosmitos em saúde, das terapias
alternativas e das novasfronteiras. "Os grandes
desenvolvimentos damedicina vão ser científicos
ou não vão ser", avisa.
MARTA F. REISmana. [email protected] SILVA (Fotografia)miguei [email protected]
Haverá sempre um lado de intuição namedicina e António Vaz Carneiro senriu-
o na pele algumas vezes. Numa madru-
gada no Santa Maria insistiu para inter-
nar um doente por pressentir algo erra-do e na manhã seguinte o jovem fez três
paragens cardíacas. Ainda assim, o médi-
co é claro: casos extraordinários não fazem
regra, as decisões baseadas em ciênciasão o único caminho na medicina moder-
na e quem promove curas que não estão
validadas pelo método científico enganaos doentes e pode pôr a sua vida em ris-
co. Há 20 anos empenhado na defesa da
medicina baseada em evidência, um tema
na ordem do dia com a polémica em tor-no das terapias não convencionais, VazCarneiro fala dos casos que o marcarame do trabalho à frente do Centro de Estu-dos de Medicina Baseada na Evidência da
Faculdade de Medicina de Lisboa. Temum novo livro dedicado aos mitos na saú-
de, mote para uma conversa que vai das
decisões do dia a dia às fronteiras da medi-
cina São tempos de revolução, diz o médi-
co, que reconhece que há mistérios quetalvez a ciência nunca consiga explicar.
Começa o seu livro por desmontar aideia de que beber leite de vaca faz malà saúde. Fala de uma cruzada sem
fundamento cientifico.A dieta tem sido palco de grande discus-
são: O que faz bem ou não faz. Se há área
em que acaba por haver mitos dentro da
saúde é esta. Em todos os temas que colo-
co no livro, há uma metodologia que pro-curei seguir: para cada convicção que as
pessoas têm, indico se há estudos quedizem que sim ou que não. A campanhacontra o leite tem muitos anos, é periódi-ca O mesmo com a carne: há pessoas queacham que a carne é extremamente malé-
fica para a nossa dieta.O IARC (a Agência de Investigação do
Cancro da Organização Mundial de
Saúde) alertou que carnes vermelhas e
processadas são cancerígenas. Isso não
quer dizer que está demonstrado o risco?
Comunicou-o de maneira errada Ao dizer
que comer 50 gramas de carne processa-da (presunto, salsichas...) aumenta 18% a
probabilidade de ter cancro do cólon e
que comer 100 gramas de carne verme-lha aumenta 17%, induz as pessoas emerro. As pessoas interpretam que a cada
100 doentes que comam essas quantida-
des de carne, 17 vão ter cancro. O quesabemos é que uma em cada mil pessoasvai ter um cancro do cólon ao longo da
sua vida, a incidência é de cerca de 100
por 100 mil habitantes. Este risco expli-ca-se então assim: se cada 100 mil portu-gueses que vivam, por exemplo, 75 anos
deixarem de consumir carne vermelha e
processada, 17 indivíduos beneficiam. Os
outros 99 983 não.
Em relação ao leite sabe-se que há
pessoas que são intolerantes à lactose.
Calcula-se que entre 50% a 60% da popu-
lação tem alguma intolerância à lactose,
mas são uma minoria as que têm mani-
festações graves. Mas isto é uma coisa,
outra é ouvirmos o argumento de que não
há nenhuma espécie que beba leite emadulto por isso também não devemosbeber. Também não há nenhuma outra
espécie que coma bacalhau à Brás. E então?
A composição do leite é sobreponível a
muitos outros alimentos: tem proteínas,
minerais, um bocadinho de sal Uma cren-
ça é isto: acredita-se que o leite possa serum alimento negativo mas não há provas
objetivas de que pessoas que beberammuito leite vs pessoas que não beberamleite apresentem diferenças significativasna incidência de cancro ou outras doen-
ças. Cada vez que falamos da componen-te de dieta temos de ter muito cuidado.
Porque uma coisa é um adulto decidirretirar qualquer coisa da dieta, coisa dife-
rente é um miúdo de cinco, seis, sete anos.
Há cada vez mais pessoas vegetarianase veganas. O que dizem os estudos?
Desconheço estudos que demonstrem um
impacto espetacular na vida das pessoas
por seguirem um regime extremamente
vegetariano do tipo vegan. Pelo contrá-
rio, é uma alimentação incompleta e os
estudos reconhecem benefícios de umadieta equilibrada.
Imagino que tenha conhecidos
vegetarianos que o tentem persuadir.Claro, mas o que digo sempre é "mostrem-
me os estudos". Não é um estudo que mos-
tre um resultado anómalo que faz a ciên-
cia: a evidencia científica cria-se ao fimde vários estudos.
Mas a ciência pode demorar.Sim, mas até haver fundamento, não se
deve defender como certas coisas que não
estão sustentadas. Não havendo estudos
definitivos, há que seguir o que o bom sen-
so recomenda. As crenças sempre existi-
ram e valem o que valem, agora as pes-soas têm é de ter a perceção de que ao
tomarem determinadas decisões estão abasear-se em crenças e não em dados cien-
tíficos. O mais chocante é que, com a quan-tidade de informação que temos hoje, veri-
ficamos que as crenças e mitos não dimi-
nuíram. E em alguns aspetos aumentaram.Alimentados porquê?Por uma combinação mortal entre falta
de informação de base
e o acesso a informaçãosem qualidade na Inter-net. Uma pessoa hojeem dia que saiba pou-co sobre um assunto lêtrês coisas na Internete sente-se perfeitamen-te capaz de dominar umassunto. Eu tenho exem-
plo disso nos meus doen-
tes. Vão estudar as doen-
ças e chegam a quererdiscutir.Não são os médicos a
perder território?Não me importo de per-der território com doen-
tes informados corretamente, mas traba-lhar com um doente mal informado é pro-blemático.As pessoas lêem o que querem ler?Sim, muitas vezes o que vai áo encontrodas ideias que já têm. E hoje há uma posi-
ção anti-cientírica a nível mundial. Umexemplo são as pessoas que não acredi-tam nas alterações climáticas. Trump diz
que não acredita nas provas que lhe dão
porque tem um gut/eeiing que não é ver-dade. Nem diz que as provas são falsas,diz que para a decisão dele valem tantoos dados científicos como a sua opinião.Há um ataque aos especialistas: são vis-
tos como agentes que ignoram as pessoase as informam em linguagem críptica paradefender um poder e uma detenção da
informação que não tem qualquer funda-
mento porque uma pessoa vai ali à Inter-net e pode ficar a saber tudo.
