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Voltara As mulheres das páginas a seguir foram violentadas porque são mulheres. Apanharam tanto dos namorados, maridos, irmãos que perderam os dentes e tiveram os ossos da boca quebrados. Tomadas pela vergonha e pela tristeza, perderam a autoestima, a independência e o convívio social. Uma ONG formada por 16 mil dentistas de todo o Brasil as ajudou a reconstruir seus sorrisos e a recuperar algo ainda mais importante: a vontade de viver por Letícia González fotos Fernanda Rodrigues e Paola Vianna sorrir especial MARILENE MOREIRA Voltei a me sentir bonita, casei e fiz a festa dos meus sonhos”

especial Voltar a sorrireditora.globo.com/premios/2015/assets/voltar-a-sorrir.pdf · 2016-09-15 · cáries e, assim, vi meu sorriso se esburacar. Fiquei sete anos traba - lhando

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Voltar aAs mulheres das páginas a seguir

foram violentadas porque são mulheres. Apanharam tanto dos namorados, maridos, irmãos que

perderam os dentes e tiveram os ossos da boca quebrados.

Tomadas pela vergonha e pela tristeza, perderam a autoestima,

a independência e o convívio social. Uma ONG formada por 16 mil dentistas de todo o Brasil as

ajudou a reconstruir seus sorrisos e a recuperar algo ainda mais

importante: a vontade de viverp o r L e t í c i a G o n z á l e z

f o t o s F e r n a n d a R o d r i g u e s e P a o l a V i a n n a

sorrirespecial

MARILENE MOREIRA

Voltei a me sentir bonita, casei e fiz a festa dos meus sonhos”

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CLAUDIANE ROSA ÂNGELO

Chega de currículos sem resposta. Quero voltar a trabalhar”

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36 DEZEMBRO 2015

especial

a manhã do último dia 25 de outubro, a recepcionista Regiane Oliveira, 40 anos, que-brou o silêncio de uma sala cheia de adolescentes numa escola da re-gião central de São Paulo. “Todo mundo virou pra me olhar”, conta. É que, assim que abriu sua apos-tila do Enem, o Exame Nacional do Ensino Médio, a paulista, que no dia usava cabelo curto estilo Joãozinho e batom cor de café, deu uma risada alta. Pudera. Este ano, o Ministério da Educação propôs para a redação um assun-to de seu inteiro conhecimen-to: a violência contra a mulher.

Outro silêncio, bem mais pesa-do, Regiane rompera três anos an-

“Meu namorado tinha 21 anos e eu, 14. Na primeira vez que avançou em mim foi de supetão, na volta do trabalho, e não parou mais. Ele me batia e me deixava trancada em casa por semanas. Na rua, me puxava pela mão como se eu fosse uma coisa – eu só podia caminhar ao seu lado. Aos 17, num ato de desespero, me joguei de um ônibus em mo-vimento para me suicidar. Lembro do olhar fulminante que ele me deu quando, no hospital, o médico perguntou o que havia ocorrido.

Sempre gostei de bolos e, numa noite de São João, fui com a prima dele a uma quermesse comer um pedaço. Ele sabia, mas ficou irri-tado. Quando voltei, me esperava com um doce de chocolate sobre a mesa e um pau para me bater. A cada golpe, esfregava na minha boca um naco do bolo, que ia se misturando com sangue. Só conse-gui fugir cinco anos depois, aos 19, quando ele esqueceu a porta aberta e eu corri para a casa da minha mãe. Brigamos pela guarda dos nossos filhos [Fernando, hoje com 25, e Fernanda, 23] na Justiça. Ele acabou criando meu menino.

Conheci meu atual marido há dois anos e, às vezes, não sei lidar com tanto carinho que recebo. Nunca tive isso na vida! Quan-do me pediu em casamento, res-pondi que só aceitaria se um dia tivesse meus dentes de volta. Isso aconteceu em setembro, graças ao trabalho da ONG. No último dia 22, meu aniversário, nos casamos.”

