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Eros e o corpo degradado
Imaculada KANGUSSU
Departamento de Filosofia – Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP-MG)
Na tradição filosófica ocidental, o corpo costuma não merecer confiança. Mais do
lado da natureza do que do espírito, é carente, por isso assolado por desejos, é frágil,
necessita de permanentes cuidados, é corruptível, se degenera e, o pior de tudo, é finito. O
perigo provocado por tal desconsideração é que os ideais saem dela fortalecidos, com os
vencedores pisando sobre os corpos vencidos. Corpos não valem nada. Já nos
acostumamos com os miseráveis nas calçadas, as pessoas mais delicadas viram o rosto, a
maioria nem os vê distintamente, confunde-os na paisagem. Mesmo a ínfima identidade de
mendigos lhes é negada. Entretanto, qualquer ideal superior à vida é ideologia porque lhe
falta parâmetros e base de determinação.
Para discorrer sobre a degradação do corpo, apresento algumas reflexões recortadas
da obra de Herbert Marcuse, provavelmente o filósofo contemporâneo cujas idéias foram
encarnadas com mais evidência. Foi visceral a incorporação de conceitos por ele cunhados
pelos estudantes rebeldes de 1968. Marcuse tinha então setenta anos. A virulência de sua
recusa a aceitar o estado de coisas que o cercava aparece com força no discurso que fez
(1969), em defesa de Ângela Davis, mulher, negra, ativista política e sua orientanda,
quando ela teve o nome vetado pela reitoria para ocupar um cargo eletivo na Universidade
da Califórnia. Pela atualidade, cito um trecho:
Eu acredito que a luta está apenas começando a se iniciar – a luta contra todos aqueles que querem fazer da Universidade uma escola de treinamento para perpetuação de uma sociedade, cuja segurança e prosperidade é baseada na opressão e na escravização de outros povos [...] A luta por Ângela é, em última análise, uma luta por vocês [...] É uma luta por vocês, por nós, eu gosto de pensar, que não podemos mais tolerar, que ficamos doentes do estômago ao ver a sociedade mais rica do mundo viver em uma economia de morte, em uma economia de opulência, de obsolescência planejada e de poluição que nós não podemos tolerar. E essa intolerância, essa abençoada intolerância, atravessa o assim chamado abismo de gerações, para mim é tão intolerável quanto para vocês.1
É bastante, e por si eloqüente, a própria presença de Marcuse no protesto contra os
dirigentes da Universidade onde trabalhava. E também bastante de acordo com o
1 MARCUSE & DAVIS, Angela. “Talks by Angela Davis and Herbert Marcuse”.
pensamento do filósofo que sempre percebeu na cisão corpo-mente um instrumento de
dominação. Apresento então, na seqüência, algumas perspectivas de Marcuse a esse
respeito.
No texto “Sobre o caráter afirmativo da cultura”, Marcuse observa que a alienação
da cultura no corpo da sociedade é um dos frutos da separação entre matéria e espírito. O
filósofo lembra que, na Grécia Clássica, felicidade e trabalho estavam essencialmente
separados, eles pertenciam a modos diferentes de existência, uns eram por essência
escravos, e alguns outros livres.2 O mundo do verdadeiro, do bom e do belo era realmente
situado fora da luta com a matéria, estava muito além da forma de existência dos escravos,
artesãos, comerciantes e mulheres: da maioria da população; apenas uma pequena parcela
de cidadãos podia se ocupar com o que ia além das necessidades materiais. O bom, belo e
verdadeiro não podiam, portanto, ser sustentados por Aristóteles como valores universais.
O disforme ou o nascido em família vil não poderia de modo algum se tornar feliz, desde
que beleza e nobreza de nascimento eram condições necessárias para tanto. Também na
República platônica, os homens foram considerados diferentes por natureza, e esta seria
responsável pela determinação de cada homem para a tarefa que lhe fosse adequada.
Segundo Platão, ao modelar os homens, Deus colocou ouro nas almas daqueles aptos a
serem governantes, prata na composição das almas de seus auxiliares; ferro e bronze nas
dos lavradores e artífices3. Manter cada um no seu devido lugar era necessário para manter
a cidade em ordem.
Bem sabemos como revestir os lavradores com trajes suntuosos, coroando-os de ouro, e mandando-os lavrar a terra conforme lhes apetecer; e como reclinar os oleiros na devida ordem, junto do fogo, a beberem regalados com a roda do lado, para quando desejarem modelar o barro; e como tornar felizes todos os restantes de maneira idêntica, a fim de que toda a cidade esteja contente. Mas não nos aconselhes a tal. De maneira que, se te obedecêssemos, nem o lavrador será lavrador, nem o oleiro, oleiro, nem ninguém mais ocupará o seu lugar; e nessa ordenação é que a cidade se origina.4
Na Grécia clássica, as contradições sociais foram consideradas decorrentes de
distinções ontológicas, as diferenças foram naturalizadas e os conflitos da sociedade de
classes foram baseados nas profundezas da alma humana. Sem problemas de consciência, a
2 MARCUSE. “Para a Crítica do Hedonismo”, Cultura e Sociedade, p.173.3 PLATÃO. República, livro III, 415a, p.157. 4 PLATÃO. República, livro IV, 420e, p.163. Cf.423d, p.168 e 486c-e, p.271.
