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São Luís – MA, 25 a 28 de agosto 2009
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ESTADO, CULTURA E IDENTIDADE
Sergio F. Ferretti
Universidade Federal do Maranhão (UFMA) [email protected]
Roberto Malighetti
Università degli Studi di Milano Bicocca [email protected]
Antônio Albino Canelas Rubim Universidade Federal da Bahia (UFBA)
[email protected] RESUMO O conceito de cultura desde cedo tem sido muito analisado pelas Ciências Sociais e recebe sempre novos aportes, destacando-se entre outras as contribuições de C. Geertz, que propõe uma teoria interpretativa na análise de estruturas de significação ou de definição de códigos. O problema da identidade tem sido também largamente discutido nas ciências sociais contemporâneas, embora seja tema que irrompeu após as contribuições dos pais fundadores, mas continua sendo discutido em muitas áreas de conhecimento. É considerado tema exclusivamente teórico, mas continua importante e atual nas análises da sociedade. Segundo S. Hall o sujeito pós-moderno não tem uma identidade fixa ou permanente e as sociedades modernas são sociedades em mudança, em que há ao mesmo tempo valorização do local e do global. Identidade e cultura são conceitos interrelacionados embora haja autonomia entre ambos como destacou Fr. Barth. Identidade étnica constitui um dos aspectos mais estudados pelas ciências sociais. A presente mesa temática objetiva discutir relações entre Estado, cultura e identidade, relacionadas com patrimônio cultural, turismo, proteção do meio ambiente, etnia, multiculturalismo, religiões e culturas populares, cultura imaterial e outros temas correlatos. Propõe identificar e analisar propostas e resultados de políticas públicas relacionadas com a cultura e a sociedade hoje e no passado, enfatizando transformações e mudanças na produção, no consumo e na proteção da cultura, especialmente das culturas populares. Objetiva ainda analisar relações entre os campos de poder, de cultura e de identidade, com ênfase na produção simbólica dos diferentes agentes sociais. Objetiva igualmente debater conceitos de identidade cultural, seus usos políticos e sua centralidade no mundo atual, diante da globalização e do multiculturalismo.
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CULTURA POPULAR E PATRIMÔNIO IMATERIAL: o contexto do tambor de crioula do maranhão
Sergio F. Ferretti1
RESUMO
A comunicação propõe discutir cultura popular como patrimônio cultural no contexto atual das políticas públicas de cultura e suas aplicações no caso maranhense da dança do Tambor de Crioula. No passado as manifestações de cultura popular eram perseguidas e hoje são assumidas como patrimônio cultural do país. A dança do Tambor de Crioula quase não era conhecida e documentada até pouco tempo. Hoje é motivo de interesse de pesquisadores, fotógrafos, documentaristas, aparecendo em livros, artigos em jornais e revistas, dvds, cds, com a presença de numerosos grupos registrados em São Luís. Apresenta-se uma síntese sobre o conhecimento desta manifestação de cultura popular no passado e sua divulgação atual em função do interesse turístico-cultural e do apoio das políticas culturais. Palavras chave: Patrimônio Imaterial – Tambor de Crioula – Política Cultural
1 INTRODUÇÃO
Desde a década de 1970 a UNESCO passou a valorizar no plano internacional
as formas de patrimônio denominadas de cultura imaterial ligadas às culturas populares que
até então eram pouco apoiadas nas políticas de preservação do patrimônio, dedicadas
quase que exclusivamente às obras de arte e aos monumentos, na perspectiva do
predomínio do erudito sobre o popular. A partir dos anos de 1970 a UNESCO passou a
relacionar programas do patrimônio material e imaterial como constituindo dois aspectos do
patrimônio cultural, superando a dicotomia que vigorava anteriormente entre estes domínios
da cultura.
No Brasil os artigos 215 e 216 da Constituição Federal de 1988 estabeleceram
garantias para o exercício dos direitos culturais e incentivaram a valorização das
manifestações e dos bens culturais de natureza material e imaterial. Com a nova
Constituição o poder público foi encarregado assim de promover e proteger todo o
patrimônio cultural do país.
1 Professor Doutor Antropologia – UFMA. Email: [email protected]
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O registro de bens culturais de natureza imaterial, criado pelo Decreto nº
3.551/2000, define que o Estado passa a ter o compromisso de salvaguardar o
funcionamento de alguns destes bens, o que passa a ser feito a partir da preparação de
dossiês de registro que estimula a realização de trabalhos de pesquisa sobre bens culturais
para o melhor conhecimento destes e a elaboração de uma política de salvaguarda que
contribua para a sua preservação. A adoção desta política de registro de bens constitui,
contudo manifestação tardia tendo em vista que há muito o Estado vinha protegendo o
patrimônio de pedra e cal. Em decorrência disto a cultura imaterial ou cultura popular
permaneceu em segundo plano, em posição subalterna, sofrendo preconceitos e
discriminações, sendo muitas vezes perseguida pelas autoridades e ignorada pela mídia.
Assim o registro do patrimônio cultura imaterial representa o reconhecimento
pelo Estado da importância de determinadas manifestações como significativas e
representativas da identidade cultural brasileira, que passa a receber proteção e incentivo,
deixando de ser marginalizada ou perseguida como acontecia em passado recente.
Por outro lado sabemos que a expressão patrimônio imaterial, embora
consagrada internacionalmente, contem impropriedades, uma vez que toda cultura é em si
imaterial, impalpável, porem se exterioriza quase sempre em aspectos materiais. Nas
escavações arqueológicas, são encontrados restos de objetos materiais que se relacionam
com a cultura de uma determinada sociedade e de uma época. Estes objetos são vestígios
da cultura daquela sociedade desaparecida. A cultura em si é imaterial, mas sempre se
exterioriza em objetos materiais de cultura.
Nos manuais de antropologia os aspectos materiais da cultura são os
relacionados com a habitação, vestuário, alimentação, meios de transportes, ferramentas e
utensílios, cerâmica, tecelagem, metalurgia, etc. A cultura imaterial se relaciona com as
crenças, os conhecimentos, a religião, magia, mitologia, as formas de organização social,
política, a linguagem, etc. Assim a chamada cultura popular que está sendo agora incluída
como patrimônio imaterial, como toda cultura, possui elementos tanto materiais quanto
imateriais, mas passa a ser resgatada como patrimônio imaterial de cultura.
A ênfase no patrimônio imaterial para se referir a manifestações da cultura
popular decorre do fato de tradicionalmente os aspectos materiais da cultura terem sido
mais valorizados como objetos de cultura e considerados dignos de preservação. O
patrimônio dito de pedra e cal, os monumentos históricos e artísticos tradicionalmente foram
considerados representativos de nossa identidade cultural, o que passou a ocorrer desde
fins da década de 1930 no Brasil. Hoje surge a preocupação de preservar e valorizar a
cultura popular denominada de patrimônio imaterial. Mas constamos que este conceito é
ambíguo, pois, como vimos, todo patrimônio cultural tem aspectos materiais e imateriais.
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O registro e a salvaguarda dos bens da cultura imaterial exigem que sejam
realizados estudos e pesquisas etnográficas sobre os mesmos, num esforço de
documentação a respeito de aspectos da cultura muitos dos quais são ainda pouco
conhecidos e estudados. A preservação destes bens exige igualmente que sejam
desenvolvidas políticas públicas relativas aos mesmos. Diversos trabalhos têm constatado
que estes bens culturais vivos possuem valor econômico e podem contribuir para melhorar
as condições de sobrevivência de numerosas populações. Este é um dos pontos chaves da
questão uma vez que os produtores e guardiões desta chamada cultura imaterial são
membros das classes desfavorecidas, com inúmeras necessidades básicas não atendidas
em nossa sociedade.
2 TAMBOR DE CRIOULA E SEU REGISTRO COMO PATRIMÔNIO IMATERIAL
Em Junho de 2007 a manifestação cultural conhecida como Tambor de Crioula
do Maranhão foi anotada no Livro de Registro das Formas de Expressão do IPHAN, a
exemplo do que já havia ocorrido antes com o jongo no Rio de Janeiro e com o samba de
roda do Recôncavo Baiano. O registro foi aprovado em reunião do Conselho Consultivo do
IPHAN realizada na Casa das Minas em São Luís e presidida pelo Ministro da Cultura
Gilberto Gil, após a leitura de parecer do historiador Ulpiano Bezerra de Menezes.
O tambor de crioula é uma dança de umbigada que com este nome só é
conhecida no Maranhão. É uma forma popular de divertimento e de pagamento de
promessa por uma graça alcançada ou em agradecimento a um santo ou entidade
sobrenatural.
O tambor de crioula é participado, sobretudo por afro-descendentes,
pertencentes às camadas sociais de baixa renda, muitos sendo empregadas domésticas ou
trabalhadores braçais. No Maranhão, como em muitas outras regiões, até pouco tempo
eram poucas as pessoas que se interessavam pela cultura popular.
Durante o século XIX e até cerca de meados do século XX as manifestações
culturais dos escravos e dos negros eram apenas toleradas pelas classes dominantes e as
poucas referências que nos chegaram sobre elas foram quase sempre relatadas nas
colunas policiais. Segundo vários autores as danças de umbigadas eram vistas e
estimuladas no passado como danças sensuais que poderiam contribuir para o aumento do
número de escravos.
A partir de meados da década de 1830 os Códigos de Posturas Municipais de
São Luís e outras cidades do Maranhão, passaram a proibir batuques de negros por receio
de que perturbassem a ordem pública. Na literatura maranhense do século XIX aparecem
poucos informes sobre o tambor de crioula, como as poesias de Trajano Galvão e de Celso
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de Magalhães nas décadas de 1860/1870 que, entretanto demonstravam conhecimentos
vagos, preconceituosos e errôneos.
Em 1938 a Missão de Pesquisas Folclóricas, organizada por Mário de Andrade,
através o Departamento de Cultura da Prefeitura Municipal de São Paulo, viajou pelo
Nordeste passando cinco dias em São Luís. Documentou apresentações de tambor de
mina, tambor de crioula, bumba-meu-boi e carimbó, coletando com precisão e rigor, letras
de músicas, realizado gravações, filmagens e tirando fotos. Na época o tambor de mina e o
tambor de crioula eram desconhecidos pelos estudiosos e foram considerados como dança
de feitiçaria. Após a morte de Mario de Andrade, os cânticos coletados foram publicados em
1948 por Oneyda Alvarenga. Este material de divulgação restrita, mas de grande interesse,
durante mais de trinta anos constituiu quase que a única documentação que se tinha sobre
tambor de crioula.
Em fins da década de 1950 o folclorista Edson Carneiro, estudando o samba no
Brasil considerou o tambor de crioula como variedade do samba de umbigada que existia
em vários estados como Pará, Bahia, Rio de Janeiro, São Paulo e outros, constatando que a
umbigada é uma forma de convite à dança. No Maranhão a umbigada é conhecida como
punga, sendo também uma forma de interação entre os participantes. Entre as décadas de
1950 a 1980 o folclorista Domingos Vieira Filho publicou comentários sobre o assunto.
