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Entrevista realizada pelo Grupo CONES com o Prof. Olival Freire sobre o filosofo Paul K. Feyerabend DENISE: Hoje a gente está fazendo o fechamento da primeira etapa do nosso projeto Pibic 2008/2009 e, já falei isso para Olival, é uma tentativa de recuperar algumas obras de epistemólogos do século 20 que propuseram elementos para uma epistemologia não cartesiana. O primeiro autor é Feyerabend, e para isso a gente leu o Discurso do Método (Descartes), lemos a autobiografia dele, alguns textos: o Diálogo sobre o Conhecimento, Contra o Método e alguns textos que a gente encontrou na internet, basicamente duas dissertações, não é Sidarta? E o texto de Olival. [...] Então, nesse projeto, a gente tem dois alunos, depois vou pedir que vocês se apresentem. Mas antes de tudo, eu gostaria de agradecer a presença do professor Olival conosco. O professor Olival Freire é professor associado do Instituto de Física, tem graduação em física, mestrado em epistemologia das ciências e o doutorado na USP em história das ciências, realizou dois programas de pós-doutorado, tanto em Paris VII e Harvard, eu vi no seu Lattes essa semana que tem um fellowship do MIT em Harvard, que é uma coisa muito prestigiosa. E ele faz parte também do Programa de Ensino, História e Filosofia das Ciências que é uma dobradinha UFBA/UEFS, envolvendo também várias unidades da UFBA.

Entrevista Olival Freire sobre Feyerabend - Transcrição

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Entrevista realizada pelo Grupo Cones, com o prof. Olival Freire sobre o filósofo Paul K. Feyerabend. Vale a pena conferir, mais produções no blog: http://conexaoic.blogspot.com/

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Page 1: Entrevista Olival Freire sobre Feyerabend - Transcrição

Entrevista realizada pelo Grupo CONES com o Prof. Olival Freire sobre o

filosofo Paul K. Feyerabend

DENISE: Hoje a gente está fazendo o fechamento da primeira etapa do nosso projeto

Pibic 2008/2009 e, já falei isso para Olival, é uma tentativa de recuperar algumas obras

de epistemólogos do século 20 que propuseram elementos para uma epistemologia não

cartesiana. O primeiro autor é Feyerabend, e para isso a gente leu o Discurso do

Método (Descartes), lemos a autobiografia dele, alguns textos: o Diálogo sobre o

Conhecimento, Contra o Método e alguns textos que a gente encontrou na internet,

basicamente duas dissertações, não é Sidarta? E o texto de Olival. [...] Então, nesse

projeto, a gente tem dois alunos, depois vou pedir que vocês se apresentem. Mas antes

de tudo, eu gostaria de agradecer a presença do professor Olival conosco. O professor

Olival Freire é professor associado do Instituto de Física, tem graduação em física,

mestrado em epistemologia das ciências e o doutorado na USP em história das ciências,

realizou dois programas de pós-doutorado, tanto em Paris VII e Harvard, eu vi no seu

Lattes essa semana que tem um fellowship do MIT em Harvard, que é uma coisa muito

prestigiosa. E ele faz parte também do Programa de Ensino, História e Filosofia das

Ciências que é uma dobradinha UFBA/UEFS, envolvendo também várias unidades da

UFBA.

Então, quando eu propus esse projeto e perguntei lá em filosofia quem conhecia a obra

de Feyerabend, o nome indicado foi o seu e a gente ficou super-contente, porque eu já

tive a oportunidade de levar Olival em dança, inclusive na turma de Nora. E a

repercussão foi a melhor possível. Foi um encontro muito proveitoso para a gente. Eu

sou professora da Escola de Dança e do Programa de Artes Cênicas, e vocês se

apresentam.

SIDARTA: Eu sou Sidarta Rodrigues, estudante de psicologia, faço pesquisa no grupo

CONES - Modelagem da complexidade em humanidades, artes e saúde. Atualmente, no

8° semestre de Psicologia.

ELEONORA: Eu sou Eleonora, sou formada em Direito, graduada no curso de

Licenciatura em Dança na UFBA e acabei de concluir meu mestrado em Dança e agora

estou galgando a seleção para o doutorado em artes cênicas...

Page 2: Entrevista Olival Freire sobre Feyerabend - Transcrição

DENISE: Ela é quase uma doutoranda, porque já passou nas duas fases mais difíceis da

seleção...

ELEONORA: E acho que essa continuidade de estudos, principalmente nessa temática

vai ser realmente interessante para mim, porque a minha proposta para o doutorado e

acompanhar o desenrolar dos Bacharelados Interdisciplinares no aspecto das disciplinas

de artes. Um dos objetivos é discutir sobre outros métodos, outro viés epistemológico

para a pesquisa acadêmica em artes.

ISA : Meu nome é Isa Sara, também de faço licenciatura em dança. Estou muito

empolgada, muito feliz de estar aqui. Também faço parte do grupo CONES.

CECÍLIA: Eu sou Cecília, sou graduada em Licenciatura em Dança aqui, estou

galgando o mestrado em artes cênicas...

DENISE: Também já passou nas fases mais difíceis da seleção...

CECÍLIA: Conheci muito recentemente o autor... procurei dar uma estudada sobre

quem é ... o histórico...

DENISE: Então o formato é bem livre, que a gente faça uma conversa e que vocês

perguntem coisas livremente sobre o que vimos na bibliografia.

ELEONORA: A gente tinha pensado em propor a você que começasse falando sobre o

e-mail quando você retornou o convite e falou assim: como é interessante retomar O

Discurso do Método de Descartes para falar desse autor, Feyerabend. Então, talvez seja

um bom início, falar dessa relação, da posição de Feyerabend em relação à obra de

Descartes, ao Método, para a gente começar.

OLIVAL: Eu gostei de vocês voltarem a Descartes, porque veja que até no título das

obras há um contraponto: O Discurso do método e Contra o método. Entretanto, eu

não tenho certeza se o alvo, digamos assim, de Feyerabend era tão claramente

Descartes, a obra de Descartes, ou a fortuna que essa obra teve, nesses três séculos que

separam uma obra da outra. Então, me explicando melhor, não tenho dúvida de que a

obra cartesiana é uma obra fundadora da racionalidade da ciência moderna, é a obra

fundadora, concorrendo somente com uma outra tradição filosófica que faz parte da

fundação da ciência moderna que é a tradição do empirismo. Mas esses mais de três

séculos entre a obra de Descartes e a segunda metade do século 20, porque nós temos de

localizar que Feyerabend é um pensador da segunda metade do século 20, sofrendo

Page 3: Entrevista Olival Freire sobre Feyerabend - Transcrição

todas as influências culturais desse período. Então a minha percepção é a seguinte: no

Contra o método de Feyerabend, o alvo imediato dele é menos a epistemologia

cartesiana, enquanto doutrina, e mais uma certa crença corrente num certo meio, que eu

vou chamar de um meio pós-positivista, na cultura da ciência anglo-saxã, que

basicamente é o meio que vem do Círculo de Viena, do positivismo lógico, para os

críticos do Círculo de Viena, com todas as nuances, com Popper meio crítico, meio em

adesão e os outros mais críticos , Kuhn, Lakatos, o próprio Feyeranbend.

DENISE: Ele foi aluno de Popper.

OLIVAL: Foi aluno de Popper, na verdade ele e Lakatos, na verdade Lakatos não foi

exatamente aluno, terminou convertendo-se numa espécie de discípulo. De todo modo,

todos dois muito próximos de Popper, na Inglaterra. Então é nesse ambiente em que

Feyerabend escreve Conta o Método e a minha leitura é a seguinte: Contra o método é

uma rebelião contra um certo projeto que era comum tanto ao Círculo de Viena quanto a

Popper e, em certa medida, ao próprio Lakatos. Então qual é esse projeto? Eu diria

assim que é um projeto que está muito expresso no Círculo de Viena, está presente

também nas obras posteriores, que é um projeto de você estabelecer um critério de

demarcação entre a ciência e a não ciência, ou entre a ciência e a pseudo-ciência. Então

o Círculo de Viena tinha, digamos assim, essa pretensão, mas em que pese toda a crítica

de Popper ao Círculo de Viena, crítica do uso inadequado da lógica, segundo Popper,

mas Popper faz essa crítica preservando esse projeto: encontrar um critério de

demarcação, o critério da falseabilidade popperiana é exatamente isso, um critério que

permita distinguir o que é ciência da não-ciência.