teoria antiga pôde sustentar que, enquanto uma pequena parcela se dedicava ao prazer, à
verdade e à beleza, a maioria dos homens era obrigada a despender sua existência na triste
provisão das necessidades vitais. A separação entre o mundo sensível e o das idéias, entre
o belo e o necessário, tem atrás de si uma determinada forma política de existência; que
através dessa distinção e com a subseqüente inferioridade do mundo material se livra da
má consciência. Segundo Marcuse,
Por causa de sua inegável materialidade (Stofflichkeit), a práxis material (materiell) seria isenta da responsabilidade pelo verdadeiro, bom e belo, que, por sua vez, deveria se conservar na ocupação teórica. O isolamento ontológico dos valores ideais em relação aos materiais tranqüiliza o idealismo no que concerne aos processos vitais materiais. Uma forma histórica determinada da divisão social do trabalho e da estruturação social de classes se converte para ele numa forma metafísica eterna da relação entre o necessário e o belo, a matéria e a idéia.5
A interpretação mais radical que encontramos para a origem do dualismo é a do
helenista marxista George Thomson, com base nos assustadores relatos, sobre o trabalho
escravo nas minas de ouro egípcias no século I, escritos por Diodoro da Sicília, em
História, livro 5, §38. Argumentando que as condições de trabalho escravo na Grécia
platônica não diferiam muito das descritas por Diodoro, o pensador inglês deduz que a
realidade está na origem das imagens sobre as quais são construídas as parábolas acerca da
vida neste mundo e da vida futura. “Foi nas minas que pela primeira vez os homens
conceberam a vida como prisão e o corpo como túmulo da alma”.6
A realidade material intolerável força o espírito a inventar escapes: arte, religião,
memória são as rotas mais conhecidas dentre as infinitas fantasias possíveis. A percepção
de uma situação restritiva, de uma realidade intolerável, que é recusada e,
simultaneamente, o vislumbre, mesmo que obscuro, de um outro estado diante do qual o
primeiro é condenado estão na origem do negativo. O despertar da insatisfação, ou, pode-
se dizer, a origem do negativo, é um movimento da liberdade. Jameson conceitualiza, com
agudeza, a liberdade como “impaciência ontológica”7, e nunca como um estado a ser
desfrutado. “A liberdade é essencialmente negativa.”8 Ao negar, a liberdade produz uma
superposição de percepções: quando algo é negado, concomitantemente uma alteridade é
5 MARCUSE. “Sobre o caráter afirmativo da cultura”, p.94.6 THOMSON. Os Primeiros Filósofos, vol.II, p.93.7 JAMESON. “Schiller e Marcuse” em Marxismo e Forma, p.71.8 MARCUSE. “A note on dialectic”, p.447.
vislumbrada. A importância política da cultura está ligada a sua articulação com a
faculdade de negação e à capacidade de presentificar o “outro”, simultânea a esta última.
“Sempre houve um universo estrangeiro para o qual os fins culturais não valem”,
assinala Marcuse, “a cultura sempre foi privilégio de uma pequena minoria, uma questão
de riqueza, de tempo e de feliz coincidência.”9 A moderna civilização burguesa, que não
podia mais defender a cisão ontológica proposta pelos filósofos gregos, sedimentou a idéia
de “liberdade interior”. A alta cultura da burguesia se contrapunha ao real, oferecia uma
realidade virtual desfrutada apenas por uma minoria privilegiada, e acomodava ideais
potencialmente negativos na alienada dimensão estética. Entretanto, a experiência de
evasão através da fruição artística pode produzir uma força dissidente, capaz de resistir aos
valores dominantes, por desviar o foco da realização individual do domínio que pertence
ao lucro e colocá-lo sobre os recursos íntimos do ser humano. Esse movimento faz com
que a evasão não seja definitiva, não seja mera fuga da realidade: a subjetividade sai da sua
interioridade e torna-se “nós” na cultura. Vulgarmente rejeitada como “noção burguesa”, a
afirmação da subjetividade (identidade do sujeito consigo mesmo, diz Hegel), a insistência
no direito à interioridade pode suportar o indivíduo diante das turbulentas relações do
mercado, tornando acessível uma dimensão não-reificada da existência. Assim, a cultura
do idealismo burguês não é só ideologia, mas também expressa uma situação verdadeira:
Não contém só a legitimação da forma da existência (Daseinsform) vigente, como também a dor causada por seu estado; não só a tranqüilidade em face do que existe, mas também a rememoração daquilo que poderia existir. Na medida em que a grande arte burguesa configuraria o sofrimento e o lamento como eternas forças do mundo, romperia continuamente no coração dos homens a injustificada resignação do cotidiano; na medida em que pintaria a beleza dos homens e das coisas e uma felicidade extraterrena nas cores brilhantes deste mundo, junto com a falsa consolação e a falsa bênção, também aprofundaria o anseio autêntico na raiz da vida burguesa.10
A idéia de um “anseio autêntico” enraizado na organização social, levada a cabo
pela burguesia, remete a pulsões que a sociedade submeteu e a cultura manteve vivas. Esse
antagonismo – que a fundamenta – só pode admitir a exigência de felicidade se esta for
interiorizada, descorporificada e desmaterializada. Entretanto, a impossibilidade de se
retirar completamente da felicidade seu aspecto sensível torna sua busca subversiva. Para a
9 MARCUSE. “Comentários para uma Redefinição de Cultura”; respectivamente, p.154 e 15910 MARCUSE. “Sobre o caráter afirmativo da cultura”, p.99.
sociedade que se reproduz por meio da concorrência econômica, a simples exigência de
uma existência feliz universalizada representa um antagonismo: “remeter os homens à
fruição da felicidade terrena significa certamente não remetê-los ao trabalho na produção,
ao lucro, à autoridade daquelas forças econômicas que preservam a vida desse todo.”11 Em
uma ordem baseada na carência e no sacrifício, a exigência de felicidade é perigosa. As
contradições internas dessa ordem levam à idealização de tal exigência. Ainda assim, a
dinâmica idealista que, reiteradamente, adia a satisfação, ou a desvia levando-a a aspirar ao
impossível, serve para rememorá-la e confrontar o homem com a imagem de uma ordem
melhor. A cultura se torna o negativo de uma ordem em que a reprodução material da vida
não deixava outro espaço “para aquele âmbito da existência que os antigos designavam
como ‘belo’.”12
Os homens ficam felizes através do médium da beleza. “A fruição da beleza tem um
caráter de sentimento peculiar, levemente embriagante. A beleza não tem emprego
evidente, não existe necessidade cultural sua. Apesar disso, a civilização não pode
dispensá-la,” considera Freud, e “embora a ciência estética investigue as condições sob as
quais as coisas são sentidas como belas, tem sido incapaz de fornecer qualquer explicação
a respeito da natureza e da origem da beleza, e, tal como geralmente acontece, esse
insucesso vem sendo escamoteado sob um dilúvio de palavras tão pomposas quanto ocas.