Quarenta anos após a Missão de Pesquisas Folclóricas, havia ainda pouca coisa publicada
sobre tambor de crioula. Afirmava-se que era afinado ao fogo, tocado a murro, dançado a
coice (Vieira Filho, 1977: 21). Alguns afirmavam que era uma dança profana em que se
cantavam palavras sem nexo.
Em 1977/78, uma equipe da Fundação Cultural do Maranhão orientada por
Domingos Vieira Filho e interessada na cultura popular, realizou pesquisa sobre o Tambor
de Crioula, com apoio da Funarte cujo relatório foi publicado em 1979 pelo Serviço de Obras
Gráficas do Estado (SIOGE). Em 1981 foi publicada uma edição resumida no número 31
dos Cadernos do Instituto Nacional de Folclore INF/FUNARTE/MEC, junto com um disco
compacto, na Coleção de Documentário Sonoro do Folclore Brasileiro da Comissão
Brasileira de Defesa do Folclore. Este trabalho publicado em novas edições revistas em
1995 e em 2002 (Ferretti: 2002), com o apoio da Secretaria de Estado da Cultura e da
Comissão Maranhense de Folclore, por muito tempo foi o principal estudo realizado até
então sobre o tambor de crioula, manifestação cultural que hoje desperta grande interesse e
sobre a qual começam a surgir monografias, dissertações, livros e artigos diversos.
Atualmente o IPHAN tem realizado pesquisas e está divulgando material sobre o tambor de
crioula, em cumprimento ao plano de salvaguarda dos bens registrados.
O tambor de crioula não possui formas fixas de apresentação, sendo realizado
com dança livre e informal sem coreografia rígida. Geralmente mulheres dançam e homens
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tocam e cantam. O grupo de brincantes é composto por número variado de coreiras,
mulheres adultas, muitas idosas e às vezes por algumas crianças. Cada uma saúda os
instrumentos e passa a rodopiar no centro da roda, depois, com uma punga ou umbigada,
convida uma companheira para substituí-la. As mulheres usam saias rodadas de chita
colorida e se enfeitam com bijuterias e muitas dançam descalças. Nas apresentações para
turistas, freqüentes nos últimos anos, é comum mulheres usarem saias da mesma cor, os
homens camisa com o tecido das saias das mulheres e a inclusão de jovens e meninas
pequenas.
Ao lado das mulheres um grupo de homens, denominados coreiros, canta e toca
os tambores. O conjunto de instrumentos é chamado parelha e consta de três tambores,
conhecidos como grande, meião e crivador, que também possuem outros nomes. São
confeccionados em madeira (principalmente de mangue, ou sororó), escavados com formão
e recobertos em uma das extremidades por couro (de boi, cavalo ou veado), fixado com
cravelhas e correias de couro. Alguns utilizam tambores de cano de plástico PVC, por serem
mais fáceis de fabricar e mais leves para transportar, havendo porem controvérsias quanto à
qualidade de sua utilização.
Um elemento que não pode faltar nas festas é a bebida, cachaça para os
homens e outra mais suave para as mulheres, sendo comum se afirmar que sem bebida não
há tambor de crioula. Em alguns toques, sobretudo nas apresentações em terreiros,
mulheres podem entrar em transe ao som dos tambores, o que não ocorre na maioria das
apresentações. As festas nas zonas rurais e nos bairros da cidade costumam durar a noite
inteira, das dez da noite às sete da manhã, enquanto as apresentações para turistas não
duram mais do que uma hora. Alguns tocadores são reconhecidos como grandes mestres
de tambor de crioula como os falecidos Leonardo, Felipe e muitos outros.
Em algumas casas de culto afro da região, denominadas de tambor de mina, é
comum a realização de festas com a presença de tambor de crioula, oferecido a entidades
que apreciam esta brincadeira. O tambor de crioula é considerado uma dança sob a
proteção de São Benedito, que no tambor de mina é sincretizado com a entidade daomena
Averequete, muito popular no tambor de mina.
Há variações regionais na forma e tamanho dos instrumentos, no ritmo dos
toques, nos cânticos e nas danças. Em alguns interiores os homens costumam acompanhar
a dança com movimentos do corpo ou com uma espécie de pernada ou rasteira. Em
determinados locais ocorrem apresentações de tambor de crioula no cemitério em
homenagem a um morto ou no dia de finados.
No passado, quando era menos conhecido, afirmava-se que as letras dos
cânticos era um aglomerado de palavras enroladas e sem nexo. Hoje, após pesquisas
realizadas, se constata que há poesia e sentido nas palavras dos cânticos do tambor de
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crioula, que podem ser classificados em diferentes temas como auto-apresentação;
saudações; cumprimentos; auto-elogio; reverências a santos ou entidades protetoras;
descrição de fatos; recordação de situações, pessoas e lugares; sátiras; referências
amorosas; desafios; despedidas, etc.
A música do tambor de crioula se relaciona com a música do bumba-meu-boi e
com o samba de carnaval do Maranhão, pois muitos cantadores e tocadores participam
ativamente destas outras manifestações da cultura popular, deixando transparecer algo de
umas sobre as outras, no ritmo, na melodia e nos instrumentos. As letras dos versos podem
se referir ao turismo, ao gravador, à televisão, mas um bom tocador é sempre o que toca
mais tradicionalmente preservando maior fidelidade às raízes mais antigas. É, sobretudo na
música que se revela a originalidade dos grupos de tambor de crioula, pois possibilita uma
participação coletiva muito intensa e permite o destaque de indivíduos nos improvisos das
letras. Na música pode-se perceber que os participantes sentem orgulho de sua auto-
realização por terem consciência de que estão fazendo bem feito aquilo que só eles sabem
e podem fazer corretamente.
O turismo contribuiu para desenvolver grande interesse pelo tambor de crioula e
não fez desaparecerem suas características rituais e religiosas. A partir da década de 1990
e na atual, surgiram outros estudos sobre o tambor de crioula, que passou a interessar
estudantes, pesquisadores e o público mais amplo. Em fins da década de 1970 havia em
São Luís menos de 20 grupos conhecidos e hoje há cerca de 80 grupos cadastrados.
Nos últimos anos tem havido grande interesse pelo estudo de diferentes
aspectos do tambor de crioula. Podemos destacar entre outros pelas possíveis relações
com a luta da capoeira, pelos elementos eróticos e sexuais da dança, por características
especificamente religiosas, pela musicalidade, pela diversidade nas diferentes regiões,
como exemplo de resistência cultural e preservação da identidade, pelas relações com o
turismo, com as políticas culturais, com atividades educacionais, com questões de gênero,
com sua difusão e com outros temas.
3 POLÍTICA DE SALVAGUARDA DO TAMBOR DE CRIOULA
Na 32ª Conferência da UNESCO realizada em Paris em 2003 foi aprovado um
projeto de convenção internacional para a salvaguarda do patrimônio cultural imaterial da
humanidade. Esse projeto define entre outros itens, a concepção de “salvaguarda”, “que
compreende ações de ‘identificação, documentação, pesquisa, preservação, proteção,
promoção, valorização e transmissão desse patrimônio” (Londres, 2004: 12)
O tambor de crioula, como manifestação cultural que até pouco tempo era
marginalizada na cultura maranhense, passou a receber reconhecimento público oficial.
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Uma das diretrizes do Programa Nacional de Patrimônio Imaterial (PNPI) do MINC, instituído
pelo Decreto 5.551 prevê a inclusão social e a melhoria das condições de vida dos
produtores e detentores do patrimônio imaterial, bem como promover a salvaguarda de bens
culturais imateriais. Esperamos que estas e outras diretrizes do PNPI sejam postas em
prática o quanto antes e resultem em melhoria das condições de vida os produtores deste
patrimônio. A outorga pela UNESCO do título de Patrimônio da Humanidade à cidade de
São Luís em 1997, o incentivo ao turismo e as atividades da cultura popular se refletem
também no atual crescimento do interesse pelo tambor de crioula.
O tambor de crioula pode ser considerado como um dos elementos
componentes da identidade maranhense, juntamente com o bumba-meu-boi, com o tambor
de mina e outras manifestações culturais de origens africanas, como o heggae que tornou
São Luís conhecida como a Jamaica Brasileira. Esta identidade se apóia igualmente em
elementos culturais de outras procedências como a poesia e a literatura, a publicação de
grande número de obras literárias e o orgulho de falar corretamente a língua portuguesa e
de ser considerada a Atenas Brasileira. Tudo isto faz parte do que pode ser chamado de
maranhensidade, que começa a ser constatada atualmente, sendo intensificado com o título
atribuído à São Luís de Patrimônio da Humanidade.
Como diz Milton Moura “a identidade é uma invenção. Nuca é uma certeza dada,
nem resulta simplesmente de um traço do fenótipo, ou seja, da aparência” (Moura: 2005:
89). Segundo Antônio Evaldo Almeida (2007) desde os anos de 1940-50 alguns intelectuais
maranhenses começaram a identificar a festa e elementos das culturas populares e negra
como constitutivos da identidade maranhense. Evaldo lembra a esse respeito que, em 1962
a cultura popular foi incluída como uma das grandes atrações na semana comemorativa dos
350 anos de fundação da cidade de São Luís. As características da maranhensidade
precisam ser investigadas, mas um de seus componentes certamente é o interesse pelas
festas e pelas brincadeiras, entre as quais se destaca o tambor de crioula, junto com o
bumba-meu-boi, a festa do Divino e muitas outras manifestações populares.
Desde o registro como patrimônio imaterial da cultura brasileira em 2007, o
IPHAN tem se preocupado com a salvaguarda do Tambor de Crioula. Foi nomeado um
Conselho Gestor do Plano de Salvaguarda do Tambor de Crioula com a participação de
funcionários e técnicos do IPHAN, da Secretaria de Cultura do Estado e do Município, da
Comissão Maranhense de Folclore e representantes dos Grupos de Tambor de Crioula.
Existe a possibilidade do MINC fornecer recursos substanciais a serem destinados à
salvaguarda, proteção e apoio ao Tambor de Crioula sendo que este Conselho Gestor terá a
incumbência de supervisionar a aplicação destes recursos.
A concretização deste apoio tem se mostrado, entretanto bastante problemática
e difícil de ser executada. O MINC tem uma série de exigências para liberação destes
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recursos, como não pode deixar de ser. Os líderes dos grupos de tambor de crioula não tem
se entendido quanto ao que deva ser feito com os recursos prometidos e não têm
demonstrado capacidade técnica de gerir estes recursos. Com isso até hoje os recursos não
foram liberados. Os membros dos grupos reclamam da falta de apoio das autoridades e as
autoridades reclamam da falta de competência dos produtores da cultura popular.
A diversidade do tambor de crioula nas diferentes regiões do Estado é ainda
pouco conhecida e corre o risco de ir desaparecendo com a difusão do modelo seguido na
capital. Existe a propenção dos grupos irem se organizando em função das apresentações
para os turistas, e preocupa a tendência a uma proliferação um tanto artificial do número de
grupos com expectativas de conseguir apoio junto aos órgãos governamentais. Apesar
destes e de outros riscos a criatividade e a força da cultura do povo do Maranhão constitui o
grande responsável pela continuidade desta manifestação cultural. Esperamos que ela
continue tedno condições de resistência.