Bom, nesse momento, então, digamos assim, esse projeto, eu diria, a minha leitura, é

que esse projeto tem em seu seio certa arrogância que é herdeira das ciências naturais,

física, química, da matemática, uma arrogância construída historicamente pelo sucesso

inicial dessas disciplinas com o título de ciência. Então o que eu chamo de arrogância, é

que você pode discutir, digamos, qual é a característica dessas ciências. Se você olhar

quase todas as pessoas que refletem sobre as características dessas ciências estão

refletindo sobre a física ou sobre a física e a matemática. Sobre a química, quase não

existe. Sobre a Biologia, menos ainda. Mas essas pessoas, o projeto do positivismo,

mesmo se remontamos a Comte, não é um projeto de fazer uma ontologia da física, é

um projeto de fazer ontologia da ciência. O critério de demarcação que o Círculo de

Viena propôs é um critério para demarcar a ciência da pseudo-ciência. Então a

Page 4: Entrevista Olival Freire sobre Feyerabend - Transcrição

arrogância é porque se trata, no fundo, de você enquadrar todas as outras disciplinas,

nesse momento não quero usar a expressão científica, todas as outras formas de

conhecimento que têm uma igual aspiração de racionalidade, uma igual aspiração de

diálogo com o empirismo, você pretende enquadrar essas outras disciplinas no escopo,

ou pelo menos num método, métodos responsáveis pelo sucesso da física e pelo sucesso

da física e da química... Isso por exemplo no caso do Comte é absolutamente claro

quando ele fala da sociologia. Sociologia para Comte é a física social, mas isso está

presente no Círculo de Viena, o manifesto do Círculo de Viena discute o que é

científico. Diga-se de passagem, atualmente hoje a gente associa o Círculo de Viena

muitas vezes ao conservadorismo político. Popper é um pouco herdeiro disso, Popper é

um liberal dessa época que está acabando agora, com essa crise nos mercados

financeiros. A gente tende sempre a associar liberalismo e a geração deles: liberalismo é

a direita na política. Mas, na origem, é uma experiência que todo mundo devia ler. Vá

ler, é um manifesto socialista. O Círculo de Viena era um círculo de pensadores

socialistas.

DENISE: Liberalismo não era ainda um palavrão (risos)

OLIVAL: Não, não era um palavrão e nem eles se consideravam liberais; eles se

consideravam socialistas. Definem explicitamente o que eles chamam de concepção

socialista do mundo. Essa conexão de Popper com o liberalismo e o neo-liberalismo é

uma coisa que vem depois. Mas, enfim, o que é importante, na minha percepção, é que

aqueles critérios ou aqueles métodos que tinham tido sucesso, digamos assim, nas

ciências da natureza, nós tínhamos a expectativa de que esses métodos pudessem ser

estendidos dos saberes ao conjunto do conhecimento. Isto no caso de Popper também é

absolutamente claro, quer dizer, Popper depois que erige o critério da falseabilidade, ele

passa a discutir dois campos do conhecimento, que ele diz: “olha, esses daqui são

pseudo-ciência: psicanálise e marxismo”. Então eu acho que é nesse contexto que a obra

de Feyerabend adquire, em minha opinião, seu maior valor, sua magnitude.

OLIVAL: Qual, assim, a magnitude que eu vejo: é que Feyerabend, ele se insurge

contra isso usando uma estratégia, a meu ver, extremamente inteligente. Ele se beneficia

muito das contribuições empíricas, do lado da história da ciência, e nisso ele não está

sozinho. Kuhn fazia isso, Lakatos fazia isso, e sintomaticamente Popper já fazia menos,

Então, muito da força da argumentação do livro Contra o Método vem do fato que ele

pega um caso concreto da história da ciência, do Galileu, deliberadamente. Ele pega um

Page 5: Entrevista Olival Freire sobre Feyerabend - Transcrição

caso paradigmático dentro da ciência moderna e argumenta. Ao mesmo tempo no plano

filosófico, no plano epistemológico em que ele está sempre remetendo a uma estratégia

dentro da filosofia da ciência que é para você discutir uma tese filosófica no sentido de

caso. E, nesse caso, ele consegue mostrar, a meu ver, não de maneira convincente, de

maneira que você pode ter ressalva, mas que no meu entendimento são ressalvas

secundárias. Ainda hoje ele consegue com toda pesquisa histórica em cima de Galileu

desde então, em minha opinião, não invalida em larga escala o argumento do

Feyerabend. Então, ele consegue mostrar o seguinte, olha: se Galileu tivesse seguido

essas normas de método cientifico de que vocês estão dizendo que é característico da

ciência, ele não teria sido Galileu, não teria feito a ciência que fez.

Então, o Contra o método, no fundo, eu acho que não é um livro contra a existência de

método na ciência. É contra a idéia de que a ciência possa ser governada por um único

método, que é um argumento favorável ao recurso a tantos métodos para que se possa

contribuir para desenvolvimento da ciência. Então, por isso que eu acho que

Feyerabend, ele não... O alvo direto da crítica, do debate não é, digamos assim,

Descartes, mas não deixa de ser, digamos assim, não deixa de haver uma conexão. Bom,

no fundo o que eu quero dizer é o seguinte, nós não podemos responsabilizar Descartes

pela pretensão de universalidade, pretensão do método. Claro, é mais uma construção a

partir dele do que propriamente algo presente na obra cartesiana. É claro que a obra

cartesiana tinha uma pretensão de universalidade.

DENISE: E o próprio período tinha uma pretensão de universalidade, não é?

CECÍLIA: Eu acho que esse discurso dele contra o método vem também como discurso

de uma política de poder que está existindo em relação à ciência. Acho que o período

era favorável a esse encontro acontecer.

OLIVAL: Seguramente Cissa, essa idéia de que Feyerabend, segunda metade do século

20, é tanto nesse sentido intelectual de qual é o cenário intelectual com o qual ele está

dialogando, mas também um cenário social preciso e é um cenário no qual a ciência

depois da Segunda Guerra mundial, especialmente nos EUA, tem um poder imenso. A

ciência foi crucial para o lado dos aliados na vitória americana, mais o radar do que a

bomba atômica. Quando surge a bomba atômica, a guerra já estava praticamente

vencida. Mas, enfim, a ciência teve um papel essencial na Segunda Guerra do lado

americano, mas teve também do lado da Alemanha nazista. A habilidade dos alemães de

bombardear Londres a partir do continente era uma habilidade que tinha sido

Page 6: Entrevista Olival Freire sobre Feyerabend - Transcrição

desenvolvida pela ciência, pela tecnologia. Não é à toa que entre os célebres EUA atrás

de vai dirigir a NASA Von Braun é alguém ligado ao regime nazista no período da

Segunda Guerra.