A psicanálise, infelizmente, também pouco encontrou a dizer sobre a beleza. O que parece
certo é sua derivação do campo sexual.”13 A beleza é dotada de um poder perigoso,
ameaçador. Sua qualidade sensorial (Sinnlichkeit) imediata remete imediatamente à
felicidade no plano dos sentidos; por isso, ela só seria confirmada com boa consciência no
ideal da arte. “Para Nietzsche a beleza reanima ‘a felicidade (Seligkeit) afrodisíaca’”14;
Marcuse opõe à definição kantiana do belo como prazer desinteressado a afirmação de
Stendhal, de que a beleza é “une promesse de bonheur”. E lembra que, também para
Hume, a beleza estimula a fruição, a fruição não é uma manifestação secundária da beleza,
mas constitui sua própria essência. A fruição consiste justamente no “encontro inocente,
despreocupado, harmonioso do indivíduo com algo no mundo.”15 Nisto reside seu perigo
11 MARCUSE. “Sobre o caráter afirmativo da cultura”, p.100.12 MARCUSE. “Sobre o caráter afirmativo da cultura”, p.113 e p.127, respectivamente.13 FREUD. Das Unbenhagen in der Kultur, (1930 [1929]), Gesammelte Werke, Band 14, p.441.14 MARCUSE. “Sobre o caráter afirmativo da cultura”, p.114. 15 MARCUSE. “Para a Crítica do Hedonismo”, p.170.
em uma sociedade que precisa racionar e controlar a felicidade, que libertou o indivíduo
mantendo o controle sobre a fruição. A beleza apresenta à vista o que não pode ser
prometido e é negado à maioria. A sociedade moderna só reconhece a conversão do
homem em objeto quando se trata da servidão. A alienação do próprio corpo no trabalho é
dever moral, o corpo como objeto de prazer é depravação, ou prostituição – do latim
prostituere, por diante do público, expor. Quando a mercadoria é o corpo, e não a força de
trabalho, seu portador é desprezado por ultrapassar os limites da reificação. “Há uma
violação do tabu [...] cuja manutenção é vital para perpetuação do sistema”16. Onde o valor
é o trabalho, o prazer não pode ser um valor. Apesar disso, salienta Marcuse,
onde o corpo se tornou inteiramente objeto, coisa bela, ele possibilita imaginar uma nova felicidade. Na subordinação extrema à reificação, o homem triunfa sobre a reificação. A qualidade artística do corpo belo, ainda hoje presente unicamente no circo, nos cabarés e em shows, essa beleza e frivolidade lúdicas, anuncia a alegria da libertação do ideal que o homem pode atingir quando a humanidade, convertida verdadeiramente em sujeito, dominar a matéria.17
Entregue ao prazer, o corpo anuncia a alegria implícita no movimento de libertar-se
do ideal. A libertação antecipa uma espécie de reconciliação, ainda que parcial, com a
natureza. A reificação libertadora não serve para perpetuar a exploração e a labuta. Para
Marcuse, a liberdade é parte inalienável da fruição prazerosa do belo. Quando os sentidos
se libertam da alma, “quando existe fruição sem qualquer racionalização e sem o mais leve
sentimento de culpa puritano”18, observa o filósofo, surge então a primeira luz de uma
outra cultura. “A prostituta, o clown e o acrobata têm um papel muito diferente aqui
daquele do lúmpen proletariado de Marx.”19 Ainda que única felicidade universal possível
seja a felicidade da aparência, o efeito produzido pela aparência é indubitável: a satisfação
é real.
Antes da explosão estudantil do final dos anos 60 no século XX, na obra sobre o
homem unidimensional (1964), é por baixo da base popular conservadora que o filósofo
vai buscar fundamentos, percebendo que o conformismo ideológico não tem força para
agüentar-se por si só: ele depende das circunstâncias de prosperidade. No “substrato dos
parias e estranhos, dos explorados e perseguidos de outras raças e outras cores, os
16 MARCUSE. “Sobre o caráter afirmativo da cultura”, p.115.17 MARCUSE. “Sobre o caráter afirmativo da cultura”, p.115.18 MARCUSE. “Sobre o caráter afirmativo da cultura”, p.115.19 KATZ. Herbert Marcuse and the Art of Liberation, p.102.
desempregados e os não-empregáveis”20, Marcuse percebe a força elementar dos que se
recusam ao papel que lhes é determinado no jogo, e com isso o revelam como trapaça.
“Quando eles saem às ruas, sem armas, sem proteção, para reivindicar os mais primitivos
direitos civis, sabem que enfrentam cães, pedras e bombas, cadeia, campos de
concentração e até a morte. Sua força está por trás de toda manifestação política para as
vítimas da lei e da ordem.”21 O filósofo recusa o paralelo fácil com os bárbaros que
ameaçavam o império da civilização, considerando que aceitá-lo seria prejulgar a causa.
Pode-se perceber algumas mudanças no pensamento de Marcuse, ao final dos anos 60.
