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Estafeta de Leitura

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atividade de leitura da Semana da Leitura

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Page 1: Estafeta de leitura

Estafeta de Leitura

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O capitão Van Der Kerk

Uma miniatura. O diálogo ao ar livre. Palavras leva-as o vento.

Tradutor, precisa-se.

Nessa tarde Mary foi falar ao capitão do navio e pediu-lhe que a contratasse. Este capitão, um homem

franzino, com um narizinho pequenino, uns olhinhos pequeninos, um bigodinho com uns poucos pelos

ruivos e umas orelhinhas muito bem feitas, olhou-a um bocado desconfiado e perguntou-lhe se tinha

experiência de marinharia. Mas era destas pessoas que fazem as perguntas mas não ouvem as respostas. A

conversa foi, portanto, assim:

Capitão Van der Kerk — Então e você tem experiência, homem?

Mark Read — (quando ela começa a falar, o capitão vira-lhe as costas e põe-se a favor do vento, de

maneira que mesmo que ela grite, não se ouve absolutamente nada).

Capitão Van der Kerk — Ah, sim ? Ai é? E você há quanto tempo é que anda no mar?

Mark Read — (deixou de gritar e apenas mexe a boca, percebeu que este homem não entende que

quando se põe a favor do vento e virado de costas para ela nunca ouvirá nada do que ela diz).

Capitão Van der Kerk — Pronto, estamos conversados. Zarpamos amanhã com a maré.

Mary, pela força do hábito, ainda fez a continência, seguida de uma vénia e de mais uns gestos de

alegria e uns saltos de contentamento que o capitão não viu, porque continuava virado de costas para ela.

Estava agora entretido a olhar pela amurada para uma mulher muito bem posta que passava no cais a piscar

o olho aos marinheiros. Mary reparou ainda que o capitão Van der Kerk tinha os pés mais pequeninos que

ela alguma vez vira na vida, calçados nuns sapatinhos que pareciam de criança. Mas a autoridade do capitão

era enorme. Os marinheiros gigantes tremiam de medo e ficavam aflitos à aproximação dos sapatinhos dele.

Chamavam-lhe Der Kerkling. Não tenho bem a certeza do que quererá isto dizer, tem de se ir perguntar a um

holandês.

Luísa Costa Gomes, in A pirata

Page 3: Estafeta de leitura

ACOSTAGEM! ABORDAGEM! SAQUE! (1)

Os piratas revistam o navio. A verdadeira riqueza. O cirurgião de bordo. Coitado do carpinteiro. A horrendíssima

linguagem dos piratas.

Por esta altura, já Rackam tinha mandado içar a sua bandeira própria (e muito mal feitinha era ela, diga-se de

passagem). representando uma caveira sobre dois alfanjes cruzados num fundo negro. De longe, metia um bocado de

medo, mas de perto via-se que um pano com umas coisas muito mal cosidas e sem jeito nenhum. Rackam lá disse o

que tinha a dizer ao capitão Van der Kerk e aproximou rapidamente o brigue da nau. Lançaram os arpéus de

abordagem e as escadas chamadas de quebra-costas, subiram para a nau e meteram mãos à obra. Rackam ia dando

ordens, indicando os sítios mais prováveis para os cofres com as moedas de ouro e prata, que se chamavam, estas

últimas, peças de oiro. Os piratas revistavam tudo com avidez, falavam alto uns para outros, procuravam em nichos,

paredes falsas. Debaixo dos tampos das mesas, e espiolhavam os sacos e as pequenas arcas de couro onde os

marinheiros guardavam as poucas coisas deles. DerKerkling, de pé junto à amurada, olhava para longe.

Mas os piratas sabiam muito bem onde estava a verdadeira riqueza: os cento e cinquenta escravos negros que o

capitão comprara em África para vender no grande mercado de Curaçao; estavam acorrentados uns aos outros,

amontoados no fundo do porão, e por esta altura já gritavam como cabras montesas e com toda a razão. Os piratas

puxaram-nos para cima e transportaram-nos para o brigue, para os venderem na Jamaica. Os escravos negros devem

ter percebido imediatamente que não se tratava de uma libertação, mas respirar o ar puro nem que fosse só para

saltar de um barco para outro já era uma mudança para melhor.

Depois do transbordo dos escravos, que Rackam tratava com o cuidado de mercadorias preciosas, os piratas

lançaram a mão a tudo o que havia no convés. Passaram pela amurada, para o navio deles, as redes, as âncoras e os

cabos das âncoras. Madeiras várias para reparações no navio. Estopa e breu para calafetagem. Enquanto uns

desencastravam à machadada os canhões do convés, outros recolhiam as velas, dobravam-nas e passavam-nas para o

brigue. Um dos piratas apareceu com uma pequena arca de livros, cartas de marear e um sextante. Rackam mandou o

contramestre «limpar» completamente o camarote do capitão. E quando tudo parecia acabado, dois piratas ainda

tiveram o desplante de voltar atrás para carregarem o panelão onde o guisado já começava a cheirar bem.

Transportaram todas as provisões, as barricas de carne em salmoura, os barris de biscoito, o que restava de fruta, a

água, o vinho, a cerveja e duas pipas de rum! Levaram velas, linhas de coser as velas, agulhas de coser as velas, fio de

algodão, cordas, a frigideira grande e peque- nos utensílios da cozinha, caixotes de velas de alumiar, caixas de sabão.

Até levaram a caixa de ferramentas do carpinteiro, que, depois de muito pedir para que não lha tirassem, desatou a

chorar. Rackam ficou muito comovido com as lágrimas do carpinteiro de bordo e deu-lhe umas palmadinhas nas

costas:

— Coitado do carpinteiro! — disse, para todos ouvirem. — Todos nós sabemos o valor que tem para ele a caixa

de ferramentas. Não será ninguém sem a sua caixa de ferramentas. Isto é uma coisa terrível que lhe está a acontecer.

Estão a levar-lhe uma dispendiosa caixa de ferramentas que é o seu ganha-pão. Daqui em diante, será a miséria. Este

homem, digno artista, é um exemplo para todos nós. É raro ver, nos tempos indignos em que vivemos, uma dedicação

assim tão profunda ao seu trabalho. Vós, capitão e marinheiros, não sereis nada sem a caixa de ferramentas do

carpinteiro. Como irá ele consertar os mastros? Como irá tratar-vos do madeirame do navio?

Luísa Costa Gomes, in A pirata

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ACOSTAGEM! ABORDAGEM! SAQUE! (2)

— Coitado do carpinteiro! — disse, para todos ouvirem. — Todos nós sabemos o valor que tem para ele a caixa

de ferramentas. Não será ninguém sem a sua caixa de ferramentas. Isto é uma coisa terrível que lhe está a acontecer.

Estão a levar-lhe uma dispendiosa caixa de ferramentas que é o seu ganha-pão. Daqui em diante, será a miséria. Este

homem, digno artista, é um exemplo para todos nós. É raro ver, nos tempos indignos em que vivemos, uma dedicação

assim tão profunda ao seu trabalho. Vós, capitão e marinheiros, não sereis nada sem a caixa de ferramentas do

carpinteiro. Como irá ele consertar os mastros? Como irá tratar-vos do madeirame do navio?

Os outros piratas concordaram, acharam muito nobre aquela atitude do carpinteiro e insultaram os marinheiros

por não derramarem lágrimas como ele. E diziam:

— Os grandes sacripantas querem lá saber, não têm nenhum sen- tido da honra! Sofrem uma humilhação

destas e ainda se ficam a rir!

E Rackam acrescentou.

— Já que não vos serve para nada um carpinteiro sem a sua caixa de ferramentas, levamos também o

carpinteiro. Ser-nos-á muito útil. E tanoeiro, têm?