Então, assim, a ciência tem um grande poder e sai da Segunda Guerra com um enorme

poder. O contexto da guerra fria amplifica o poder da ciência, o contexto da guerra fria é

um contexto também de corrida armamentista. Então, de um lado e do outro, tanto do

lado dos EUA quanto do lado da União Soviética os cientistas se transformam numa

elite altamente bem remunerada com laços próximos ao poder de um lado e de outro. Só

que a década de 1960 representa uma inflexão nesse cenário. É uma inflexão porque

emerge na década de 60 críticas importantes a esse cenário social, a esse poder da

ciência. Essas críticas que estamos fazendo quarenta anos depois de 1968 que é o ápice

dessa crítica. Mas, do ponto de vista da critica, a ciência, isto até outro dia eu estava

discutindo num seminário, a minha impressão é que o que aconteceu na França em 68

para a gente entender essa critica, a ciência não é o mais importante. O mais importante

é o que aconteceu nas universidades norte-americanas em 1967, 68 e 69. Porque nessas

universidades, o vínculo da ciência com a guerra do Vietnã era mais evidente, os

franceses e os italianos protestavam contra o vinculo da ciência com a guerra. Mas era

uma guerra que esses países não estavam travando. A Itália não, a Alemanha não estava

na guerra, era uma guerra que era uma nação do outro lado do atlântico, enquanto que

nos EUA as melhores instituições acadêmicas como o MIT todos eles estavam

profundamente envolvidos com esse esforço de guerra. E isso é um casamento muito

longo. No final dos anos 1940, inicio dos anos 50, mas esse casamento se desfaz quando

a sociedade americana – eu acho que a sociedade americana ao longo da história tem

sido capaz de surpreender, surpreendeu agora com a eleição de Obama – e na década de

1060 ela nos surpreendeu quando você tem dentro dos EUA o crescimento de um

poderoso movimento de contestação à guerra do Vietnã. Então, no cenário americano,

essa contestação à guerra do Vietnã é uma contestação basicamente da juventude, da

juventude universitária e esta contestação à guerra rapidamente se transforma numa

contestação ao uso da ciência na guerra.

DENISE: Agora, você diria então que essa década de 1960 já é uma década que muito

das ciências humanas e sociais apresentam objetos e pesquisas já de maneira muito

contundente; isso quebra também ou faz uma tensão ainda maior em relação às ciências

com paradigma nas ciências naturais.

Page 7: Entrevista Olival Freire sobre Feyerabend - Transcrição

OLIVAL: Sim, seguramente! Eu acho que sim, acho que essa tensão já estava presente.

É sintomático assim, por exemplo, um dos autores que vai estar mais em voga, por

exemplo, nas universidades americanas da época, bom seguramente Feyerabend, parte

do sucesso de Feyerabend se deve a esse, mas o livro de Feyerabend é de 1974, se não

me engano.

DENISE: Do inicio da década de 1970.

OLIVAL: Pois é, então o livro já vem um pouco depois que aquela rebelião se

acomoda. Mas o livro que é mais influente naquele contexto é de Marcuse. É justamente

Marcuse que vem de uma tradição que remonta a outra tradição filosófica, mas no fundo

é uma critica das ciências, do papel da ciência, do papel da técnica. Agora esse

contraponto com as ciências humanas, eu acho que é uma coisa que a gente deveria

refletir mais. Heresia. Eu não sei em que medida mesmo a psicanálise no cenário

americano representado esse contraponto que hoje a gente olha para trás e vê.

DENISE: Não, eu acho que nos EUA, não. Mas a psicologia, as ciências sociais...

OLIVAL: Então, a ciência social, veja a sociologia norte-americana naquela década ali.

Será que a sociologia funcionalista norte-americana, será que ela não está exatamente

um pouco inspirada, embebida dessa idéia, por exemplo, a ênfase no uso de métodos

quantitativos?

DENISE: E até hoje, não é, Sidarta? A gente veio agora do Congresso da Sociedade

Brasileira de Psicologia e o grupo hegemônico tenta mostrar que a psicologia é uma

ciência natural. Pede os dados.

OLIVAL: Exatamente. Eu não sei se a gente precisaria refletir um pouco...

DENISE: É, mas não falo no sentido de derrubar métodos, mas de apresentar outras

formas, porque, por exemplo, o método etnográfico aparece com muita força. Já vem da

década de 1030.

OLIVAL: É verdade, é verdade. Já está presente.

DENISE: Mas isso não aparece, não é uma vinda da Física.

OLIVAL: Eu acho legal isso que você esta lembrando. Na verdade é um cenário,

década de 1960, cenário americano. É exatamente, então, essa tensão, seguramente, essa

tensão existe. Aí, eu me lembro, o que vem à mente é exatamente o seguinte: por

exemplo, o trabalho da Margaret Mead, e o papel que ela tinha na ciência americana e

Page 8: Entrevista Olival Freire sobre Feyerabend - Transcrição

alguns exageros que inclusive ela cometeu nessa tentativa de fazer a crítica à ciência

norte-americana. Ela era presidente da American Association for the Advancement of

Science, [Associação Americana para o Avanço da Ciência]. E é na gestão dela,

exatamente nessa década, que ela aceita a sociedade de parapsicologia como uma das

sociedades cientificas. E isso foi uma confusão, mas ela e essa sociedade ficou muito

mais que uma década, eu não sei quando. Depois é que finalmente a sociedade de

parapsicologia saiu. Então, você tem razão, tinha um contraponto nas ciências humanas.

É que talvez esse contraponto, a minha conjectura é assim, talvez a gente não devesse

olhar com o nosso olhar de hoje para a sociologia ou para a psicologia, para a

psicanálise, e imaginar que esse contraponto fosse tão forte na década de 1970.

DENISE: Agora, outra coisa que eu acho, é só uma hipótese, é de que o romance

psicológico norte-americano, a literatura norte-americana também teve um bocado de

impacto no inicio do século 20.

OLIVAL: Claro, eu acho que sim. Seguramente, sim. Já é influência, mais via cultura

americana.

DENISE: Influência da literatura, das artes...

Bom, sei que vocês devem ter questões, mas eu queria aproveitar a presença de um

físico aqui para pensar um pouco a questão que você tocou em relação a Galileu, porque

para a gente não é muito claro, não é? E está no livro de Feyerabend, o momento em

que ele detecta que Galileu quebra um paradigma que é o da ciência, digamos,

medieval. Então, ao mesmo tempo, pelo que eu entendi de você, Feyerabend faz uma

libertação de um racionalismo marcadamente cartesiano, e também da proposta

galileana, mostrando como esse caso é emblemático de uma quebra, ali mesmo entre a

Idade Média e a Idade Moderna, de fazer ciência, do que é fazer ciência.

OLIVAL: É eu acho que é isso. Para ser mais preciso, é verdade que Galileu quebra,

causa uma ruptura em relação ao pensamento medieval, mas, aí, acho que vale a pena

qualificar um pouco mais essa ruptura. Ela é a ruptura primeiro com um sistema de

pensamento integrado, que é um sistema que está apoiado numa cosmologia e também

numa visão de mundo, que é uma visão de mundo estruturada, hierárquica e é uma visão

de mundo que vem de antes da Idade Média. Na verdade, é a visão de mundo

aristotélica. Então você tem uma cosmologia aristotélica, essa cosmologia tinha enorme

sintonia com um desenvolvimento da astronomia que vinha da antiguidade. Então o que

Page 9: Entrevista Olival Freire sobre Feyerabend - Transcrição

a gente chama de modelo geocêntrico, que é o modelo adotado por Ptolomeu, era... esse

modelo: você fazia uma astronomia, com base nesse modelo, uma astronomia

matemática, quantitativa, observacional, mas essa astronomia estava em conformidade

com uma visão de mundo, a visão de mundo aristotélica que é transmitida para o

período medieval, é transmitida pelos árabes, transmitida pela igreja católica. São

Tomás de Aquino provavelmente foi o melhor transmissor dessa visão. Na literatura, a

melhor expressão disto é A Divina Comédia, de Dante e a idéia de mundo sublunar,

mundo supra lunar, das esferas concêntricas, já está presente ali, e mais do que isso,

essa visão então de uma cosmologia, de uma visão de mundo, no qual o universo era

organizado em cosmos hierarquizados, essa cosmologia está em perfeita sintonia com

uma física, uma física no sentido de uma descrição do chamado movimento local.

