Entrevista Eduardo Viveiros de Castro

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    24/9/2014 A escravido venceu no Brasil. Nunca foi abolida - PBLICO

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    ALEXANDRA LUCAS COELHO(no Rio de Janeiro)

    Fome, secas, epidemias, matanas: a Terra aproxima-se

    do apocalipse. Talvez daqui a 50 anos nem faa sentido

    falar em Brasil, como Estado-nao. Entretanto, h queresistir ao avano do capitalismo. As redes sociais so

    uma nova hiptese de insurreio. Presente, passado e

    futuro, segundo um dos maiores pensadores brasileiros

    Eduardo Viveiros de Castro, 62 anos, o mais reconhecido e

    discutido antroplogo do Brasil. Acha que a ditadura

    brasileira no acabou, evoluiu para uma democracia

    consentida. V nas redes sociais, onde tem milhares de

    seguidores, a hiptese de uma nova espcie de guerrilha, ou

    resistncia. No perdoa a Lula da Silva ter optado pela via

    capitalista e acha que Dilma Rousseff tem uma relao quase

    patolgica com a Amaznia e os ndios. No votar nela nem

    sob peloto de fuzilamento.

    Professor do Museu Nacional, no Rio de Janeiro, autorde uma obra influente (destaque paraA Inconstncia

    da Alma SelvagemouArawet O Povo do Ipixuna,

    este ltimo editado em Portu al ela Assrio & Alvim

    ENTREVISTA

    A escravido venceu noBrasil. Nunca foi abolida

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    24/9/2014 A escravido venceu no Brasil. Nunca foi abolida - PBLICO

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    amerndio, segundo a qual a humanidade um ponto de

    vista: a ona v-se como humana e v o homem como

    animal; o porco v-se como humano e v a ona como

    animal. Humano sempre quem olha.

    Nesta longa entrevista, feita h um ms no seuapartamento da Baa de Botafogo antes ainda da

    greve dos garis (homens e mulheres do lixo), um

    exemplo de revolta bem sucedida Viveiros foi da

    Copa do Mundo ao fim do mundo. Acredita que estamos

    beira do apocalipse.

    V sinais de uma revolta nas ruas brasileiras? Aquiloque aconteceu em 2013 foi um levantamento mas no

    uma revolta generalizada. Acha que isso pode

    acontecer antes da Copa, ou durante?

    muito difcil separar o que voc imagina que vai acontecer

    daquilo que voc deseja que v acontecer.

    O antroplogo Eduardo Viveiros de Castro autor de uma obra influente, que inclui "A Inconstncia da AlmaSelvagem" e "Arawet O Povo do Ipixuna"DBORAH DANOWSKI

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    acontecesse?

    Revolta popular durante a Copa.

    E isso significa o qu, exactamente?

    Manifestao. No estou imaginando a queda da Bastilha nem

    a exploso de nada, mas gostaria que a populao carioca o

    deixasse muito claro. Embora a Copa v acontecer em vrias

    cidades, creio que o Rio se tornou o epicentro do problema da

    Copa, em parte porque o jogo final ser no Maracan.

    Mesmo nas manifestaes, o Rio foi a cidade

    mais forte.

    So Paulo tambm teve manifestaes muito

    importantes, mais conectadas com o Movimento Passe

    Livre [MPL, estudantes que em Junho de 2013

    iniciaram os protestos contra o aumento dos

    transportes]. Voltando ao que eu desejaria: que a

    populao carioca manifestasse a sua insatisfao emrelao forma como a cidade est sendo transformada

    numa espcie de empresa, numa vitrine turstica,

    colonizada pelo grande capital, com a construo de

    grandes hotis, oferecendo oportunidades s grandes

    empreiteiras, um balco de negcios, sob a desculpa de

    que a Copa iria trazer dinheiro, visibilidade, para o

    Brasil.

    O problema que vai trazer m visibilidade. Vai ser

    uma pssima propaganda para o Brasil. Primeiro,

    porque, se estou bem entendendo, vrios compromissos

    Eu desejaria que a populao carioca manifestasse a sua insatisfaoem relao forma como a cidade est sendo transformada numaespcie de empresa, numa vitrine turstica, colonizada pelo grande

    capital

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    atrasos muito grandes, etc. Segundo, porque essa ideia

    de que os brasileiros esto achando uma maravilha que

    a Copa se realize no Brasil pode ser desmentida de

    maneira escandalosa se os turistas, to cobiados,

    chegarem aqui e baterem de frente com povo nas ruas,

    brigando com a polcia, uma polcia despreparada,brutal, violenta, assassina. Tenho a impresso de que

    no vai fazer muito bem imagem do Brasil.

    Outra coisa importante que a Copa foi vendida

    opinio pblica como algo que ia ser praticamente

    financiado pela iniciativa privada, que o dinheiro do

    povo, do contribuinte, ia ser pouco gasto. O que est sevendo o contrrio, o governo brasileiro investindo

    maciamente, gastando dinheiro para essas reformas de

    estdios, dinheiro dos impostos. Ento, ns estamos

    pagando para que a FIFA lucre. Porque quem lucra com

    as copas a FIFA.

    Desejaria que essa revolta impedisse mesmo a Copa?

    Impedir a Copa impossvel, no adianta nem desejar. No sei

    tambm se seria bom, poderia produzir alguma complicao

    diplomtica, ou uma represso muito violenta dentro do pas.

    Existe uma campanha: No Vai Ter Copa. O nome completo :

    Sem Respeito aos Direitos No Vai Ter Copa. No sentido

    desiderativo: no deveria haver, desejamos que no haja.

    O que se est dizendo que os direitos de vrias

    camadas da populao esto sendo brutalmente

    desrespeitados, com remoes foradas de

    comunidades, desapropriando sem indemnizao,

    modificando aspectos fundamentais da paisagem

    carioca sem nenhuma consulta. Isso tudo est irritando

    a populao.