Houve um silêncio. Ao fundo, o carpinteiro fungava, entalado entre dois piratas. Era um quadro estranho. Um

deles não tinha a orelha direita e ao outro faltava a orelha esquerda.

— Estava também a precisar de um cirurgião — concluiu Rackam — que o nosso era um verdadeiro carniceiro e

nem a barba me sabia fazer decentemente.

— O nosso cirurgião — disseram alguns piratas — era uma desgraça completa.

— Era tão aselha — disse outro — que se enganou e cortou-me a perna boa.

— Tivemos de o deitar ao mar antes que nos cortasse a todos aos bocadinhos — rematou um desnarigado.

Claro que eles não se exprimiam com estas palavras. É do conhecimento geral que os piratas só diziam

palavrões do piorio. Não havia uma frase que não levasse pelo meio uma data de palavrões. Dou-vos só este exemplo,

bastante leve:

— Ó meu grandessíssimo cabeça de porco em salmoura passa-me aí o sacrista do machado para dar cabo, poça!

do raio da sacana da fechadura dos infernos da porcaria do cofre, irra!

Portanto, temos o vocativo seguido de palavrão mais nome mais verbo mais palavrão e outro palavrão e ainda

outro palavrão, mais nome mais palavrão mais nome e remata com palavrão. Era uma linguagem toda pitoresca, é o

mínimo que se pode dizer.

Luísa Costa Gomes, in A pirata

Page 5: Estafeta de leitura

REFLEXÕES À BEIRA-MAR

Calico Jack tinha mais esta característica curiosa que era pensar só quando não pensava que estava a pensar.

Explicando melhor ele era tão preguiçoso, que só de pensar que tinha de pensar, ficava cansado. Mas era ao mesmo

tempo tão esperto, que a cabeça se punha a funcionar sozinha, como se fosse uma coisa quase independente dele. E

como ele não percebia que estava a pensar, pensava e não ficava cansado, e aqui entre nós, acho que até gostava.

Tendo sido alguns anos contramestre de Charles Vane, Jack Rackam era um marinheiro experiente. Não conhecia

aquelas águas tão para sul, mas conhecia bem os mapas. e conhecia outros piratas como Edward Thatch,o Barba

Negra. que tinham cruzado aqueles mares.

Enquanto todos dormiam, Rackam pensava. Levantou-se e foi passear à beira-mar. Andou ao longo da praia

olhando para as estrelas. Se a tempestade os trouxera para sul da grande ilha Hispaniola, onde hoje ficam Santo

Domingo e o Haiti (…) Rackam não sabia exatamente onde estava, mas sabia que teria de ir para noroeste para chegar

aonde queria chegar. Observando a sombra negra da ilhota à sua frente, em forma de pão grande (mas que também

podia parecer um baú, um cofre, o dorso de uma baleia, um lombo de vaca, o bojo de uma barrica, um homem morto

a boiar, ou outra coisa abaulada), Rackam lembrou-se da história terrível que se contava do Barba Negra. Um dia,

dizia-se, deixara num ilhéu deserto, que se chamava exatamente Deadman’s Chest (ou Peito do Morto), à vista de

Peter’s Island quinze homens da sua tripulação. A cada um dera uma garrafa de rum. Voltara passados uns meses, à

espera de os encontrar todos mortos. Mas os homens sobreviveram, comendo as poucas bagas, os lagartos e as

cobras que havia na ilha. Se o ilhéu ali em frente fosse o Peito do Morto, então a ilha em que estavam era Norman’s

Island e a distância até Barbuda, Antígua ou Hispaniola era pouca.

Rackam já decidira, evidentemente, ir a Nassau aceitar o perdão do Rei. Embora duvidasse de que o governador

das Bahamas continuasse disposto a pedir ao Rei uma amnistia para ele e para a sua tripulação, a verdade é que esta

era a sua única alternativa. Percebia que, com uma piroga e uma canoa, ou mesmo duas pirogas e duas canoas, mas

sempre quase sem armas, não teria possibilidade de assaltar grandes naus. E como era lema dos piratas: «Não há

presa, não há paga!», concluiu que teria de se entregar às autoridades e fingir que se tinha convertido ao comércio

legítimo para começar outra vez do nada. A ideia de começar outra vez do nada encheu-o de preguiça e ele sentou-se.

(…) Começou a ficar furioso com toda aquela sequência de acontecimentos, mas teve preguiça de continuar a estar

furioso, porque a fúria também dá muito trabalho.

Estava muito frio e ele tinha andado bastante. Agora tinha um problema novo. Ali, morria de frio, mas para ir ter

com os outros, ia de andar outra vez até lá, e não lhe apetecia nada. Como não se queria cansar a resolver mais aquele

problema, adormeceu. Foi Mary quem o acordou, ao nascer do dia. Trazia-lhe um coco, que bebeu e comeu com

satisfação.

— Aqui não podemos ficar, capitão — disse Mary. — A água é pouca e má.

— E para onde queres tu ir, com uma casca de noz e uma casca coco? (Referia-se claro, e bastante

pejorativamente, às duas embarcações).

— Que queres que faça, homem?

Luísa Costa Gomes, in A pirata

Page 6: Estafeta de leitura

O ESCURO

Eu estava em silêncio, muito quieto, no escuro, a ouvir o mar. A minha mãe deitara-se também e, lá de fora,

nenhuma luz passava pelas portadas fechadas da janela. Devia ter faltado outra vez a eletricidade, porque em frente

da minha casa, do lado do quarto, havia um candeeiro de iluminação que, mesmo com a janela fechada, clareava

debilmente o quarto e deixava, ver, quando os meus olhos se habituavam à obscuridade, os contornos dos móveis e

das imagens na parede.

O temporal abrandava aos poucos. Mas dentro do quarto o escuro era tanto que, se eu respirava ou se me

mexia, parecia que eu era outra pessoa, perto de mim. Pousei uma mão sobre a outra e tive a impressão de que a mão

não me pertencia, que era de outra pessoa, que eu próprio era outra pessoa. Fiquei muito quieto durante horas até

não sentir o meu corpo.

Então, de qualquer sítio no escuro, fora de mim, ouvi uma voz: «Manuel!» Chamava-me muito baixinho, como

um murmúrio; não me mexi. «Vem!» Deixei de respirar, à escuta, e senti que alguém, ou alguma coisa, me puxava

pela mão para fora do quarto, por uma porta do escuro, não a porta do quarto mas outra — é tão difícil explicar! —

que se abria no escuro para outro sítio também escuro e imaterial. «Vem!» Parecia aminha voz, falando fora de mim e

dentro de mim, simultaneamente, como se fosse e não fosse eu.

Fui levado por um longo corredor em silêncio. Não via nada e apertava com força a mão — acho que era uma

mão — que segurava a minha.

— Quem és tu? — perguntei.

— Sou tu, meu tolo. Vem!

— Eu, quem?

— Sou eu, tu! Confia em mim. Daqui a pouco amanhece e eu desaparecerei de novo. Anda depressa! É muito

importante! Tens de salvar a tua mãe!

— Eu estou acordado?

— Estás.

— Onde vamos? Tenho medo.

— Confia em mim. Vou mostrar-te uma coisa.

Andámos durante muito tempo. Não sentia os pés pisarem o chão, caminhava como se estivesse quieto,

flutuasse. Corria um vento fresco e comecei a ter frio. Tinha a certeza de que estava acordado porque continuava a

ouvir, muito distantes, a ronca e o mar!

Uma claridade ténue filtrava-se ¡á ao longe e senti a mão que me levava se tornava mais débil e me segurava

com menos força.

— Depressa, vem!