4 CONCLUSÕES
Em instigante artigo o antropólogo José Jorge de Carvalho (2004, p. 65 e segs)
denuncia e chama atenção para a hipertrofia do entretenimento na indústria cultural na
época contemporânea e a conseqüente espetacularização das artes populares em função
da atual política do estado brasileiro de apoiar e incentivar a exploração comercial das
formas artísticas tradicionais. Constata que com o crescimento da indústria cultural do
exótico aprofundou-se o lugar do pesquisador como mediador do consumo cultural. Afirma
que (CARVALHO, 2004, p.69): “A partir dos anos 80, [...] os pesquisadores de música,
dança e teatro popular, começaram cada vez mais a tornar-se mediadores da
mercantilização da arte dos pesquisados”. Continua adiante:
Enquanto um coreógrafo do eixo Rio-São Paulo pode ‘antropofagiamente’ apropriar-se de um determinado saber performático de um tambor-de-crioula do Maranhão, por exemplo, nenhum artista desse tambor de crioula pode exercer esse mesmo canibalismo cultural sobre um grupo de dança ‘erudita’ que se apresenta no Teatro Municipal do Rio de Janeiro e que é apoiado, digamos, por uma subvenção anual milionária concedida pelo Banco Itaú para que possa realizar seus exercícios de antropofagia estética. (CARVALHO, 2004, p. 69).
Entre outras interessantes idéias, José Jorge constata também que a grande
maioria das artes performáticas do patrimônio da cultura imaterial brasileira é de origem
africana, praticada por artistas negros e que os pesquisadores e formadores de políticas de
patrimônio são majoritariamente brancos.
Em relação ao papel atual assumido pelos pesquisadores, constatamos que no
Maranhão algumas estudantes mulheres passaram a assumir funções que anteriormente só
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eram assumidas por homens como as do personagem cazumba em grupos de bumba-meu-
boi e outras passam a dançar em grupos de tambor de crioula com gestos e passos
diferentes dos que eram usados nos grupos. Estas interferências acarretam modificações.
Essas estudantes pesquisadoras, muitas vezes por serem coreógrafas participam nos
grupos por estarem interessadas em aprender e levar a manifestação para outros
ambientes.
Constatamos também que atualmente o protestantismo de tipo fundamentalista e
intransigente está se difundindo largamente nas camadas populares em todo o país. Esse
protestantismo pentecostal passa a demonizar e perseguir manifestações religiosas e
culturais de origens afro-brasileiras e difundir um estio de vida individualista, típico da
sociedade norte-americana. Prega que o indivíduo deve fazer tudo para vencer na vida e
para isso deve se afastar de manifestações culturais anteriores que são consideradas
demoníacas. Com a difusão desta ideologia nas camadas populares, tradições culturais
anteriores são abandonadas e trocadas por um novo estilo de vida culturalmente
empobrecido.
Consideramos importante chamar atenção, como faz Jorge Carvalho, para a
atual tendência à hipertrofia do entretenimento, a espetacularização das artes populares e à
política de incentivo a exploração comercial da cultura popular. É importante igualmente
denunciar os novos tipos de etnocentrismo decorrente do fundamentalismo religioso. Estes
e outros fatores que estão inter-relacionados contribuem certamente para provocar grandes
alterações no panorama da produção e do consumo da cultura popular.
As políticas públicas de cultura refletem as relações entre o campo de poder e o
campo da cultura. Se por um lado a tendência atual a valorizar a cultura popular é
expressiva e importante, por outro lado há muitos riscos envolvidos relacionados com esta
valorização, tendo em vista os múltiplos e complexos aspectos envolvidos na produção
simbólica da cultura popular. Parece lamentável que justamente quando políticas públicas
tardiamente iniciam a defesa de determinadas manifestações da cultura popular, surjam
outros entraves e ameaças ao seu funcionamento que vão exigir dos produtores da cultura
popular a produção de novas formas de resistência cultural.
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ARENAS IDENTITÁRIAS E CIDADANIA: políticas e práticas do confronto
Roberto Malighetti2
RESUMO
O texto analisa comparativamente a articulação entre políticas públicas, concepções da cidadania, identidades, experiências diaspóricas e migratórias. De um lado considera como o Estado-Nação procura resistir á erosão da sua legitimidade com fragmentarias políticas multiculturais que fagocitam as contradições políticas e econômicas estruturais. Agindo seletivamente sobre os mecanismos identitarios, a ideologia e as praticas do multiculturalismo promovem ações especiais e emergenciais que superam o Direito e alimentam a contraposições entre os grupos que instituicionalizam. Doutro lado o artigo examina como nos contextos híbridos contemporâneos diferentes perspectivas "por baixo" elaboram ações de mudança social, cultural, econômica e política, que fogem aos mecanismos dos integralismos identitarios e inauguram novas formas dialógicas para pensar os direitos e as cidadanias. Palavras chaves: Multiculturalismo, identitade, cidadania, nacionalismo, transnacionalismo, cosmpolitismo.
ABSTRACT
The paper analyzes comparatively the relations among public policies, conceptions of citizenship, identity, culture, diasporic and migratory experiences. On the one hand it considers how the Nation-State tries to resist to the constant erosion of its legitimacy by adopting fragmentary multicultural policies which mystify the economical and political contradictions. Acting selectively on the identitarian mechanisms, the ideologies and practices of multiculturalism promote special actions and emergency enterprises which bypass the systems of right and support the contrapositions among the groups which they institutionalize. On the other hand, the text examines the ways in which different grass root perspectives elaborate social, cultural, economic and political actions which go over the identitary essentialisms and inaugurate new dialogical forms to negotiate rights and citizenships. Key words: Multiculturalism, identity, citizenship, nationalism, transnationalism, cosmopolitism
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1 INTRODUÇÃO
Permitam-me de articular o discurso a partir de um princípio de Caius Julius
Caesar – divide et impera – notório a todos, mas, precisamente porque noto, não conhecido
segundo a advertência que Hegel pôs como fundamento da fenomenologia do saber
(HEGEL, 1807). Começo, então, com a consideração que as políticas identitárias, pela sua
natureza, são coerentes e coludem com as estratégias conservadoras inauguradas pelo
senado romano para promover – através da emissão seletiva de privilégios - a adesão à
política imperial e evitar a coalizão e a rebelião dos povos subjugados.
Na contemporaneidade as reivindicações de identidade são utilizadas pelas
lógicas da integração nacional, através da ideologia e das práticas do multiculturalismo, em
suas diversas configurações. Usando a identidade como uma tecnologia de poder, entregam
os conflitos sociais ao poder centralizado do Estado. Nesse sentido reproduzem os
dispositivos do racismo, inscritos por Foucault, nos mecanismos estatais. A fragmentação
identitária, como a hierarquia racial, revela-se um instrumento do biopoder para exercer uma
soberania eugênica sobre a ordem social, contrastando as ameaças externas ou internas e
a mudança. Em ambos os casos os programas de solução final do genocídio racial
(FOUCAULT, 1975-1976; 1976) ou da limpeza étnica, neutralizam as contradições sócio-
políticas e econômicas.
2 O TRAGICO OXIMORO
O multiculturalismo mostra-se como a maneira pela qual o Estado descreve e
pensa a si mesmo, uma manifestação da reação contemporânea à sua deslegitimação neo-
liberista e aos perigos de erosão da hegemonia das classes dominantes. Resolve-se, assim,
na sua contradição, desvelando-se como o lado escuro da monocultura: combina a
homogenização com a organização vertical da sociedade de acordo com os modelos
segmentários (EVANS-PRITCHARD, 1940; SAHLINS, 1961): a alteridade assume na
contingência a específica função significativa (DUMONT, 1980) de "oposição
complementar", identificada transitoriamente no interno da comunidade ou externamente,
segundo os interesses e as necessidades integrativas nacionais.
As políticas multiculturais fagocitam as lutas pelo reconhecimento dos direitos
agindo seletivamente sobre os mecanismos autogênico e alogênico e mistificando as
diferenças políticas e econômicas estruturais. Pensando a sociedade como um mosaico de
monoculturas minoritárias homogêneas com confins bem definidos, em relação a uma
monocultura dominante igualmente fechada, essencializam a mútua distinção e a
consistência interna, construída, alternativamente, acerca de variáveis culturais,
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genealógicas, territoriais, religiosas, linguísticas ou raciais. As lógicas multiculturais
configuram as políticas identitárias segundo estratégias que assumem – maquiavelicamente
- as figuras contrastiva do fechamento e da ameaça. Envolvem diversos métodos catárticos
que purificam do sujo interno e da contaminação externa (DOUGLAS, 1966) e exercem a
violência contra as ligações e o fluxo temporal. A dominação e a desigualdade são
atribuídas à naturalização do próprio critério de diferenciação. A afirmação de um núcleo
substancial subtrai os direitos, os privilégios, as prerrogativas, as conquistas, o território do
idem, das possibilidades de discussão, de negociação e, portanto, de alteração. Ao mesmo
tempo, a construção do alter como ameaça à sua própria indiscutibilidade e inalterabilidade,
torna insuportável qualquer pequena alteração da integridade. A fragilidade estrutural da
identidade inexoravelmente desliza da defesa ao ataque e transforma o outro em um inimigo
da eliminar: o "fim" do outro é a conclusão contida, desde o início, na dialética da identidade
(REMOTTI, 1995).
A violência é o processo que gera as identidades compactas, mediante a
inscrição dos confins (BOWMAN, 2001). Não sendo uma performance em que uma
entidade compacta viola a integridade de outra, representa, mais, a maneira para impor os
modelos ideais de uniformidade sobre realidades sociais e estruturas em constantes
alteração. A violência estrutural (FARMER, 2003) é uma técnica para "imaginar uma
comunidade" (ANDERSON, 1983). Permite de identificar concretamente as abstratas
categoriais étnicas, atribuídas tanto a um “nós” a preservar quanto a um ”outro” a pseudo-
especificar (ERIKSON, 1966) subtraindo a humanidade, ou, nos freqüentes casos
dramáticos, a presentificar através de mutilações físicas e corporais (HAYDEN, 1996;
APPADURAI, 1998).
A limpeza étnica atravessou a história da humanidade, assumindo, como
processo de normalização, várias formas3. Nas áreas onde o grupo dominante constitui uma
maioria, pode ser conseguida através de medidas legais e administrativas, tais como a
recusa dos pedidos de cidadania a pessoas que não fazem parte do grupo selecionado ou
não querem ser assimilados. Nos outros casos mais complexos a uniformização exige
medidas mais drásticas: a expulsão física a remoção ou o extermínio dos grupos pré-
existentes ou das minorias4.