    Mas no s isso: a insatisfao com a Copa foi

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    ltimos anos, que envolvem categorias sociais diversas,

    e no esto sendo organizadas nem controladas pelos

    partidos. Essas manifestaes tm de tudo, uma

    quantidade imensa de pautas [reivindicaes]. Tem

    gente que quer s fazer baguna, tem gente de direita,

    infiltrados da polcia, neonazistas, anarquistas. Umconjunto complexo de fenmenos com uma combinao

    de causas. Uma coisa importante que so transversais:

    tem gente pobre e de classe mdia misturada na rua. a

    primeira vez que isso acontece. O que talvez tenha em

    comum que so todos jovens. Da classe mdia alta

    [favela da] Rocinha.

    Mas agora no so muito expressivas em termos de

    nmeros. E no so as favelas que esto em massa na

    rua.

    As famosas massas ainda no desceram, e

    provavelmente no vo descer durante a Copa. Nem sei

    se vo descer em alguma momento, se existe isso no

    Brasil. Mas acho que vai haver uma quantidade de

    pequenas manifestaes. Por exemplo, a Aldeia

    Maracan [pequena comunidade de ndios pressionada

    a sair, por causa das obras do estdio] produziu uma

    confuso muito grande, se voc pensar no tamanho da

    populao envolvida. Os moradores daquela casa eram

    14 pessoas e no obstante mobilizaram destacamentos

    do Bope [tropa de elite], bombas, etc. Quem est, em

    grande parte, criando a movimentao popular o

    estado, com a sua reaco desproporcional. O

    Movimento Passe Livre ganhou aquela exploso em So

    Paulo por causa da brutalidade da reaco policial. O

    Tem gente pobre e de classe mdia misturada na rua. a primeira vezque isso acontece. O que talvez tenha em comum que so todos

    jovens. Da classe mdia-alta [favela da] Rocinha

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    24/9/2014 A escravido venceu no Brasil. Nunca foi abolida - PBLICO

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    jovens manifestantes. A polcia no sabe como reagir,

    no tem um mtodo, ento reage de maneira brutal. Os

    prprios manifestantes no tm experincia de

    organizao. O que esto chamando de black bloc no

    a mesma coisa que black bloc na Dinamarca, na

    Alemanha ou nos Estados Unidos.

    Mais voltil.

    Ideologicamente pouco consistente. Sabemos que o black bloc

    europeu essencialmente uma tctica de proteco contra a

    polcia. Noutros pases, como os Estados Unidos, tem uma

    certa tctica de agresso a smbolos do capitalismo. Aqui no

    Rio est uma coisa meio misturada, ainda no se consolidou

    uma identidade, um perfil tctico claro para o que se chama de

    black bloc. E eles esto sendo demonizados. Acho at que, no

    caso do Brasil, o facto de que sejam black coloca uma pequena

    ponta de racismo nessa indignao. No duvido de que no

    imaginrio da classe mdia por trs da mscara negra esteja

    tambm um rosto negro. Pobres, bandidos, etc.

    Mas isso est acontecendo ao mesmo tempo que a

    polcia continua invadindo as favelas, matando 10, 12,

    15 jovens por semana. At recentemente esse

    comportamento clssico do estado diante da populao

    muito pobre, isto , mandar a polcia entrar e

    arrebentar, era algo que a classe mdia tomava como...

    [sinal de longnquo].

    Porque se passava l nos morros.

    Quando a violncia comeou a atingir a classe mdia

    ainda que uma bala de borracha no seja uma bala de

    fuzil, porque o que eles usam na favela bala de

    verdade e o que eles usam na rua bala de borracha,ainda assim voc pode matar com bala de borracha,

    pode cegar, etc , medida que a polcia comeou a

    atacar tanto a rua uanto o morro houve um aumento

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    polcia nas favelas, o que novidade. A imprensa fez

    uma imensa campanha para santificar a polcia com a

    coisa das UPP [Unidade de Polcia Pacificadora,

    programa para acabar com o poder armado paralelo nas

    favelas, instalando a polcia l dentro], mas todo o

    mundo est percebendo que essas UPP so no mnimoambguas. Basta ver o caso do [ajudante de pedreiro]

    Amarildo, que foi sequestrado, torturado e morto pela

    polcia [em Junho de 2013, na Rocinha], e sumiu da

    imprensa.

    Vinte e cinco policiais foram indiciados.

    Quero ver o que vai acontecer. Quem deu visibilidade morte

    do Amarildo no foi a grande imprensa. Foram as redes

    sociais, os movimentos sociais. Essa morte absolutamente

    banal, acontece toda a semana nas favelas, mas calhou de

    acontecer na altura das manifestaes, ento foi capturada

    pelos manifestantes, o que produziu uma solidariedade entre o

    morro e a rua que foi indita.

    Num pas como este, em que a desigualdade, a

    violncia, continuam, porque que as massas nosaem?

    Quem dera que eu soubesse a resposta. Essa a pergunta que a

    esquerda faz desde que existe no Brasil. Acho que h vrias

    razes. O Brasil um pas muito diferente de todos os outros

    da Amrica Latina, por exemplo da Argentina. Basta comparar

    a histria para ver a diferena em termos de participao

    poltica, mobilizao popular. Tenho impresso de que isso se

    deve em larga medida herana da escravido no Brasil. O

    Brasil um pas muito mais racista do que os Estados Unidos.

    No Brasil, h um racismo poltico muito forte, no s ideolgico comoo americano. O Brasil um pas escravocrata, continua sendo. O

    imaginrio profundo escravocrata

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    no s ideolgico como o americano, interpessoal. O Brasil

    um pas escravocrata, continua sendo. O imaginrio profundo

    escravocrata. Voc v o caso do menino [mulato] amarrado

    no poste [no bairro do Flamengo, por uma milcia de classe

    mdia que o suspeitava assaltante] e que respondeu de uma

    maneira absolutamente trgica quando foi pego: mas meu

    senhor, eu no estava fazendo nada. S essa expresso, meu

    senhor... O trgico foi essa expresso. Continuamos num

    mundo de senhores. Porque o outro era branco.