Movimento local na tradição aristotélica era um movimento na superfície da Terra. Para

ser mais preciso, era um movimento na esfera sublunar. Então isso é importante porque

dentro dessa visão cosmológica você tinha naturezas distintas: o mundo sublunar, o céu

e o mundo supra lunar. Então, essas três searas que eu estou falando aqui, astronomia de

um lado, cosmologia do outro e física, elas estavam bem integradas e formavam um

sistema de pensamento.

DENISE: A gente pode dizer que dentro da astronomia havia também os elementos de

uma astrologia? Que não tinha essa separação, não é?

OLIVAL: Não, não tinha.

DENISE: Tinha uma questão mais mística...

OLIVAL: É, mas no caso a relação com a astrologia é um pouquinho mais complicada

porque...

DENISE: É isso que Feyerabend vai retomar também, não é? Por que não astrologia?

OLIVAL: É, exatamente, na critica dele. Eu acho que isso é um pouquinho mais

complicado no seguinte sentido: bom, a astrologia tinha um valor cultural até essa

época, um contemporâneo de Galileu, que é Kepler, praticava astrologia, fazia mapas

astrológicos, mas a atitude, quando me referi à Igreja Católica como transmissão dessa

herança da filosofia aristotélica, ai a gente precisa ter um pouco de atenção porque a

igreja católica, a teologia católica, cristã, não é compatível, tinha uma certa tensão

quando a isso. O que não impediu que a astrologia sobrevivesse e declinasse a partir do

século 17. Então, Galileu é uma ruptura com essa visão de mundo. É claro que é uma

Page 10: Entrevista Olival Freire sobre Feyerabend - Transcrição

ruptura que tem inicio antes, tem inicio com Copérnico, é uma ruptura que só vai se

consolidar depois de Galileu, com a obra de Newton, e parte da critica de Feyerabend,

na análise do caso de Galileu, é exatamente que ele está atento para esse detalhe

histórico, de Galileu ir contra as evidências, contra essa cosmologia aristotélica, dessas

evidências com observação na luneta, mas o próprio Galileu tem consciência de que

essas evidências não são conclusivas no sentido de serem uma demonstração forte. Parte

do debate do livro Galileu Galilei, e Feyerabend nos ajuda a retomar isso, a igreja

católica não pode ser representada neste debate...

Então, perdi o raciocínio, deixe eu voltar: o debate com a igreja católica, a igreja

católica não pode ser representada, digamos assim, como um bando de ignorantes contra

a ciência e Galileu como o cientista contra os ignorantes. Esta visão da igreja católica

como ignorante está presente inclusive numa obra como o Galileu Galilei de Bertold

Brecht; tem um momento em que Galileu está discutindo com os padres e Galileu

manda os padres olharem para o telescópio e os padres não querem olhar para o

telescópio, como se fossem uns ignorantes. E essa imagem simplista é uma falsificação

histórica fenomenal.

A igreja católica tinha uma tradição de pesquisa, claro que nos marcos epistemológicos

dessa ciência do período medieval...

DENISE: Até o século 17 eles eram os detentores e os fabricantes do conhecimento...

OLIVAL: Claro! Somente um dado para a gente refletir...

DENISE: Pascal, Descartes...

OLIVAL: A própria igreja!

DENISE: Pascal era da igreja, da ordem dos jesuítas

OLIVAL: É, mas tem seus conflitos, digamos assim... Mas é isso, a ordem dos jesuítas,

os jesuítas eram bons matemáticos. A reforma do calendário que ainda hoje está

vigente, que é o calendário gregoriano, é exatamente obra de um jesuíta que é o Cladius,

que era um diretor de um colégio romano, e foi aprovado em 1583 pelo papa Gregório.

Ainda hoje aqui em física a gente explica o que é o calendário gregoriano e você só

entende aquela reforma se você entender muito de astronomia e de matemática para

você entender aquela correção em que a cada quatro anos há um ano bissexto e, a cada

cem anos, tem de fazer uma correção. É um cálculo matemático fenomenal.

Page 11: Entrevista Olival Freire sobre Feyerabend - Transcrição

Então, os contemporâneos de Galileu na Igreja católica não eram esses idiotas que se

pode pensar. Depois, Galileu partilhava com a igreja a noção, e isso é herança lá de

Euclides, de que o conhecimento seguro, e aí também Descartes é herdeiro disso, o

conhecimento seguro tem de ser demonstrado. Hoje, eu falo assim: Galileu encontrou

evidências contra a cosmologia aristotélica, mas para ele encontrar evidência não era

suficiente, era preciso uma demonstração. Então, tanto Galileu achava que precisava de

uma demonstração cabal, quanto a igreja achava que Galileu não podia defender o

heliocentrismo se não tivesse a demonstração cabal. E Galileu deu voltas para tentar

encontrar a tal da demonstração cabal, e não encontrou; é bem estabelecido que Galileu

não a encontrou. Não há na época de Galileu algo que seja uma demonstração cabal a

favor do heliocentrismo. O que você tem é um conjunto de argumentos que vão,

digamos assim, fazendo grande parte da ciência do mundo contemporâneo a Galileu,

mudando do geocentrismo para o heliocentrismo. Então, Descartes muda, Kepler muda,

mas não é uma coisa que você tenha uma demonstração.

DENISE: Então isso já leva a um deslocamento do empírico para o teórico?

OLIVAL: Seguramente! À época, justamente, essa idéia de que o conhecimento

científico requeria demonstração é uma espécie de um racionalismo cartesiano avant la

lettre, é a idéia de que a ciência tem de estar inspirada no modelo da geometria de

Euclides: você tem de ter axiomas e dos axiomas você demonstra os teoremas. Se não

há isso, não há conhecimento seguro. Então, eu diria, portanto, que naquele momento

ali, o papel do componente teórico, do componente racional tinha mais importância do

que o componente empírico, isto é, você encontrar uma evidência empírica. E aí, o

mérito de Feyerabend, é que ele se apóia naquilo que os historiadores da ciência – são a

minha tribo – mas a história da ciência é uma especialidade um pouco isolada no mundo

da cultura. A filosofia transita com muito mais facilidade, vocês vêem que em torno de

um filósofo vocês conseguem reunir aqui tanta gente tão diferente e até um filósofo,

mas a história da ciência é uma tribo mais especializada. O mérito de Feyerabend é

exatamente que ele busca aquelas informações que não eram novidade para a história

das ciências, mas que no debate filosófico são informações, digamos assim, importantes

e sobre as quais Feyerabend argumenta bem. E a argumentação é essa, quer dizer, a

análise histórica do caso de Galileu mostra que ele não tinha todas as razões que a gente

pode hoje querer atribuir-lhe no embate dele com a igreja. Era uma posição difícil a de

Feyerabend. Era tão difícil sua posição que você vê a ironia da história. Em janeiro

Page 12: Entrevista Olival Freire sobre Feyerabend - Transcrição

deste ano, esse papa atual, Bento XVI, vocês sabem que é uma pessoa inteligentíssima,

o italiano ali (Alessandro) deve estar dando risada. Ele ia dar uma palestra a convite da

Universidade La Sapienza em Roma. Aí, o departamento de física, que não gosta do

Bento XVI por outras razões, resolveu protestar e dizer que a Universidade não podia

receber o papa porque ele tinha confusão com Galileu. Aquela coisa típica, quando você

quer fazer uma manifestação contra o presidente, contra o papa ou contra o reitor,

qualquer motivo serve, não é? São capazes de fazer uma manifestação contra Naomar

porque ele usa rabo de cavalo. Aí, a resposta do Bento XVI foi fantástica, porque ele

recuperou um artigo que ele mesmo havia escrito no início dos anos 1980, não lembro a

data exata, em que o Bento XVI mostrava que o Feyerabend tinha nos mostrado que a

igreja tinha boas razões para estar contra Galileu.

DENISE: Ele cita Feyerabend?