Os especialistas não acabam por se
fechar também?Sim. Há muitos anos que senti o impera-tivo de vir para a praça pública procuraraumentar a literacia em saúde das pes-soas. Também sou defensor de que nãodevemos fazer disto uma paranóia. É umdos dramas do século XXI, a pessoa está
bem mas vive preocupada Isto tem a verconnosco médicos: estivemos mal quan-do assustámos as pessoas - "se comer mui-to bem, fizer muito exercício, não fumar,vai viver até aos 100 anos". Dizer isto é
um erro colossal: neste hospital apare-cem n doentes com 40, 50 anos, com enfar-
te de miocárdio e zero fatores de risco. É
muito arriscado prever o que vai aconte-
cer - podemos dizeràspessoasquea pro-babilidade de terem problemas é menor,mas não contribuir para que vivam numapreocupação constante. "Não deixe debeber álcool durante um ano". O álcool
em pequenas quantidades é um alimen-to excelente. Se é para beber muito, mais
vale não beber nada. Já em relação aotabaco não há nenhum estudo que diga
que faz bem fumar, essa é a recomenda-
ção mais fácil.
E o novo tabaco aquecido?Não temos ainda o tempo suficiente paraperceber o perfil de risco destes novos
tabacos - sabemos que podem atingir o
pulmão, a nicotina pode ter alguns efei-
tos cardíacos - mas na alternância entreum e outro, os cigarros eletrónicos têmde ser uma medida de saúde pública paraajudar os doentes a deixar de fumar. Deviam
ser vendidos livremente, sem restriçõesde fumar aqui e ali. Acho um erro não darum acesso mais liberal a uma dependên-cia que é muito mais benigna do que aoutraDepois de se pôr fim ao fumo em
espaços fechados, não seria umretrocesso?
Sim, mas em todos os aspetos os cigar-ros eletrónieos estão a ser considerados
iguais aos outros quando o risco não é
igual. É bom fumar? Não é, nem os ele-
trónicos nem os outros. Mas se um miú-do de 15 anos está a fumar tentaria per-suadi-lo a deixar os cigarros convencio-
nais e, até deixar, fuma estes. Isto é gestãode risco. Prefiro que não fume nada, mas
a fumar, os cigarros eletrónicos têm menos
risco. Alias, é isso que vai acontecer: aindústria tabaqueira, mais cedo ou mais
tarde, vai deixar de fabricar os cigarrosconvencionais. O cigarro tradicional tema nicotina como o cigarro eletrónico e é
isso que vicia. Mas o cigarro tradicionalcontinua na página seguinte »
"Não há nenhuma espécie que bebaleite? Também não há nenhuma quecoma bacalhau à Brás, e então?"
"Uma pessoa hoje lê três coisas
na Internet e sente-se perfeitamentecapaz de dominar um assunto"
"Prefiro que não fume nada,mas a fumar, os cigarros eletrónicostêm menos risco"
tem a planta e o papel, que é onde estãoos cancerígenos todos.
Os médicos durante muito tempodemitiram-se do papel de informar osdoentes?Acho que houve uma mistura de váriosfatores. Durante muito tempo havia umarelação paternalista entre médicos e doen-tes. Quando de repente isso se alterou, tal-vez nos últimos 15 a 20 anos, estávamosmuna expansão esmagadora da informa-
ção médica. Aquilo que podia explicar em5 minutos há 25 anos hoje demoro umahora. É muito difícil comunicar saúdehoje.O que contrasta com a simplificação emmuitas páginas da internetE há um aspeto psicológico: as pessoasacreditam em coisas mágicas, é atraen-te, e fica mais entranhado do que se pos-sa imaginar. Quando tento destruir ummito nunca acho que é a informação quedou que tem resultados. É preciso dar a
informação de uma determinada manei-ra: primeiro passar só a mensagem cen-tral sem falar do mito, se não reforço aideia Em vez de atacar as convicções dos
doentes, o que tento é explicar o proble-ma: o colesterol é um risco cardiovascu-lar e porquê. Há estudos em que dão folhe-tos às pessoas, lêem a informação e pas-sado uma hora sabem tudo; 24 horasdepois, a maior parte regressou à crençainicial. É preciso explicar que a melhormetodologia para analisar a incerteza dofenómeno biológico é a ciência. Sei quenão devo dar antibióticos a tumor cere-bral porque sei o que são micro-organis-mos e sei o que é a biologia de um tumor.No livro desmonta outros mitoscuriosos, como a ideia de que temos debeber dois litros de água por dia.Temos um sistema que regula a densida-de do sangue e que é muito eficaz e é daí
que resulta a sensação de sede. À maispequena oscilação de densidade sanguí-nea, o sangue entra em dois recetores nascarótidas e induz vontade de beber. A nãoser que estejamos a tomar medicamen-tos ou tenhamos uma doença que altereo mecanismo da sede, só devemos beberaquilo que o nosso corpo pede.É normal só beber um copo de água pordia?Pode ser, os alimentos também têm agua.No verão bebemos mais água porque sua-mos mais. Há pessoas que se hidratammais rapidamente que outras. Isto nosextremos não é assim: bebés e idosos têmde ter mais cuidado, mas no meio é assim.