    Como um DNA, algo que no acabou.

    No acabou, pois . o mito de que no Brasil todas as

    coisas se resolvem sem violncia. Sem violncia,entenda-se, sem revolta popular. Com muita violncia

    mas sem revolta. A violncia a da polcia, do estado,

    do exrcito, mas no a violncia no sentido clssico,

    francs, revolucionrio.

    E toda a vez que acontecem coisas como essas

    manifestaes de Junho, por exemplo, h aquelasensao: dessa vez o morro vai descer. O morro no

    desceu. Em parte porque j no mais o morro, boa

    parte do morro de classe mdia. Evidentemente,

    houve um crescimento econmico. As favelas da minha

    infncia, nos anos 50, eram completamente diferente,

    como essas vilas da Amaznia, feitas de lona preta. Hoje

    so casas de alvenaria, feitas de tijolos. Ainda assim amisria continua. Quero dizer apenas que a distncia

    entre a classe mdia e o morro diminuiu do ponto de

    vista econmico.

    Ao fazer ascender esses milhes da misria, o PT

    neutralizou a revoluo?

    A ditadura brasileira no acabou. Ns vivemos numa democraciaconsentida pelos militares

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    Em parte pode ser isso. Houve uma espcie de opo

    poltica forada do PT, segundo a qual a nica maneira

    de melhorar a renda dos pobres no mexer na renda

    dos ricos. Ou seja, vamos ter que tirar o dinheiro de

    outro lugar. E de onde que eles esto tirando? Do

    cho, literalmente. Destruindo o meio ambiente parapoder vender soja, carne, para a China. No est

    havendo redistribuio de renda, o que est havendo

    aumento da renda produzida pela queima dos mveis

    da casa para aquecer a populao, digamos. Est um

    pouquinho mais quente, no estamos morrendo de frio,

    mas estamos destruindo o Brasil central, devastando a

    Amaznia. Tudo foi feito para no botar a mo no bolsodos ricos. E no provocar os militares.

    A ditadura brasileira no acabou. Ns vivemos numa

    democracia consentida pelos militares. Compare com a

    Argentina: porque que no Brasil no houve

    julgamento dos militares envolvidos na tortura? Porque

    os militares no deixam. Vamos ver o que vai aconteceragora, no dia 1 de Abril.

    Com o aniversrio do golpe militar.

    J existe uma campanha a, subterrnea, para que no

    dia 31 de Maro apaguem-se as luzes, toquem-se

    buzinas, para comemorar o 50 aniversrio do golpe.Ou seja, existe uma campanha da direita para mostrar

    que a populao ainda apoia a direita. No sei que

    sucesso vai ter, mas no duvido que haja uma

    manifestao, oculta, pessoas que vo apagar as luzes

    das suas casas ou piscar as luzes meia-noite, alguma

    coisa assim.

    Mas nenhuma possibilidade de viragem direita.

    No creio.

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    O actual regime no uma democracia?

    O Brasil uma democracia formal, claro, mas

    consentida pelo status quo. A abertura foi permitida

    pelos militares. A Lei da Amnistia foi imposta tal qual

    pelo governo militar. Eles no foram destronados,presos, criminalizados. Simplesmente foram

    amnistiados. E boa parte do projecto de

    desenvolvimento nacional gestado durante a ditadura

    militar est sendo aplicado com a maior eficincia.

    Pela esquerda.

    Pela chamada esquerda, pela coaliso que est no

    poder, na qual a esquerda uma parte mnima, porque

    tem os grandes proprietrios de terra, os grandes

    empresrios.

    Est cumprindo um iderio que vem da

    ditadura?

    O PT um partido operrio do sculo XIX. Eles tm um

    modelo que indstria, crescimento, como se o Brasil

    fosse os Estados Unidos do sculo XXI. Com grande

    consumo de energia. Uma concepo antiga, fora de

    sintonia com o mundo actual. Agora est comeando a

    mudar um pouco, mas a falta de sensibilidade do

    governo para o facto de que o Brasil um pas que est

    localizado no planeta Terra, e no no cu, muito

    grande. Eles no percebem. Acham que o Brasil um

    mundo em si mesmo.

    O Brasil se imagina como potncia geopoltica que necessariamentevai oprimir. Agora, a vez de sermos opressores, deixarmos de ser os

    oprimidos

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    aquecimento global, etc.

    , que todas essas coisas so com os outros. Um pouco

    como acontece nos Estados Unidos, em pases muito

    grandes.

    A nica viso global que o Brasil tem de se tornar uma

    potncia geopoltica. O Brasil, hoje, um actor maior,

    de primeira linha, em Moambique, em Angola, nos

    pases latino-americanos. Est disputando com a China

    pedaos de Moambique. A Odebrecht est construindo

    hidroelctricas [barragens] em Angola e assim por

    diante. O Brasil se imagina como potncia que vaioprimir. Agora a vez de sermos opressores, deixarmos

    de ser os oprimidos. Agora os brasileiros da vez vo ser

    os haitianos, os bolivianos, os paraguaios, que

    trabalham nas sweatshops de So Paulo, nas terras

    em que plantamos soja e etc. O PT nunca foi um partido

    de esquerda. um partido que procurava transformar a

    classe operria numa classe operria americana.

    E nunca o Brasil foi um pas to capitalista.

    Minha mulher me contou que, conversando com um

    desconhecido, operador da bolsa de valores, isto em

    2007, 2008, ele dizia: se eu soubesse que ia ser to bom

    para ns jamais teria votado contra o Lula.

    Onde est a esquerda? Qual a sua opo de

    voto? Ou a opo deixou de ser votar?