Apenas quatro anos depois, em An Essay on Liberation (1969), o filósofo assinala que no
continuum repressivo do pensamento unidimensional aparecem fendas diversas. Segundo
Marcuse, “a revolução cubana e o Vietcongue demonstraram: pode ser feito; há uma
moralidade, uma humanidade, uma vontade, e uma fé que podem resistir e deter a
gigantesca técnica e a força econômica da expansão capitalista”.22 Se nas sociedades
superafluentes, o poder do capitalismo corporativista, auxiliado pelos mass media, ajustou
a imaginação dos homens para seu próprio mercado, onde a cultura capitalista não
penetrou completamente em todas as casas – nos guetos e nos países periféricos –, o
sistema se mostra menos estável; i.e, ainda não se chegou ao estágio no qual recusar o
sistema de dominação significa rejeitar-se a si mesmo, às próprias necessidades e valores.
A recusa à organização social existente é acolhida entre “os condenados da terra que lutam
contra o monstro da afluência”23, e nas sociedades afluentes, ela encontra expressão entre a
juventude, a intelligentsia e as minorias perseguidas. Com sua sufocante abundância de
bens e suas vítimas expropriadas das necessidades vitais, essa organização social é
obscena, afirma o filósofo, e a análise crítica clama por novas categorias: morais, políticas,
e estéticas. A categoria de obscenidade serve como introdução para Marcuse:
Obscenidade é um conceito moral do arsenal verbal do Establishment, que abusa do termo aplicando-o não em expressões de sua própria moralidade, mas naquelas do outro. Obscena não é a figura de uma mulher nua que expõe seus pelos púbicos e sim a de um general todo fardado que expõe suas medalhas conquistadas em uma guerra
20 MARCUSE. One-Dimensional Man, p.256.21 MARCUSE. One-Dimensional Man, p.256.22 MARCUSE. An Essay on Liberation, p.81. 23 MARCUSE. An Essay on Liberation, p.7. É clara a referência à obra de Frantz Fanon, Os Condenados da Terra (Les Damnés de la Terre, 1963). O título do livro de Fanon foi tirado do texto original de Eugene Pottier para L’Internationale; cf. WOODIS. New Theories of Revolution, p.175.
de agressão [...] O vocabulário sociológico e político precisa ser radicalmente reformulado [reshaped]: precisa ser arrancado de sua falsa neutralidade, e metódica e provocativamente ser “moralizado” em termos da Recusa. A moralidade não é necessária nem primariamente ideológica. Em face da sociedade amoral, ela se torna uma arma política.24
O autor considera que a moralidade está enraizada no impulso erótico para conter a
destrutividade e criar, e preservar, “unidades de vida cada vez maiores”. Assim, ele lhe
atribui um fundamento pulsional. Na medida em que esse fundamento é histórico e a
maleabilidade da “natureza humana” alcança as profundezas da estrutura pulsional,
mudanças na moralidade podem modificar inclusive o comportamento orgânico.
Quando uma moralidade específica está firmemente estabelecida como norma para o comportamento social, ela não está apenas introjetada – mas opera como uma norma para o comportamento “orgânico”: o organismo recebe e reage a certos estímulos e “ignora” e repele outros de acordo com a moralidade introjetada, que está assim promovendo ou impedindo a função do organismo como célula viva na respectiva sociedade. Deste modo, uma sociedade constantemente re-cria este lado de consciência e ideologia, padrões de comportamento e aspirações como parte da “natureza” de seu povo, e, a menos que a revolta alcance esta “segunda” natureza, a mudança social permanecerá “incompleta”, e mesmo auto-anuladora.25
No mundo contemporâneo, a extensão do controle sobre a consciência permite o
relaxamento do controle sobre a sexualidade e maior liberdade sexual. O corpo, sem deixar
de ser instrumento de trabalho, tem permissão para exibir-se; o avanço da sociedade
industrial torna os bens mais acessíveis, dentre eles a própria beleza, através do
barateamento de produtos de higiene, vestuário, cosméticos e outros. O sex appeal torna-se
mercadoria, o que antes era prerrogativa da nobreza é democraticamente colocado no
mercado. “As secretárias e vendedoras sexies, o jovem executivo e o superintendente
atraentes e viris são mercadorias altamente comercializáveis”.26 O funcionalismo é
estetizado. Lojas e escritórios ficam expostos aos olhares através dos vidros das vitrines. A
corrosão da indevassabilidade rompe as barreiras que separavam a existência privada da
pública. As liberdades concedidas por uma sociedade não livre seduzem a consciência e
dissolvem sua potência negativa. Muito da servidão voluntária deve-se a essa
administração da libido satisfeita através da submissão. Concentrada em uma parte do
24 MARCUSE. An Essay on Liberation, p.8.25 MARCUSE. An Essay on Liberation, p.11.26 MARCUSE. One-Dimensional Man, p.74.
corpo, na genitália, a libido pode ser periodicamente libertada, ou melhor, descarregada.
Deixando o resto do corpo, e todo o corpo, o resto do tempo, livre para ser utilizado como
instrumento de trabalho.