;/! ioritinuacão da pagina anterior Se beber mais água também não é quefaça mal, vai urinar mais.E isso não é bom para limpar astoxinas?Não. A urina purifica o sangue mas nãoé a quantidade que é importante, é a capa-cidade que o rim tem de purificar. O rimé que é central. Quer dizer, se assim nãofosse, não teríamos sobrevivido como espé-cie. Agora, cada um bebe o que precisaSó bebo água quando tenho sede. Quan-do vou fazer o meu desporto três vezespor semana, aí sim, bebo mais.Três vezes por semana tem evidênciacientífica?Os estudos recomendam 120 a 130 minu-tos por semana, são três sessões de 45minutos cada uma, mais ou menos. Façoduas de ténis e uma de ginásio. O exercí-cio físico é uma excelente atividade. Nun-ca vi malefícios documentados a não serclaro aqueles problemas nas articulaçõesdos treinos muito intensivos. O exercícioé bom porque tonifica o corpo e reduz o
risco cardiovascular - temos uma prepa-ração cardíaca melhor, o coração batemais pausadamente e com isso estamosa comprar saúde cardíaca. Em segundolugar, psicologicamente é muito impor-tante. Com a vida que temos, é importan-te desligar do trabalho e fazer uma coisadiferente. Temos de ter tempo para parar,para refletir.Mas diz no livro que é um mito quefazer exercício físico faça perder peso.Para perder peso é preciso fazer umaquantidade de exercício brutal. Ser umfutebolista profissional. A maior parte dosestudos o que nos dizem é que o que fazperder peso é a dieta. Não é com exercí-cio à bruta que se perde peso, tem de sercom uma ingestão menor de calorias. Masdeve-se fazer exercício, há até estudos que
"A nutrição éum negócio
monumental. Todoscomemos três a quatro
vezes por dia"
"Devemos tentar ter umpeso próximo do
normal, mas hoje ter umpouco de peso a mais até
parece ser positivo"
mostram alguma prevenção do cancropor exemplo em quem corre, não sabe-mos porquê.Não pode ser pela questão do bem-estar? O stress não é fator de risco?O problema do stress é que não sei medi-lo. Em teoria pode ser pelos níveis de cor-tisol, mas é muito subjetivo. Há pessoasque têm um stress desgraçado e têm umavida fantástica, nunca estão doentes eoutras que são pessoas calmas e têm pro-blemas. De qualquer forma, a pessoa terperíodos de pausa e reflexivos é uma exce-lente ideia. Estou preocupadíssimo como burnout dos médicos. É um fenómenomundial: 40% a 45% dos médicos exibemsintomas de burnout e um estudo recen-te da Ordem diz-nos que os jovens médi-cos são os que estão pior.Encontra explicação?Temos menos profissionais. Trabalha-semuito mais hoje nos hospitais do que há10 anos. Poder-se-ia dizer que se calharhavia médicos a mais, tudo bem, mas é
preciso pensar se isto não tem consequên-cias para os doentes, porque tem.Outra crença que diz não terfundamento cientifico é que o açúcartorna as crianças hiperativas.Por que não? Hesitei em pôr porque pro-voca cáries e obesidade, mas os estudosnão demonstraram qualquer relação comhiperatividade. Diria que em pequenasquantidades mesmo todos os dias não temproblema. Até aos meus doentes diabéti-cos digo que podem comer doces. Claro
que não é todos os dias, mas seis ou setevezes por ano, nas festas. Os doentes cró-nicos têm de fazer a sua gestão, sereminformados de que os efeitos são semprea longo prazo.Como vê toda esta mudança nossupermercados com novos corredoresde alimentação saudável?A nutrição é um negócio monumental.Todos comemos três a quatro vezes pordia, portanto vai haver sempre uma gran-de pressão dos fabricantes. Mas o própriomodelo de estudo da nutrição tem vindoa mudar e precisamos de refletir sobreisso. Há 30 anos pensava-se que a nutri-ção era um balanço das calorias que entrame saem e hoje sabe-se que não é assim, háoutras características dos doentes - unscomem e nunca engordam, outros nãocomem assim tanto e ficam gordos. Nes-te momento o que nos dizem os estudosé que devemos tentar ter um peso próxi-mo do normal mas por exemplo ter umpouco de peso a mais não só não pareceser prejudicial como até parece ser posi-tivo. O índice de Massa Corporal (MC) é
um indicador que parecia lógico - rela-ciona altura e peso - mas hoje acredita-mos que não estratifica bem as pessoas.Medir o perímetro abdominal é muitoimportante, é um fator de risco para a dia-betes. Sabemos que abaixo de MC 18 as
pessoas são magras, entre 18 e 25 são nor-mais, 25 a 30 têm peso a mais e acima de
30 obesidade. Não se está a discutir os 35,40 ou 45, mas o que vemos hoje é que serum bocadinho mais gordito até protege,não prejudica.Faz-se sentido falar em dietas anti-cancro, como promovem alguns livros?Há um efeito da dieta na prevenção do
cancro, mas é pequeno. Podemos dizerque quem é mais magro, quem faz maisexercício e quem come menos gordu-ras tem menos cancro, isto claro asomar ao tabaco, que em termos derisco não tem comparação. Depois umaboa parte dos cancros têm fatores derisco, mas outros não. Quais são osfatores de risco para o cancro da prós-tata? Não sabemos.A idade?Mas a idade é um fator de risco para todos
os cancros. O principal fator de risco paratodos os cancros é a idade, independen-temente do estilo de vida Só ter mais 20anos dá uma maior probabilidade de tercancro. A história familiar é um fator derisco muito importante. As pessoas são
António Vaz Carneira licenciou-seem Medicina em 1976 em Lisboa e
rumou aos Estados Unidos, ondefez as especialidades de Medicina
Interna e Nefrologia. A investigaçãoclínica e a comunicação em saúde
tornaram-se as suas áreas deeleição. Dirige o Centro de Estadosde Medicina Baseada ém Evidência
da Faculdade de Medicinade Lisboa
"A pobreza é um terrívelfator de risco. É
intolerável num paísmoderno, europeu, este
nível de pobreza"
'Há milhares de velhotesem Lisboa que vivem
fechados nas suas casas
porque não se
conseguem locomover"
muito consumidas por isto, querem saber
qual é o risco e não há todas as respostas.Querem viver mais?Já vivem, mas é natural. Repare, o gran-de sucesso da medicina foi no século XX.0 argumento de que a medicina tradicio-nal chinesa tem 5 mil anos... e? Só avan-
çámos a sério nos últimos 120 anos. Umbebé que nascesse em Portugal em 1900
teria, se fosse mulher, uma expectativade vida de 32, 34 anos. Se fosse homem28 anos. Hoje um bebé que nasça em Por-
tugal se for mulher vive 86anoseele vive-rá 79, 80 anos.