3 Formas de violência intransitivas que operam conceitualmente antes de manifestar-se na ação,
estão presentes em cada instituição patrocinadora de fronteiras identitárias (Bowman 2001). Materializam-se em maneiras difusas de exclusão social, desumanização, despersonalização, pseudo-especiação e reificação, que normalizam o comportamento brutal e a violência contra os outros. Está presente também nas políticas repressivas das instituições totais – através modalidades que Basaglia chame de "crimes da Paz" (BASAGLIA, ONGARO BASAGLIA, 1975) - que apagam a dignidade dos indivíduos identificados como não-pessoas (SCHEPER-HUGHES, 1997).
4 Baumann (1989) relaciona o genocídio com um determinado estágio da formação do Estado.
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As culturas, construídas como entidades fixas, sem história e impermeável, são
forçadas – como também as suas disciplinas e, em primeiro lugar, a antropologia5 - dentro
dos espaços discursivos do racismo contra o qual foram originalmente concebidas. Essas
doutrinas, que Taguieff chama de "racismo diferencial" (TAGUIEFF, 1988), reificam as
diferenças culturais identificando organicamente as identidades em termos irredutíveis e
incomensuráveis. Interpreta os conflitos sociais entre membros de culturas diferentes como
produtos de uma natural xenofobia que impõe a defesa de cada cultura, separadas para seu
próprio bem e protegida pelo Estado da mestiçagem da sua original autenticidade e pureza
biocultural. O modelo lembra a lógica do sistema de segregação racial sul africano, onde
estudiosos da tradição volkekunde forneceram a base ideológica para o regime do
apartheid. Utilizando as ferramentas da antropologia que foram desenvolvidos na época
colonial, o government anhtropologists e os ideólogos do Partido Nacional - reunidos no
Ministério da Cooperação e Desenvolvimento – viram na divisão do país em comunidades
étnicas, concebidas como "ontical, human social units" (COERTZE, 1978), o respeito pelas
diferentes tradições culturais locais, preservadas em suas purezas e longe das
possibilidades de contaminações (GRILLO, REW, 1985; MALIGHETTI, 2001).
O multiculturalismo constrange as relações entre os componentes sociais dentro
da dicotomia assimétrica cultura hegemônica/culturas subalternas e através dos conceitos
de minoria, de transitoriedade, de emergência. Expulsam as dimensões das articulações
internas, consideradas, no máximo, como efeitos das ações de entes patogênicos externos,
como a imigração, mas, curiosamente, não a globalização, vista como fenômeno evolutivo e,
portanto, interno. Exclue, também, a possibilidade de articular as diferenças segundo
perspectivas complexas (classe, gênero, status, função, idade, etc.), reconhecendo as
diversidades só nos termos unívocos que são institucionalizados pelos nichos criados pelo
multiculturalismo: a identidade cultural uniforme é o pré-requisito fundamental para o
reconhecimento social e político e o eventual acesso à cidadania.
A articulação dos grupos com base nos sentimentos primordiais de pertença,
não constitui, portanto, um obstáculo para a modernização do Estado. Pelo contrario, é
estruturalmente coerente com a construção do domínio e a necessidade de controle e de
formação de lealdades por parte do Estado-nação moderno, contra os elementos críticos
que o atravessam (STOLCKE, 1995; APPADURAI, 1996). Os estados coloniais e pós-
coloniais têm produzido novos grupos sociais, identificando-os por sua origem étnica,
religiosa ou territorial, por razões de indirect rule através de mecanismos de cooptação das
lideranças étnicas. Assim o sistema colonial britânico inventou as tribos em África - sobre a
base do modelo europeu do Estado-nação (SOUTHALL, 1970) – colocando-as umas contra
outras através da concessão seletiva de privilégios: limito-me a mencionar os casos Hutu e 5De particular interesse são as obras sobre o apoio das ciências sociais aos programas nazistas e
dos regimes totalitários (DOW, LIXFELD, 1994; CONTE, ESSNER, 1995; SHAFF, 2002)
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Tutsi em Ruanda Burundi, Lou e Kikuyu em Kenya na revolta Mau Mau, a separação entre o
Cingalês e Tâmil em Sri Lanka a partir das leis especiais britânicas em favor de uma elite
anglofona. Coisas semelhantes pode-se dizer sobre a auto-identificação da população
indiana como hindu, muçulmana ou sikh, provocada pelo recenseamento inglês, o sobre
muitos outros casos, como os maronitas no Líbano, os coptas do Egipto, os moluccani das
Índias Holandesas Orientais, a Karen da Birmânia.
Os separatismos étnicos saem da identidade étnica, racial ou religiosa para
reivindicar para si o poder do Estado (KALDOR, 1999). A força deste processo pode
manifestar-se na capacidade das comunidades étnicas imaginárias (ANDERSON, 1983) de
desmantelar as comunidades existentes e substituí-las por novas. O caso Iugoslavo exprime
o papel crucial do nationalism from the top down (ZIMMERMANN, 1995) baseado na
ideologia de agregação estatal sobre uma base étnica6. As políticas nacionalistas da
Jugoslávia nos anos oitenta e noventa fragmentaram os territórios que eram habitados por
diferentes concentrações de grupos que coexistiam intimamente ligados7, em diferentes
nações, governadas pelos membros da nação majoritária. Determinaram uma situação de
conflito por causa das específicas escolhas políticas feitas a partir “de cima”, utilizando
elementos culturais como suporte ideológico para a criação de uma unidade específica em
torno de interesses políticos ou econômicos. Foi necessária a propaganda do sérvio
Slobodan Milosevic para convencer que os croatas eram todos ustasha cripto-nazistas, e o
croata Franjo Tudman para considerar todos os sérvios como assassinos cetnicos, bem
como acreditar que os muçulmanos bosníacos eram a vanguarda de uma nova ameaça
islâmica.
As metafísicas da identidade que juntam patriotismo, xenofobia, etnicismo e,
militarismo, atravessam não só os idiomas dos poderes políticos ocidentais ou dos novos
estados independentes, mas também das forças progressistas e das reivindicações
identitárias de vários movimentos contemporâneos. Os discursos do "populismo autoritário"
(HALL, 1985) dos políticos ocidentais (Enoch Powell, Le Pen, Umberto Bossi, Herder, Bush
etc.) utilizam a consciência nacional como último recurso para sustentar a identificação com
o poder e para construir lealdades incondicionais contra as contaminações dos imigrantes e
dos desviantes. Para se manter fiel à idéia vertical da identidade nacional, os governos
engendram uma densa rede de leis especiais para as minorias. Fundada no pressuposto de
6 Na América do Norte e na Europa como na ex-Jugoslávia, a limpeza étnica é o ato fundador de
diversas realidades estatais, especialmente para a reconstrução da realidade social após as guerras e alcançar consenso político: a Polônia em 1945 expulsou 6 milhões de alemães e mais 3 milhões de judeus entre 1939 e 1946 foram deportados para os campos de concentração ou assassinados; a Tchecoslováquia, sempre em 1945, expulsou 3 milhões de alemães (HAYDEN, 1996).
7 A véspera da explosão da violência na ex-Iugoslávia os níveis de heterogeneidade nacional eram foram em constante aumento por número de casamentos mistos e nascimentos de crianças com pais mistos, identificações como iugoslavo e não como pertencentes a grupos minoritários ou etno-nacionais (HAYDEN, 1996).
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que as políticas para estes grupos são específicas, separadas dos problemas dos cidadãos
do Estado, projetam, assim, o alieno fora dos conceitos de nação e da comunidade8.
A linguagem dos protagonistas dos movimentos de liberação e dos líderes da
pós-independência (Hailè Selassie, Sukarno, Kenyatta, Nehru, Nasser, Idi Amin Dada,
Kadhafi, Siad Barre etc.) renovavam - como avisou Franz Fanon (SAID, 1993 pp. 295-309) a
propósito dos perigos inerentes ao fetichismo das identidades petrificadas - novas formas de
imperialismo e de opressão, exercidas diretamente pelas elites coloniais e pelos novos
grupos dominantes. Combinavam os irrealizáveis projetos de modernização com
reivindicações de identidades primordiais, baseadas sobre uma mimcry (BHABHA, 1994)
que reproduz as rígidas estruturas binárias do pensamento colonial. Em África o
nacionalismo dos novos estados independentes, apoiado por aquela que Appiah chama
intelligentsia compradora, enquanto mediadora do comércio cultural com a Europa (APPIAH,
1991), reduziu a Negritude numa expressão biológico-natural de um ethos transcendente. O
privilegio da ideologia primordialista de Senghor contra as complexas concepções de
Césaire e Fanon foi funcional para esconder os violentos conflitos sociais internos.
De outro lado, as diferentes conformações daquilo que Spivak define
essencialismo estratégico, em vez de criar um cavalo de Tróia progressista apto a abrir
espaços para a participação política e civil, coludem com as lógicas reacionárias,
homogeneizantes e contrastivas, sustentando-as. Incluídas em um quadro fenomenológico
como "erro necessário" para conseguir o reconhecimento dos direitos civis e políticos, as
diversas "ações afirmativas" e "positivas" ou, como são chamadas, talvez em modo melhor,
"discriminações positivas", são suscetíveis de alimentar formas de racismo diferencial
(TAGUIEFF, 1988), de absolutismo étnico (GILROY, 1993) ou de identidade tribal
(CLIFFORD, 1997). Defendendo a sedução nativista em uma suposta pureza racial ou
étnica, natural e originária, realizam um congelamento metonímico (APPADURAI, 1996),
que circunscreve as identidades dos indivíduos e dos grupos nos espaços a que são
constringidos, quase sempre, por poderes alógenos. Legitimam o uso de categorias políticas
e de disciplinas – como a raça e as ideologias raciais – negadas pela história antes que pela
ciência. Sobretudo, não conseguem os objetivos de reforçar os sujeitos mais fracos, por
quem estão dispostos a correr perigos muito graves e restituir a um antigo e obscuro
passado – politicamente muito embaraçoso - ciências como a antropologia. Pelo contrário
sustentam formas de subordinação e de exclusão organizadas e contidas dentro dos
dispositivos verticais que neutralizam, fragmentando-a, a possibilidade de lutas e
solidariedades horizontais entre as diferentes categorias de excluídos. Na Índia, as quotas
8 Recordam o sistema colonial holandês no Suriname que tinha pensado a sociedade do como uma
plural society, baseada em uma legislação oligárquica que identificava em termos étnico-racial rígidos e fixos os sujeitos, submetendo-os a um código civil e penal que variava em função da categorização étnica produzida pelo governo.
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no setor público e nas universidades têm beneficiado castas identificadas pelo governo
como "inferiores" em detrimento de outros cidadãos marginalizados. Na África do Sul, a
abstratas discriminação positiva e as políticas Bee (Broad-Based Black Economic
Empowerment Act), não tevi impacto sobre as formas de redistribuição de riqueza. Nos E.U.
a discriminação positiva que privilegiam as pertenças raciais em detrimento da pobreza em
geral, além de opor-se ao sonho de Martin Luther King de um futuro "indiferente à cor da
pele”, demonstra-se coerente com a política que desencoraja a igualdade e uma maior
justiça social. Em França, a tentativa do Estado em realizar serviços desiguais e a
discriminação positiva, mobiliza o interesse contra os efeitos e não contra as causas,
rendendo-se funcional para evitar uma séria reconsideração da ordem social racista.