É evidente a diferença entre Eros, sexualidade e genitalidade. Conforme Freud, é
necessário uma distinção nítida entre os conceitos ‘sexual’ e ‘genital’, o primeiro possui
maior amplitude e permite incluir atividades sem qualquer liame com os órgãos genitais. A
função sexual também não coincide com Eros, segundo a teoria freudiana.27 Bataille
salienta a distinção entre Eros e sexualidade, observando que “só os homens
transformaram a atividade sexual em atividade erótica. Donde a diferença entre o erotismo
e a mera atividade sexual, que torna aquela uma busca psicológica, independente do fim
natural dado pela reprodução e pela preocupação em procriar.”28 A utilização por Freud do
termo Eros para significar pulsão de vida implica uma ampliação do próprio significado
para além da sexualidade. O confinamento de Eros à esfera física parece análogo à
separação antagônica entre o corpo e a mente. O antagonismo começa com a luta interna
do indivíduo contra suas faculdades “inferiores”: as sensuais e apetitivas. Quando “a luta
pela existência foi organizada no interesse da dominação, a base erótica da cultura
transformou-se,”29 escreve Marcuse. Desde a lógica aristotélica, a concepção grega de
logos como essência do Ser “fundiu-se com a idéia de uma razão ordenada, classificadora e
dominadora.”30 O logos se apresenta como lógica da dominação. E assim permanece até
Hegel, para quem o Espírito é, simultaneamente, a verdadeira forma de ser e a verdadeira
forma de pensar. O Ser é, em sua essência, razão: semelhante estado só pode ser concebido
como o do puro pensamento.
Do ponto de vista freudiano, é difícil defender a possibilidade de convivência não-
repressiva entre Logos e Eros. A diminuição do controle social exercido sobre os impulsos
sexuais – controle realizado através do estabelecimento do modelo da sexualidade genital,
heterossexual e monogâmica – faria regredir a organização sexual a estágios pré-
civilizados. Liberta, a libido extravasaria os limites institucionalizados em que é mantida à
força. Repetidamente, Freud afirmou que a civilização depende de relações interpessoais,
27 Cf. FREUD. “Trieblehre”, in Abriss der Psychoanalyse, GW 17, p.176ss.28 BATAILLE, L'Érotisme, p.15.29 MARCUSE. Eros and Civilization, p.125.30 MARCUSE. Eros and Civilization, p.111.
mantidas às custas da inibição do impulso sexual sublimado em atividades socialmente
aceitas. Tal perspectiva parece “confirmar a expectativa de que a libertação pulsional pode
levar somente a uma sociedade de maníacos sexuais – i.e, a nenhuma sociedade”.31
Entretanto, o processo proposto por Marcuse envolve uma erotização difusa e polimorfa. O
que acontece no final do século XX – a libertação da sexualidade dentro do domínio
repressor das instituições de poder, que costuma culminar em orgias sadomasoquistas –
difere radicalmente do desenvolvimento da pulsão erótica livre. A descarga sexual tem
sido usada como instrumento apropriado para regimes repressivos. Distintamente,
“falamos da auto-sublimação da sexualidade”32, assinala Marcuse, da sua transformação
ampliada em Eros.
Em sua investida contra a dominação da estrutura pulsional levada a cabo através
da história, Marcuse ousa acenar com um modelo diferente de organização possível,
considerando que, em sua proto-história, o aparelho psíquico era todo voltado ao princípio
do prazer, e é assim que, ainda hoje, aparece no mundo. Essa plenitude original do ego do
prazer inscreve-se indelevelmente na memória. A impossibilidade de voltar a vivê-la de
modo absoluto não deveria nos condenar à miséria mental ou física. Marcuse mostra que o
retorno da sexualidade a zonas primárias de sua natureza, anteriores à organização que
produz a primazia da função genital, romperia esse primado e a dessexualização do corpo
que o acompanha.
Biologicamente, o desenvolvimento sexual do indivíduo atinge seu apogeu quando
o primado da zona genital substitui os erotismos anteriores. E os estágios superados
persistem na organização definitiva como mecanismos de “prazer preliminar”. Segundo
Ferenczi, “o fato de que o organismo se desembaraçou das tendências pulsionais para a
descarga concentrando-as no aparelho genital aumentou consideravelmente o seu nível de
eficácia e permitiu-lhe adaptar-se mais facilmente às situações difíceis e até às
catastróficas.”33 A unificação das pulsões eróticas através do estabelecimento da
supremacia genital realiza a dessexualização do corpo, socialmente necessária. Ferenczi
deixa a nu, nesta obra citada por Marcuse, o caráter utilitarista do processo, ao afirma que,
31 MARCUSE. Eros and Civilization, p.201.32 MARCUSE. Eros and Civilization, p.204.33 FERENCZI, Thalassa, p.21.
um ser vivo que disponha de uma função genital evoluída é capaz de melhor adaptação às tarefas da existência, mesmo em suas atividades não eróticas; pode protelar suas satisfações eróticas pelo tempo necessário e suficiente para que elas não perturbem a função de conservação. Podemos dizer, portanto, que o aparelho genital é, ao mesmo tempo, um órgão “útil” que favorece as intenções e os objetivos da função de realidade.34
Ferenczi imagina, então, um fluxo diametralmente oposto ao que canaliza a
excitação dos diversos órgãos para o aparelho genital (“genitópeto”), cuja direção é
inversa: um refluxo (“genitófugo”) que difunde a libido para outros órgãos do corpo.
Marcuse considera que haja uma “tendência libidinal genitófuga” cujo movimento leva a
pulsão a outras formas de gratificação erótica. O próprio Freud admite, por exemplo, a
existência de vínculos libidinais nas relações de colaboração entre indivíduos, que as
prolongam e consolidam. Deste modo, a luta pela existência não cancela a liberdade
pulsional, mas pode ser mesmo um instrumento de gratificação.
