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DOMINGO, 20 DE MARÇO DE 2011 ZERO HORA 5 “Temos de aprender a conviver com as diferenças” FABIANO COSTA Um dos mais prestigiados analistas diplomáticos do continente, o presidente emérito do centro de análises políticas Inter- American Dialogue, Peter Hakim, é cético sobre uma eventual aproximação de Brasil e EUA. Segundo o especialista americano, apesar da troca de comando no governo brasileiro e da visita de Barack Obama ao Brasil, ainda existem divergências entre o Planalto e a Casa Branca. Hakim, contudo, acredita que os dois países precisam superar as diferenças. Na última quinta-feira, Hakim conversou por telefone com Zero Hora de Washington. A seguir, a síntese: [email protected] ENTREVISTA Peter Hakim Presidente emérito do Inter-American Dialogue Zero Hora – A visita do presi- dente Barack Obama ao Brasil na largada do governo Dilma sinaliza que a Casa Branca quer se reapro- ximar do Planalto? Peter Hakim – Obama não podia postergar mais essa viagem. Além disso, a primeira entrevista da pre- sidente Dilma à imprensa interna- cional após tomar posse, concedida ao Washington Post, indicou que ela pretende manter uma relação menos conflituosa com os EUA. No entanto, ela ainda não detalhou como preten- de conduzir temas que causaram di- vergências entre os dois países, como o contencioso do Irã. A Casa Branca ficou muito irritada com a posição brasileira em torno do programa nu- clear iraniano. ZH – A passagem de Obama pelo Brasil está focada em atrair oportunidades econômicas para os EUA, principalmente no setor energético. Em um momento em que as relações entre os dois pa- íses andam enfraquecidas, esta deveria ser a principal pauta? Hakim – Me surpreendeu o foco da visita de Obama, que leva a tira- colo toda a equipe econômica. Na minha avaliação, essa primeira pas- sagem pelo Brasil deveria ter sido apenas para promover uma apro- ximação entre dois presidentes de países importantes. A pauta comer- cial poderia ter sido deixada para uma segunda ou terceira ida ao Brasil. Afinal, o comércio é apenas um dos itens da ampla agenda bi- lateral. ZH – O interesse dos EUA no petróleo do pré-sal pode ajudar a reduzir as barreiras americanas frente ao etanol brasileiro? Hakim – Essa é uma grande con- tradição. O governo americano quer a colaboração do Planalto na área energética, no entanto, impõe restri- ções a um produto que o Brasil pode Os EUA deveriam abrir mão dos subsídios aos produtos agrícolas, na medida em que os preços dos alimentos no mercado internacional estão muito altos. Como é quase impossível eliminar todos os subsídios, no mínimo deveríamos reduzir as barreiras comerciais. ‘‘ vender a um preço muito barato, o etanol. Infelizmente, não adianta a Casa Branca negociar com o Brasil antes de arrancar o aval do Congres- so, que banca os subsídios ao etanol americano. ZH – Sem maioria no Congres- so, Obama teria força para apro- var a derrubada das barreiras contra os produtos brasileiros? Hakim – Os EUA deveriam abrir mão dos subsídios aos produtos agrícolas, na medida em que os pre- ços dos alimentos no mercado in- ternacional estão muito altos. Como é quase impossível eliminar todos os subsídios, no mínimo devería- mos reduzir as barreiras comerciais. Apesar das diferenças entre gover- no e oposição, muitos republicanos apoiam a redução dos subsídios, em razão do peso desta proteção no or- çamento americano. ZH – Obama aposta na visita para tentar reverter o suposto fa- voritismo da França na concor- rência para fornecer caças para a Força Aérea Brasileira? Hakim – A venda dos caças F-18 é um assunto muito importante pa- ra os EUA, por conta dos bilhões de dólares envolvidos na negociação. A sucessão presidencial abriu uma nova oportunidade para a empresa concorrente americana.A Casa Bran- ca vislumbrou na troca de comando brasileira uma chance de vencer a concorrência. ZH – A Casa Branca está dispos- ta a ceder às reivindicações brasi- leiras? Hakim – É difícil de avaliar, na medida em que essa decisão tam- bém depende do parlamento.A apro- ximação do Planalto com o regime dos aiatolás desgastou a imagem do Brasil no Congresso americano. Atu- almente, os parlamentares dos EUA não demonstram tanta confiança no governo brasileiro. ZH – Quais as chances de Barack Obama apoiar a candida- tura do Brasil a uma vaga perma- nente no Conselho de Segurança da ONU? Hakim – Os Estados Unidos de- veriam se antecipar aos fatos, em vez de aguardar o inevitável, endos- sando a pretensão do Brasil. Esse apoio poderia garantir uma forte relação de longo prazo com o gover- no brasileiro. Apesar das divergên- cias políticas entre os dois países, a pauta da Casa Branca para questões globais é muito mais compatível com a do Planalto do que com a da Índia. Enquanto os indianos osten- tam um pequeno arsenal nuclear e rejeitam endossar o tratado de não proliferação de armas nucleares da ONU, o Brasil já assinou três trata- dos internacionais. Os brasileiros também estão muito mais próximos de Washington na rodada de Doha do que a Índia. Os norte-america- nos podem ainda não estar prontos para aceitar o assento permanente do Brasil no conselho da ONU, no entanto, essa decisão pode ser ape- nas uma questão de tempo. A aproximação do Planalto com o regime dos aiatolás desgastou a imagem do Brasil no Congresso americano. Atualmente, os parlamentares dos EUA não demonstram tanta confiança no governo brasileiro. ‘‘ ZH – Por que a Argentina não foi incluída no roteiro de Obama? Hakim – A versão oficial é de que Obama havia decidido não visitar países onde irão ocorrer eleições neste ano. E a Argentina irá esco- lher seu novo presidente em 2011. Na minha opinião, contudo, ele não incluiria a Argentina, ainda que não fosse ocorrer uma disputa eleitoral. O governo argentino tem sido muito ir- responsável no manejo internacional de sua política econômico-financei- ra. A Casa Branca está incomodada com essa postura. A relação entre os dois países anda muito complicada. Em parte, a culpa desse desconforto é dos EUA, pois poderíamos nos es- forçar mais para nos aproximar dos argentinos. ZH – Na sua leitura, a relação entre Brasil e EUA tende a se in- tensificar nos próximos anos? Hakim – Os dois países têm mui- to para oferecer um para o outro. No entanto, têm interesses e estilos dife- rentes. Acho difícil que ocorra uma aproximação muito intensa. Ainda que Brasil e EUA não sejam adversá- rios, existem divergências. Temos de aprender a conviver com as diferen- ças, mas ainda não encontramos o caminho.