Olhei para o lado, mas não estava ninguém comigo. Não compreendia bem o que se passava, mas já não tinha

medo nenhum, apenas me sentia um pouco confuso. Enquanto o túnel clareava, apercebia-me de paredes húmidas

como as da cave de minha casa. A certa altura, ao fundo de umas escadas irregulares, cobertas de fetos altos, ouvi a

voz esvaidamente:

— Não pares, não tenhas medo. Tenho de te deixar, é quase de dia. Mas, por favor, não pares. É muito

importante. Continua a caminhar

Manuel António Pina, in Os piratas

Page 7: Estafeta de leitura

UMA AVENTURA DO CAPITÃO MERGULHÃO

Quando o navegador Fernão Magalhães desembarcou naquela ilha, que não vinha no mapa, sentiu um

tremor nas pernas como nunca antes tinha sentido.

Provavelmente, os seus homens, também marinheiros experientes, sentiram o mesmo, mas ninguém

deu parte fraca. Há muito que rasgavam mares desconhecidos, no veleiro de velas ao vento. Por isso

ansiavam por terra firme.

Na ilha de rocha lisa e escorregadia não despontava uma única árvore ou arbusto ou ervas sequer. Era

uma ilha deserta de que mal se adivinhava o final. Mas era uma ilha, não havia dúvida.

- Vou dar-lhe o meu nome – declarou o capitão Fernão Mergulhão.

Os marinheiros à ordem do velho capitão trouxeram do veleiro uma laje esculpida que, enterrada no

chão da ilha, destacaria para todo o sempre o nome do seu descobridor.

O pior é que não conseguiram abrir o buraco para enterrar o cruzeiro de pedra. Mal as picaretas

picaram a superfície rochosa da ilha, um abanão de tremor de terra fê-los cair a todos. Outro abanão, nova

queda. De seguida, ouviu-se um ronco, rugido, uivos imensos que ecoaram nas nuvens.

- Isto não é uma ilha! – gritaram. – É um monstro e nós acordámo-lo.

Pois devia ser. O olhar humano não conseguia abranger o tamanho do monstro marinho. Baleia

gigantesca? Polvo descomunal? Ou outro animal fantástico ainda por descobrir?

A mando do capitão, os marinheiros meteram-se no bote e remaram com todas as suas forças para o

navio. Parece que o monstro terá voltado a adormecer, depois das incómodas picadelas sentidas nos

lombos, senão teria provocado tal tempestade que bote, veleiro e marinheiro tudo seria engolido pelas

ondas da sua raiva. E, se assim acontecesse, nós não teríamos para contar esta história do capitão Fernão

Mergulhão, o que era pena.

António Torrado, in Uma aventura do capitão Mergulhão

Page 8: Estafeta de leitura

PINOK ACREDITA EM PINOK

O meu nome é João, ou melhor Djon, Djon di Tareza e Matias, como me conhecem aqui na Calheta. Mas o meu

nominhu, mesmo, é Pinok, pois vem de Pinóquio, herói de uma história que as irmãs contam lá na escolinha da missão.

É que por aqui tenho fama de grande mentiroso.

Mas, afinal, sou só um menino que gosta de imaginar coisas como se fossem verdade.

Algumas das minhas mentiras ficaram famosas nas redondezas. Como aquela da televisão de Dona Xêpa.

Eu explico...

Todas as quintas-feiras chega o avião da cidade da raia com cassetes de vídeo, contendo os últimos episódios de

uma telenovela brasileira. Então, junta-se o povo todo em casa de nhu Fininho, antigo emigrante na América, e ele

coloca no único vídeo da ilha a história de Dona Xêpa, contada aos pedacinhos. Nós ficamos sempre à frente. Sentados

no chão, ocupamos pouco espaço. Os crescidos sentam-se nas cadeiras, ficando as mulheres mais velhas à frente. A

cassete repete vezes sem conta. Acabo por adormecer no chão de terra batida até minha mãe me chamar para casa.

Numa quarta-feira de manhãzinha, partia meu pai para o mar, deu-me uma grande vontade de ver mais um

pedacinho da história da velhinha Xêpa. Mas ainda faltava um dia todo. Era tal a vontade que comecei a contar a todos

que encontrava, que afinal, o avião da Praia chegara mais cedo e que, em breve, teríamos novela.

O boato alastrou rapidamente.

Maria conta a Manel, Manel a António...

Quando acabou a faina do mar, vestiam já os homens uma camisa melhor e abalavam ladeira acima, nas suas

bicicletas, rumo à casa de nhu Fininho para a costumeira sessão televisiva. Entretido com a pesca não entendi todo

aquele rebuliço..

— Djon, não vai ver Dona Xêpa? — perguntou Sandrinha, minha irmã, à hora do jantar.

— Mas hoje tem?

— Tem sim, contou-me Papai.

Afinal sempre havia... E lá fui correndo ladeira acima, tropeçando nas sandálias, tal a pressa que levava.

Tinha caído na minha própria mentira!

Calculem com que cara ficou nhu Fininho ao ver toda aquela gente à sua porta para assistir à telenovela.

Agora, o que vos vou contar não é mentira, não.

Miguel Horta,in Pinok e Baleote

Page 9: Estafeta de leitura

O CARANGUEJO EM FÉRIAS

Era uma vez um caranguejo que se cansou do mar.

- Estou farto, farto, farto. Sempre as mesmas ondas, sempre a mesma areia…

Precisava de férias, era o que era!

Foi a uma agência de viagens, dessas que têm muitos cartazes turísticos nas montras e setas que apontam

para Roma, paris, Londres, como se fossem ali, ao virar da esquina.

- Quero umas férias descansadas – pediu o caranguejo.

O empregado, muito atencioso, sugeriu:

- Talvez Vossa excelência gostasse de um cruzeiro marítimo…

- Nunca. Cruzeiro marítimo não quero. Bem basta o que basta! – cortou logo o caranguejo.

- Nesse caso, talvez um hotel na Costa Azul, com vista para o mar – lembrou o empregado, sempre muito

atencioso.

- Nunca. Com vista para o mar não quero. Bem basta o que basta! – corto logo o caranguejo.

Entretanto, reparou num cartaz, com uma montanha carregadinha de neve.

- Quero ir para ali – apontou o caranguejo.

- Mas é uma estância de Inverno… - disse o empregado.

- Não me importa. Eu vou para onde me apetece. Trate-me de tudo.

O empregado tratou e o caranguejo foi.

Acabara o caranguejo de chegar ao cimo de um rochedo, sobre um vale imenso, quando uns alpinistas deram

por ele. Meteram-no logo no saco das lembranças. Caranguejos na montanha são raridade.

- Tirem-me daqui. Tirem-me daqui – gritava o caranguejo, mas em vão.

Logo aconteceu que, no dia seguinte, os alpinistas iam trepar a umas arribas, no litoral. Quando o caranguejo

conseguiu libertar-se e caiu na areia da praia, desesperou-se:

Estragaram-me as férias. Que azar o meu. Só vejo a vida a andar para trás.

E talvez tivesse razão.

António Torrado, in Da rua do contador para a rua do ouvidor

Page 10: Estafeta de leitura

O DIA DA SEREIA

Um dia, quando o mar estava encapelado e ameaçador, veio uma onda e atirou para terra uma bela sereia de escamas reluzentes na metade inferior do corpo e pele muito branca e macia na metade superior. Fosse como peixe, fosse como mulher, era uma criatura invulgarmente estranha e atraente.

Quando recuperou os sentidos, a sereia descobriu que estava deitada em cima de uma rocha, não tendo qualquer forma de regressar ao mar, que era o seu meio natural. Fora dele não teria muito tempo de vida.

Apareceu então na praia um jovem pescador que era pobre e triste e que nem dinheiro tinha para comprar um barco e se aventurar nas águas. Como não podia encher as redes de peixe, andava pelas rochas a apanhar mexilhões e caranguejos. Quando cumpria essa monótona tarefa de todos os dias, levantou ligeiramente a cabeça e viu a bela sereia que o olhava, implorando ajuda.

– Quem és tu e o que fazes aqui? – quis saber o pescador, entre fascinado e amedrontado com tão inesperada visão.