A estrutura pulsional é ao mesmo tempo determinação ontológica e produto da
história. O conhecimento do processo social de construção da humanidade é uma espécie
de saber arqueológico que pode iluminar a determinação das correntes simbólicas que
organizam o real. A importância do conceito de memória na filosofia de Marcuse foi
ressaltada por Jameson, que considera a “quase platônica” valorização da memória uma
das fundamentações teóricas do pensamento deste filósofo; Mnemosyne ocuparia aí uma
posição mitopoética emblemática. “É porque nós conhecemos, no início da vida, uma
plenitude de gratificação física, porque nós conhecemos um tempo anterior a qualquer
repressão”, escreve Jameson, “um tempo que precede à separação do sujeito e de seu
objeto, que a memória, mesmo a obscura e inconsciente memória deste percurso pré-
histórico na psique individual, pode preencher esse papel profundamente terapêutico,
epistemológico e mesmo político.”35 Jameson se refere à plenitude integral experimentada
por todo ser humano na fase inicial da vida. A rememoração de um estado de gratificação
total denuncia o mundo dos fatos. Marcuse considera que, como abertura para um real
fundamental obnubilado, a rememoração tem implicações ontológicas e epistemológicas.
“Regressão assume uma função progressiva.”36 “Rememoração é um modo de dissociar-se
dos fatos dados, um modo de ‘mediação’ que rompe, por rápidos momentos, o poder
34 FERENCZI, Thalassa, p.47.35 JAMESON. Marxism and Form, p.113. 36 MARCUSE, Eros and Civilization, p.19.
onipresente destes.”37 O valor de verdade da memória repousa na sua função específica de
preservar promessas e potencialidades proscritas pelo indivíduo civilizado, mas nunca
inteiramente esquecidas “Do mito de Orfeu à novela de Proust, felicidade e liberdade têm
estado ligadas à idéia de recaptura do tempo: o temps retrouvé. A rememoração recupera o
temps perdue, que era o tempo da gratificação”,38 considera Marcuse. A rememoração,
“que preservou tudo o que foi”39, Er-innerung, é ir para dentro, é o contrário da alienação.
Marcuse concorda com a teoria freudiana de que Eros é movido pela rememoração.
Segundo Freud, para se determinar a direção a ser dada às excitações, “a memória é
evidentemente uma das forças determinantes e orientadoras”40.
Buscando brechas na ordem dominadora da sociedade unidimensional, o filósofo
percebe que uma fenda possível poderia ser indicada pelas potências mentais que
permanecem essencialmente libertas, e não submetidas ao princípio de desempenho.
Conforme Freud, o princípio de prazer não reprimido continua prevalecendo nos mais
profundos e nos mais arcaicos processos mentais inconscientes. Contudo, porque
inconscientes, eles não podem oferecer padrões para a consciência desenvolvida. Dentre as
faculdades livres, a atividade mental que mantém o mais alto grau de liberdade em relação
ao princípio de realidade na esfera da consciência desenvolvida é a fantasia. Nas palavras
de Freud: “Com a introdução do princípio de realidade, uma das espécies de atividade de
pensamento foi separada; ela foi liberada no teste de realidade e permaneceu subordinada
apenas ao princípio de prazer. Esta atividade é o fantasiar.” 41 O ato de elaboração da
fantasia, que começa com as brincadeiras infantis e continua como divagação, manteve-se
livre do critério de realidade, é todo voltado ao princípio do prazer. “A fantasia desempenha
uma das mais decisivas funções na estrutura mental total: liga os mais profundos níveis do
inconsciente aos mais elevados produtos da consciência (arte)”.42 A liberdade da fantasia,
bem como sua relação essencial com a filosofia, já havia sido assinalada por Marcuse, em
1937, no texto “Filosofia e Teoria Crítica”, onde se lê que.
37 MARCUSE. One-Dimensional Man, p.98; 38 MARCUSE. Eros and Civilization, p.233.39 MARCUSE. Eros and Civilization, p.117. 40 FREUD. “Projeto para uma Psicologia Científica” (1951 [1895]), OC vol.I, p.401. 41 FREUD. “Formulação sobre os dois princípios de funcionamento mental” (1911), OC, vol. XII, p.240. 42 MARCUSE. Eros and Civilization, p.140.
para preservar no presente o que ainda não está presente como meta, a fantasia é necessária. Que a fantasia se relacione de modo essencial com a filosofia, resulta da função que foi designada sob o título de “imaginação” pelos filósofos, particularmente por Aristóteles e Kant. Devido à sua capacidade única de “intuir” um objeto mesmo ausente, de criar algo a partir do fundamento material dado do conhecimento, a imaginação indica um elevado grau de independência, a liberdade em meio de um mundo de não-liberdade.43
Por sua capacidade de, ultrapassando o presente, poder antecipar o futuro, a fantasia
definiria o homem “a partir do que ele efetivamente pode ser amanhã.”44 Quando ela é
considerada um poder cognitivo, “o pensamento transforma-se em jogo, jeu interdit; o
esprit de sérieux cede lugar à gaya scienza, à embriaguez e ao riso.”45 Por isso talvez a
fantasia é degradada, “deixá-la livre para a construção de um mundo mais belo e mais feliz
permanece privilégio das crianças e dos loucos,”46 afirma Marcuse.
A fantasia (imaginação) já estava reconhecida como processo de pensamento
autônomo e com valores próprios, a originalidade freudiana foi demonstrar sua origem e
conexão essencial com o princípio do prazer. Freud percebeu que a atividade original do
pensamento unificada no ego do prazer é cindida com a introdução do princípio de
realidade e uma parte é canalizada para seu domínio, essa parte será senhora da
determinação do real, das normas e valores, como razão; a outra parte continua livre, mas
impotente e irrealista. “A razão prevalece: torna-se desagradável, mas útil e correta; a
fantasia permanece agradável, mas torna-se inútil, inverídica – um mero jogo, divagação”47.