Não foi só pela medicina.Certamente que foi pela melhoria das con-
dições de vida, a melhoria do saneamen-to básico, a melhoria da qualidade do tra-balho, mas tirem o cavalinho da chuva:60% são remédios.Tanto?Não tenha dúvidas. Precisa de mais remé-dios para passar dos 80 para os 81 do quedos 40 para os 41. A sua capacidade de
estar viva depende muito mais da medi-cina a partir dos 40, 45 do que aos 20, 25,30. Claro que viver mais também é gené-tico, mas quando começamos a chegaraos limites, é medicina.A melhoria da qualidade de vida nos
primeiros anos também influencia alongevidade.Sim. Aí há uma coisa que não nos pode-mos esquecer: tudo o resto sendo igual,a pobreza induz doença. Quem é mais
pobre tem mais doenças. É um terrívelfator de risco.Parece-lhe que tem sido encaradacomo tal em Portugal?Estou muito desiludido. Percebo a difi-culdade, mas quando dizem que um emcada cinco portugueses vive abaixo do
limiar de pobreza fico envergonhado. É
intolerável que um pais moderno, euro-
peu, tenha este nível de pobreza.É algo muito visível no hospital?Muito. Vê-se até na forma como as pes-
soas comunicam. As pessoas que estãolimitadas na sua capacidade de interagircom o mundo porque são muito pobresvivem em ambientes desprovidos de estí-
mulos, casas muito degradadas, não saemdali. Combinado com défices mitricionaisem crianças, ficam marcas para a vida.Temos pessoas que não compreendemcoisas como um comprimido duas vezes
por dia. Penso que o SNS tem feito umesforço enorme, mas isto não é um pro-blema só da Saúde. As sociedades moder-nas são muito desiguais. Ao mesmo tem-
po que temos uma geração de jovens bri-lhantes a fazer coisas pelo mundo inteirotemos ao lado outros que mal sabem ler.
Acho que precisávamos de falar mais vezessobre as pessoas mais desfavorecidas, até
para forçar as autoridades a intervir. Quan-do a gente oculta estas pessoas desapare-cem.O que o impressiona mais no hospital?A maior parte das pessoas não estaria à
espera de encontrar aquilo que vemosaqui todos os dias. Traumas, agressões,
desnutrições gravíssimas, infeções semtratamento, isolamentos sociais que impe-dem as pessoas de se alimentarem. Hámilhares de velhotes em Lisboa que vivemfechados nas suas casas porque não se
conseguem locomover.Nas televisões durante o dia passamdezenas de anúncios a suplementos
que prometem melhorias do bem-
estar, longevidade. Têm fundamento?O que nos dizem a maior parte dos estu-dos sobre multivitamínicos é que, tudo o
resto sendo igual, as pessoas que os tomam,sendo saudáveis, têm um aumento do ris-
co de mortalidade. É uma diferença modes-
ta, mas relevante. Acho que já temos evi-
dência suficiente para acabar com os
suplementos vitamínicos. Claramente as
pessoas acima dos 65 anos que sejam sau-
dáveis não devem fazê-10.
Como se permite então que passemesses anúncios, que serão vistossobretudo por idosos?
O risco é muito pequeno, de qualquer for-ma parece-me que hoje temos dados sufi-
cientes para informar as pessoas, a listados efeitos adversos devia pelo menosestar nas caixas.
Tem doentes que admitem fazer esses
suplementos?A maior parte não fala disso. Mas peçoque me digam, porque pode interferircom a medicação. Aparecem ervas estra-nhas. As vezes deixo que substituam a
medicação para fazer o teste: apesar de
explicar que a tensão alta não se cura, tra-ta-se. Se a tensão sobe, introduzo o medi-camento. Sou extremamente flexível comos doentes. Apesar de defender com ener-
gia que a ciência deve ser a base do quecontinua na página seguinte »
fazemos, não sou fundamentalista.Vê muito fundamentalismo?
Vejo. Os médicos quando são atacadosficam defensivos, acontece o mesmo peran-te as terapias alternativas. Não acho queseja razoável proibir.O tema tornou a dar azo a um debateaceso esta semana no "Prós e Contras".Assinou o manifesto que defende umamedicina cientifica e que as terapiasnão devem ser regulamentadas comoterapêuticas mas sim uma atividade
equiparada por exemplo à astrologia.Sim, mas acho que não podemos comba-ter estes fenómenos como se fossem moi-nhos de vento. Temos de ser cuidadososa analisar a sociedade em que vivemos,que é permeada por uma quantidade de
informação esmagadora As pessoas têmde ser informadas. O debate desta sema-na não vi. Numa coisa temos de ser cla-ros: porque é que se exige à indústria far-macêutica anos de estudos altamente com-
plexos, muito dispendiosos - testados emprimeiro lugar em células, depois em ani-
mais, depois em pessoas saudáveis, paradefinir as suas capacidades farmacociné-ticas, depois em doentes em grupos peque-ninos até aos grandes grupos com 3000doentes, um processo que leva 13 anoscom enormes custos - e de repente acei-to que entrem porta adentro, sem o mes-mo crivo, os produtos de fitoterapia?Faz sentido o Infarmcd ter umlicenciamento simplificado paramedicamentos homeopáticos?Não. Aceita-se porque é assim que se fazna Europa mas é um erro na minha pers-petiva. Ou tinham provas de eficácia iguai-zinhos aos outros e entravam no merca-do ou não têm e não entravam.Não há benefícios demonstrados nas
terapias não convencionais?