3 EXTRA ORDINEM
As leis especiais e emergenciais, os serviços desiguais, identificando partes da
sociedade fora dos princípios de cidadania e do Estado de Direito, introduzem preocupantes
elementos de incerta consistência democrática. O poder de proclamar - através do estado
de emergência - formas jurídicas excepcionais, como também a suspensão legal da
validade das leis ordinárias, exercita - como releva Carl Schmidt - um domínio arbitrário,
sem qualquer mediação.
A historia ensina como em nome da segurança, da ajuda ou dos direitos
humanos, o estado de emergência autoriza poderes enormes aos executivos, promovendo
uma revolução autoritária gerida através dos meios de comunicação (ACKERMAN, 2006). O
recorrente recurso aos meios extraordinários e a derrogação temporária e contextual acaba
com estandardizar-se e tornar-se uma modalidade consuetudinária do contrato social. A
inversão da relação entre regra e emergência produz um efeito perverso de continuidade e
onipresença da emergência, em consonância com as estratégias de poderes que podem
aproveitar da universalização deste estado (BENJAMIN, 1955; AGAMBEN, 1995).
Os dispositivos da emergência determinam uma situação paradoxal, extra
ordinem, uma forma de exclusão que se materializa nas legislações cada vez mais
repressivas e nos espaços especiais: campos dos refugiados, dos imigrantes, dos
clandestinos, das vítimas, dos prisioneiros de guerra, dos homens e mulheres traficados,
traumatizados, mutilados. Esses lugares são povoados por seres humanos transformados
em entidades abstratas, destinadas a serem identificadas, pesquisadas, recenseadas,
registradas, contadas, quantificadas, catalogadas, etnizadas. Embora a lei clássica pensa
em termos de indivíduos e da sociedade, de cidadãos e de Estado, o aparato emergencial
raciocina em termos de corpos indistintos e deslocalizados, para nutrir, vestir, curar, de
acordo com as estratégias e as categorias diagnósticas das administrações, exportáveis em
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todos os contextos. A dimensão biopolítica destaca os novos quadros jurídicos e políticos
das relações entre o Estado e os indivíduos, revelando os riscos e os paradoxos existentes
nos sistemas jurídicos das democracias modernas: em nome da segurança, da aceitação,
da ajuda ou dos direitos humanos, os cidadãos são transformados em puro corpo ou em
vida nua (AGAMBEN, 2003).
Sob a pressão da urgência, as ações se fixam como não-negociáveis,
neutralizando o potencial de inovação local. Transfiguram os problemas sociais em questões
técnicas e emergenciais, inaugurando modelos organizacionais que baseiam as suas
legitimidade na performatividade e na eficácia em maneira totalizante em detrimento dos
modos alternativos de intervenção. As reflexões críticas sobre as contradições ou as causas
da marginalização ou da exclusão - bem como, mais geralmente, do subdesenvolvimento e
das tragédias da fome e da guerra - são eliminadas. Os fatores desagregantes são, no
máximo, considerados em termos apolíticos, mecânicos e naturais, como simples resultados
de esporádicas explosões ligadas a estados endêmicos de warfare tribal ou de uma história
significativamente considerada local e nunca global. A evidente interação entre atividades
humanas e catástrofes naturais, bem como entre catástrofes naturais e fatores políticos, é
removida, juntamente com os efeitos determinados pelo assim chamado "equilíbrio
internacional” e pelas competições pelos recursos em constante diminuição. Agindo como
"máquinas antipolíticas" (FERGUSSON, 1990), as configurações especiais suspendem,
como as máquinas "antigravidade" da ficção científica, o "político", alimentando o fatalismo,
o clientelismo, o assistencialismo e a dependência. Muitas vezes usam a logística e os
mecanismos que garantem a ordem, a estabilidade e a segurança, estendendo o que
Giorgio Agamben (1995) chama de "zona cinza" de operações militares justificadas como
operações humanitárias nas quais os atores civis têm cada vez menos espaço para
autonomia e liberdade. O fim da emergência produz da suspensão de atenção das mídias, à
imediata interrupção da intervenção, à transferência da máquina organizacional em novos
cenários emergentes no tabuleiro geopolítico.
Em nome da emergência vários dispositivos e técnicas de subjetivação
(associações, centros de aceitação, tribunais, igrejas, serviços sociais, escolas, sociedades,
ONGs) operam no território como aquilo que Appadurai (1996), chama de "formas móveis de
soberania”, realidades que se movem impondo regras e imperativos legitimados sob a
bandeira de valores indiscutíveis. "Especialistas da subjetividade" (ROUSE, 1995) ou
"modernizadores intermédios (RABINOW, 2003), nacionais ou estrangeiros, exercem poder
e soberania, adaptando e redefinindo as ráticas de governamentalidade (FOUCAULT,
1984). Uma pletora de gerentes, burocratas, cientistas, técnicos, voluntários traduzem
através do filtro das suas ambições, interesses e capacidades, as políticas globais naquelas
locais. Desagregam as redes de influência, modificam os sistemas de poder preexistentes,
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estendem novas alianças e confundem as estratégias das autoridades locais: designam as
competências, distribuem funções, integram grupos locais nos circuitos nacionais e
internacionais como novas formas de governance. Muitas vezes revivificam as políticas de
indirect rule, favorecendo a cooptação das leadership e alimentando, ao mesmo tempo, as
formas de exclusão já existentes.
Comunidades de poderes coercivos forçam a participar (ou, melhor, “a ser
participados”) só em termos de identidade artificialmente produzidos pelos idiomas e pelas
categorias dos projetos. Ignoram, talvez, a diversidade das relações de poder que
determinam o uso e o controle dos recursos, assim como as variedades dos modos em que
estas relações de poder se articulam com as diferentes formas de estratificação social.
Constroem os interlocutores e os grupos sociais, escondendo a seleção necessariamente
inclusiva e, ao mesmo tempo, exclusiva, segundo modelos integrados e visões
estereotipadas que enfatizam a homogeneidade, a solidariedade interna e a capacidade de
ação coletiva. Produzem formas de comunidades locais tribalizadas no interior de confins
territorialmente, linguisticamente, racialmente, etnicamente autênticos e puros, semelhantes
àqueles criados pela antropologia ao serviço dos projetos de desenvolvimento das diversas
administrações coloniais e neo-coloniais.
As mutações do capitalismo determinadas da crise do welfare-state keynesiano,
da abertura dos mercados ao neo-liberalismo, do colapso do sistema vestefaliano das
relações internacionais fundado sobre a soberania dos Estados e do esvaziamento das
Nações Unidas após o 11 de Setembro têm promovido uma gestão privada do humanitário,
paralelo àquela estatal. As organizações não-governamentais tornaram-se parte de um
sistema de relações com as instituições políticas e econômicas e os agentes privados.
Assumem um papel cada vez mais relevante na representação e participação em
importantes processos de tomada de decisão, através do estatuto consultivo que lhes é
concedido por instituições nacionais e internacionais. Devendo enfrentar à crescente
competição para a captação de fundos, são obrigados, para sobreviver, a colocar em jogo
um imponente aparato capaz de perseguir as emergências, talvez através da retórica da
compaixão e da semiótica da imagem, produzindo eventos comunicativos por meio de
declarações e de imagens altamente emocionais para evocar indignação e a necessidade
moral da ação. A ostentosa e também fortemente censurada visibilidade, ofuscante na sua
vacuidade, segue registros muito mais sensíveis à dramatização do evento excepcional, e
muito menos para a miséria ordinária. Um dos resultados da ajuda humanitária é um grande
déficit democrático em apoio ao poder econômico e político de verdadeiras castas locais de
tecnocratas e oligarcas mafiosos, como aconteceu na ex-União Soviética: livres das redes
do controle eletivo acedem, através de suas ONGs, aos financiamentos, controlam os
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organismos financeiros e exercem sua pressão e sua hegemonia nos meios de
comunicação e nas instituições políticas (MALIGHETTI, 2005).
4 SEM IDENTITADE
Em um panorama que a cultura hegemônica não consegue impor em termos
homologantes e totalizantes, diferentes formas de subjetividade conseguem escapar às
técnicas de governamentalidade estatal e às práticas de normação. Estas agencies
(GIDDENS, 1992) abrem espaços anthropopoieticos que desmantelam os sistemas de
classificação, ultrapassam e esvaziam as identidades, configurando-se em termos
contingentes e precários, como redes que envolvem vários posicionamentos. Rejeitam
fundações em termos absolutistas e contradizem os poderes dominantes e as tentativas de
promover uma ideologia feliz e pacificada do multiculturalismo e da globalização como algo
inevitável e já terminado que resolve os conflitos e a articulação interna. Mostram, no
entanto, as suas complexidades nas práticas dos microprocessos cotidianos, subtraídas a
uma única lógica e articuladas em arenas efervescentes, onde diferentes visões do mundo,
interesses e poder se conectam e se contrastam (HANNERZ, 1992; APPADURAI, 1996;
CLIFFORD, 1997; AMSELLE, 2001).
Perspectivas "por baixo" questionam a relação exoticizante entre distância e
diferença e à imediata coincidência do local com a cultura e a identidade (CANCLINI, 1998;
GUPTA, FERGUSSON, 1997; MALIGHETTI, 2007a). Subtraem o global da universalidade
abstrata pelo qual é imposto pelas ideologias dominantes, colocando-o em suas realidades
e nas suas articulações necessariamente locais e particulares. Oferecem a possibilidade de
transcender a reificação das diferenças, e consideram, por um lado, as "culturas
tradicionais" nos seus envolvimentos transformativos com a modernidade: incluem as ideias
e as práticas da modernidade nas práticas locais, fragmentando e dispersando a
modernidade nas reelaborações "micromodernas" construídas "de baixo" e em constante
proliferação. De outro lado permitem de pensar as realidades contemporâneas não em
termos homologantes, mas como sociedades vernaculares nascidas pela interrelação entre
antigo e novo (LATOUCHE, 1989).
Essas articulações (CLIFFORD, 1988), o ethnoscapes (APPADURAI, 1996),
substituem a ideia de processos que devem trocar o tradicional com o moderno, com a ideia
de uma “modernidade múltipla" (COMAROFF, COMAROFF, 1993), entendida como um
conjunto de realidades negociais produzidas principalmente pela copertencia (GADAMER,
1965) da modernidade e da tradição do global e do local (MALIGHETTI, 2007). As “sujeiras"
(CLIFFORD, 1993) seriam fertilizantes para novas sínteses e emersões culturais e sociais,
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gerando poderosas tendências contrárias às estratégias globalizantes e mostrando uma
dinâmica baseada na fusão, na mistura e na oposição.