– Eu sou uma sereia do mar e fui atirada para cima desta rocha por uma onda grande e feia que tinha inveja da minha beleza. Agora estou aqui presa e se não voltar à água acabarei por morrer.

– Não morres, não senhor – exclamou o pescador, num primeiro impulso, porque eu vou devolver-te às águas de onde vieste.

No entanto, ao olhar bem para aquela criatura fabulosa, sentiu a cabeça cheia de ideias confusas e contraditórias. Se aproveitasse a parte de baixo, teria alimento para pelo menos uma semana. Se ficasse com a metade de cima, poderia gabar-se em toda a aldeia de ter arranjado como namorada a mais bela rapariga que até então fora vista naquelas paragens. Mas, nem uma nem a outra solução lhe agradavam, pois ambas eram incompletas. No fundo, ele sabia que o estranho ser que lhe pedia auxílio não era, afinal, nem peixe nem carne. Ao dar conta da perigosa hesitação do pescador, a sereia apressou-se a fazer-lhe uma proposta:

– Se me puseres depressa dentro de água, eu virei todas as semanas, num dia certo, aqui à praia, para trazer-te ouro e prata. Será essa a recompensa do favor que me vais fazer.

O jovem pescador, que era pobre e tinha irmãos mais novos para sustentar, não pensou duas vezes: pegou na sereia ao colo e lançou-a à água, não sem que antes combinasse o dia e a hora em que ela o visitaria todas as semanas.

Durante anos, a bela sereia cumpriu o que prometera. Sempre que se encontrava na praia com o pescador, entregava-lhe quantidades consideráveis de metais preciosos, que ele ia aplicando em negócios vários. Não foram necessários muitos encontros para que ele pudesse considerar-se um homem rico.

Os anos passaram, e o pescador sentiu no corpo o peso da idade. Envelhecera. A sereia, porém, mantinha-se inalteravelmente jovem e bela, demonstrando pertencer ao mundo das coisas eternas.

Um dia, o pescador, que já possuía casas, barcos, automóveis e outros bens que lhe dariam para viver regaladamente o tempo de várias vidas, interrogou-se:

«Será que eu venho à praia todas as semanas para receber a minha recompensa ou para ver a sereia?» Não tardou a perceber que era a presença da sereia e a sua beleza que o faziam percorrer aquele caminho, fizesse chuva ou sol. Ao ouro e à prata, já pouca atenção dedicava. Se um dia ela desaparecesse, a sua vida deixaria de ter sentido.

Apesar de ter muitas pretendentes, o pescador nunca chegou a casar-se, e no dia em que a sereia, considerando cumprida a sua promessa, deixou de aparecer na praia, sentiu que se apoderava dele uma grande tristeza e que nem toda a riqueza do mundo o voltaria a fazer feliz. Para a recordar, mandou erguer sobre a rocha, onde muitos anos antes a encontrara, uma bela estátua de bronze, que ali permaneceria como homenagem à sua beleza.

Solitário e triste, voltava todas as semanas ao único local onde conseguira ser feliz durante toda a sua vida.

Um dia, já muito velho e enfraquecido pela doença, sentou-se na rocha e, chorando baixinho, disse:

– Só para voltar a ver-te, minha bela sereia, eu daria toda a riqueza que acumulei ao longo destes anos!

Foi, então, que uma pequena onda com caracóis de espuma deixou aos seus pés a bela sereia, com a mesma beleza e frescura, que tinha no primeiro encontro.

– Ainda bem que ouviste o meu chamamento – disse o pescador.

– Ainda bem que nunca deixaste de te lembrar de mim – respondeu a sereia.

Um longo e apertado abraço selou aquele reencontro de amor. Depois desse dia, nunca mais ninguém voltou a ver o pescador, contando-se ainda hoje na aldeia muitas histórias acerca do que lhe poderá ter acontecido.

A verdade é que, no dia da semana em que, durante anos, se deu o encontro de ambos, a sereia de bronze, imóvel sobre a rocha, chora lágrimas de felicidade, e canta uma estranha melodia que atrai os barcos para a praia, e as ondas para o areal.

Em dias de tempestade, há sempre quem afirme ter visto o pescador e a sereia sobre uma onda alta, abraçados, como dois namorados eternos na linha do horizonte.

José Jorge Letria, in Lendas do Mar

Page 11: Estafeta de leitura

STELLA – ESTRELA DO MAR

A Stella e o simão foram passar o dia à beira-mar. Para Simão é a primeira vez.

- Não é lindo, Simão? – perguntou Stella.

- É muito grande, - respondeu Simão – e tão barulhento.

A Stella já tinha visto o mar uma vez, antes de o simão nascer. Ela conhecia todos os seus segredos.

- A água está fria? – perguntou Simão – É muito funda? Não há lá monstros marinhos?

- A água está ótima – disse Stella. - E nem um monstro marinho à vista. Anda, Simão!

- Ainda não – disse Simão.

- Donde vêm as estrelas do mar? – perguntou Simão.

- Do céu – respondeu Stella. – As estrelas do mar são estrelas cadentes que se apaixonaram pelo mar.

- E as estrelas não tiveram medo de se afogar? – perguntou Simão.

- Não, - respondeu Stella – elas sabiam nadar.

- O que é isto? - perguntou Simão.

- É uma concha da lua, - disse Stella – vem da Lua.

- O que é aquilo?

- É uma asa de anjo, - disse Stella – pertenceu a um anjo.

- E isto?

- É um olho de tubarão – respondeu Stella.

- Achas que há tubarões no mar? – perguntou Simão. Já viste algum?

- Só um pequenino, - disse Stella – com uma pala no olho. Vens, Simão?

- Agora não – disse Simão.

- Anda ver, Simão – gritou Stella – encontrei um cavalo marinho.

- O cavalo marinho relincha? O cavalo marinho galopa?

- Sim! – gritou Stella – E podes montar um cavalo marinho mesmo sem sela. Anda lá, Simão.

- Não agora – disse Simão.

- Vamos cavar um buraco muito fundo - disse Stella.

-Porquê? Para quê? Aonde é que vamos parar?

-À China – respondeu Stella.

- Já chegamos lá? – perguntou Simão.

- Vamos antes pescar, Simão – suspirou Stella. Talvez apanhemos um peixe gato.

- O peixe gato ronrona? - perguntou Simão. O peixe porco ronca? O peixe papagaio fala?

- Não sei, - suspirou Stella – vou mas é nadar.

- O peixe galo nada? - perguntou Simão – ou voa e cacareja? O mar toca no céu? Os barcos caem para lá daquela borda? De onde vêm as ondas? Por que é que…

- Simão! – gritou Stella – Vens ou não?

- SIM! – gritou Simão.

Marie-Louise Gay, Stella, estrela do mar

Page 12: Estafeta de leitura

O MACACO E O TUBARÃO – conto tradicional de Moçambique

O macaco vivia perto do mar e passava horas de olhos postos nas águas, maravilhado por apresentarem vários tons de azul ao longo do dia e encantado com o vaivém das ondas, que deixavam tiras de espuma branca sobre a praia. Em tempos esforçara-se por aprender a nadar, mas como não conseguiu, desistiu.

- Se eu ao menos pudesse navegar – suspirava sempre que passavam navios. – Ah! Se eu ao menos pudesse navegar!

Um tubarão que frequentava aquelas paragens ouviu e resolveu aproveitar-se daquele desejo. Fingindo-se muito amigo e muito simpático, aproximou-se e meteu conversa:

- Parece que gostavas de dar um passeio à tona de água, não é?

- É o meu sonho, mas não tenho quem me leve.

- Eu levo-te com todo o gosto.

- A sério?

- Mais sério não posso ser. Se quiseres, sobe agora mesmo para as minhas costas, agarra-te à minha barbatana, e o teu sonho torna-se realidade.