    Tanto a esquerda como a direita so posies polticas

    que voc encontra dentro da classe mdia. A classe

    dominante de direita de maneira gentica, a grandeburguesia, o grande capital. E os pobres, a classe

    trabalhadora... se eu fosse fazer um juzo de valor um

    pouco irresponsvel diria que 60 a 70 por cento do

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    que desse dinheiro para comprar geladeira, televiso,

    carro, etc. Uma populao que tem uma profunda

    desconfiana em relao a esses jovens quebradores de

    coisas na rua, que seria a favor da pena de morte, que

    violentamente homofbica.

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    Depois do garoto do Flamengo ter sido

    amarrado por aquela milcia, ouvi

    trabalhadores negros pobres dizerem: tem mais

    que botar bandido na cadeia, fizeram foi

    pouco com ele.

    Ou seja, um pas conservador, reaccionrio, em que os

    pobres colaboram com a sua opresso. No todos, mas

    existe isso. A escravido venceu no Brasil, ela nunca foi

    abolida. Sou muito pessimista em relao ao Brasil, digo

    francamente. Em relao ao passado e ao futuro. Em

    relao ao passado no sentido de que um pas que

    jamais se libertou do ethos, do imaginrio profundo daescravido, em que o sonho de todo o escravo ser

    senhor de escravos, o sonho de todo o oprimido ser o

    opressor. Da essa reaco: tem mais que botar esses

    caras na cadeia. Em vez de se solidarizar. E podia ser o

    filho dele facilmente. E s vezes o filho dele.

    Oswald de Andrade, o poeta, dizia: O Brasil nuncadeclarou a sua independncia. Em certo sentido

    verdade, porque quem declarou a independncia do

    Brasil foi Portugal, um rei portugus. Eu diria: e to

    pouco aboliu a escravido. Porque quem aboliu a

    escravido foi a prpria classe escravocrata. No foi

    nenhuma revolta popular, nenhuma guerra civil.

    E em relao ao futuro sou pessimista porque... talvez

    ainda tenha um pouco de esperana, mas acho que o

    Brasil j perdeu a oportunidade de inventar uma nova

    forma de civilizao. Um pas que teria todas as

    condies para isso: ecolgicas, geogrficas.

    Uma espcie de terceira via do mundo?

    , outra civilizao. Porque civilizao no

    necessariamente transformar um pas tropical numa

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    Europa, ou seja, de um pas do hemisfrio norte que

    tem caractersticas geogrficas e culturais

    completamente diferentes.

    Lembremos que houve um projecto explcito no Brasil,

    e que deu certo, que est dando certo, por isso que soupessimista, que o projecto iniciado com Pedro II, em

    parte inspirado pelo clebre terico racista Gobineau,

    que era uma grande admirao de D. Pedro: o Brasil s

    teria sada mediante o braqueamento da populao,

    porque a escravido tinha trazido uma tara, uma raa

    inferior.

    Havia que lavar o sangue.

    uma ideia antiga, que j vem dos cristos-novos que

    vieram de Portugal, que tinham de limpar o sangue. A

    gente sabe que quase toda a populao portuguesa que

    se instalou no Brasil de cristos-novos, Diria que 70

    por cento desses brancos orgulhosos de serembrasileiros so judeus, marranos, convertidos a ferro e

    fogo pela Inquisio. Ento, havia essa ideia de que o

    Brasil era um pas racialmente inferior porque era

    composto de negros, ndios, portugueses com essa

    origem um pouco duvidosa. E j Portugal em si no ...

    A Holanda.

    Exacto. No a coisa mais branca que podemos

    encontrar na Europa. A Pennsula Ibrica um pouco

    africana, foi dominada 800 anos pelos rabes. Ento o

    Brasil s ia melhorar com branqueamento. Isso foi uma

    poltica de estado que durou dcadas e trouxe para o

    Brasil milhes de imigrantes alemes, italianos, maistarde japoneses. Com o propsito explcito de

    branquear, no s geneticamente, mas culturalmente e

    economicamente. E eles foram para o Sul, de So Paulo

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    partir do governo militar para c essa populao branca

    invadiu o Brasil, a Amaznia. A colonizao da

    Amaznia a partir da dcada de 70 foi feita pelos

    gachos, muitos deles pobres, que foram expulsos,

    alemes pobres, italianos pobres, cujas pequenas

    propriedades fundirias foram absorvidas pelos grandesproprietrios, tambm gachos, tambm brancos, e que

    foram estimulados pelo governo, com subsdios,

    promessas mirabolantes, a irem para a Amaznia. Hoje,

    tem um cinturo de cidades no sul da Amaznia com

    nomes como Porto dos Gachos, Querncia, que um

    lugar onde se guarda o gado, tpico do Rio Grande do

    Sul. Os gachos [de origem europeia] chegaram numaregio temperada, subtropical [sul do Brasil] em que

    voc podia mais ou menos copiar um tipo de estrutura

    agrcola, de produo alimentar do pas de origem. S

    que na Amaznia isso uma abominao. um

    preconceito muito difundido essa ideia de que pessoal

    do Norte no sabe trabalhar, preguioso. Voc ouve

    muito isto no Paran, no Rio Grande do Sul. Quem sabetrabalhar o colono alemo, italiano.

    Hoje o Brasil foi branqueado. Essa cultura country a

    uma mistura de cultura europeia com cultura

    americana, de grande carro, 4x4, pick ups, rodeos,

    chapus americanos, botas. Existe um projecto de

    transformar o Brasil num pas culturalmente do

    hemisfrio norte, seja Estados Unidos, seja essa Europa

    mais reaccionria. Porque estamos falando de colonosalemes que vieram do campesinato reaccionrio,

    bvaro, pomerano, e dos camponeses italianos, que

    eram entusiastas do nazismo e do fascismo na II

    O Brasil est perdendo a oportunidade de se constituir como um novomodelo de civilizao propriamente tropical, com uma nova relao

    entre as raas, que fosse efectivamente multinacional

  • 8/11/2019 Entrevista Eduardo Viveiros de Castro

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    24/9/2014 A escravido venceu no Brasil. Nunca foi abolida - PBLICO

    http://www.publico.pt/mundo/noticia/a-escravidao-venceu-no-brasil-nunca-foi-abolida-1628151 16/31

    extrema-direita no sul do Brasil muito. O foco da

    direita fascista, nazista o Paran e o Rio Grande do

    Sul. Ento o Brasil um pas dividido entre um sul

    branco e o resto no branco, portugus, negro no litoral,

    ndio no interior.