As subjetividades locais marcadas por tradições múltiplas têm contribuições
únicas para as configurações culturais e os esforços intelectuais e políticos, rompendo o
tempo linear da história, constitutivo do discurso ocidental (BENJAMIN, 1955). Suas
condições "híbridas" representam uma alternativa às identidades fortes e absolutas,
promovidas pelos diversos fundamentalismos étnicos, integralismos nativistas e
culturalismo biológico. Apropria-se do espaço catacrético (SPIVAK, 1999) focalizado
naquela dimensão social da arena social onde os sujeitos recuperam e traduzem os
significados, reescrevendo neles os sinais das suas marcas.
A consideração das reelaborações locais da modernidade reconhece a
intensidade, a força, a velocidade e as propriedades de auto-organização de grande parte
da mudança social contemporânea, e revela como as diferentes mensagens são traduzidas,
misturadas e processadas pelo atores localmente situados e organizados9. Convida a julgar
as possibilidades abertas às práticas populares para produzir criações originais e idear os
meios para libertar a sociedade do imaginário da modernização e reduzir a sua dependência
da episteme da modernidade.
Laboratórios de formas de humanidade e de produção cultural elaboram práticas
de mudança social, cultural, econômica e política, que foge aos mecanismos fragmentários
dos integralismos identitários. Baseia-se na diversidade cultural, entendida como uma força
contingente em constante mutação e, portanto, inovadora, e na valorização das
necessidades e das oportunidades econômicas em termos diferentes daqueles do lucro e do
desenvolvimento modernizante e da integração multicultural. Tentam superar as
desastrosas abordagens assistenciais, as perigosas intervenções emergenciais e especiais,
as misericordiosas e contraditórias ações humanitárias, em favor de iniciativas integradas e
multissetoriais baseadas sobre as potenciais alternativas dos recursos humanos locais.
Procuram formas econômicas coletivas que não favorecem um bem-estar material
devastador para os laços sociais e o ambiente, rompendo com a destruição perpetuada em
nome da globalização e do desenvolvimento (ESCOBAR, 1995; ALMEIDA, 2009)
A aposta política dos grupos marginais consiste na capacidade de contrapor-se
aos axiomas do nacionalismo e da modernidade na suas formas hegemônicas. Como
"contramodernidades" mostram que cada cultura tem sido sempre multicultural ou híbrida,
produto de uma longa história de apropriações, de resistências, de compromissos em
constante mutação, de antagonismos, incoerências, contradições. As culturas não são
"loucas" (CLIFFORD, 1988) apenas no mundo contemporâneo a causa da globalização,
9 As culturas juvenis urbanas - por exemplo - são atravessadas por um diálogo contínuo entre as
expressões culturais dos diversos grupos que deram vida nos guetos e nas favelas a numerosos movimentos antagônicos que se subtraem à pertencia racial (MALIGHETTI, 2005).
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que, de qualquer forma, não é uma dinâmica recente, tendo constituído a história da
humanidade, desde quando os primeiros afro-descendentes deixaram a África Oriental
setenta mil anos atrás. Antes da chegada dos mercantes, administradores coloniais,
missionários, e antropólogos, o mundo era caracterizado por sociedades sem nome ou que
tinham termos muito gerais, indicando as condições, a situação econômica ou os cargos
políticos. A mesma Europa não conhecia fronteiras antes da criação das Estados-nações,
principalmente no século dezenove.
Delocalizadas e deterritorializadas as culturas e as identidades surgem como
verdadeiras construções, formas de autorrepresentação relacionais em contínua
transformação no âmbito das conexões que um grupo humano tem com os outros e com o
contexto que os contêm (MALIGHETTI, 2007b). Essas perspectivas convidam a considerar
"quem cria e quem define o que" ou "quem manipula na contingência e com que finalidades”
os significados culturais, através de qual dinâmica, investindo quais elementos e, segundo
quais perspectivas hegemônicas em um específico momento. Essa “política econômica de
conhecimento” (KEESING, 1974) reflete sobre a trama entre sistemas simbólicos e sistemas
de poder e sobre a produção e reprodução das formas culturais, não prescindindo da
referência ao entrecho entre processos socioeconômicos e geopolíticos locais e globais
(MALIGHETTI, 2008).
5 CIDADANIAS NEGOCIAIS
Os fenômenos de mestiçagem, de hibridização, de sincretismo, de crioulização e
de transculturação (ORTIZ, 1940), característicos das situações coloniais (BALANDIER,
1955), tornaram-se paradigmáticos como modelos da subjetividade contemporânea. A
condição dos grupos à margem da história, dos povos colonizados, escravos, imigrantes,
refugiados, exilados, expatriados, vêm a representar o precedente histórico do sujeito
descentralizado e deslocado da aceleração do que Giddens tem chamado de “mecanismos
destrutivos” e "deslocantes” da globalização (GIDDENS, 1992).
O conceito de diáspora desconstrói as identidades culturais superando a lógica
binária do pensamento colonialista conotada em termos biológico-naturais. Refere-se ao
reconhecimento da heterogeneidade e da diversidade, ou seja, a uma concepção da
subjetividade que vive através, e não apesar, da diferença e da mudança. Atravessadas por
diversos mundos culturais, com varias histórias, línguas e tradições, as realidades
diaspóricas articulam formas de pertencias multissituadas (MARCUS, 1998), reproduzindo-
se continuamente através da transformação e da diversidade. O Atlântico Negro é a
metáfora dos reconhecimentos culturais, políticos e estéticos irredutíveis à qualquer tradição
nacional ou base étnica, às estruturas do Estado-nação, às limitações da identidade, da
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etnia e da raça. As suas travelling cultures (GILROY, 1993) são concebidas como formas
de criatividade cultural, produzidas pelos confrontos, encontros, viagens, fusões e
resistências10.
O transnacionalismo, entendido não apenas como uma dimensão da vida
através das fronteiras, mas, principalmente, como negação da assimilação, e,
simultaneamente, como estratégia de luta contra a exclusão, pode ser visto como um
espaço onde os atores podem articular formas de poder alternativas àquelas baseadas na
cada vez mais improvável homogeneidade, universalidade e territorialidade da nação como
pressuposição e base fundamental do Estado. Impõe de reconceituar a compreensão do
sujeito contemporâneo e obriga a repensar os fundamentos da cidadania e das relações -
não mais imediatas - entre Estado e Nação (HABERMAS, 1996), bem como a ligação entre
os indivíduos, o Estado e as formas alternativas dos poderes que intervêm na
regulamentação das vidas das pessoas. Presença ausente (SAYAD, 1991), o sujeito
transnacional negocia o tipo de pertenças múltiplas e de adaptações práticas e técnicas
com a flexibilidade do posicionamento geográfico e social: é um efeito das novas
articulações entre as várias comunidades políticas e econômicas que o coloca além das
residências temporárias e das remessas de dinheiro (ONG, 1999).
Os limites do conceito de cidadania são postos à prova também pelo hiato entre
cidadania formal e substantiva e da permanência dos mecanismos de exclusão além da
cidadania. A crescente complexidade das categorias sanciona diferentes estatutos
sociopolíticos e jurídicos: do cidadão sem direitos ao residente regular sem nacionalidade;
do trabalhador sazonal ao refugiado; do requerente de asilo às pessoas com vários
passaportes; até os clandestinos que cruzam as fronteiras ilegalmente ou que tem o visto
sem validade.
Os novos regimes de cidadania têm alargado a cidadania aos membros não
residentes da maioria etnonacional, através de procedimentos simples de “naturalização”
(vd. Jugoslávia, Israel, Irlanda), aplicados especialmente ao caso das elites:
significativamente as formas mais veementes de nacionalismo sikh são australianos; muitos
dos mais extremistas nacionalistas croatas nasceram no Canadá; grande parte dos mais
fervorosos nacionalistas argelinos é franceses; muitos dos mais radicais nacionalistas
chineses são norte-americanos. Contemporaneamente a cidadania é recusada formalmente
a muitos residentes que não pertencem ao grupo privilegiado - através de um processo de
“desnaturalização” – ainda que esses tenham vivido sempre em um determinado território.
10 Os negros ingleses são assim analisados por Gilroy (1978) em alternativa à ideologia, dos
discursos do “novo racismo britânico”, mas também do absolutismo étnico e dos conceitos do nacionalismo cultural negro. A peculiaridade jamaicana é vista por Hall (1985) no aspecto decididamente híbrido de todas as expressões ou manifestações: à partir da mistura das cores que caracteriza a população, dos diferentes gostos e sabores da cozinha, à estética do crossover e do cut and mix que está na base da música.
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Os casos de cidadãos formais que manifestam as contradições do sistema
jurídico, mostrando a sua aplicação seletiva, são muito significativos. Quebradeiras de côco,
comunidades negras e indígenas rurais e urbanas, quilombolas, homossexuais, extratores,
ribeirinhos, pescadores, seringueiros, castanheiros, artesãos, povos dos faxinais, fundos de
pasto, meninos de rua como também pessoas com deficiências, favelados, desempregados
existem só como problemas sociais, quando são percebidos como ameaças à ordem
constituída. Os seus estatutos negativos (sem identidade, sem terra, sem trabalho, sem
direitos, sans papiers etc.) mobilizam as forças armadas do Estado e dos poderes paralelos
do narcotráfico, dos interesses predatórios da indústria agropecuária e da madeira ou
ecológicos da indústria farmacêutica e cosmética no objetivo comum de eliminá-los.
Ao invés de uma estrutura monolítica externa respeito às preocupações e à vida
cotidiana das pessoas a cidadania deve ser considerada como um espaço vital (HOLSON,
APADURAI, 1996) e um processo dialógico (GRILLO, PRATT, 2006), que se pode avaliar
analisando as microdinâmicas de inclusão e de exclusão no dia a dia dos atores, através
das quais os direitos são negociados, realizados ou negados.
6 CONCLUSÕES
Diferentes formas de subjetividade são portadoras das questões não baseadas
apenas sobre o direito de ser diferente respeito às normas hegemônicas da comunidade
nacional, como nas concepções das políticas do "reconhecimento" de Charles Taylor (1994)
ou da cidadania cultural de Renato Rosaldo (1993). As diferentes configurações inauguram
aquilo que Ong (1999) chama de "cidadania flexível", uma articulação de filiações
contingentes e complexas com pertenças e negociações múltiplas. Atuam como alternativa
ética e política na luta contra os diversos tipos de fragmentações culturais e raciais
promovidas tanto pela direita conservadora e liberal, quanto pela esquerda institucional. Não
celebram um abstrato universalismo igualitário ou um vácuo desenraizamento e uma
indiferença pelas tradições locais ou pela pertenças (ROBBINS, 1993). Pelo contrário,
permitem de recolher, localmente, os desafios de um cosmopolitanismo discrepante
(CLIFFORD, 1997), vernacular (BHABHA ET AL., 2002), multilocalizado (ROBERTSON,
1992) ou crítico (RABINOW, 2003). Desenvolvem formas de glocalismo ético (TOMLINSON,
1999) e político que superam o conceito de identidade e relançam as diferenças culturais no
ethos das suas interdependências. Configuram-se em termos de negociação entre diversos
grupos que lutam por seus direitos (BALIBAR, 1988) e convidam a um universalismo do
diálogo (BUTLER, 1995) e da cooperação.