O macaco ficou contentíssimo e saltou da palmeira para o dorso do tubarão. De início, viajaram perto da praia, mas o macaco estava tão entusiasmado com o passeio que não se cansava de pedir:

- Mais longe, amigo tubarão! Leva-me mais longe!

- Queres ir para o alto mar?

- Quero, por favor!

O tubarão disfarçou um sorriso maldoso e fez-lhe a vontade. Mais adiante, perguntou:

- Que tal, amigo macaco? Está a gostar do passeio?

- Muito, muitíssimo. Acho que é o dia mais feliz da minha vida.

- Ainda bem. Porque eu tenho um problema difícil de resolver e vou resolvê-lo hoje.

- Que problema?

- O meu pai está muito doente no fundo do mar e o curandeiro disse que ele só melhorava se comesse um coração de macaco…

Ao ouvir aquilo, o pobre macaco ia morrendo de susto, mas como era muito inteligente, resolveu controlar-se e fingir que colaborava.

- Tenho muito gosto em te dar o meu coração para salvares o teu pai. Há de fazer-lhe bem, porque é a parte mais saborosa do meu corpo.

- Ai sim?

- Sim. Mas se queres o meu coração temos que ir buscá-lo a casa.

- Estás a falar verdade? – perguntou o tubarão já desconfiado.

- Claro que estou. Tu se calhar não sabes que a minha espécie não usa o coração dentro do peito.

- Ai não?

- Não. Deixamos sempre o coração em casa. Se me levares de volta vou buscá-lo num instante e o teu pai come o melhor petisco deste mundo.

O tubarão, que era gulosíssimo, acreditou e levou-o à praia.

Assim que pôs o pé na areia, o macaco fugiu aos saltos e nunca mais apareceu.

Há quem diga que o tubarão ainda hoje ronda aquela praia, na esperança de comer um coração de macaco.

Ana Maria Magalhães e Isabel Alçada, in Rãs, Príncipes e Feiticeiros

Page 13: Estafeta de leitura

LENDA DE TIMOR

Em tempos que já lá vão, vivia na ilha Celebes um crocodilo muito velho, tão velho que não conseguia

caçar peixes no rio. Certo dia, apertado pela fome, decidiu aventurar-se nas margens, em busca de algum

porco distraído que lhe servisse de refeição. Andou, andou, até cair exausto e desesperado, pois não

encontrara nada e perdera as poucas forças que lhe restavam. Como havia de regressar à água? Valeu-lhe

um rapaz simpático e robusto que teve pena dele e o arrastou pela cauda.

Em paga do serviço prestado, o crocodilo ofereceu-se para o transportar às costas sempre que

quisesse navegar. O rapaz aceitou e fizeram várias viagens juntos.

Isso não impediu no entanto que, sentindo fome de novo, o crocodilo se lembrasse de comer o

companheiro. Antes porém quis ouvir a opinião de outros animais e todos se mostraram indignadíssimos.

Devorar quem o salvara? Que ingratidão!

Envergonhado e cheio de remorsos, o crocodilo resolveu partir para longe e recomeçar a vida onde

ninguém o conhecesse. Como o rapaz era o único amigo que tinha, chamou-o e disse-lhe:

— Vem comigo à procura de um disco de ouro que flutua nas ondas perto do sol nascente. Quando o

encontrarmos seremos felizes.

Mais uma vez viajaram juntos, agora sulcando o mar que parecia não ter fim… a certa altura o

crocodilo percebeu que não podia continuar. Deteve-se por um instante e logo o corpo se transformou

numa ilha magnífica.

O rapaz viu-se homem feito de um momento para o outro e verificou encantado que trazia ao peito o

disco de ouro com que sonhara o crocodilo. Percorreu então as praias, as colinas, as montanhas, concluindo

que ali realizaria o seu destino. Instalou-se para ficar e deu à ilha o nome de Timor que significa Oriente.

Ana Maria Magalhães e Isabel Alçada, Prémio Nobel da Paz 1996

Page 14: Estafeta de leitura

A SEREIA

Era uma vez uma sereia. E, como todas as sereias, vivia no mar. Tinha os cabelos loiros e compridos, os

olhos verdes, a pele cor-de-rosa, e uma cauda de peixe com escamas brilhantes, tão bonitas, tão bonitas que

faziam inveja aos pargos e às pescadas, que andavam sempre por ali. Mas a sereia era muito caprichosa, e o

pai, que estava velho e já tinha perdido a paciência, fazia-lhe todas as vontades.

— Quero um pente de tartaruga para pentear os meus cabelos! — dizia ela. E logo o velho mar

mandava chamar a tartaruga para lhe fazer o pente.

Quero isto, quero aquilo! E sempre a cirandar dum lado para o outro, metendo o nariz em tudo e tudo

apetecendo...

Um dia, a sereia declarou à mesa:

— Quero ir para terra!

— Não pode ser — respondeu o pai. — Quem tem cauda de peixe como tu, só pode viver dentro de

água, de outra forma é capaz de morrer.

A sereia teimou e tornou a teimar. Para ver se aquilo lhe passava, o velho mar mandou buscar, aos

seus tesouros, um colar de lindas pérolas, um espelho com cabo de coral e um ramo de anémonas. Mas a

sereia continuou: «Quero ir para terra!» Foi preciso o pai zangar-se. Zangou-se tanto, que nesse dia houve

ondas muito altas e furiosas.

Mas a sereia continuou a teimar e, nessa mesma noite...

Ricardo Alberty, As aventuras da pequena sereia

Page 15: Estafeta de leitura

O PESCADOR E A SEREIA

Todas as noites o jovem Pescador saía para o mar e lançava as redes. Quando o vento soprava da terra, não

apanhava nada, ou apanhava muito pouco, porque era um vento áspero, de asas negras, e altas vagas se levantavam

para o defrontar; mas quando o vento soprava para a costa, o peixe subia das profundezas do mar, nadava para as

malhas da sua rede e ele levava-o para o mercado e vendia-o. Todas as noites ele saía para o mar e uma noite a rede

estava tão pesada que ele mal podia içá-la para bordo. E, rindo, disse para consigo:

– Por certo apanhei todo o peixe do mar ou algum monstro que maravilhará os homens, ou algum ente horrível

que a grande Rainha há de desejar.

E puxou as cordas grosseiras com todas as suas forças, até as veias se lhe marcarem nos braços, como linhas de

esmalte azul dum vaso de bronze. Puxou as cordas e cada vez se aproximava mais o círculo das pequenas boias de

cortiça, até que, por fim, a rede veio à tona de água. Não havia lá, porém, nenhum peixe, nem monstro, nem ente

horrível, mas tão-somente uma pequena Sereia adormecida.

Os seus cabelos eram como um velo de ouro molhado e cada cabelo separado um fio de ouro numa taça de

cristal. O corpo era branco como marfim e a cauda de prata e madrepérola. De prata e madrepérola era a sua cauda e

as algas verdes do mar enrolavam-se em volta dela; como conchas do mar eram os seus ouvidos e os lábios como

coral. As ondas frias batiam nos frios seios e o sal brilhava-lhe nas pálpebras. Tão formosa era ela que o jovem

pescador ficou cheio de admiração quando a viu, puxou mais a rede e, debruçando-se na borda, tomou-a nos braços.

E, quando lhe tocou, ela soltou um grito como de gaivota assustada, acordou, olhou-o com os olhos de ametista cheios

de terror e lutou para se escapar. Ele, porém, apertou-a muito de encontro a si e não a deixou partir. E, quando ela viu

que não podia fugir-lhe, começou a chorar e disse-lhe:

– Peço-te que me deixes partir, porque sou a única filha dum rei e o meu pai é velho e sozinho.