    O censo da populao d por uma unha uma maioria

    no-branca.

    O agronegcio na verdade o modelo gacho,

    desenvolvido no pampa, nos campos do Rio Grande.

    Plantao extensa de monocultura, de soja, de arroz, de

    cana. Ento o Brasil est perdendo a oportunidade de seconstituir como um novo modelo de civilizao

    propriamente tropical, com uma nova relao entre as

    raas, que fosse efectivamente multinacional. Um pas

    que se constituiu em cima do genocdio indgena, da

    escravido, da monocultura. Que continua fazendo o

    que fez desde que foi criado, exportando produtos

    agrcolas. Que continua a alimentar os pasesindustrializados. Primeiro a Europa, depois os Estados

    Unidos, agora a China. Continua sendo o celeiro do

    capitalismo.

    E o matadouro.

    O segundo maior rebanho bovino do mundo, depois daAustrlia. Um pas que se est destruindo a si mesmo

    para se transformar numa caricatura dos pases que lhe

    servem de modelo cultural. Em vez de, ao contrrio,

    saber utilizar a sua situao geogrfica altamente

    privilegiada, a sua situao demogrfica, uma

    populao imensa, para construir um novo estilo de

    civilizao.

    O senhor est descrevendo a derrota do

    Manifesto Antropfago de Oswald de Andrade

  • 8/11/2019 Entrevista Eduardo Viveiros de Castro

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    24/9/2014 A escravido venceu no Brasil. Nunca foi abolida - PBLICO

    http://www.publico.pt/mundo/noticia/a-escravidao-venceu-no-brasil-nunca-foi-abolida-1628151 17/31

    comer, absorver o outro]

    , acho que sim. Bom, nenhuma derrota definitiva. O

    meu pessimismo nem passa tanto pelo facto de que o

    Brasil no tem jeito, porque acho que ainda poderia

    haver uma revoluo antropofgica no Brasil. Mas hoje

    isso uma questo que j no teria mais sentido colocar

    pelo simples facto de que estamos numa situao

    planetria em que a catstrofe j se iniciou. O mundo

    est entrando, num sentido fsico, termodinmico, num

    outro regime ambiental que vai produzir catstrofes

    humanas jamais vistas, no meu entender: fome,

    epidemias, secas, mudana de regime hidrolgico, tudo.

    Nessas circunstncias, possvel que cheguemos a um

    momento em que noes como Brasil, Estados Unidos,

    pases, comecem a perder a sua nitidez. Pode ser que

    daqui a 50 anos a palavra Brasil no tenha mais

    nenhum sentido. Que tenhamos que falar em Terra.

    um pr-apocalipse?

    Dira que sim. Isabelle Stengers, filsofa belga, diz que a

    palavra crise no adequada porque supe que voc

    pode super-la, quando o que estamos vivendo uma

    situao que no tem um voltar atrs. Vamos ter que

    conviver com ela para sempre. Um novo regime do

    mundo, de climas, de guas, no haver mais peixes, os

    estoques esto acabando no mundo, a quantidade de

    refugiados que vo invadir a Europa vai ser brutal nas

    prximas dcadas. Se a temperatura subir quatro graus,

    que o que todos os climatologistas esto imaginando,

    O mundo est entrando, num sentido fsico, termodinmico, num outroregime ambiental que vai produzir catstrofes humanas jamais vistas,

    no meu entender: fome, epidemias, secas, mudana de regime

    hidrolgico, tudo

  • 8/11/2019 Entrevista Eduardo Viveiros de Castro

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    24/9/2014 A escravido venceu no Brasil. Nunca foi abolida - PBLICO

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    Terra. E a quantidade de africanos que vai invadir a

    Europa vai ser um pouco maior do que aqueles pobres

    que morrem afogados ali em Lampedusa. E como os

    pases ricos vo reagir? uma questo interessante. Vai

    ser com armas atmicas? Vo bombardear quem? O

    meu pessimismo passa mais por a.

    No Brasil as crises so estritamente polticas. Faz

    reforma poltica? Vai ter revolta da populao? Ser que

    h Copa? Tudo isso verdade, fundamental, mas a

    gente no pode perder de vista o cenrio mais amplo.

    No v ningum no Brasil, politicamente, que tenhauma viso ampla? O senhor votou na Marina Silva

    [nas ltimas presidenciais].

    Votei na Marina em 2010, com certeza. No tenho

    certeza nenhuma de que votaria nela em 2014, talvez

    no.

    Eduardo Campos [candidato pernambucano

    que fez uma aliana com Marina]?

    De forma nenhuma. A Dilma, nem sob peloto de

    fuzilamento voto nela. Esses idiotas do PSDB nem

    pensar. Ento talvez eu no vote. Talvez vote nulo.

    Qual a misso, o papel, a hiptese para algum como

    o senhor? Virar uma espcie de guerrilheiro nas redes

    sociais?

    . Eu diria que a revoluo antropofgica do Oswald de

    Andrade s possvel sob o modo da guerrilha. Estamos

    falando de uma coisa que foi pensada em 1928...

    Mas que foi revivendo, anos 60, agora.