Apenas algumas áreas da acupuntura emquadros de dor enxaqueca, dor pós-cirur-gia, dor do joelho.Mas a OMS reconhece a acupuntura e aOrdem dos Médicos também, umadiscussão que aliás foi dito no Prós eContras que seria reaberta.E muito controverso, mas parece haverali alguma coisa. Há pelo menos três revi-sões da Cochrane que demonstram quepara estes quadros parece haver um bene-ficio. Não substitui outros tratamentos,mas para um doente que já fez uma sériede anti-inflamatórios, se fizer uma acu-
puntura bem feita e ficar muito melhor,não sou eu que vou dizer para não ir. Acre-dito? Não sei a fisiopatologia da acupun-
» continuação da página anterior tura. Às vezes usam estímulos elétricos -um nervo é um condutor elétrico. Nãoestá bem estudado e enquanto não esti-
ver haverá sempre dúvidas.Em relação à homeopatia, parece-lheque há estudos suficientes?A homeopatia é totalmente inaceitável.São copos de água a 50 euros. A maiorparte das pessoas que vai às medicinasalternativas vai por sinais e sintomas benig-nos que passariam por si só.
Mas há relatos de pessoas comproblemas mais graves, até
oncológicos, que dizem ter encontradonas terapias alternativas umamelhoria. Os cientistas insistem quetestemunhos não são evidênciacientífica, mas estes casos são
suficientemente estudados?Têm sido. Ninguém se oporia a dar coposde água sem efeitos secundários a umdoente se aquilo funcionasse. Daria comtoda a tranquilidade os copos de água da
homeopatia em vez de dar medicamen-tos com perfis de segurança terríveis, queé o que temos de dar para tratar umadoença que é terrível. O que estamos é afalar de pessoas muito vulneráveis e quemuitas vezes podem estar a fazer medi-camentos que são tóxicos ou até atrasaro diagnóstico ou tratamento de doençase isso é inaceitável.Nunca ouviu um testemunho que ofizesse pensar duas vezes?Aceito que a ciência pode não explicartudo, mas os casos que ouvi são extraor-dinariamente raros. Interessa-me mais omediano do que o caso extraordinário.Tive dois doentes na minha vida com can-cros metastizados que recusaram trata-mentos e passados uns meses estavamcurados. Um foi um capitão do exércitoamericano em Nova lorque. Um diagnós-tico de cancro gástrico metastizado parafígado, pulmão. Recusou tratamento, dis-
se que queria viver o tempo que tinha.Outra foi uma senhora em Coimbra comcancro do ovário metastizado, um casodramático. Tinha 80 e tal anos e passadomeses o cancro tinha desaparecido. São
os casos que tenho de cancros que regre-diram espontaneamente. Escusado serádizer que os estudei até à exaustão. Ao
capitão devo ter-lhe tirado alguns doislitros de sangue que enviei para todos os
laboratórios de topo da América. O resul-tado foi zero. Estava interessado acimade tudo no sistema imunológico dele, o
que é que ele tinha que os outros nãotinham. É claro que os 780 doentes quevi a seguir com cancro nenhum se com-
portou assim. São casos absolutamente
fascinantes, mas não pude mudar a minha
prática.Na homeopatia, será efeito placebo?Só pode ser pois quando dizem que a meto-
dologia é meter a planta, agitar e depois irdiluindo 50, 80, 100, 200 vezes, as 200 vezes
a hipótese de lá estar uma única molécu-la é nula. É uma densidade inferior a tudo
o que existe no universo. Mo se pode esta-
belecer ai nenhuma relação causa-efeito.Muitos estudos dos tratamentos damedicina convencional são
patrocinados pelas farmacêuticas. Nãosão meios um pouco desiguais?Sim, mas já me ofereci a pessoas dasmedicinas alternativas para fazermosestudos. Vamos começar pela ideia de
que a equinácia trata a gripe:arranjamos 5000 doentes e vamosestudar. Arranjem o financiamento.
Porque é que não se candidatam a esse
financiamento?Porque ninguém financia esse estudo.O financiamento não devia ser
imparcial? Havendo esse hipótese...Há estudos que sistematicamente dizem
que não tem efeito, mas estaria disponí-vel para fazer um estudo maior. Sim, emalguns há algum efeito, mas cai no efeito
placebo. A prioridade deve ser no finan-ciamento de tratamentos que tenhamalgum efeito. Sabemos bem quem são as
pessoas que morrem de gripe, são com-
plicações graves que jamais seriam resol-vidas com equinácia.As terapias não convencionais foramregulamentadas mas recentemente oPresidente da República vetouodiploma que reconhecia interesse
público a uma escola, indicando quenão existe validade comprovada. Osmedicamentos homeopáticos estão àvenda nas farmácias. A posição doEstado não é pouco clara?É, mas isso é o drama da posição politi-camente correta. "Se os nossos concida-dãos acreditam, deve ser verdade". Nãotenho nada a opor à venda de medica-mentos desde que provem a sua eficácia,o que neste momento não acontece. Seremvendidos nas farmácias dá-lhes uma cre-dibilidade que não têm.Não há nenhum efeito que o intrigue?A quiropraxia é uma massagem que comcerteza poderá tirar dores nas costas e no
pescoço. Nenhum problema com isso.