Mas o Pescador respondeu-lhe:

– Não te deixarei partir sem que me prometas vir cantar para mim sempre que eu te chame, porque os peixes

adoram ouvir os vossos cantares e assim estarão sempre cheias as minhas redes.

– E realmente deixar-me-ás partir, se eu to prometer? – inquiriu a Sereia.

– Na verdade, deixar-te-ei partir – tornou o Pescador.

E ela fez-lhe a promessa que ele desejava: palavra de Sereia. Então o Pescador soltou-a dos braços e logo ela

mergulhou na água, trémula de receio. Todas as noites saía o Pescador para o mar e chamava a Sereia e ela surgia das

águas e cantava para ele.

Óscar Wilde, O Rouxinol e a Rosa

Page 16: Estafeta de leitura

O VELHO E O PEIXE

Sentiu-se de novo a desmaiar, mas segurou no grande peixe com quanta força pôde. “Mexi-o, pensou. Talvez

que desta vez o apanhe. Puxem, mãos. Aguentem, pernas. Cabeça, não me falhes. Nunca me falhaste. Desta vez,

apanho-o “.

Mas quando empregou a fundo o seu esforço, começando muito antes de o peixe estar o pé do barco, aquele

voltou-se, endireitou-se e nadou para longe.

- Peixe! - disse o velho. - Peixe! Seja como for, tu vais morrer. Precisas também de me matar?

"Assim não se consegue nada", pensou. A boca, muito seca, não o deixava falar, mas não podia chegar à água.

"Já não aguento muitas mais voltas. Sim, aguentas, disse consigo. Aguentas como nunca."

Na volta seguinte, quase o apanhou. Mas mais uma vez o peixe se endireitou e nadou devagar para longe.

"Tu estás a matar-me, peixe, pensou o velho. Mas tens todo o direito. Nunca vi uma coisa maior, ou mais bela,

ou mais serena ou mais nobre do que tu, meu irmão. Vem e mata-me. Não quero saber qual de nós mata."

"Agora estás tu a perder a cabeça, pensou. E não deves perder a cabeça. Não a percas, e aprende a sofrer como

um homem. Ou como um peixe."

- Reanima-te, cabeça - disse numa voz que mal ouvia. - Reanima-te. Duas vezes mais aconteceu o mesmo.

"Não sei", pensou o velho. Estivera a ponto de sentir-se morrer, de cada vez. "Não sei. Mas torno a tentar."

Tornou a tentar, e sentiu-se esmorecer, quando voltou o peixe. O peixe endireitou-se, e afastou-se outra vez,

lentamente, com a grande cauda balouçando no ar.

"Torno a tentar", prometeu o velho a si próprio, embora nem sentisse as mãos e apenas visse por lampejos.

Tentou de novo, e foi o mesmo. "Pois é", pensou, e sentia-se desfalecer, antes de principiar; "hei-de tornar a

tentar."

Convocou toda a sua dor, quanto lhe restava de forças, e o seu orgulho perdido, e tudo lançou contra a agonia

do peixe, e o peixe veio rente à borda e nadou mansamente junto à borda, com o nariz quase roçando o costado do

barco, e começou a passar-lhe por baixo, longo, fundo, largo, prateado, listrado de púrpura, interminável nas águas.

O velho largou a linha, calcou-a com o pé, levantou o arpão ao alto e fê-lo descer, com toda a força que tinha e

mais força que no momento invocou, pelo flanco do peixe adentro, mesmo por trás da grande barbatana peitoral que

alta se erguia no ar à altura do peito do homem. Sentiu o ferro entrar e debruçou-se sobre ele e fê-lo entrar mais e

carregou depois com o seu peso em cima.

Emest Hemingway. O Velho e O Mar

Page 17: Estafeta de leitura

O ADAMASTOR

Mas, cinco dias depois da aventura de Veloso, numa noite em que sopravam ventos prósperos, estando nós de

vigia, numa nuvem imensa, que os ares escurecia, apareceu de súbito sobre as nossas cabeças.

Tão temerosa e carregada vinha que os nossos valentes corações se encheram de pavor!

O Mar bramia ao longe, como se batesse nalgum distante rochedo. Tudo infundia pavor. E nunca na nossa

viagem tínhamos encontrado nuvem tão espessa e tão assustadora. Todas as tempestades pareciam vir dentro dela,

para de lá saírem e nos assaltarem.

Erguendo a voz ao Céu, supliquei piedade a Deus. Mal acabava de rezar e logo uma figura surgiu no ar,

robusta, fortíssima, gigantesca, de rosto pálido e zangado, de barba suja, de olhos encovados, e numa atitude feroz. Os

cabelos eram crespos e cheios de terra. A boca era negra. Os dentes amarelos. Tão grandes eram os seus membros,

que julguei ver um segundo colosso de Rodes, esse colosso que era uma das sete maravilhas do Mundo, de tal

maneira alto que, diz-se, por baixo das suas pernas passavam à vontade enormes navios!... Num tom de voz grossa,

como a voz do mar profundo, começou a falar-nos. Arrepiámo-nos todos, só de ouvir e de ver tão monstruosa criatura.

Disse então o Gigante, voltando-se para nós:

Ó Gente ousada mais do que nenhuma outra, que nunca descansais de lutas e combates, já que não temeis

ultrapassar os limites onde ninguém mais chegou, e navegar os mares que me pertencem; já que vindes devassar os

meus segredos escondidos, que nenhum humano deveria conhecer. Ouvi agora os danos que prevejo para vós, para a

vossa raça, que subjugará no entanto ainda todo o largo Mar e toda a imensa Terra. Ficai sabendo que todas as naus

que fizerem esta viagem encontrarão castigo merecido do seu atrevimento sem par - as maiores dificuldades nestes

meus domínios. E sofrerão o horror de tormentas desmedidas.

João de Barros, Os Lusíadas de Luís Vaz de CamõesContados às crianças e lembrados ao povo.

Page 18: Estafeta de leitura

DOM PLÁSTICO

Dom Plástico estava furioso. Sentia-se desconsiderado. Aquele miúdo piroso deixara-o na praia, abandonado.

— Ora santa paciência! Que espécime é este? Já não há decência? Que grande peste! Que criatura horrorosa! —

exclamava Dom Plástico, de peito feito, em polvorosa, exigindo respeito.

Não tinha muita altura, mas fazia grande figura. Nascera em berço de ouro negro, era um nobre descendente,

com origem natural, o que admirava toda a gente. Como ele havia mais, tinha muitos parentes, todos geniais, criados

em laboratório — Hum? …Como? Agora já eram demais? Mas, quando criaram os primeiros, foi um falatório.

Os cientistas repetiam: — Fantástico! Fantástico!

E logo esclareciam: — Descobrimos o Dom Plástico! (…)

Sempre que se descobria uma nova utilização, o poder de Dom Plástico crescia. Que revolução! Substituía os

outros materiais e ainda perguntava, com satisfação: — Gostaram? Querem mais?

Dom Plástico convenceu-se de que tudo acontecia conforme planeado e que ia ser usado e reutilizado, sempre

que necessário. Também queria ser reciclado. Sim, porque ele não era otário! Tinha que se manter atualizado.

Cumprida a sua função, o mínimo que exigia era um tratamento adequado à sua alta condição. Não tolerava ser

confundido com um resíduo comum, daqueles biodegradáveis, sem mais préstimo nenhum. Afinal, aquele miúdo

piroso deitara tudo a perder.

— Hei, psst… por favor, leva-me para o embalão. O ecoponto é tão perto, não me deixes ficar aqui, ao rebolão...

Isto não está certo!

Mas todos os que passavam fingiam não ver, continuavam e não queriam saber. Dom Plástico rodopiava ao

sabor do vento norte. Subitamente, uma rajada mais forte, aprisionou-o num rochedo. Ali ficou, sozinho e com medo,

junto a um pequeno lago cheio de seres marinhos que tinham ficado retidos quando a maré baixou. Logo que viram o

intruso... desataram a nadar em parafuso.