    O Oswald, um homem da classe dominante, pensava no

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    24/9/2014 A escravido venceu no Brasil. Nunca foi abolida - PBLICO

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    dispr. Nesse sentido, ele pertence gerao dos

    tericos do Brasil, que eram todos da elite dominante

    paulistana ou pernambucana: Gilberto Freyre, Caio

    Prado Jnior, Eduardo Prado. Os modernistas eram

    uma teoria do Brasil, de como o Brasil deve ser

    organizado, governado.

    Talvez os muitos povos brasileiros que compem esse

    pas s tenham chance de ganhar uma certa

    emancipao cultural, poltica, metafsica, no contexto

    do declnio geral do planeta. Nessas condies

    possvel que haja esperana para os negros, os ndios, os

    quilombolas [descendentes de escravos], os gays, os

    pobres desse planeta favela. No esqueamos que o

    mundo tem trs bilhes e meio de habitantes vivendoem cidade, metade da populao mundial. Desses, no

    mnimo um bilho vive em favelas. Ou seja, um stimo

    da populao mundial vive em favelas. O Brasil deve ter

    uma proporo maior que a Alemanha, Estados Unidos.

    Diria que deve andar na casa dos 30 milhes. [A

    populao de] um bom pas europeu.

    Seria uma guerrilha nas redes sociais? Admite o

    uso de violncia ou uma guerrilha virtual

    apenas?

    Nem uma coisa nem outra. A existncia da Internet

    mudou as condies da guerra, em geral, sim. O maior

    acto de guerra recente, no bom sentido, de que meconsigo lembrar foi o Edward Snowden. No mais os

    Estados Unidos espionando a Rssia, nem a Rssia

    espionando os Estados Unidos, mas o vazamento de

    Talvez os muitos povos brasileiros que compem esse pas s tenhamchance de ganhar uma certa emancipao cultural, poltica, metafsica,

    no contexto do declnio geral do planeta

  • 8/11/2019 Entrevista Eduardo Viveiros de Castro

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    24/9/2014 A escravido venceu no Brasil. Nunca foi abolida - PBLICO

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    significativo. Um jornalista morando aqui no Rio de

    Janeiro, que trabalha para um jornal ingls, que

    recebeu informaes de um analista americano, que

    estava escondido em Hong Kong: isso s possvel com

    Internet. As redes sociais mudaram completamente as

    condies de resistncia ao capitalismo.

    Uma nova forma de guerrilha?

    Que no nececessariamente violenta, embora exista o

    problema do hacker, do bombardeio de sistema

    electrnico. Mas o que penso no bem por a. Quando

    penso em guerrilha, no sentido de combates locais,ponto a ponto. No estou falando de quebrar a porta do

    banco ou bater na polcia. Falo em combates em que

    voc seja capaz de conectar combates locais atravs do

    mundo inteiro.

    Existem formas novas de resistncia e aliana entre as

    minorias tnicas, culturais, econmicas do planeta quepassam pela conectividade universal da rede, que

    frgil, ao contrrio do que se imagina, com pontos

    fracos, ns, gargalos, em que os Estados Unidos tm um

    poder muito grande. Mas eu diria que muito difcil

    control-la at porque essa rede indispensvel para o

    capitalismo. Difcil o capitalismo danific-la demais,

    seno vai perder seu principal instrumento hoje. Aindaque haja vrias tentativas, no Brasil inclusive, de

    vigilncia.

    possvel que a gente passe para um estado de

    vigilncia la George Orwell. Tudo isso possvel. Mas

    Vejo mais uma guerrilha do que uma guerra, com a vantagem de que asguerras em geral terminam na constituio de um novo poder

    totalitrio, um novo terror

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    organizao, estou um pouco velho para sair na rua.

    EDUARDO VIVEIROS DE CASTRO

    Est com 62 anos.

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    24/9/2014 A escravido venceu no Brasil. Nunca foi abolida - PBLICO

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    , mas para sair na rua como black bloc [sorriso]...

    Posso ir atrs do black bloc, na frente no d.

    Comeou tarde a ser um activista/guerrilheiro.

    Porqu?

    uma questo interessante. A minha relao com o

    activismo na ditadura no foi receio fsico. No que eu

    no tivesse medo de enfrentar a represso. Vi vrios

    amigos presos, torturados, todo o mundo tinha medo.

    Mas no foi por isso que no entrei na luta contra a

    ditadura. Foi porque no acreditava nela, em tomar o

    poder para instituir uma nova ordem no muitodiferente. Eu achava que era uma briga entre duas

    fraces da classe mdia alta para saber quem ia

    mandar no pas. E eu no tinha a menor simpatia pela

    ideia de mandar no pas. Tinha uma desconfiana, que

    infelizmente se confirmou, quando a gente v que uma

    das pessoas que fez a luta armada est mandando no

    pas. E ela est fazendo coisas muito parecidas com oque os militares queriam fazer, pelo menos na

    Amaznia. O projecto da Dilma na Amaznia idntico

    ao do Mdici [terceiro presidente da ditadura, no

    perodo 1969-74].

    O senhor se configura como um anarquista?

    Talvez...

    Fora do estado.

    Digamos que sim. Mas no sou um anarquista daqueles

    que acham que a sociedade actual pode prescindir do

    estado. Acho isso um sonho um pouco infantil.

    Acha que no pode prescindir do estado mas

    que importante cultivar...

  • 8/11/2019 Entrevista Eduardo Viveiros de Castro

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    24/9/2014 A escravido venceu no Brasil. Nunca foi abolida - PBLICO

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    Uma oposio, sim. A ideia de uma abolio do estado

    nas presentes condies fantasia. Existem algumas

    contradies que no podemos evitar. Por exemplo, o

    maior inimigo dos ndios brasileiros, num certo plano,

    o estado, que representa uma sociedade que os invadiu,

    exterminou, escravizou, expropriou de suas terras. Aomesmo tempo, o estado brasileiro a nica proteco

    que os ndios tm contra a sociedade brasileira. Se no

    fosse o estado, os fazendeiros j teriam aniquilado todos

    os ndios. Mas uma quimioterapia, como se o Brasil

    fosse o cncer e o estado fosse aquele remdio. Faz um

    mal horrvel mas voc tem de tomar, o nico jeito de

    ter esperana de se curar. Portanto, no posso ir contrao estado.