OLIVAL: Sim, mas claro! Agora, a malandragem de Bento XVI é que Feyerabend não

disse que a igreja tinha boas razões para condenar Galileu; a igreja tinha boas razões, a

ciência dos jesuítas tinha suas boas razões para não aceitar as reivindicações científicas

dele, mas condenar Galileu é outra história!

ISA: Na verdade, ele era um forte concorrente, não é?

OLIVAL: Isso, exatamente! No fundo, a explicação melhor que você tem hoje para a

questão de Galileu com a Igreja não é uma explicação em termos estritamente

científicos. Trata-se de uma concorrência política, mais precisamente, é até mais que

política, num conceito gramsciano, é uma disputa pela hegemonia cultural. Galileu tinha

a pretensão de deixar uma esfera da cultura, que ele chamava de ciência, independente

da teologia. Como, na tradição medieval, nessa questão da hegemonia cultural a

tradição medieval, isso é fortíssimo, tudo estava submetido à teologia. E o portador da

verdade da teologia era a igreja católica. Então, é claro que você tinha um conflito, que

terminava se expressando na forma de um conflito político, ou um conflito político e

cultural.

SIDARTA: O professor falou sobre a disputa da hegemonia cultural, a idéia de que um

sistema pode prevalecer sobre outro, eu queria entrar na questão do relativismo, sobre

essa crítica que pesa sobre Feyerabend. Nos Diálogos sobre o conhecimento, ele diz o

seguinte, que esse relativismo que ele adota, ele pode conceber duas questões advindas

daí. A primeira é que a realidade admite muitas formas de aproximação; neste caso,

Page 13: Entrevista Olival Freire sobre Feyerabend - Transcrição

acredito que seja a questão dos múltiplos métodos. E uma segunda questão seria não só

permitir diversas aproximações da realidade, mas também tem uma relativização do que

é conhecimento e do que é a verdade. Então, nesse contexto de disputa por hegemonia

cultural, como é que fica a questão do relativismo, na hora de estabelecer, por exemplo,

um critério para intervir num conflito social?

OLIVAL: Bem, acho que esta é uma questão excelente! E eu acho que isso do

relativismo está presente, inclusive é ineliminável. Você só eliminaria o risco do

relativismo se você voltar para uma posição do tipo cientificismo, como era forte no

final do século 19 ou uma posição mais sofisticada como a posição do positivismo

lógico, a posição do Popper. Aí, claro, você tem critérios lógicos para delimitar o que é

ciência da não-ciência. Aí, você consegue não cair, não correr o risco de uma posição

relativista, porque a ciência é aquele conhecimento provado, confirmado

empiricamente, na visão dos positivistas, do positivismo lógico, ou aquele

conhecimento que é falseado na visão popperiana. Nesse sentido, a posição de Popper é

muito consistente: para ele, marxismo e psicanálise, portanto, não são ciência; são

pseudo-ciência. Agora, o problema é que esta posição, por mais que seja atrativa, por

mais que ela tenha circulação entre os cientistas, é uma posição que tem dificuldade na

análise da própria ciência. No caso de Popper, por exemplo, Popper era plenamente

consciente, você pega o conjunto da obra dele, de que este critério dele, o critério de

demarcação não resolvia claramente o problema da cientificidade com a teoria da

evolução. Como Popper tinha razões ideológicas para não gostar da psicanálise e do

marxismo, ele não tem problema em bater na psicanálise e no marxismo. Como ele

gostava da teoria da evolução, você não vai encontrar em A lógica da pesquisa

nenhuma crítica à teoria da evolução. Você vai encontrar nas obras posteriores toda uma

tentativa de flexibilizar sua abordagem para recuperar a cientificidade presente na teoria

da evolução. Então, você ficar a salvo disso, do relativismo só é possível, eu

pessoalmente acho que é uma posição que é limitada porque não consegue

minimamente dar conta de uma boa reflexão sobre a diversidade das próprias ciências

da natureza. Não precisa nem chegar às ciências humanas. Por isso que eu quero trazer

o exemplo da biologia. Então, é uma posição cômoda, mas é frágil, não é? Não quer se

molhar, fique em casa; não vá para a rua.

Então, o risco do relativismo, eu acho que existe. E, em minha opinião, em algum

momento Feyerabend se viu em dificuldade porque eu acho que ele tem um estilo, uma

Page 14: Entrevista Olival Freire sobre Feyerabend - Transcrição

retórica, digamos assim, exagerada. E justamente eu achei ótimo que vocês tenham lido

a autobiografia e Contra o método, porque, em minha opinião, a autobiografia é muito

mais abrangente para você entender que Feyerabend não era contra a ciência do que o

Contra o método. Se você ler só Contra o método, é preciso uma leitura muito

cuidadosa para você não sair dali achando que Feyerabend está contra a física.

DENISE: Matando o tempo é, então, uma elaboração de Contra o método?

OLIVAL: isso! Exatamente, uma elaboração tardia, Feyerabend publica Contra o

método em 1974, mas é muito refletindo aquele ambiente da contestação e o estilo dele,

estilo você não tem como mudar, ele tem um estilo de exagerar na retórica.

DENISE: e ele mostra como ele sofreu com isso, não é?

OLIVAL: sofreu. Mesmo o estilo profissional dele, ele sobreviveu no mundo acadêmico

porque tinha credenciais suficientes e numa época em que seria difícil demiti-lo. Ele não

queria dar aula, não queria avaliar aluno... esse tipo bom de professor (risos)(terminou o

trecho).

ISA: A próxima pergunta que eu queria fazer... Por ele ter sofrido uma ruptura no seu

pensamento do racionalismo crítico para o anarquismo epistemológico, ele mescla

conceitos e princípios de sua fase anterior, e algumas vezes confundindo o leitor. Esta

confusão não foi um fator facilitador para as profundas críticas feitas a ele, após as

pessoas terem lido o livro?

OLIVAL: Seguramente facilitou a crítica, eu diria mesmo que Contra o Método não

ajuda nessa questão mais social sobre a qual Sidarta chamou atenção. Veja que não é o

Contra o Método, mas o que está dentro do Contra o Método, que é o que ele chama

de ciência como a nova teologia. Então, essa crítica como está no Contra o Método, em

alguns momentos ele resvala para a idéia de que você deve ter uma educação na qual a

ciência não tenha um papel privilegiado. É explícito no livro. Ora, isso tem perfeita

sintonia, por exemplo, com a posição que reaparece sempre com força nos EUA, por

exemplo, a posição contra o ensino da evolução, porque ensinar a evolução é você

forçar, usar o poder da ciência, esse poder da ciência na sociedade para fazer

doutrinação em relação aos jovens. Então todo o argumento que o Estado norte-

americano, dos que são contra a teoria da evolução, o argumento dos evangélicos, é

exatamente este: você deve dar um tratamento, se não me engano é assim que eles

chamam “um tratamento equilibrado”, que é o seguinte: não somos contra esse ensino

Page 15: Entrevista Olival Freire sobre Feyerabend - Transcrição

da teoria da evolução. Agora, a sala de aula deve apresentar a narrativa da evolução na

mesma medida em que apresenta a narração da criação, conforme a Bíblia. Então, nesse

embate que é um embate importante nos Estados Unidos e que teve momentos mais

difíceis, hoje um pouco mais brando, mas em 2004 ou 2005 teve um estado americano,

Arkansas, se não me engano, que voltou a proibir [...]. Então, num embate como esse,

Feyerabend não nos ajuda em nada, ao contrário. Do mesmo jeito que Bento XVI citou

Feyerabend nesse incidente em Roma, não seria surpresa se um desses defensores do tal