— Eu sou o peixe Barnabé. O que vi, ali na margem, pôs-me as escamas em pé. Estou sem coragem. É uma coisa

alucinante!... É um Ser... Asfixiante! ”

— Também estou apavorado, estes Seres Asfixiantes até empanturram a baleia! — acrescentou o peixe

Dourado, que só de pensar nisto quase entrava em apneia.

A notícia espalhou-se rapidamente.— Eu sou o peixe Germano e acho que o Ser Humano é muito imprevidente.

Não sabe ser gente! Pensa que a Natureza tem paciência de elástico e enche-a de Asfixiantes a que chama sacos de

plástico. O peixe Listado, grande conversador, era viajado e muito sabedor. — O que me deixa tenso é que este

plástico é pouco denso. É maleável, sabe voar e boiar, o que o torna indomável para nosso grande azar. Ali defronte,

há até quem conte que as árvores se cobrem de plásticos às cores e já não dão flores. Não pensem que as vítimas

somos só nós... Aves marinhas, crias de albatroz, são mortas aos milhares por Plásticos que andam a boiar nos Mares.

Desta conversa histérica, surgiu uma conclusão que, em rima molhada e sem métrica, foi proclamada com

convicção:

— O SER HUMANO É MAIS PREOCUPANTE QUE O ASFIXIANTE.

Maria José Moreno, “Dom plástico” in Contos da Dona Terra

Page 19: Estafeta de leitura

O PEIXINHO QUE DESCOBRIU O MAR

Cristobal nasceu num aquário. O mundo dele resumia-se a um pouco de água entre quatro paredes de vidro. Isso,

alguma areia, algas, pedras de diversos tamanhos, a miniatura em madeira de uma caravela naufragada. Ah! E trinta e

sete outros peixinhos, quase todos irmãos de Cristobal, ou primos, tios, parentes próximos. Havia ainda uma velha

tartaruga. chamada Alice, que já vivia no aquário quando os avós dos avós de Cristobal nasceram. Os peixes

acreditavam que Alice vivia no aquário desde a criação do Universo e ela deixava que eles acreditassem naquilo.

As vezes os peixes mais velhos contavam histórias que tinham escutado aos seus avós. Diziam que, para além das

paredes do aquário, longe dali, muito longe dali, havia água. tanta água. que um peixe podia passar a vida inteira a

nadar, sempre em linha reta, sem nunca bater de encontro a um vidro. A essa água imensa, onde tinham nascido os

primeiros peixes, chamava-se Mar.

Os peixes falavam do Mar como quem fala de um sonho. Cristobal tantas vezes escutou aquela história que um

dia decidiu perguntar a Alice. A tartaruga era velhíssima, devia saber, tinha de saber. Encontrou-a a tomar sol em cirna

de uma pedra. Cristobal prendeu a respiração, ergueu a cabeça acima da água, e fez-lhe a pergunta. Alice torceu a

boca numa careta de troça:

— Disparate: o Mar não existe! Não existe nada para além daquelas quatro paredes de vidro. O universo inteiro

somos nós.

Cristobal foi-se embora pensativo. Sempre que ouvia falar no mar o aquário parecia-lhe mais pequeno. Não

achava possível que os peixes, seus avós, tendo vivido sempre dentro de um aquário, tivessem conseguido inventar

uma coisa tão grande como o Mar. Ele tinha de saber a verdade. Ele queria saltar as paredes de vidro e ir à procura do

Mar. (…)

Uma manhã, muito cedo, ainda todos os peixes dormiam, Cristobal encheu-se de coragem, tomou balanço, e

saltou. Percebeu imediatamente que o mundo não terminava no aquário. Percebeu também, assustadíssimo, que o

resto do mundo era um lugar tão seco quanto a pedra onde Alice costumava descansar. Percebeu isso tarde de mais.

Estava estendido num chão de madeira e não conseguia respirar. Foi então que viu o gato. Ele não sabia o que era um

gato. Nunca tinha visto nenhum. O gato, no entanto, sabia o que era um peixe. Os peixes, na opinião do gato, eram

comida. Cristobal viu o gato e gritou:

— Ajuda-me! Vou morrer.

— Pois vais — disse o gato, que aliás, não era um gato, era uma gata, e por sinal lindíssima —, eu vou-te comer.

Cristóbal conseguia ver o aquário e do lado de lá do vidro os outros peixes. Mas eles não o podiam ver.

— Não me comas — pediu —, eu quero ver o Mar. A gata olhou para ele admirada:

— O Mar? Pois tu nunca viste o Mar?

Cristóbal, Com difculdade, porque fora da água não conseguia respirar, contou-lhe a sua história. Verónica — era

assim que se chamava a gata —, ficou com pena dele. Agarrou-o com a boca, cuidadosamente, para não o magoar, e

colocou-o numa tigela com água.

— Vou-te ajudar — disse-lhe —, porque nunca conheci ninguém tão corajoso como tu.

Nessa tarde a gatinha saiu pelos telhados à procura de Nicolau, o albatroz, um pássaro enorme, bico largo e

fundo, capaz de transportar Iá dentro uma enorme quantidade de peixes. Nicolau, velho amigo, recebeu-a com

alegria. Verónica contou-lhe a história de Cristóbal e pediu-lhe para levar o peixinho até ao mar. O albatroz achou a

ideia um pouco estranha: afinal ele tirava os peixes do mar para os comer. Mas quando Verónica o apresentou a

Cristóbal depressa se convenceu. Colocou então o peixinho dentro do bico, com uma larga porção de água, para que

ele não sentisse dificuldades em respirar, e levantou voo. (…)

— Adeus, amigo. Boa sorte!

Sacudiu o bico e soltou Cristóbal. O peixinho olhou para cima, antes de mergulhar nas águas livres do Mar e ainda

o viu agitando as asas, adeus, adeus, e desaparecer entre as nuvens altas.

José Eduardo Agualusa, “O peixinho que descobriu o mar” in Estranhões & Bizarrocos

Page 20: Estafeta de leitura

ULISSES E AS SEREIAS

— Ulisses, vamos agora entrar no mar das sereias. Não te lembras do que Circe nos recomendou? Temos de co-

locar cera nos nossos ouvidos, senão morreremos todos

Ulisses revoltou-se contra tal ideia:

— Cera nos ouvidos, eu? Só se fosse doido Eu não ponho cera nenhuma. Quero ouvir o canto das sereias. Dizem

que elas encantam os marinheiros com a sua bela voz, e eu quero sentir esse encantamento.

— Não sejas louco, Ulisses! Vais morrer atraído por elas. Sabes bem como se sentem sós no fundo do mar, no

meio da escuridão, e como precisam da companhia de quem por estas paragens passa... Sabes bem que nunca até

hoje nenhum ser vivo se gabou de as ter ouvido e ter resistido aos seus encantos. Quem as ouve, tem de morrer.

Assim o avisaram prudentemente os amigos, aflitos com a sua teimosia. Ulisses não se convencia:

— Já vos disse que quero ouvi-las. Mas se temeis que eu não consiga resistir-lhes, então atai-me bem com

cordas muito fortes ao mastro principal do navio, e assim, mesmo que eu queira ir ter com elas, não serei capaz de o

fazer...

Os marinheiros não tiveram outro remédio senão atar Ulisses muito bem atado ao mastro. E depois, sentando-

se nos seus lugares, de costas viradas para ele, recomeçaram a remar.

A princípio não se ouvia nada. Ulisses ria alto e pensava que Circe lhes tinha pregado uma boa partida. Os

companheiros, de ouvidos tapados com cera, nem o ouviam rir.

De súbito, um suavíssimo canto se elevou nos ares vindo do brilho das águas do mar, e logo outro e outro, e

muitas vozes maravilhosas chorando e cantando o envolveram.