Mas é a fantasia que retém as estruturas da psique anteriores à cisão provocada pelo
princípio da realidade, anteriores ao principium individuationis, que distingue a vida do
indivíduo da vida do gênero. “A imaginação preserva a ‘memória’ do passado sub-
histórico, quando a vida do indivíduo era a vida do genus, a imagem da unidade imediata
entre o universal e o particular sob o domínio do princípio de prazer. Em contraste, toda a
vida subseqüente do homem é caracterizada pela destruição de sua unidade original.”48
Aqui está a possibilidade da vinculação, feita por Marcuse, entre a fantasia e Eros já que,
para Freud, é a sexualidade “a única função de um organismo vivo que se estende para
43 MARCUSE. “Filosofia e Teoria Crítica”, p.155. 44 MARCUSE. “Filosofia e Teoria Crítica”, p.156. 45 MARCUSE. “Love Mystified: A Critique of Norman O. Brown”, in Negations, p.228.46 MARCUSE. “Filosofia e Teoria Crítica”, p.155.47 MARCUSE. Eros and Civilization, p.142.48 MARCUSE. Eros and Civilization, p.143.
além do indivíduo e garante sua conexão com a espécie.”49 A união de Eros e Fantasia cria
imagens de outras formas de realidade, transcende a oposição do particular e universal e
pertence à humanidade para além do principium individuationis. Marcuse opõe-se a Freud
quando este julga que tais imagens estão presas ao passado arcaico. A partir desta
perspectiva, a idéia de um princípio de realidade não-repressivo significaria o regresso a
estágios mentais anteriores. Para o filósofo, distintamente, as formas invocadas pela
imaginação constituem uma recusa “em esquecer o que pode ser”50. Contra o antagônico
princípio de individuação, a fantasia reivindica o indivíduo total unido ao gênero, e como
processo mental autônomo busca superar o antagonismo da realidade e reconciliar o
indivíduo com o todo, a felicidade com a razão. O princípio de realidade remove essa
harmonia para a utopia e a fantasia insiste que ela deve tornar-se real. “As verdades da
imaginação são realizadas, pela primeira vez, quando a própria fantasia ganha forma,
quando cria um universo de percepção e compreensão – subjetivo e, ao mesmo tempo,
objetivo. Isso ocorre na arte”51. Marcuse considera que na obra de arte reaparece a
harmonia reprimida entre sensualidade e razão. A fantasia revela sua função cognitiva ao
apontar para essa harmonia, expressando um protesto contra o modus vivendi organizado
pela lógica instrumentalizada. O filósofo observa que “a metapsicologia freudiana reinveste
a imaginação de seus direitos”52, como faculdade cujo valor está ligado à experiência de
superar a antagônica realidade. Nas palavras de Freud,
a arte ocasiona uma reconciliação entre os dois princípios, de maneira peculiar. Um artista é originalmente um homem que se afasta da realidade, porque não pode concordar com a renúncia à satisfação pulsional que ela a princípio exige, e concede a seus desejos eróticos e ambiciosos completa liberdade na vida da fantasia. Todavia, encontra o caminho de volta desse mundo de fantasia para a realidade, fazendo uso de dons especiais que transformam suas fantasias em verdades de um novo tipo [...] Mas ele só pode conseguir isto porque outros homens sentem a mesma insatisfação, que resulta da substituição do princípio de prazer pelo princípio de realidade.53
A arte é o mais visível “retorno do reprimido”. No reino da fantasia, “a satisfação é
obtida através de ilusões, reconhecidas como tais”, assinala Freud, e, “à frente das
satisfações obtidas através da fantasia ergue-se a fruição das obras de arte”, continua o
49 FREUD. A General Introduction to Psychoanalysis, p.358.50 MARCUSE. Eros and Civilization, p.148.51 MARCUSE. Eros and Civilization, p.143-144.52 MARCUSE. Eros and Civilization, p.143.53 FREUD. “Formulação sobre os dois princípios de funcionamento mental”, (1911), OC, vol. XII, p.242-243.
pensador vienense, chamando a atenção para o fato de que “as pessoas receptivas à
influência da arte não lhe podem atribuir um valor alto demais como fonte de prazer e
consolação da vida.”54
A arte reivindica a gratificação sensível e anula o estabelecido, tornando-se
linguagem comum a todos os homens entre os quais a barreira colocada pelo princípio de
individuação caiu. Na arte, o valor de verdade da fantasia está “no fato de suas imagens
pertencerem à humanidade, acima do principium individuationis.”55 Marcuse lembra que,
“quando Freud enfatizou o fato fundamental de que a fantasia (imaginação) retém uma
verdade incompatível com a razão, ele estava seguindo uma longa tradição histórica.”56 A
potência cognitiva da fantasia reside em sua capacidade de manter vivas as aspirações de
realização integral. As estranhas verdades preservadas nas lendas e na arte tramam o tecido
cultural, e, ainda que tomá-las como modelos para atitudes existenciais seja considerado
loucura, são aceitos alguns de seus símbolos. O filósofo observa que dentre os heróis
presentes na imaginação ainda está vivo o rebelde que, desafiando os deuses, cria cultura às
custas do próprio sofrimento, e assim apresenta a idéia de produtividade através de martírio
e sacrifício. “Prometeu é o herói-arquétipo do princípio de desempenho.”57 E no mundo de
Prometeu, Pandora, o princípio feminino, é a maldição desintegradora; “a beleza da mulher
e a felicidade que ela promete são fatais no mundo de trabalho da civilização.”58
Marcuse encontra os símbolos míticos para outro princípio de realidade em Orfeu e
em Narciso. Em Eros e Civilização, a apresentação de Prometeu é breve e esquemática, a
de Orfeu e Narciso é rica e metafórica. Harmonizando-se com seu objeto, o filósofo o faz
presente através de os Sonetos a Orfeu, de Rilke, Le traité du Narcise, de Gide, Narcise
Parle e Cantate du Narcise, de Valéry, entre outros. Nesses versos, os heróis louvados
apresentam imagens de fruição, do homem liberto da labuta; suas vozes são cantos, elas
remetem à experiência do mundo onde “tudo é ordem e beleza./ Luxo, calma e volúpia”. 59
Os mitos de Orfeu e Narciso libertam potências reais cujo telos é “ser apenas o que são.”60
Cabe lembrar que o orfismo, antiga tendência religiosa da Grécia arcaica, tem como base a
54 FREUD. Mal-Estar na Civilização, (1930 [1929]), OC XXI, p.88.55 MARCUSE. Eros and Civilization, p.146.56 MARCUSE. Eros and Civilization, p.160.57 MARCUSE. Eros and Civilization, p.161.58 MARCUSE. Eros and Civilization, p.161.59 BAUDELAIRE, “O convite à viagem”, in Baudelaire. Poesia Completa, p.235. 60 MARCUSE. Eros and Civilization, p.165.