“tratamento equilibrado”, do “design inteligente” utilizasse Feyerabend. Agora, eu não

tenho dúvida de que a obra de Feyerabend tem uma densidade epistemológica que

ultrapassa esses deslizes do relativismo. Em minha opinião, é por isso que a obra

sobrevive, por isso que vocês tiveram a atenção voltada para ela. Nesse sentido, acho

que é uma obra menos datada, por exemplo, que esse livro de Marcuse. Você vê que

hoje não vai encontrar um interesse tão grande pela obra de Marcuse como aquele que

você continua a ter pela de Feyerabend. Aqui no nosso curso, o Mestrado e Doutorado

em Ensino, Filosofia e História das Ciências, não tem dúvida: o aluno, goste ou não

goste, tem de ler Feyerabend. Se quiser atacar Feyerabend, eu tive aluno que não

gostava de Feyerabend, foi até Lakatos e chegou na dissertação e os membros da banca

foram em cima dele, mostrando a ele que ele tinha um viés ali. Porque você tem um

núcleo do argumento racional de Feyerabend que não pode ser eliminado, a não ser por

preconceito. E o núcleo racional é esse: é mostrar que a ciência se desenvolve

recorrendo não a um método, mas a uma multiplicidade de métodos e de abordagens. O

argumento racional mais forte é mais do que isso: é que a Física se desenvolve

recorrendo a uma diversidade de métodos, o que, eu acho, torna o argumento mais forte

ainda. Porque admitir que você tenha uma diversidade de métodos da Geologia para a

Física não é muito problemático. Ou da Física para a Sociologia, não é muito

problemático. Mas o núcleo duro do argumento de Feyerabend é isso: na Física,

internamente, se for aplicar só esses critérios de método científico, esse cânone do

método científico, Galileu não teria produzido a obra que produziu.

Então sobre o relativismo, a minha posição é que a gente tem de ir navegando nesse

mar, se equilibrando sem cair nos excessos do relativismo, e não é uma posição muito

cômoda. Nos debates e embates intelectuais é sempre mais fácil tomar uma posição

radical de um lado ou do outro, não é? Mas eu acho que na questão do relativismo, a

posição mais sábia, na minha apreciação, é encontrar esse meio termo, de evitar os

Page 16: Entrevista Olival Freire sobre Feyerabend - Transcrição

excessos do relativismo, do tudo vale, não acho que tudo vale, mas o tudo vale é um

excesso de retórica dele.

ELEONORA: É exatamente dentro desse pluralismo de métodos, o método também está

dentro desses métodos plurais, não é? A gente discutiu isso também, em muitos

momentos o cartesianismo é válido, está valendo. Ele é um desses múltiplos métodos...

OLIVAL: Exato!

ELEONORA: ... E não está fora deles.

OLIVAL: Exatamente!

DENISE: Eu queria retomar o “tudo vale”, o anything goes, porque tenho a impressão

de que tudo vale não é a mesma coisa que vale-tudo. Até fui, quando estávamos, Sidarta

e eu no Congresso da Sociedade Brasileira de Psicologia, em Uberlândia, fui ao

dicionário Houaiss buscar o “vale-tudo”, que é uma expressão, um substantivo

composto. Vale-tudo, no Houaiss, só tem duas acepções: 1. modalidade de luta livre em

que são válidos golpes de cunho extremamente brutal; 2 Derivação: sentido figurado,

contexto em que é válido qualquer expediente; faroeste.” Quer dizer, o vale-tudo é

sinônimo de barbárie. Agora, o tudo vale é diferente.

OLIVAL: Concordo contigo, não são a mesma coisa. Mas eu acho que o tudo vale,

mesmo nessa acepção mais precisa para a qual você está chamando atenção, pode ser

enganoso epistemologicamente, se você não complementa que a fecundidade de

qualquer dos métodos de um estudo vai estar sempre relacionada com o objeto do

estudo, com o contexto do estudo.

DENISE: Na autobiografia, isso aparece claramente.

OLIVAL: Na autobiografia, é absolutamente claro, mas não no Contra o método. O

Contra o método pode passar a idéia de que você está numa disciplina e a qualquer

momento você pode desancar seu adversário, dizendo: meu resultado é tão importante

quanto o seu porque eu estou usando outro método. Não é isso.

DENISE: Eu acho também que aquele livro tão importante também que é O que é

ciência afinal?, de Chalmers, ele termina eu acho, com uma posição equivocada em

relação a Feyerabend, porque ele acha que Feyerabend é o vale-tudo. É difícil

compreender que não é igual a vale-tudo.

DENISE: A gente tinha pensado também sobre a questão da incomensurabilidade.

Page 17: Entrevista Olival Freire sobre Feyerabend - Transcrição

OLIVAL: Deixa eu fazer um comentário sobre Chalmers que você citou. Esse livro, O

que é ciência afinal?, eu gosto do livro, eu recomendo, no sentido de ser um bom

manual de introdução a essa tradição filosófica do ambiente anglo-saxão, uma tradição

filosófica voltada para o problema da demarcação. Chalmers explicita exatamente isso:

ele quer fazer essa narrativa. Agora, veja, ele escreve um segundo livro que se chama A

fabricação da ciência e ali ele quer ser mais propositivo do que foi em O que é ciência

afinal?, onde há um panorama, claro, ele vai demarcando a posição dele em relação a

Feyerabend, ele admite o valor de Feyerabend, mas concordo com você que ele tende a

ser mais crítico e ele reduz. Mas quando ele vai para A fabricação da ciência, ele vai ser

mais propositivo, vai dizer: tá bom, qual é a filosofia da ciência? E a conclusão a que

ele chega é que tudo aquilo que ele estava apontando de método, objetividade, vale para

a Física. Portanto, no final, em A fabricação da ciência, ele desinflaciona, desvaloriza

completamente aquela pretensão de uma filosofia da ciência de caráter normativo para

todas as ciências existentes e as que ainda estavam por vir.

Ao desvalorizar, quer dizer, ao desinflar esta expectativa, ao final ele diz estar

elaborando uma filosofia da física, ele diz o seguinte: que não precisava de uma

filosofia da física, que vai bem, obrigado! Você vai contratar departamentos de filosofia

para ficar discutindo filosofia da física? A física é uma disciplina que tem trezentos anos

de existência. Quer dizer, a pretensão da filosofia da ciência não podia ser uma

normatividade em relação à Física. A pretensão tinha de ser aquela anterior, que eu

chamei de arrogância, que é, baseada na Física e na Matemática, fazer uma

normatividade que valesse para todo o campo do conhecimento científico. Eu gosto de

apresentar esse segundo livro. Claro que há interesse na filosofia da física, que seja mais

descritiva e menos normativa para poder ajudar o próprio físico, mas não tem mais

aquele apelo intelectual do Lógica da pesquisa científica de Popper, com um critério

de falseabilidade para decidir onde é que está a ciência e onde é que está a pseudo-

ciência.

OLIVAL: Ou seja, o Chalmers, portanto, com o seu segundo livro, ele finaliza com o

objetivo muito mais limitado do que aquele objetivo que estava na origem desse

programa, programa da demarcação.

Bom, incomensurabilidade.

SIDARTA: Qual seria a concepção que ele tem de progresso cientifico diante desta

idéia, desta noção de incomensurabilidade?

Page 18: Entrevista Olival Freire sobre Feyerabend - Transcrição

ISA: Ele difere progresso e avanço.

OLIVAL: Olha, eu acho que neste momento...

DENISE: Você acha que isso é claro não é? Isso que Isa está falando, de progresso e

avanço.

OLIVAL: É, eu vou dizer o seguinte: neste momento vocês que estudaram Feyerabend

mais recentemente, estão melhor, digamos assim, a par do Feyerabend, porque na

verdade quando vocês me procuraram, quer dizer, eu li essas coisas de Feyerabend,

digamos assim, no Ensino, mas quando a gente vai discutir a noção de

incomensurabilidade, nessa tradição - aí tem um pouco um viés de professor -

geralmente a gente se reporta ao Kuhn, onde a idéia de incomensurabilidade é mais

central, e portanto, se você me perguntar qual é a exata noção de incomensurabilidade

que tem em Feyerabend eu não sei, vocês sabem mais do que eu. Qual é a exata

distinção no Feyerabend entre a noção de progresso e avanço, eu não sei, teria que reler.