Quando a quiropraxia diz que vai trataro cancro do cólon é que me meto. O pro-blema é que o pessoal das terapias alter-nativas exagera sempre os benefícios. Háum lado prudente, que envia os doentes
aos médicos, mas depois há o lado escu-
"Pessoas acima dos 65anos, saudáveis, não
devem tomarsuplementos
muluVitamínicos ' '
"A venda demedicamentos
homeopáticos nasfarmácias dá-lhes uma
credibilidade que não têm"
Há aspetos da medicina menos palpáveis.A relação médico-doente.Está demonstrado que uma boa relaçãoe menor tensão psicológica tem efeito atésobre o sistema imunitário. Mas tambémninguém diz que a relação médico-doen-te trata a hipertensão. A rejação é deter-minante como apoio e influência o doen-te na adesão à terapêutica.A intuição tem de qualquer forma umpeso importante na medicina, não?Os doentes modernos são doentes com-
plexos, que têm habitualmente três, qua-tro, cinco doenças. A ciência tradicionalclínica não consegue estudar doentes comtantas doenças, estuda no máximo duas
ou três. A intuição tem de ter sempre o
seu papel, não me oponho a isso, apenasa que se promovam resultados que nãoestão documentados ou que inclusiveforam refutados. Como é que têm cora-
gem? No limite, a um doente terminaltenho coragem para lhe dizer para nãofazer células estaminais ou uma qualquerterapia alternativa? Tentou-se tudo, fize-ram-se paliativos mas está num sofrimen-to moral terrível, a homeopatia provavel-mente não vai funcionar mas se pergun-ta se pode ir, claro que digo vá.Teve casos de doentes que apareceramcom uma doença avançada por teremandado em terapias alternativas?
Fiquei marcado por um caso quandoregressei da América, uma jovem de 28
anos que me foi enviada por causa de umquadro de anemia. Fiz o que faço sem-
pre, observei-a. Tinha uma massa namama direita. Perguntei-lhe há quandotempo tinha aquilo para estar assim. Res-
pondeu-me que começara a notar há umano e meio e andava a tratar-se numaervanária. Morreu uns meses depois, dei-
xou dois filhos pequenos. Andei atrás do
ervanário meses, não consegui fazer nada
naquela altura, hoje certamente seria dife-
rente. 0 Steve Jobs recusou cirurgia paraum tumor do pâncreas neuroendócrino
que se curava com uma cirurgia de 20minutos e fez durante anos yoga, homeo-
patia e ervas. Quando quis ser operadoera tarde demais, estava tudo metastiza-do. Isto não tem nada a ver com inteli-
gência nem cultura e é por isso que me
parece que não podemos antagonizar as
pessoas mas informá-las. Não é com Próse Contras, era preciso um programa regu-lar na televisão.A medicina baseada em evidência é umtema cada vez mais debatido, mas
começou a trabalhar nesta área há 20anos. Foi por esse caso que o marcou?Foi pela experiência que tive na Améri-ca. Fiz a especialidade de Medicina Inter-na no Mount Sinai Hospital e depois fui
para Stanford fazer Nefrologia. O queacontecia na América era muito interes-sante: naquelas 110 horas que fazíamos
por semana, sempre que víamos um doen-
te mais complicado alguém fazia questãode pôr junto ao processo clínico um arti-
go científico que se aplicava àquele caso
como medida de formação contínua. Foi
aí que comecei a ver o impacto que a infor-
mação de alta qualidade tinha nos doen-tes e a segurança que nos dava.Cá não havia essa cultura?
Não, só agora é que há, nos últimos dezanos. Também se investiga muito mais,há respostas muito mais sólidas do quehavia há 20 anos. Quando comecei a medi-cina era muito mais intuição, hoje assen-ta em muito mais informação. Claro quepodemos sempre fazer algo diferente masé preciso justificar muito mais quando se
sai de uma guideline.Costuma contar a história de umdoente em que foi intuição pura.Tenho dois casos. Um doente que entroue achei que tinha um cancro, terá sido acor da pele, talvez. Ao fim de algum tem-
po foi possível diagnosticar um tumorraro no rim. Estava perfeitamente bem,vinha para um check up, os tumores de
continua na página seguinte »
ro das terapias alternativas. Vai à inter-net e facilmente eifcontra páginas quedizem que curam o cancro com homeo-
patia. Dá para distinguir por aí: quandodizem que uma coisa trata 30 doençasdistintas. Nenhum medicamento que é
para o cancro trata a cefaleia. Como é queum modelo biológico tão bem estudadoé ignorado olimpicamente para se ven-der uma terapia que cura tudo? Tem dehaver o mínimo de razoabilidade.
O médico recusa uma abordagemfundamentalista. Em vez deantagonizar, diz que cabe aosmédicos informar e explicar comofunciona a ciência. É isso queprocura fazer no novo livro"Mitos e Crenças na Saúde"(Livros Horizonte). O lançamentoé dia 11 no El Corte Inglês
"60% da probabilidadede termos uma cancro é
aleatória. Os mesmosfatores de risco, mas umtem cancro e outro não"
"Vamos ter a curado cancro nos
próximos 10 a 20anos, estou
convencido"
rim dão um bocadinho desanguena uri-na mas não tinha nada. Insisti. O outrocaso foi de um jovem de 20 anos que apa-nhei um dia aqui na urgência e que con-to muitas vezes aos meus alunos paramostrar como existe sempre incerteza no
diagnóstico. Podemos diminuir a incer-teza com dados científicos bons, mas nun-ca a vamos conseguir eliminar.Que queixas tinha o doente?
Chega à meia noite com dor no peito. Aprimeira coisa que se pensa é que é umproblema com drogas, cocaína, pode estara fazer um espasmo numa coronária. Asegunda coisa foi que era uma pericardi-te, uma infeção virai no coração. Mandeifazer análises e não tinha nada. Mas láestá: olhei para ele e disse "vais esperarali um bocadinho".
Porque o fez?