    Tenho simpatia pela tese do [antroplogo francsPierre] Clastres, A Sociedade Contra o Estado, um

    tipo de sociedade como ele entendia que era o caso de

    vrias sociedades indgenas, mas no imagino que isso

    possa ser transferido para as nossas dimenses

    demogrficas. Isto dito, no sei por quanto tempo

    vamos ter essas dimenses no planeta, estados-nao

    com milhes de habitantes. Precisamos guardar os anti-corpos contra o estado porque podemos precisar deles

    no futuro.

    Defende que toda a lgica do que o Brasil

    poderia ser, oferecer, passaria por se tornar

    mais ndio. No os ndios tornarem-se

    brasileiros mas o Brasil tornar-se ndio, o quesignificaria uma outra forma de vida, no para

    produzir, no para consumir. Que significa isso

    na uerrilha das cidades e das redes? Como os

    A ideia de uma abolio do estado nas presentes condies fantasia.Existem algumas contradies que no podemos evitar

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    24/9/2014 A escravido venceu no Brasil. Nunca foi abolida - PBLICO

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    dar tal insurreio contnua?

    Vou juntar isso com o final da pergunta anterior. Fui-

    me tornando mais activo nas redes porque apareceram,

    antes no existiam, e em funo da minha enorme

    decepo com o final da ditadura, o facto de quecontinuamos refns do grande capital, dos grandes cls,

    dos capites hereditrios que continuam mandando no

    Brasil, Jos Sarney, Fernando Collor, Renan Calheiros.

    Essa aliana entre o mais arcaico, que Sarney, e o mais

    moderno do capitalismo, que so esses agronegociantes

    de alta tecnologia do Mato Grosso do Sul, todos eles

    combinados para manter a tranquilidade poltica: nodeixemos as massas virem atrapalhar.

    Ento, a minha decepo com a trajectria depois da

    ditadura; a minha decepo maior ainda com a

    trajectria do PT, a partir da eleio do Lula, na qual ele

    escreveu uma carta aos brasileiros dizendo que no ia

    tocar no bolso dos ricos; a minha decepo ainda maiorcom a performance do governo Dilma em relao ao

    meio ambiente, Amaznia, aos ndios, a total

    incapacidade poltica da presidente para ter o mnimo

    de dilogo, por mais fictcio que seja com as populaes

    indgenas, ao contrrio, ela demonstra um desprezo, um

    dio mesmo, que me parece quase patolgico; tudo isso

    me levou ao activismo.

    Todo o mundo tem uma imagem do Brasil como pas

    preguioso, relaxado, laid back, onde tudo maisdevagar. E existe uma grande ambiguidade nossa em

    relao a essa imagem. Por um lado achamos

    interessante a imagem de um pas easy going, por outro

    A gente quer ao mesmo tempo ser sambista e grande potncia mundial.Eu acho que devia continuar sendo sambista

  • 8/11/2019 Entrevista Eduardo Viveiros de Castro

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    24/9/2014 A escravido venceu no Brasil. Nunca foi abolida - PBLICO

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    transformar num pas performante, que vai para a

    frente, produtivo. A gente quer ao mesmo tempo ser

    sambista e grande potncia mundial. Eu acho que devia

    continuar sendo sambista. Que a gente devia saber

    explorar as virtudes do no-produtivismo. A tica

    protestante, que nos deu o esprito do capitalismo, parafalar como Weber, nunca esteve inscrita no DNA do

    Brasil, graas a vocs portugueses, que tambm no a

    tinham [risos]. Tiveram durante sculo e meio, mas

    depois... Ento, por um milagre histrico fomos

    preservados dessa maldio que a tica produtivista

    do capitalismo. Fomos capturados pelo capitalismo

    porque nos invadiu, domou. O capitalismo foi possvelporque a Europa invadiu a Amrica. Se no fosse a

    America, a Europa no teria deixado de ser o que era na

    Idade Mdia, um fundo de quintal. Na Idade Mdia, as

    sociedades desenvolvidas eram o Isl, a India e a China.

    Os europeus eram um bando de brbaros, sujos, mal

    vestidos, catlicos. Mas por acaso os portugueses e os

    espanhis deram de cara com o novo mundo e ocapitalismo tornou-se possvel. Porque foi o ouro do

    Novo Mundo, milhares de toneladas, e tudo o que saiu

    da Amrica, novas plantas, novos recursos alimentares,

    que permitiu a expanso do capitalismo e depois a

    revoluo industrial. Se no tivesse havido invaso da

    Amrica, destruio da Amrica no teria havido

    Europa moderna. Hoje, no mundo, as principais plantasque servem de alimentao mundial so de origem

    amerndia: o milho, que se planta em toda a parte, a

    batata, que permitu a revoluo industrial inglesa, a

    mandioca, da qual toda a frica do Oeste hoje vive. S

    que a Amrica j era, no tem mais Novo Mundo para

    descobrir, a terra fechou, arredondou, alm de que o

    plo dinmico do capitalismo foi para a China.

    Voltando aos ndios.

  • 8/11/2019 Entrevista Eduardo Viveiros de Castro

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    24/9/2014 A escravido venceu no Brasil. Nunca foi abolida - PBLICO

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    O Brasil tem muito poucos ndios comparado com os

    pases andinos ou mezo-americanos. Esto na casa de

    um milho, num pas de 200 milhes. Mas tm um

    poder simblico muito grande, at porque tm uma

    base muito grande, 12 por cento do territrio brasileiro.