E ai na verdade eu peço então que vocês falem. Agora, eu posso falar sobre a noção de

incomensurabilidade. A noção de incomensurabilidade em Kuhn, e até onde eu me

lembro, tem muito tempo que eu não volto a ler Feyerabend, até onde eu lembro, ele

não é muito critico da noção de incomensurabilidade de Kuhn. Como a noção de

incomensurabilidade de Kuhn, elaborada em 1962, é uma noção central nesse círculo,

em que está Feyerabend, Bakthin, Popper, a minha tendência seria dizer que se a gente

discutir bem a noção de incomensurabilidade de Kuhn, eu acho que a gente está

discutindo Feyerabend. E ai eu acho que é uma noção que é interessante, mas

problemática. Interessante porque a noção de incomensurabilidade, ela...

DENISE: Você está falando de comensurabilidade ou incomensurabilidade?

OLIVAL: Incomensurabilidade. Da noção de incomensurabilidade entre paradigmas,

entre conjuntos teóricos. Ela é uma idéia que é muito interessante, muito útil, porque ela

traz a idéia de descontinuidade, idéia de estrutura do conhecimento, mas veja que é uma

idéia que neste sentido é partilhada por vários outros autores ; Bachelard, que vocês vão

discutir em seguida, tem uma noção de descontinuidade, então você não precisa ser

tributário de Kuhn ou de Feyerabend para lidar com isso. Então não tenho dúvida que a

noção de descontinuidade neste sentido mais geral, portanto menos preciso, é uma

noção útil. Agora a noção de incomensurabilidade tem problemas, quando você vai

olhar mais de perto a ciência e você vai tentar ver se realmente cientistas que participam

Page 19: Entrevista Olival Freire sobre Feyerabend - Transcrição

de sistemas teóricos diferentes, cientistas que participam de controvérsias cientificas, se

eles estão realmente vivendo em mundos diferentes, portanto, sem diálogo sem um

entender o que o outro fala. E ai, via de regra, quando você faz essas análises mais

precisas, mais finas, a situação não é tão extremada quanto a que está descrita em Kuhn.

Quer dizer, uma posição forte de incomensurabilidade não consegue nos ajudar, não nos

ajuda muito a compreender controvérsias cientificas, porque controvérsias cientificas

você tem, via de regra, situações em que as partes não se entendem, falam linguagens

diferentes, mas conseguem também dialogar. Então, eu diria que, por exemplo, dentro

da evolução posterior ao próprio Kuhn, Kuhn foi um autor um pouco dilacerado, pegue

esse livro de agora que tem uma boa tradução em português que se chama “o caminho...

ALESSANDRO: As estruturas da revolução?

OLIVAL: Não... acho que é O caminho desde as estruturas (UNESP, 2006). É uma

série de escritos posteriores dele numa entrevista em que mostra claramente, ali está o

Kuhn lidando com a dificuldade e o modo como a incomensurabilidade kuhniana foi

absorvida é de uma incomensurabilidade radical. Portanto, como eu disse, cientistas que

participam de paradigmas distintos, uns não entendem os outros. E o Kuhn se dá conta

de que isso não ajuda a compreender a ciência, isso não é útil para compreender a

ciência. Então ele quer se dissociar disso. Mas como se dissociar disso? Em minha

opinião, ele não consegue resolver bem isso. Hoje existem autores que tentam, não para

a ciência em geral, mas para casos específicos, da física, da química, reelaborar esse

conceito de incomensurabilidade. Por exemplo, há um autor americano, um americano e

um canadense, até o canadense nós fizemos aquele curso do Ian Hacking, e há uma

autor americano, Peter Galison e todos procuram, digamos assim, contornar, superar

essa noção de incomensurabilidade porque de fato ela é menos útil para a análise da

ciência do que a gente pode imaginar.

DENISE: Eu tenho pouca propriedade para falar da incomensurabilidade em

Feyerabend, mas o que eu compreendo é que, a primeira vista, eu pensei assim: se trata

de uma posição dualista entre o que é comensurável e o incomensurável, mas eu fiquei

achando que não, que ele ultrapassa essa questão metafísica trazendo esse in, que não é

o não, no sentido de que o comensurável é o empírico e o incomensurável são as

teorias; que não existe proporção nem correspondência biunívoca entre sistemas de

pensamento. Mas não quer dizer que eles sejam não-comensuráveis. Neste sentido é que

a gente sai do empírico, que poderia ser comensurável.

Page 20: Entrevista Olival Freire sobre Feyerabend - Transcrição

OLIVAL: Eu acho bastante plausível o que você esta falando, voltando a confessar,

digamos assim, a minha ignorância e incompetência para falar especificamente o que

Feyerabend tem a dizer sobre isso...

DENISE: Tenho uma crença, talvez uma idealização, de que ele rompe com a

metafísica.

OLIVAL: Agora, admitindo então que esta seja a posição dele, eu acho que ela não é

isenta dessa dificuldade a que eu me refiro. Então qual é a dificuldade a que estou me

referindo, para ser mais preciso. Suponha que você queira usar Kuhn para analisar, por

exemplo, a evolução da psicologia, o embate dos behavioristas com tais e tais correntes.

É isto que estou dizendo: a análise fina é uma análise especifica de um campo da

ciência. Quando você vai fazer isso, mesmo uma noção como essa, é uma noção que

traz, na minha opinião, certa dificuldade, porque, no fundo, essa separação forte do

empírico e da teoria, na análise da ciência, é uma separação pouco útil.

DENISE: Cai de novo no dualismo.

OLIVAL: Exatamente! Um autor como Hacking evita essa separação tão nítida. Então,

por exemplo, Peter Galison, que é um autor que a gente tem estudado atualmente aqui

no programa, ele esta falando especialmente da física de partículas do século 20, e aí,

para narrar essa história, ele usa a idéia de que a física é composta de 3 subculturas

distintas, e quais são as três: experiência, teoria e ele introduz uma terceira,

instrumentação - os físicos que trabalham com os instrumentos. Nós temos uma tradição

forte na filosofia de olhar sempre a ciência pelo lado da teoria e a ciência não é só teoria

tem experimentação e o Galison lembra que mais do que a experiência, tem a

instrumentação que é uma comunidade, uma cultura a parte. Então ele argumenta com

essas três subculturas, e ai a noção de subcultura, porque as três estão integradas no que

a gente chama a cultura da física, mas não é uma integração bem ajustada, há conflitos

entre elas. Mas essas subculturas, segundo Galison, e ai ele rompe com a idéia da

incomensurabilidade Kuhniana. Essas três subculturas, segundo ele, elas conseguem

dialogar entre si, não no sentido de que conseguem fazer uma tradução um a um, o que

é que o experimental pensa, o que é que o teórico pensa, mas conseguem apesar disso

estabelecer alguma forma de comunicação. E ai o Galison recorre a uma analogia com a

antropologia lingüística. Ele diz: olha, a antropologia lingüística conhece a situação em

que, quando duas culturas se encontram, com línguas diferentes, você não consegue

traduzir uma na outra, mas essas duas culturas são capazes de negociar, são capazes de

Page 21: Entrevista Olival Freire sobre Feyerabend - Transcrição

trocar. E são capazes inclusive de elaborar o que os antropolingüistas chamam de pidgin

quer dizer, linguagens mais simples, menos elaboradas, mas que se prestam para a troca.

Então ele usa isso como analogia para tentar compreender o que é que acontece na

ciência, de modo que quando pega assim os caras que trabalharam nas fotografias de

partículas, é uma tradição instrumental da década de 1920 até praticamente os anos

setenta. Nesses cinqüenta anos dentro da física de partículas se você for olhar a

mudança de paradigmas mudaram duas ou três vezes de paradigmas sobre como é que

você pensava sobre a física de partículas. Mas o modo de obter as fotografias teve mais

continuidade, mais evolução, mais avanço interno do que o que a gente pode imaginar.