rememoração. Arquétipo do poeta liberator e creator, Orfeu estabelece uma ordem sem
repressão, não através da força e sim do verbo, do ritmo, do canto.
Sempre que tange sua lira atrai tudo que há no seu mundo, tanto os seres humanos, como os animais, os vegetais e até as pedras, que se arrastam para ouvir os seus sons. Portanto, a imagem de Orfeu é uma imagem profundamente erótica. É o Eros, o mágico Eros que liga todos os prazeres e faz do mundo uma profunda unidade, que vibra ao ritmo da música.61
Marcuse assinala que Orfeu enfrenta a ordem sexual repressiva: após a morte de
sua esposa Eurídice, o vate se esquiva do amor das mulheres e a tradição clássica liga seu
nome à homossexualidade. “Foi ele quem ensinou aos povos da Trácia a transferirem o
amor para os adolescentes e colherem, antes da juventude, as flores de uma breve
primavera”.62 Orfeu paga por isso com o próprio corpo que foi dilacerado pelas mulheres
trácias enlouquecidas com sua recusa. Morta Eurídice, Orfeu se auto-erotiza e seu erotismo
“é saber, é conhecer”, considera Sevcenko. “Na medida em que ele não dá mais atenção ao
mundo, este se volta contra ele”, continua o historiador, “ele arrebenta, mas as partes todas
continuam com vida e a cabeça sozinha continua cantando até o fim dos tempos.”63
De acordo com Marcuse, a experiência órfica e narcísica do mundo nega o que
sustenta o mundo prometeico. Contra Plotino, que nas Enéadas (I, 6) discorre sobre o mito
de Narciso considerando que este se perde ao apaixonar-se pelo reflexo de sua imagem
sensível, Marcuse percebe a entrega ao amor a si como alienação libertadora de um mundo
falso, como abrigo de um sentimento autêntico. O filósofo articula a imagem mitopoética
de Narciso vislumbrando sua própria beleza no rio do tempo com a teoria freudiana. Em
Freud, o narcisismo – investimento libidinal no próprio ego – transforma este em objeto de
amor. Em O Ego e o Id, é levantada a hipótese de que o narcisismo seja o princípio da
sublimação, mediado pelo ego. O ego converte a libido sexual em narcísica – movimento
que cria o “narcisismo primário” – e depois lhe dá outra finalidade, outro objeto,
caracterizando o que Freud denomina “narcisismo secundário”.
Sendo este o caso, então toda a sublimação começaria com a reativação da libido narcisista, que de algum modo extravasa e se estende aos objetos. A hipótese quase revoluciona por completo a idéia de dessublimação: sugere um modo não repressivo
61 SEVCENKO. “Debate” em RIEDL. Narrativa, Ficção e História, p.322.62 OVÍDIO. As Metamorfoses, X, 79-83, p.253; citado em Marcuse, Eros and Civilization, p.171.63 SEVCENKO. “Debate” em RIEDL. Narrativa, Ficção e História, p.323.
de sublimação que resulta mais de uma ampliação do que de um desvio imperativo da libido.64
Mais do que apenas um outro estágio no desenvolvimento da libido, o narcisismo
reflete outra orientação em direção à realidade, uma direção que engloba o ambiente e não
simplesmente se coloca em oposição a ele. Como tendência unificadora, “descendente
direto da libido narcísica”, Eros “não é outra coisa que a libido investida no objeto [...] a
fixação de uma energia flutuante ou orgiástica em um objeto onde ela encontra sua estase
[stase].”65 Sob a bandeira de Eros, a libido fica unificada “pelo fato mesmo de que ela
encontrou seu primeiro investimento na unidade de si [...] Eros está marcado pelo sinete do
narcisismo e, neste sentido, todas as suas realizações já podem ser consideradas como
sublimadas.”66 As imagens órfico-narcísicas são as da recusa em aceitar a separação entre
sujeito e objeto libidinal, e podem gerar uma ordem existencial baseada no “sentimento
oceânico”. A expressão é de Romain Rolland e aparece numa carta a Freud:
Trata-se de um sentimento que ele [Romain Rolland, ik] gostaria de designar como uma sensação de “eternidade”, um sentimento de algo ilimitado, sem fronteiras – “oceânico”, por assim dizer [...] o sentimento de um vínculo indissolúvel, de ser uno com o mundo externo e como um todo.67
Freud, que diz desconhecer tal sentimento, adverte que o sentimento oceânico
deveria ser estranho ao ego porque este mantém nitidamente demarcadas suas fronteiras em
relação aos objetos, admite, entretanto, a existência de “um estado – indiscutivelmente fora
do comum, embora não possa ser estigmatizado como patológico – em que ele [o ego, ik]
não se apresenta assim. No auge do sentimento de amor, a fronteira entre ego e objeto
ameaça desaparecer.”68 Eros se torna, portanto, veículo de união e de libertação do
princípio de individuação.
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