    Est tudo invadido [por obras ou fazendeiros] masoficialmente terra indgena. Alm de que tm um

    poder de seduo no imaginrio ocidental. A Amaznia

    tem um poder simblico imenso. Embora, ao contrrio

    do que os brasileiros pensam, no seja s brasileira, a

    maior parte da Amaznia est no Brasil. E um objecto

    transcendente, uma espcie de ltima chance, ltimo

    lugar da terra. O que d ao Brasil um poder simblicoque ele no sabe usar, ao contrrio, a Amaznia tem

    servido para atacar o Brasil por no saber cuidar da

    Amaznia. E sabe uma coisa? No sabe mesmo. E no

    est sabendo se valer da Amaznia como um trunfo

    mundial. Nem como um lugar onde poderia se

    desenvolver uma civilizao menos estpida, do ponto

    de vista tecnolgico e social. Os ndios a servem comoexemplo. Esto na Amaznia h pelo menos 15 mil

    anos. Boa parte da floresta amaznica foi criada pela

    actividade indgena. Boa parte do solo foi criado com

    cinza de fogueira, detritos humanos. A Amaznia essa

    floresta luxuriante em parte por causa da aco

    humana, dos ndios.

    Perante isto, o modelo sulino, gacho, europeu, de

    ocupao da Amaznia, um plano liso que voc possa

    encher de fertilizante, para poder plantar plantastransgnicas, resistentes a herbicidas, para produzir

    soja para vender para China, para em seguida pegar

    esse dinheiro e dar Bolsa Famlia. No seria mais

    A Amaznia tem servido para atacar o Brasil por no saber cuidar daAmaznia. E sabe uma coisa? No sabe mesm

  • 8/11/2019 Entrevista Eduardo Viveiros de Castro

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    Isso tambm afectou os ndios, no? Em So

    Gabriel da Cachoeira, o municpio mais

    indgena do Brasil [estado do Amazonas], um

    dos grandes problemas o alcoolismo.

    Impressionante ver o estado em que muitos

    ndios vivem em So Gabriel. um resultadodesse erro de tentar converter o ndio em

    brasileiro nesse modelo que est a descrever?

    O alcoolismo uma praga da populao indgena das

    trs Amricas. Tem a ver com vrias coisas. Uma delas

    gentica, mesmo. Os ndios tm, por razes de evoluo,

    muito menos resistncia ao metabolismo do acar noorganismo. Por isso que eles tm essa tendncia

    obesidade e diabetes. Segundo, os ndios sempre

    tiveram lcool, na Amrica do Norte menos, mas todos

    os ndios da Amaznia preparavam bebidas

    fermentadas, etc. a mesma coisa com o tabaco, s que

    ao contrrio. O tabaco indgena. Os ndios fumavam,

    mas no tinham cncer, ou a taxa devia ser muitopequena, assim como o alcoolismo existe entre ns mas

    muito menos violento. Porqu? Os ndios, para

    fazerem o tabaco deles e a bebida deles, tinham que

    produzir mo. Tabaco tinham de plantar, de enrolar,

    de fazer um charuto, levava cinco dias para fumar, eram

    objectos custosos. A cerveja que faziam levava semanas.

    A, chega de repente a cachaa, seis meses de trabalhoindgena concentrado numa garrafa que custa dois

    reais. A mesma coisa com a gente: quando voc pega

    num mao de cigarro que tem concentrado seis meses

    de trabalho indgena, voc fuma um atrs do outro.

    Voc morre de cncer aqui e os ndios morrem de

    cirrose l.

    O capitalismo apresenta aos ndios uma coisa que eles nunca tiveram: oinfinito mercantil. Os objectos no acabam nunca

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    O capitalismo apresenta aos ndios uma coisa que eles

    nunca tiveram: o infinito mercantil. Os objectos no

    acabam nunca. Voc tem uma quantidade infinita de

    cachaa. como se chegassem aqui marcianos que nos

    dessem soro da vida eterna. Os ndios no entendem e

    consomem, consomem, consomem. Eles produziampouco para ter tempo livre. O que acontece agora que

    continuam produzindo pouco mas os produtos chegam

    em quantidade infinita. E eles no tm estrutura social,

    poltica, institucional. Vai levar sculos para que

    desenvolvam resistncias. Todo o ser humano gosta de

    se drogar, alterar a conscincia, desde o caf at ao LSD,

    ento nos ndios o lcool entrou destruindo tudo. certamente a coisa mais destrutiva em todos os ndios

    das Amricas.

    No h sociedades perfeitas. preciso distinguir entre

    modelo e exemplo. Os ndios so um exemplo, no um

    modelo. Jamais poderemos viver como os ndios, por

    todas as razes. No s porque no podemos como no desejvel. Ningum est querendo parar de usar

    computador ou usar antibitico, ou coisa parecida. Mas

    eles podem ser um exemplo na relao entre trabalho e

    lazer. Basicamente trabalham trs horas por dia. O

    tempo de trabalho mdio dos povos primitivos de trs,

    quatro horas no mximo. S precisam para caar,

    comer, plantar mandioca. Ns precisamos de oito, 12,16. O que eles fazem o resto do tempo? Inventam

    histrias, danam. O que melhor ou pior? Sempre

    achei estranho esse modelo americano, trabalha 12

    horas por dia, 11 meses e meio por ano, para tirar 15

    dias de frias. A quem isso beneficia?

    A nica vantagem indiscutvel que a civilizaomoderna produziu em relao s civilizaes indgenas

    foram os avanos na medicina. Se voc fosse viver o

  • 8/11/2019 Entrevista Eduardo Viveiros de Castro

    31/31

    24/9/2014 A escravido venceu no Brasil. Nunca foi abolida - PBLICO

    facto um avano. Mesmo assim nossos avanos sempre

    avanam demais. Hoje preferimos manter uma pessoa

    de 90 anos sofrendo horrivelmente, tem de viver, tem

    de viver, a famlia vai falncia. Ou seja, no sabemos

    mais morrer. Todo o mundo antes do sculo XX sabia

    morrer.