Não teve rupturas na técnica, teve aprimoramentos na técnica.

NORA: Eu penso nesse lugar das artes na academia que talvez passe por essa

dificuldade esta quebra, esta busca de quebra de pressupostos dessa comensurabilidade,

dessa não tradução de um pra um. A gente vem vendo isso nos programas de pós-

graduação em artes talvez a tentativa de agregar a performance, o espetáculo, a

produção artística na possibilidade de defesa seja um caminho de diálogo, pois nem

sempre as coisas vão poder ser traduzidas de um para um. O que você produziu

artisticamente não vai estar na tese ou na dissertação transcrita, na letra. Precisa desse

complemento, dessa noção de complementaridade.

DENISE: E, além disso, pensar que a gente não precisa ficar fazendo a mímica do

cientista.

OLIVAL: Exatamente. Esse foi um assunto que nós conversamos daquela vez que eu

estive lá com vocês, porque eu me lembro que vocês estavam querendo discutir

metodologia de projetos e eu me insurgi contra vocês tentarem fazer metodologia de

projeto conforme outros campos acadêmicos.

SIDARTA: Eu não sei até que ponto isto já foi discutido aqui, ou se tem alguma

coerência, mas – o senhor citou Ian Hacking agora – eu quero saber qual a postura de

Feyerabend em relação ao realismo epistemológico?

OLIVAL: Você me pegou no pulo de novo, Sidarta. Eu não saberia te responder, teria

de voltar... a minha leitura do Feyerabend é bem circunscrita, digamos assim, a essa

disputa dele, digamos assim, com os defensores de um critério forte, um critério lógico

de demarcação de ciência e não ciência. Então, eu... bom, não tenho dúvidas do

seguinte: eu acho que ele não tem uma elaboração muito significativa sobre a questão

Page 22: Entrevista Olival Freire sobre Feyerabend - Transcrição

do realismo. Então, portanto, você tem que olhar novamente Feyerabend para pensar o

quê ele fala sobre o realismo.

Agora, via de regra, a cultura na qual ele está inserido, o ambiente filosófico no qual ele

está inserido é um ambiente que rompeu com a idéia pelo menos de um realismo

ingênuo, ou mesmo o que a gente chamaria de um realismo de correspondência, onde

você tem uma teoria e você tem uma correspondência, onde cada elemento da teoria

está correspondendo a um elemento do mundo empírico. Isso é uma coisa que é comum

ao Popper, a todos os outros, então seguramente Feyerabend partilha isso. Mas eu acho

que ele não elabora muito sobre isso. E então, justamente, Ian Hacking, por exemplo, ao

contrário, vai fazer toda uma elaboração sobre a questão do realismo, não vai aceitar o

realismo de entidades, mas vai introduzir um outro tipo de realismo, não vai aceitar esse

realismo de correspondência, mas vai introduzir um outro realismo que ele aceita, o

realismo de entidades. Então, a minha conjectura é essa: você não vai encontrar em

Feyerabend uma grande elaboração do realismo.

ISA: Professor, uma questão que eu tirei de um texto que a gente leu. O autor deu uma

determinada opinião em relação a essa questão. Então, o que temer de um professor

anarquista epistemológico?

OLIVAL: Olha, você não deveria temer nada. Porque se ele é professor, você está

supondo que ele tem uma formação, que deveria ter. Digamos, que ele é um bom

professor anarquista epistemológico; vamos qualificar esse professor aí. Porque os maus

professores, independentemente de serem anarquistas epistemológicos ou não, nós

devemos temer muito. Mas um bom professor, ele teve um bom treinamento numa

disciplina específica, ele tem uma reflexão sobre essa disciplina, e um bom professor

idealmente deve estar envolvido com a pesquisa, ele tem uma pesquisa própria. Então,

se ele tem esse perfil, digamos assim, o componente do anarquismo epistemológico, eu

acho que é um componente que vai levar a uma relativização das certezas e de certos

dogmatismos que podem estar presentes na disciplina na qual ele foi formado e a

disciplina que ele vai ensinar. Então, você não deve temer, ao contrário, porque acho

uma combinação saudável.

ISA: Concordo com o senhor, porque acho que o professor anarquista epistemológico

dá algumas bagagens, mas o aluno desenvolve. Então ele acaba não repassando o

conhecimento, reproduzindo o conhecimento, ele acaba realmente incentivando, não é?

Page 23: Entrevista Olival Freire sobre Feyerabend - Transcrição

OLIVAL: Incentivando a autonomia do próprio aluno, realmente. Aliás, uma pequena

peça de publicidade: vocês sabem que aqui na Bahia foi editado na UESC um livretinho

chamado O manual do anarquista epistemológico, escrito pelo professor Paulo Terra.

Vocês encontram na editora da UESC. É um livro fininho e é um bom exemplo. Paulo

Terra é um bom biólogo, um bom professor que se deu ao trabalho de escrever um

manual do anarquista epistemológico.

[gravamos novamente a introdução]

DENISE: Hoje a gente está concluindo em parte uma primeira etapa do projeto PIBIC

2008 – 2009. Esse projeto tem o interesse de visitar as obras de alguns epistemólogos

do século 20, basicamente Feyerabend, Bachelard, Bourdieu, Deleuze e Rorty. Isso está

em relação com o meu projeto que é tentar pensar os elementos de uma epistemologia

não-cartesiana que já estariam presentes na obra de Freud. Esses autores revisitam a

obra de Freud, uns dando-lhe o crédito e outros, não. Uma das primeiras coisas que a

gente fez foi partir para ler O discurso do método. Descartes freqüentemente é muito

desvalorizado, mas pelas pessoas que não o conhecem, tanto que é uma obra do século

17 que se mantém viva até hoje e o primeiro autor foi Feyerabend justamente para fazer

esse contraponto do que é o método e o que é ser contra o método.

A presença de Olival é indiscutível. Quando a gente pediu ao departamento de filosofia

um nome, foi o nome dele que foi trazido, pelo fato de que ele é um pesquisador que

estuda história e filosofia das ciências há muito tempo. O prof. Olival é Professor

Associado do Instituto de Física, com estágios pós-doutorais em Paris VII, MIT, com o

titulo de Fellowship no MIT, muito honroso. Trabalha no Programa de Pós-Graduação,

mestrado e doutorado, de Ensino, Filosofia História e das Ciências, uma parceria UFBA

– Universidade Estadual de Feira de Santana e que reúne uma série de campos de

conhecimento. É um programa realmente interdisciplinar. Este grupo de PIBIC é

composto por Sidarta Rodrigues, terminando uma graduação em psicologia, Isa Sara

Rego que é licencianda em dança, quarto semestre; co-orienta comigo, a professora

Eleonora Santos, que é bacharel em direito e licenciada em dança, é mestre em dança,

agora quase doutoranda do programa de artes cênicas, temos também a presença de

Cecília Accioly que também fez dança e que está entrando no mestrado em artes

cênicas, tivemos a ajuda de Alessandro, do mestrado de filosofia. E eu falo assim que a

gente está finalizando uma etapa, mas parece que, com a conversa com Olival, a gente

vai recomeçar tudo de novo, depois de tantas coisas que a gente viu hoje. Eu aproveito

Page 24: Entrevista Olival Freire sobre Feyerabend - Transcrição

para agradecer enormemente sua participação, para nós é uma experiência muito rica e a

possibilidade de gravar isso é também para multiplicar essa conversa o máximo

possível.

OLIVAL: Eu que agradeço a vocês por me darem a oportunidade de sair da rotina

administrativa aqui da universidade pra conversar sobre idéias. Obrigado a vocês!

Divulgação

Veja mais produções em: http://conexaoic.blogspot.com/