Não sei. Chamei o interno de cardiologia,auscultou, não viu nada. Fiz o resto dobanco e no fim fui ao balcão e lá estavaele sentado à espera. Virei-me para o meuchefe e disse-lhe que ia internar o miúdoem cuidados intensivos. Respondeu-meque estava maluco. Mas insisti, que ia sereu a ter o trabalho, ia levá-lo para a minhatira e concordou. Nós saímos do banco eentrámos diretamente. Às 8h fui tomar o
pequeno-almoço e às 9h começo a visita.No momento em que estou a olhar parao miúdo ele morre - faz uma paragemcardíaca. Reanimação. Naquela manhãfez mais duas paragens cardíacas. Saiu
passado uma semana depois de eu o virarao contrário sem conseguir explicar coi-sa nenhuma. Perfeitamente bem. Segui-o durante um ano na minha consulta enunca percebi o que teve. Os meus cole-
gas diziam "és um génio". Eu queria sabero que era, para perceber aqueles em quetinha falhado. Aqui há uns cinco anos esta-
va no bar, aparece ele com a mãe, doisfilhos e a mulher. Tinham passado 18 anos.É uma profissão muito dura mas pensarque o mundo ficou diferente porque tiveuma intuição...Como é que uma pessoa tão orientadapara a explicação racional interpretauma acontecimento desses?É captar uma realidade que a ciência ain-da não conseguiu captar.Com o passar dos anos vai sentindo queum dia vai ser possível conseguirexplicar tudo ou entre as suas históriase as dos colegas crescem os mistérios?Não vai ser possível explicar tudo, masvai ser possível explicar cada vez mais. O
jogo da previsão é muito simples: se tiver
» continuação da página anterior 10 milhões de doentes com toda a infor-
mação numa base de dados, consigo olharpara si e perguntar quantas "martas" tenhona base de dados. Vamos supor que tenho30 mil. Analiso cuidadosamente o que se
passou com elas nos últimos 20 anos. Eaí digo-lhe: a hipótese de ter um enfartede miocárdio é de 3%, um cancro no úte-ro 4%. Pergunta-me: mas vou ter? Não sei.
Vou conseguir prever mais, mas dar cer-tezas será sempre difícil.Até com os despistes genéticos?A genética como fator de previsão está afalhar porque a maior parte das doençasnão tem apenas base genética, tem umabase ambiental e uma base aleatória. Ocancro é uma doença aleatória. Algunssão familiares, mas tirando esses, 60% da
probabilidade de a gente ter cancro é alea-
tória. Temos os mesmos fatores de risco,comemos o mesmo, fazemos o mesmoexercício, vivemos na mesma cidade, maseu vou ter cancro e você não. Estamos noinício de uma nova fase com introduçãode duas coisas: a captação de informaçãonas grandes bases de dados e registos dedoentes e técnicas de análise com progra-mas estatísticos e inteligência artificial.Vamos afinar a nossa capacidade predi-tiva Vamos ter coisas deste género: embo-ra não saiba dizer porquê, identifiqueinuma base de 7 milhões de doentes queas pessoas mais gordas reagem menosbem ao tratamento do cancro do cóloncom o medicamento A. A inteligência arti-ficial descobre o padrão e a partir daí hádois caminhos: tentar que os doentes maisobesos não façam aquela droga e fazerum ensaio para perceber o que funciona.Isto vai revolucionar a medicinaNeste momento que área o deixa maisentusiasmado?
Oncologia, sem dúvida. É onde se está a
fazer mais investigação. Vamos ter a curado cancro nos próximos 10 a 20 anos, estouconvencido.
Aplicável a todos os cancros?À maior parte. Hoje há uns medicamen-tos novos a que chamamos agnósticos.Até aqui o tratamento era por órgão. Ago-ra há medicamentos que tratam os can-cros que exprimem um certo perfil gené-tico, independentemente de ser na peleou no olho. É uma revolução compietaEstamos a transformar o modelo do can-cro do sítio para o cancro genético.E depois?Continuaremos a morrer de doenças car-diovasculares. Pensa-se que estamos pro-gramados para viver até aos 120 anos senão houvesse doenças. Estou convencido
que primeiro será o cancro, mas o quetenho mais esperança que um dia consi-
gamos curar são as doenças degenerati-vas do sistema nervoso central mas aí a
paisagem é muito negra.Doenças como esderose, Alzheimer?Sim. A indústria está a fazer menos inves-
tigação. Desinvestiu. Quando a indústriadeixa de investir ficamos sem medica-mentos numa área.Desinvestiu porquê?Não é rentável, ou há poucos doentes, ouos medicamentos não funcionam.Há dias foi anunciado o fim da
investigação de uma molécula que eraconsiderada promissora no Alzheimer.Sim, chegou a um ponto em que não hou-ve resultados. Investiram milhões de dóla-res. A maior parte das pessoas pensa queo custo dos medicamentos tem a ver como seu fabrico, não tem. Tem a ver com o
portfolio de investimento que é precisofazer. Uma grande farmacêutica terá no
pipeline 50 medicamentos e muitos nãovão funcionar. Introduz por ano dois outrês. Continua a ser um negócio fabuloso,mas há ao mesmo tempo um grande ris-
co financeiro. Os governos não fazem medi-camentos. Agora a ideia de o laboratóriomilitar fazer medicamentos? Só se for aspi-rina. Não temos tecnologia. 95% dos medi-camentos que existem hoje não existiamquando saí da faculdade. A artrite reuma-tóide: hoje um doente levanta-se e vai tra-balhar. Quando comecei eram pessoas quenão conseguiam abotoar uma camisa. Nomeio disto o que tento é contribuir de algu-ma forma. Mesmo dessas escolas de tera-pias alternativas vêm ter comigo algunsalunos que vão ser homeopatas, fitotera-
peutas e gostavam de fazer ensaios. Por-
que é que hei de reprimir se posso ajudar?Os grandes desenvolvimentos da medici-na vão ser científicos ou não vão ser.
Alguns médicos relatam que em algunsmomentos sentiram que não estavamsozin h os. Acredita que haja algumacoisa depois?Não acredito em Deus, mas acredito quevamos passar para um outro universo deuma outra maneira.Acredita sem ter evidência?É uma teoria que cabe dentro da mecâni-ca quântica. Parece ser lógico. Neste momen-to estamos os dois no nosso corpo rodeado
por coisas que existem desde sempre. As
nossas moléculas de carbono existem des-de o Big Bang. A melhor frase que ouvi sobre
isso é que somos todos poeira das estrelase é verdade. Aquilo de que somos feitosanda cá há milhões de anos. Se isto é ver-dade, aquilo que somos deve passar paraoutra coisa qualquer. Não me dá nenhumdescanso porque gostaria de ver os meusfilhos mais tempo, mas tenho esta convic-
ção há muitos anos, sempre gostei muitodas coisas da astrofísica e dá-me paz inte-rior. E ajuda-me a compreender a minhaprofissão. Das coisas mais estranhas queháéver alguém morrerànossa frente, aque-le último suspiro. Estarem acordados, a con-
versar, adormecem e de repente sente-se
que parou. Muitas vezes pus-me a olhar...Nunca viu nada?