“Não gosto de falar das agressões que sofri. Fiquei deprimida por muito tempo e, ainda hoje, uma grande tristeza me invade. Tive um casamento bom até que, de-

Foi com um “hum hum” que ela disse a uma assistente social querer, sim, participar de uma seleção para tratamento dentário. Os custos seriam pagos pela Turma do Bem (TdB), ONG que reúne 16 mil dentistas no país e que foca no atendimento gratuito a jovens de 11 a 18 anos. Em 2012, a enti-dade passou a beneficiar também mulheres vítimas de violência doméstica por meio do projeto Apolônias do Bem, e foi assim que a vida de Regiane mudou. Com a arcada reconstruída, ela se tornou recepcionista da ONG e retomou os estudos – quer fazer faculdade de serviço social e po-der, assim, ajudar outras vítimas.

Das 4.762 mulheres assassinadas no Brasil em 2013, mais da metade morreu pelas mãos de um familiar direto. Nos hospitais e postos de saúde, no ano passado, outras 127 mil feridas tiveram a coragem de dizer quem as machucou: homens que deveriam amá-las. Os dados mostram que, enquanto o crime organizado mata rapazes nas ruas como numa guerra civil, o mas-sacre feminino ocorre em casa. Segundo o Mapa da Violência, levantamento feito pelo sociólogo Julio Jacobo Waiselfisz e divulgado no mês passado, o país é o quinto mais perigoso para as mulheres. Só não somos piores que El Salvador, Colômbia, Guatemala e Rússia.

Em seu terceiro ano, o Apo-lônias já reconstruiu a dentição de 650 mulheres. Seu fundador, o dentista Fábio Bibancos (que conta com amigos como Luciano Huck, Ana Paula Arósio e Fábio Assunção para catapultar a popu-laridade de sua ação), diz que ainda é pouco para a realidade brasileira. “O Estado deveria fazer isso. Não há trabalho psicológico que resolva a marca de uma porrada na boca.” Os resultados são contundentes co-mo as imagens destas páginas, que mostram diferentes momentos de seis contempladas pelo projeto. A seguir, um pouco de suas histórias.

MARILENE MOREIRA DOS SANTOS45 anos, faxineira

CLAUDIANE ROSA ÂNGELO

37 anos, babá

tes, quando contou a uma psicóloga de um centro social o que sofria nas mãos do irmão, viciado em drogas. De tanto receber chutes e socos, perdera os dentes da frente e mergulhara num ostracismo cruel: sem trabalho e sem amigos, quase não saía de casa. “Me penteava pela sombra, para não olhar no espelho. Minhas filhas pediam que eu ficas-se calada nas reuniões da escola.”

REGIANE MOTA

Me penteava pela sombra, sem espelho”

Ficar muda não era da minha personalidade. Voltei a falar”

LAURIETE MARTINS

Hoje estou livre, vivendo do meu jeito, com alegria”

RUTH OROZCO

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38 DEZEMBRO 2015

CLAUDIANE ROSA ÂNGELO

Um a um, meus dentes foram sendo arrancados”

LAURIETE MARTINS

“Ele bateu na minha cabeça com um martelo”

“Quando nos conhecemos, meu atual marido pensou ter causado uma péssima impressão em mim. É que eu estava monossilábica, sem olhar nos olhos dele nem sorrir. Era o meu jeito, eu dizia. Mas não era. Depois de muitas tentativas, ele matou a charada. ‘Você não fala co-migo porque não tem dentes.’ Era isso mesmo. Recuperá -los este ano foi essencial para minha autoesti-ma, mas não só. Passei também a mastigar a comida e, em menos de dois meses, emagreci 6 quilos. Isso ameniza minhas dores nos quadris.

A falha que eu tinha na arcada era só uma das marcas que meu primeiro marido deixou. Foram 26 anos de abusos constantes, se-guidos de ameaças de morte caso eu o denunciasse. Ele tinha um ciúme doentio, capaz de destruir a casa (e a mim) por um batom. Quando desenvolvi um câncer no útero, prestes a completar 40 anos, passei a recusá-lo na cama, o que o enfureceu. Ele dizia que eu estava dormindo com outros homens.