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DOMINGO, 20 DE MARÇO DE 2011ZERO HORA 5

“Temos de aprender a conviver com as diferenças”

FABIANO COSTA

Um dos mais prestigiadosanalistas diplomáticos docontinente, o presidenteemérito do centro deanálises políticas Inter-American Dialogue, PeterHakim, é cético sobre umaeventual aproximaçãode Brasil e EUA.Segundo o especialistaamericano, apesar datroca de comando nogoverno brasileiro eda visita de BarackObama ao Brasil, aindaexistem divergênciasentre o Planalto e aCasa Branca. Hakim,contudo, acredita queos dois países precisamsuperar as diferenças.Na última quinta-feira,Hakim conversou portelefone com Zero Hora deWashington.A seguir, asíntese:

[email protected]

ENTREVISTA Peter Hakim Presidente emérito do Inter-American Dialogue

Zero Hora – A visita do presi-dente Barack Obama ao Brasil nalargada do governo Dilma sinalizaque a Casa Branca quer se reapro-ximar do Planalto?

Peter Hakim – Obama não podiapostergar mais essa viagem. Alémdisso, a primeira entrevista da pre-sidente Dilma à imprensa interna-cional após tomar posse, concedidaao Washington Post, indicou que elapretende manter uma relação menosconflituosa com os EUA. No entanto,ela ainda não detalhou como preten-de conduzir temas que causaram di-vergências entre os dois países, comoo contencioso do Irã. A Casa Brancaficou muito irritada com a posiçãobrasileira em torno do programa nu-clear iraniano.

ZH – A passagem de Obamapelo Brasil está focada em atrairoportunidades econômicas paraos EUA, principalmente no setorenergético. Em um momento emque as relações entre os dois pa-íses andam enfraquecidas, estadeveria ser a principal pauta?

Hakim – Me surpreendeu o focoda visita de Obama, que leva a tira-colo toda a equipe econômica. Naminha avaliação, essa primeira pas-sagem pelo Brasil deveria ter sidoapenas para promover uma apro-ximação entre dois presidentes depaíses importantes. A pauta comer-cial poderia ter sido deixada parauma segunda ou terceira ida aoBrasil. Afinal, o comércio é apenasum dos itens da ampla agenda bi-lateral.

ZH – O interesse dos EUA nopetróleo do pré-sal pode ajudar areduzir as barreiras americanasfrente ao etanol brasileiro?