Sozinho, naquele silêncio, nunca vi nadaNunca teve nenhum doente queregressasse? Aquelas experiências de
quase morte?
Com milhares de ensaios clínicos ãprocura de novas moléculas para ocancro, e medicamentos a chegarao mercado com preços cada vez
mais elevados, António VazCarneiro defende que é precisolançar o debate sobre o que é a
sociedade está disposta a pagardaqui para a frente
"A mente humanafaz coisas raras.
É muito possívelque haja
telepatia"
"Há estudos quemostram que
pessoas mais espirituaismorrem menos. Fico
intrigado"
Não, mas já ouvi relatar, penso que serão
alucinações da medicação, mas uma pes-soa fica um bocado perturbada. Como háestudos que mostram que as pessoas mais
espirituais morrem menos, as mulheresnomeadamente. Todo o resto sendo igual,
quem vai a mais cerimónias religiosas,com estudos a controlar tudo o resto, têmmenor mortalidade por algumas doen-
ças. Aceito isto, mas não consigo inter-vencionar e não vou dizer às pessoas parairem mais à missa por isso. Se calhar umdia vai haver mais estudos, não me inco-moda nada. Há experiências consisten-
tes de pessoas em cuidados intensivos e
é dito a um conjunto de rabis, padres ehare krishna alguns dados e põem a rezarno jardim em frente a unidade. Já vi pelomenos três estudos que dizem que há dife-
renças estatísticas na mortalidade dos
doentes por quem eles rezam. Ou estãoa inventar dados, ou há uma diferençasubtil mas estatisticamente significativa.Vou pedir para rezarem pelos meus doen-tes? Não posso, a dimensão do efeito nãoo justifica. Fico intrigado, claro. Gostavade estudar, claro. Vai ser possível, não.Nunca foi crente?
Não, acho que a mente humana faz coisas
raras. É muito possível que haja telepatia,formas de comunicação que não conhece-
mos. Há áreas escuras do conhecimento.Sinto que um dia saberemos, ou então não.
A vida é uma realidade complexa e não
podemos ter a arrogância de que sabemos
tudo. O que sei é que as pessoas acreditan-do em coisas mágicas dificilmente vãomudar a ideia porque lhes dou explicaçõesnão mágicas, mas fiz este livro mais paratentar explicar como funciona a ciência. Amedicina baseada em ciência é o estabe-
lecimento de probabilidades. Se este testeder normal, qual é a probabilidade de eu
ter a doença? Se fizer este tratamento, qualé a probabilidade de ficar melhor? Se tiverestes fatores de risco, qual é a probabilida-de de ter a doença? Se quiser saber ondeestá Júpiter daqui a cinco anos, três meses
e dois dias tenho uma equação matemáti-
ca que me diz - é uma ciência exata. Amedicina é uma ciência inexata. E comoé que quantifico a incerteza? Através des-
sas probabilidades, dessa estatística. A medi-cina moderna é isto, a medicina antiga erauma magia também, por isso é que san-
grávamos toda a gente. É mais importan-te a passar a mensagem sobre a metodo-
logia do que o mito em si.
Faz 25 anos de professor. O que é mais
importante no ensino de jovensmédicos?Ensiná-los a pensar, serem capazes deanalisar os resultados do que fazem e per-ceber que o outro está numa enorme vul-nerabilidade quando vem ter connosco.A medicina é uma profissão de príncipes,precisamos de características do campoético e moral muito elevado.
Que desafios antevê na Saúde?
Temos de começar a pensar o que consi-
deramos resultados que justifiquem ser
comparticipados pelos impostos de todos.
Precisamos de ter uma padrão consen-sualizado naquilo que a sociedade achaaceitável. Um medicamento pode ser efi-
caz mas a sociedade pode entender queo beneficio é demasiado curto. É uma dis-
cussão muito difícil mas que acho que se
podia conseguir para as 100 patologiasprincipais que significam 80% dos gastos.
Porque é necessária essa discussão?
Há 3500 moléculas a serem estudadasem 5 mil ensaios clínicos para o cancro.
Se pusermos isto numa perspetiva de
introdução no mercado altamente restri-
tivo, de 1% de sucesso, vou ter 53 molécu-las a entrar no SNS e com 53 moléculas
novas o SNS está arruinado. Ponto final.Sente que se tem evitado estadiscussão?
Tem. Antes de mais é preciso aumentaro financiamento. Mas mesmo com pou-co dinheiro temos resultados muito bons.
Ainda há pouco tempo numa conferên-cia vi os indicadores da OCDE e estamossistematicamente nos 12, 15 primeiroslugares. E temos um investimento mise-rável. Imagine se em vez de ir para os ban-
cos duplicasse o investimento, o que é quenão fazíamos? Se não estamos orgulho-sos disto, estamos orgulhosos de quê?Se tivesse de implementar uma políticabaseada em evidência, qual seria?Está em curso. Vamos ter um sistema de
apoio à decisão clínica que quando for paraa frente será um caso único no mundo,numa parceria entre a Ordem dos Médi-cos e o ministério. Vamos ter acesso livrea nível nacional a quatro plataformas de
informação médica. O Governo paga as
licenças e qualquer pessoa com IP em Por-
tugal pode aceder. E a mensagem vai sendeixem de ir ver coisas à Internet, o que vaiser uma bomba. Isto é o futuro, vai ser inte-
grado na prescrição e vai permitir alimen-tar conteúdos das escolas, media, professo-res do ensino secundário, autarquias.