Uma solicitação de reconhecimentos que não envolve a identidade é uma
reivindicação aberta e disponível para os acordos, as negociações, as uniões e as
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solidariedades. Permite de apoiar a identificação dialógica e artificial, e, portanto, política e
não natural, de objetivos e valores comuns, subtraídos aos inquietantes fantasmas do Clash
of Civilizations (HUNTINGTON, 1994).
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CRISE E POLÍTICAS CULTURAIS
Antonio Albino Canelas Rubim1
O mundo vive uma profunda crise. Não dá para esquecer isto. A crise provoca
dores, perplexidades e pode trazer dramáticos ensinamentos. Para aprender com a crise é
preciso ser radical. No sentido de ir às raízes da crise. Falar dos “brancos de olhos azuis”;
da dicotomia entre economia financeira e real; das profundas desigualdades entre nações e
entre classes sociais e do mercado afirmado como ente todo poderoso, acima de todos e de
tudo.
Ser radical significa também tirar todos os ensinamentos possíveis da crise. Um
de seus mais vitais aprendizados é, sem dúvida, que o mercado não é todo poderoso, nem
pode regular a sociedade. Falar em modalidades de regulação da sociedade é pensar em
um dos temas centrais da democracia. Implica em (re)tematizar radicalmente o Estado e seu
papel. Não à maneira antiga: como Estado todo poderoso e acima da sociedade. Mas
também não à maneira recente: Estado mínimo, apático, ausente e pretensamente neutro,
técnico e tecnocrata.
Neoliberalismo e políticas culturais
Inventadas, em sua acepção contemporânea, em meados do século XX, as
políticas culturais assumem lugar relevante na agenda internacional nos anos 70,
impulsionadas, com destaque, pela atuação da UNESCO. Mas entram em profunda
depressão a partir dos anos 80 com a ascensão do neoliberalismo em todo o mundo, em
especial nos países mais desenvolvidos, com Inglaterra e os Estados Unidos (Rubim, 2009).
No Brasil, o Ministério da Cultura nasce em 1985, com a redemocratização do
país, depois dos longos anos de ditadura cívico-militar. A inauguração do Ministério
acontece em um contexto em que o discurso democrático produzido no longo embate contra
a ditadura, marca o imaginário brasileiro e sua construção. No entanto, este processo logo
1 Professor titular da Universidade Federal da Bahia. Diretor do Instituto de Humanidades, Artes e
Ciências Professor Milton Santos. Docente do Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade. Pesquisador do CNPq e do Centro de Estudos Multidisciplinares em Cultura. Presidente do Conselho Estadual de Cultura da Bahia.
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será solapado pela “confluência perversa”, conforme a fina percepção de Evelina Dagnino
(2005), entre o discurso democrático e o neoliberal, que começa a atingir o país, inclusive
tendo impactos importantes do campo da cultura (Rubim, 2008).
A instabilidade vivenciada na construção do Ministério, por certo, é expressão
desta “confluência perversa”. Criado por Sarney em 1985; ele é desmantelado por Collor e
transformado em Secretaria em 1990 e novamente recriado por Itamar Franco em 1993.
Nos nove anos (1985-1994) destes governos, dez dirigentes foram responsáveis pelos
órgãos nacionais de cultura: cinco ministros (José Aparecido, Aloísio Pimenta, Celso
Furtado, Hugo Napoleão e novamente José Aparecido) nos cinco anos de Sarney; dois
secretários (Ipojuca Pontes e Sérgio Paulo Rouanet) no período Collor e três ministros
(Antonio Houaiss, Jerônimo Moscardo e Luiz Roberto Nascimento de Silva) no governo
Itamar Franco. A permanência média menor que um dirigente por ano cria uma admirável
instabilidade institucional em uma área que está em processo de instalação.
A instabilidade não decorre somente da mudança quase anual dos responsáveis
pela cultura. Collor, no primeiro e tumultuado experimento neoliberal no país, praticamente
desmonta a área de cultura no plano federal. Acaba com o Ministério, reduz a cultura a uma
Secretaria e extingue inúmeros órgãos, a exemplo do Conselho Nacional de Cinema
(CONCINE), EMBRAFILME, Fundação Pró-Memória, Fundação Nacional de Artes Cênicas,
Fundação Nacional de Artes (FUNARTE).
O primeiro dirigente da Secretaria, Ipojuca Pontes elabora um violento programa
neoliberal. Mercado é a palavra mágica para substituir o Estado, ineficiente e corrupto,
conforme esta visão neoliberal também na área cultural. As marcas neoliberais do
pensamento de Ipojuca Pontes estão bem expressas no pequeno trecho citado do folheto
Cultura e Modernidade:
O expancionismo institucional; a política de subsídios e financiamento a fundo
perdido e o papel de agente regulador do estado, anteriormente assinalados, permitem-nos
compreender o alto grau de intervencionismo estatal nas atividades artísticas e culturais,
criando órgãos permeados pela ineficácia e o mau uso dos recursos públicos, gerando
normas burocráticas e privilégios que inibem a produção e a criação (PONTES, 1991, p.9)
Depois de diagnosticar o esgotamento do modelo estatizante e fazer um elogio à
competição, Ipojuca Pontes afirma que: “as barreiras ao comércio e intercâmbio de bens e
serviços culturais terão que ser superadas, sem que tais procedimentos representem uma
ameaça à economia ou à identidade nacional” (PONTES, 1991, p.14).
O avanço neoliberal não se restringe ao governo Collor. Já em 1986, é criada Lei
Sarney, primeira lei brasileira de incentivos fiscais para a cultura (Sarney, 2000). A lei realiza
um movimento aparentemente paradoxal, pois o governo, ao mesmo tempo, retrai e amplia
o Estado no campo cultural. Ele inaugura o Ministério e diversos órgãos para atuar no
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campo cultural. Nestes anos, são criados: Secretaria de Apoio à Produção Cultural (1986);
Fundação Nacional de Artes Cênicas (1987); Fundação do Cinema Brasileiro (1987);
Fundação Nacional Pró-Leitura, reunindo a Biblioteca Nacional e o Instituto Nacional do
Livro (1987) e Fundação Palmares (1988), por pressão do movimento negro no centenário
da abolição da escravatura. A Lei Sarney contraria esta atuação, pois rompe radicalmente
com os modos vigentes de financiar a cultura. O Estado, sob o pretexto de carência de
recursos, reduz o financiamento direto à cultura e propõe o mercado como “alternativa”. Mas
o dinheiro em boa medida continua a ser público, em decorrência do mecanismo de
renúncia fiscal. Assim, em perspectiva neoliberal, o Estado se retrai e repassa seu poder de
decisão para o mercado.
O governo Collor extingue a Lei Sarney e dá origem à outra lei de incentivo, a Lei
Rouanet. Tal legislação, reformada, será amplamente aplicada pelo governo Fernando
Henrique Cardoso. Nele, as leis de incentivo são consolidadas e quase entronizadas como
verdadeiras “políticas culturais” (Castello, 2002).
As leis de incentivo transformam profundamente o financiamento e o papel do
Estado na cultura no Brasil. A lógica – que privilegia o mercado em detrimento do Estado –
se expande para estados e municípios e para outras leis nacionais, a exemplo da Lei do
Audiovisual do governo Itamar Franco, que amplia a renúncia fiscal para 100%. Com ela e
as posteriores reformas da Lei Rouanet, cada vez mais o recurso utilizado torna-se público.
A isenção de 100% coloca em cheque o próprio espírito da lei dita de incentivo, pois ela
deveria estimular a iniciativa privada a investir mais na cultura. A isenção de 100% denuncia
que a finalidade não é bem a cultura, mas produção da imagem pública da empresa, através
do acionamento de marketing cultural realizado com dinheiro público.
As críticas ao modelo de leis de incentivo adotado no Brasil são amplas.
Necessário recordar tais críticas, de modo sistemático, especialmente na conjuntura atual,
em que as leis de incentivo ocupam lugar privilegiado na agenda do debate político-cultural
nacional.
Um elenco, não exaustivo, das críticas pode ser assim enumerado:
1. O poder de deliberação político-cultural passa do Estado para as empresas e
seus departamentos de marketing;
2. Apesar dos recursos utilizados serem quase exclusivamente públicos, sem
aporte significativo de recursos privados ou de outras fontes, o poder de
decisão sobre recursos públicos passa às empresas;
3. Ausência de contrapartidas sociais ao incentivo estatal;
4. Incapacidade das leis de alavancar novos recursos privados. No seu livro Os
Federais da Cultura, Carlos Alberto Dória constata que:
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Contudo com o tempo deu-se uma grande perda dessa capacidade de alavancagem. Se na média os empresários contribuíram, em 1995, com 66% (contra 34% de renúncia fiscal) do valor dos projetos incentivados, em 2000 essa relação praticamente se inverteu, caindo para apenas 35% de recursos novos (DÓRIA, 2003, p.101).
Deste modo, a própria motivação de estimular a iniciativa privada a investir em
cultura, atribuída às leis, encontra-se em cheque;
5. Concentração dos recursos em um pequeno número de projetos. Em 1995,
metade dos recursos estava concentrada em apenas 10 projetos;
6. Canalização de grande quantidade de recursos para institutos e fundações
criados pelas próprias empresas;
7. Apoio a empreendimentos culturais de nítido potencial mercantil, que
deveriam ser desenvolvidos sem os recursos públicos das leis de incentivo.
Os exemplos neste caso são muitos;
8. Concentração dos recursos em determinadas regiões do país, em especial em
algumas zonas de São Paulo e Rio de Janeiro. Em 1994, mais de 90% dos
recursos foram para a região Sudeste e em 1998, este valor era quase 85%
(MOISES, 2001, p.48).
Como se todas estas e outras possíveis críticas não bastassem, um outro dado
preocupante agrava ainda mais o panorama: a posição central que as leis de incentivo
passaram a ocupar na circunstância cultural brasileira, diferente do que ocorre em muitos
outros países, onde elas existem. Devido à conjuntura de avanço e consolidação de um
modelo neoliberal, tais leis, na prática e no imaginário, tomaram o lugar das políticas de
financiamento e, ainda mais grave, foram transformadas praticamente na política cultural
oficial do estado brasileiro. O governo FHC / Francisco Weffort foi emblemático neste
sentido. Nele o estado quase abdicou de seu papel na cultura, reduzindo-o ao mero
repassador de recurso via leis de incentivo. O mercado assumiu seu lugar como ente que
define apoios e “políticas” culturais.
Estado, mercado e inibição da política
A predominância desta lógica corrói o poder de atuação do Estado, que
praticamente abdica de deliberar e realizar políticas culturais, e potencializa a intervenção
do mercado, sem, entretanto, a contrapartida do uso de recursos privados. O Estado
brasileiro transforma-se em um mero repassador de recursos também no campo cultural.
Qualquer outra intervenção sua é prontamente contestada e taxada de dirigismo cultural
pelos setores sociais hegemônicos.