A pior surra foi planejada, com tapumes pregados nas janelas para que ninguém pudesse me socor-rer. Quando voltei do trabalho sem perceber a armadilha, me

“Meu pai era mau. Quando nasci, em Quipapá, no interior de Per-nambuco, impediu minha mãe de me alimentar. De tanto berrar de fome, chamei a atenção da vizi-nha, que implorou para cuidar de mim. ‘Joga num poço’, disse ele. Sobrevivi e, aos 5 anos, mudei com toda a família para São Paulo. Aos 14, meu pai me obrigou a casar com um homem muito mais velho.

Tive seis filhos com esse carras-co, sob pancadas e ameaças de mor-te. Ele me jogava na parede e eu rezava para não cair no chão, pois seria o meu fim. A irmã dele mo-rava ao lado e o incitava: ‘Mata ela, mata ela!’. Eu me defendia com pe-daços de madeira que usava no fo-gão a lenha. Saía de casa com meus filhos e caminhava quilômetros pa-ra fugir. Ele nos achava e mandava voltar, com o revólver na cintura.

No início de 2015, consegui provar as agressões e um oficial de Justiça o expulsou da minha casa. Me senti um bebê, nascendo de novo. Pulava de alegria. Quando fiz o tratamento, em setembro, chorei ao ver meus dentes no es-pelho. Pensava: ‘Meu Deus, será que morri ou estou sonhando?’.”

especialestava longe. Me defendia aos gritos e, uma vez, até com um cabo de vassoura. ‘Você se maquia demais’, disse a dona do local quando re-clamei dos abusos. Passei a andar suja, desarrumada. Ganhei algumas cáries e, assim, vi meu sorriso se esburacar. Fiquei sete anos traba-lhando como escrava. Consegui-mos sair depois de uma pequena greve, quando a oficina já se des-mantelava, após várias revoltas. Em 2015, ganhei minha nova dentição. Por causa da violência, nunca mais quis ter um patrão. Hoje traba-lho sozinha, costurando e dese-nhando roupas com meu estilo.”

“Saí da Bolívia com meu marido aos 21 anos rumo ao Brasil. A pro-posta parecia boa: trabalhar numa oficina de costura em São Paulo, terminar os estudos e ter mora-dia garantida. Era tudo mentira. Quando chegamos, o casal de bo-livianos que nos ‘contratou’ confis-cou nossos documentos, me colo-cou na cozinha e nunca nos pagou.

pois de muitos anos juntos, meu ex começou a beber. As brigas se tornaram frequentes e evoluíram para o físico. Meus dentes foram ficando frouxos e precisei arrancá-los, um por um. É ruim demais não ter vontade de levantar da cama e passar o dia em casa, sem forças. Já fui chamada de preguiçosa por isso.

Só acreditei que teria meu sorri-so de volta quando, três meses atrás, sentei na cadeira da dentista volun-tária. Não foi fácil. O molde inicial não encaixou, pois o osso do meu céu da boca estava todo quebra-do e foi preciso reconstruí-lo por inteiro. Passei por uma cirurgia, me alimentei de sopas e tive muita, muita dor. Mas tudo valeu a pena. Ainda estou desempregada e não vejo a hora de voltar a ser babá.”

RUTH OROZCO36 anos, costureira

LAURIETE MARTINS

62 anos, aposentada

As jornadas de trabalho duravam mais de 16 horas. Quando saía do fogão, me unia ao pessoal das má-quinas de costura. Engravidei da nossa primeira filha nesse ambiente e não tinha permissão para ir ao médico nem telefonar para minha família. Tentaram me estuprar mais de uma vez, quando meu marido

MARIA DO CARMO FERREIRA

66 anos, revendedora

Em 2015, nasci de novo. Chorei ao me ver no espelho”MARIA DO CARMO

atacou. Ele bateu na minha ca-beça com um martelo e tomou remédios para se suicidar. De-pois disso, consegui dar um bas-ta final. Ele passou os nove anos seguintes pedindo para voltar. Não quero nunca mais vê-lo.”

REGIANE MOTA

Agora, quero ajudar outras vítimas”

FOTO

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