Hakim – Essa é uma grande con-tradição. O governo americano quera colaboração do Planalto na áreaenergética, no entanto, impõe restri-ções a um produto que o Brasil pode

Os EUA deveriam abrir mãodos subsídios aos produtosagrícolas, na medida em queos preços dos alimentos nomercado internacional estãomuito altos. Como é quaseimpossível eliminar todosos subsídios, no mínimodeveríamos reduzir asbarreiras comerciais.

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vender a um preço muito barato, oetanol. Infelizmente, não adianta aCasa Branca negociar com o Brasilantes de arrancar o aval do Congres-so, que banca os subsídios ao etanolamericano.

ZH – Sem maioria no Congres-so, Obama teria força para apro-var a derrubada das barreirascontra os produtos brasileiros?

Hakim – Os EUA deveriam abrirmão dos subsídios aos produtosagrícolas, na medida em que os pre-ços dos alimentos no mercado in-ternacional estão muito altos. Comoé quase impossível eliminar todosos subsídios, no mínimo devería-mos reduzir as barreiras comerciais.Apesar das diferenças entre gover-no e oposição, muitos republicanosapoiam a redução dos subsídios, emrazão do peso desta proteção no or-çamento americano.

ZH – Obama aposta na visitapara tentar reverter o suposto fa-voritismo da França na concor-rência para fornecer caças para aForça Aérea Brasileira?

Hakim – A venda dos caças F-18é um assunto muito importante pa-

ra os EUA, por conta dos bilhões dedólares envolvidos na negociação.A sucessão presidencial abriu umanova oportunidade para a empresaconcorrente americana.A Casa Bran-ca vislumbrou na troca de comandobrasileira uma chance de vencer aconcorrência.

ZH – A Casa Branca está dispos-ta a ceder às reivindicações brasi-leiras?

Hakim – É difícil de avaliar, namedida em que essa decisão tam-bém depende do parlamento.A apro-ximação do Planalto com o regimedos aiatolás desgastou a imagem doBrasil no Congresso americano.Atu-almente, os parlamentares dos EUAnão demonstram tanta confiança nogoverno brasileiro.

ZH – Quais as chances deBarack Obama apoiar a candida-tura do Brasil a uma vaga perma-nente no Conselho de Segurançada ONU?

Hakim – Os Estados Unidos de-veriam se antecipar aos fatos, emvez de aguardar o inevitável, endos-sando a pretensão do Brasil. Esseapoio poderia garantir uma forterelação de longo prazo com o gover-no brasileiro. Apesar das divergên-cias políticas entre os dois países, apauta da Casa Branca para questõesglobais é muito mais compatívelcom a do Planalto do que com a daÍndia. Enquanto os indianos osten-tam um pequeno arsenal nuclear erejeitam endossar o tratado de nãoproliferação de armas nucleares daONU, o Brasil já assinou três trata-dos internacionais. Os brasileirostambém estão muito mais próximosde Washington na rodada de Dohado que a Índia. Os norte-america-nos podem ainda não estar prontospara aceitar o assento permanentedo Brasil no conselho da ONU, noentanto, essa decisão pode ser ape-nas uma questão de tempo.

A aproximação doPlanalto com o regimedos aiatolás desgastoua imagem do Brasil noCongresso americano.Atualmente, osparlamentares dos EUAnão demonstram tantaconfiança no governobrasileiro.

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ZH – Por que a Argentina nãofoi incluída no roteiro de Obama?

Hakim – A versão oficial é de queObama havia decidido não visitarpaíses onde irão ocorrer eleiçõesneste ano. E a Argentina irá esco-lher seu novo presidente em 2011.Na minha opinião, contudo, ele nãoincluiria a Argentina, ainda que nãofosse ocorrer uma disputa eleitoral.Ogoverno argentino tem sido muito ir-responsável no manejo internacionalde sua política econômico-financei-ra. A Casa Branca está incomodadacom essa postura.A relação entre osdois países anda muito complicada.Em parte, a culpa desse desconfortoé dos EUA, pois poderíamos nos es-forçar mais para nos aproximar dosargentinos.

ZH – Na sua leitura, a relaçãoentre Brasil e EUA tende a se in-tensificar nos próximos anos?

Hakim – Os dois países têm mui-to para oferecer um para o outro. Noentanto, têm interesses e estilos dife-rentes. Acho difícil que ocorra umaaproximação muito intensa. Aindaque Brasil e EUA não sejam adversá-rios, existem divergências. Temos deaprender a conviver com as diferen-ças, mas ainda não encontramos ocaminho.