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O desprezo da política e do Estado, própria do neoliberalismo, provoca uma
ruptura entre o cultural e o político, com o esquecimento da política e a ocupação de seu
espaço pela afirmação do mercado, como ente adequado e capaz de regular a sociedade e
a cultura. A hegemonia do neoliberalismo como “pensamento único”, quando se impõe,
interdita imaginar possíveis alternativas, imprescindíveis à realização da (grande) política;
bloqueia a invenção de novos horizontes e inibe a criação, porque oblitera a percepção das
tensões e da diversidade. Por certo, este é um dos efeitos mais perversos do neoliberalismo
sobre a política e a cultura.
A combinação entre retração do Estado e a lógica de financiamento sintonizada
com os preceitos neoliberais hegemônicos no mundo e no país faz que parcela considerável
do campo cultural identifique, sem mais: política de financiamento, políticas culturais e leis
de incentivo. O Estado como agente responsável por políticas culturais é esquecido, a não
ser como repassador da imensa maioria dos recursos. A intensa divulgação das marcas das
empresas nas atividades culturais apoiadas nas leis de incentivo faz com que público e
sociedade imaginem equivocadamente que existe uma grande mobilização de recursos
privados para a cultura. A sedimentação e a persistência deste ideário de inspiração
neoliberal na sociedade e no campo cultural empobrecem a imaginação e são, ainda hoje,
potentes obstáculos ideológicos à formulação de alternativas de políticas culturais e de
financiamento no Brasil.
Crise e revisões radicais: vestígios do discurso neoliberal
Ser radical é enfrentar e revirar sem medo os vestígios neoliberais que
impregnam os discursos atuais das políticas culturais. Apesar da crise, o discurso neoliberal
persiste, como se ela fosse apenas um deslize menor passível de ser sanado dentro do
receituário imposto impiedosamente nos últimos 30 anos.
Em muitos trechos que permeiam documentos insuspeitos de políticas culturais
podem ser ouvidas, subliminarmente ou não, persistências e ressonâncias neoliberais. Um
exemplo recorrente são as frases, que formuladas em estilos variados, assumem sempre o
seguinte sentido: “O Estado deve apoiar o desenvolvimento da cultura, mas não pode
produzir cultura”. Sem mais, fica evidente a definição subliminar de um papel do Estado e a
tentativa de interditar sua atuação. Submeter este enunciado a um pequeno exercício
interpretativo pode ajudar a entender os equívocos contidos nesta formulação, hoje tão
assentada e reproduzida mesmo em documentos e autores “de esquerda”.
Por certo, o objetivo da política cultural deve ser a criação: ampliada,
diversificada, plural e democratizada da cultura pela sociedade (civil), dotada das mais
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equânimes e qualificadas condições para o desenvolvimento desta produção. Entretanto,
este objetivo estratégico não pode ser acionando como contraposto para interditar o papel
cultural do Estado e mesmo a produção de cultura pelo Estado em áreas que sejam vitais
para a vida cultural e que não estejam sendo contempladas: seja porque a sociedade não
dispõe de condições para isto; seja porque o mercado não demonstra apetência e interesse
em investir nestas esferas culturais. Mas o papel cultural do Estado não pode ser reduzido
só à possível produção cultural em áreas desamparadas.
Voltando a frase emblemática – “O Estado deve apoiar o desenvolvimento da
cultura, mas não pode produzir cultura” –, em uma primeira interpretação, aparentemente
aceitável, é possível afirmar que o Estado não deve produzir cultura de modo unilateral, à
margem e acima da sociedade, ou que ele não pode, igualmente, produzir, impor ou sequer
induzir escolhas estéticas ou teóricas. As tentações de artes, ciências e culturas oficiais têm,
todas elas, tristes memórias. A concordância com tais precauções e perigos não significa
automaticamente aceitar a interdição da iniciativa do Estado, mas aponta para uma
necessária e rigorosa delimitação das fronteiras de seu papel, determinando a legitimidade
ou não de sua atuação.
A produção cultural do Estado não implica, sem mais, em artes e ciências
oficiais. A experiência histórica tem demonstrado que o Estado democrático tem
possibilidade de produzir cultura, sem subsunção automática à visão oficial. Um Estado,
regulado democraticamente pela sociedade, pode conformar uma cultura pública, não
redutível à mera feição estatal. As universidades públicas brasileiras, mantidas pelo governo
federal e por alguns governos estaduais, são exemplos disto. Difícil afirmar que elas têm
produzido uma cultura, arte e ciência oficiais. Mesmo no período da ditadura militar – apesar
das intervenções autoritárias que feriram a vida e a gestão universitárias –, nelas não
predominou, com facilidade, o discurso oficial.
Ainda mais que a tentativa de limitar a atuação do Estado ao mero apoio,
inclusive financeiro, é plena de ilusões, muitas delas intimamente associadas ao
esquecimento da política, à prevalência da lógica do mercado e a uma pretensa
neutralidade e tecnicidade no trato da dinâmica social e cultural.
Primeira ilusão: a possibilidade de um Estado, singelamente neutro, que
funcione tão somente como mero repassador de recursos. A impossibilidade deste Estado
parece óbvia. O Estado não só apresenta sempre componentes de classe na sua
conformação, como é historicamente um espaço privilegiado de disputa dos atores sociais
pelo poder. Por conseguinte, a distribuição de recursos está submetida a tal dinâmica
societária.
Segunda ilusão: que é possível ao Estado abdicar de fazer quaisquer escolhas,
inclusive referentes às áreas culturais consideradas primordiais e as prioritárias para
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alocação de recursos. Ou em uma variante mais tecnocrata: que as escolhas são
determinadas preponderantemente por opções apenas técnicas. A ausência de escolhas ou
a escolha em termos tecnocráticos não têm resistido a nenhuma verificação rigorosa, pois
elas pressupõem imaginar um Estado que abandona as escolhas, de modo deliberado, e,
por conseqüência, a política, dado que ela – em sua dimensão maior de grande política no
dizer de Antonio Gramsci – deve ser sempre o lugar de escolhas e de alternativas.
Terceira ilusão: que o Estado não esteja envolvido pelos interesses e valores
presentes na sociedade, em modalidade hegemônica ou contra-hegemônica. Na contramão
desta perspectiva, parece fácil e razoável afirmar que sem interesses e valores sociais não
existe vida, política e tampouco Estado. Os interesses e os valores são componentes
intrínsecos da dinâmica da sociedade e de todas as suas instituições.
Quarta ilusão: que é pertinente trabalhar com uma noção ampliada de cultura –
hoje quase obrigatória nas políticas culturais contemporâneas, pelo menos deste a
Conferência Mundial sobre Políticas Culturais realizada pela UNESCO na Cidade do México
em 1982 – e, ao mesmo tempo, desconsiderar o tema dos valores sociais, como se os
valores não estivessem inscritos automática e necessariamente na concepção larga de
cultura. Com a noção ampliada, não existe possibilidade de políticas culturais que não
incorporem o tema dos valores. Caso isto ocorra, estará acontecendo o retorno inevitável,
consciente ou inconsciente, a uma concepção estreita de cultura.
O abandonado deste conjunto de ilusões implica em repensar o Estado como
instituição, passível de regulações democráticas e sociais, que legitimamente faz e tem
políticas, as quais aglutinam e representam interesses e acionam e expressam valores. O
que está em jogo, portanto, não é escamotear tais procedimentos, mas torná-los
transparentes, dando visibilidade e definindo regras democráticas a serem seguidas de
modo rigoroso e explícito.
Um Estado – nem máximo, nem mínimo – pode e deve produzir cultura em
intima conexão e sinergia com a sociedade, desde que seja capaz, enquanto arranjo
democrático, de garantir, através de variados dispositivos, uma autonomia relativa para os
personagens do campo cultural – criadores eruditos e populares, intelectuais, artistas,
cientistas etc. – e da sociedade.
Estado, sociedade e políticas públicas de cultura
Para romper com este imaginário é preciso assumir a crise em todas as suas
dimensões e potencialidades. Cabe imaginar – a imaginação em tempo de crise é
fundamental – um novo e ativo papel para o Estado.
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Um Estado que não esteja nem descolado e nem acima da sociedade, como um
ente todo poderoso, que impõe autoritariamente seus interesses e sua vontade política à
sociedade. Um Estado que não seja mínimo, reduzido a um suposto suporte “técnico”
capturado por um mercado, tornado sujeito todo poderoso que regula a sociedade a partir
de sua lógica e seus interesses.
Mas um Estado radicalmente articulado com a sociedade, através de políticas
públicas, entendidas como políticas necessariamente resultantes do debate e da
deliberação compartilhadas com a sociedade. Políticas públicas que liguem, aglutinem e
reúnam: Estado e sociedade (civil), sem esquecer as tensões imanentes a qualquer
dinâmica social.
Um Estado, afinado com a sociedade, que seja capaz de desenvolver
conjuntamente políticas públicas de cultura. Políticas que se coloquem pública e
explicitamente como políticas, como alternativas possíveis, e não busquem se impor como
horizonte inevitável e indiscutível, escamoteando seu caráter de disputa em circunstâncias
determinadas.
Políticas que, de modo cristalino e corajoso, tenham compromisso com uma
constelação de valores – dentre eles: diversidade cultural; respeito à alteridade; pluralidade;
equidade e justiça sociais – que orienta de modo deliberado suas intervenções, que nada
têm, nem desejam ter de neutras. Políticas que não sejam dominadas pelo medo da atuação
viva do Estado, inclusive, quando necessário, produzindo cultura, através da: luta na
constelação de valores da sociedade; da criação estética e científica e da conformação de
políticas culturais, pois como bem observou o ex-ministro Gilberto Gil: “formular políticas
culturais é fazer cultura” (BRASIL, 2003, p.11).
REFERÊNCIAS
BRASIL. Ministério da Cultura. Discursos do Ministro da Cultura Gilberto Gil. Brasília, 2003.
CASTELLO, José. Cultura. In: LAMOUNIER, Bolívar e FIGUEIREDO, Rubens (orgs.) A Era FHC: um balanço. São Paulo, Cultura, 2002, p.627-656. DAGNINO, Evelina. Políticas culturais, democracia e projeto neoliberal. Revista, Rio de Janeiro, (15): 45-65, janeiro-abril de 2005. DÓRIA, Carlos Alberto. Os federais da cultura. São Paulo, Biruta, 2003.
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MOISÉS, José Álvaro. Estrutura institucional do setor cultural no Brasil. In: MOISÉS, José Álvaro et al. Cultura e desenvolvimento. Volume 1. Rio de Janeiro, Edições Fundo Nacional de Cultura, 2001, p.13-55. PONTES, Ipojuca. Cultura e modernidade. Brasília, Secretaria de Cultura, 1991. RUBIM, Antonio Albino Canelas. Políticas culturais no Brasil: trajetória e contemporaneidade. Salvador, 2008. Texto inédito. RUBIM, Antonio Albino Canelas. Políticas culturais e novos desafios. Salvador, 2009. Texto inédito. SARNEY, José. Incentivo à cultura e sociedade industrial. In: JELÍN, Elizabeth et al. Cultura e desenvolvimento. Rio de Janeiro, Edições Fundo Nacional de Cultura, 2000, p. 27-44.