— Ulisses, Ulisses, Ulisses— percebeu ele nitidamente.

— Quem me chama? Quem me chama? Quem me chama?— gritou ele.

— Ulisses, sou eu, Penélope, a tua mulher, e estou aqui prisioneira das sereias...

— Tu aqui, Penélope?

— Vim num navio à tua procura, e as sereias agarraram-me! Salva-me, Ulisses!

— Parem, marinheiros, parem!— gritava Ulisses.— Parem!! E torcia-se, tentando libertar-se das grossas cordas

com que estava amarrado ao mastro grande. Os marinheiros não o ouviam e continuavam a remar, a remar... a

remar...

—Ulisses, Ulisses, não passes junto de mim sem me salvar! Ulisses, Ulisses...

E o cântico chorava suavíssimo, violentíssimo, vindo de dentro das ondas, de dentro das cores, de dentro do

vento.

Ulisses sofria pavorosamente. Fazia desesperados esforços para se soltar, e já uivava para os marinheiros:

— Parem Seus estúpidos Parem!! Penélope está aqui e tenho de ir salvá-la! Parem!! Parem!!!

Mas os marinheiros não o ouviam, e de costas voltadas para ele, continuavam a remar, a remar.

a remar, a remar, a remar, a remar, a remar, a remar, a remar, a remar, a remar, a remar, a remar, a remar, a

remar, a remar, a remar, a remar, a remar, a remar, a remar.

E o cântico agora ao longe desaparecendo na distância inquieta: «Ulisses! Ulisses... oh, Ulisses...»

Tudo acalmou de repente depois. Os marinheiros pararam, baixaram os remos, tiraram a cera dos ouvidos,

espreguiçaram-se e... voltaram-se alegremente para trás.

Então ficaram suspensos, paralisados: Ulisses parecia um velho. Estava cheio de sangue e de suor. O esforço que

fizera contra as cordas com que o tinham amarrado provocara por todo o seu corpo visíveis vergões. A angústia

colava-se-lhe à cara.

Maria Alberta Menéres, in Ulisses

Page 21: Estafeta de leitura

As lágrimas são netas do mar

Vieram dizer ao Mar que o Sal andava a portar-se mal. Quem veio meter minhocas na cabeça do velho Mar foi a Areia e a Espuma. Tudo porque o Sal era bonito e não lhes ligava nenhuma. De queixinha em queixinha, disseram ao Mar que o Sal tinha uma namoradinha. Chamava-se Gota de Água. Era linda, branca, cristalina e tinha vindo do Céu Azul. As duas, com dores de cotovelo, contaram ao Mar as conversas de amor que tinham ouvido quando o Sal estava a namorar muito entretido. Então, a Areia disse que a Gota de Água falou assim para o Sal: - Meu bem amado, ..se quiseres casar comigo ..deixarás de ser salgado. E a Espuma disse que o Sal respondeu à Gota de Água: - Minha ternura, ..por ti deito o salgado fora ..e fico uma doçura. E neste disse-que-disse, as duas marotas aproveitaram a maré e de tal maneira atazanaram o velho, que os seus cabelos ficaram em pé. - O Sal virar doçura? – pensou o Pai Mar. E, ao pensar nisto, deixou entrar a tristeza e a amargura no seu imenso coração.

O Pai Mar nem queria acreditar. Então, ele, pai, criou o Sal, desde catraio até homem feito,

feito para conservar a beleza e a saúde dos habitantes do seu reino - os peixes – e o rapaz queria tornar-se doçaria? Não podia!!! Chamou o filho e disse-lhe: - Filho, tem paciência, ..se continuas com o namoro, ..considero desobediência. O Sal fez ouvidos de mercador, encolheu os ombros, e continuou o seu grande amor… pela Gotinha de Água. Ao saber o que o filho tinha decidido, o Mar ficou bravo, enraivecido, tornou-se turbilhão, e foi grande a aflição: as Ondas andaram numa fona, os Mexilhões levaram tapona, a Baleia veio respirar à tona, um Cavalo-Marinho tropeçou num penedo e partiu o focinho. Até uma Gaivota, de perna manca, que era vizinha do Mar, teve de dar à perna para não se afogar. O velho Mar, amargurado e furioso, pôs o filho fora de casa, em terra. Mas o sal não se importou. Casou. Mas, como não havia casas para alugar, o Sal e a Gota de Água foram morar para os olhos das pessoas. É por isso que, quando estamos tristes e amargurados nos nossos corações, choramos. E as nossa lágrimas são salgadas porque são filhas do Sal e da Gota de Água e… netas do Mar.

José Vaz, in Para Sonhar com Borboletas Azuis

Page 22: Estafeta de leitura

DUAS ESTRELAS

Duas estrelas vieram ter comigo. Não, não eram de cinema. Estrelas verdadeiras. Uma do

mar. Outra do céu.

- Queremos trocar de vida – disseram as duas, ao mesmo tempo.

Como é que há de ser? Não se pode virar o mundo ao contrário. O céu em cima. O mar em

baixo. Assim é que está certo.

- Não nos interessa. Faça-nos a vontade, pronto! O senhor é que inventa histórias, pois

invente mais esta – disseram as duas estrelas, muito birrentas.

Às vezes, vem ter comigo cada complicação, que nem imaginam…Tentei, muito

pausadamente, explicar às estrelas que a distância entre o céu e o mar é colossal. Os astronautas

que o digam.

- Mentira! – respingaram elas. – Na linha do horizonte encontram-se. Nós vemos.

- É uma ilusão ótica – esclareci. – Ao longe, parece que o mar e o céu se confundem, mas

nunca tal acontece. No entanto, se quiserem, experimentem e, quando lá chegarem, deem um

saltinho e troquem de posições – e ri-me, cinicamente.

Elas não ouviram mais nada. A estrela do céu partiu, que nem um cometa, em direção ao

horizonte. O mesmo fez a estrela-do-mar. Nunca mais chegavam ao fim da viagem. Deram assim a

volta ao mundo, num instante. E vieram, de novo, ter comigo.

- Não resultou – disseram. – Arranje outra solução.

Aí perdi a cabeça. Tive uma fúria – desculpem! – e dei-lhes um piparote. A estrela do céu

desmaiou. Apagou-se. E a estrela-do-mar fugiu a sete pontas.

Mas, segundo me consta, parece que conseguiram, pouco mais ou menos, os seus intentos.

Foram ter com um pintor e ofereceram-se para modelos. O pintor, muito paciente, colocou-as

num quadro. A do céu, no céu. A do mar, no mar. Tudo azul à volta.

Depois, como era muito distraído, esqueceu-se do que pintara.

Mais tarde, pendurou na parede o quadro de pernas para o ar…E elas lá estão como querem.

António Torrado,

in Da rua do contador para a rua do ouvidor

Page 23: Estafeta de leitura

O dia da Sereia

Um dia, quando o mar estava encapelado e ameaçador, veio uma onda e atirou para terra uma bela sereia de escamas reluzentes na metade inferior do corpo e pele muito branca e macia na metade superior. Fosse como peixe, fosse como mulher, era uma criatura invulgarmente estranha e atraente.

Quando recuperou os sentidos, a sereia descobriu que estava deitada em cima de uma rocha, não tendo qualquer forma de regressar ao

mar, que era o seu meio natural. Fora dele não teria muito tempo de vida.

Apareceu então na praia um jovem pescador que era pobre e triste e que nem dinheiro tinha para comprar um barco e se aventurar nas

águas. Como não podia encher as redes de peixe, andava pelas rochas a apanhar mexilhões e caranguejos. Quando cumpria essa monótona

tarefa de todos os dias, levantou ligeiramente a cabeça e viu a bela sereia que o olhava, implorando ajuda.

– Quem és tu e o que fazes aqui? – quis saber o pescador, entre fascinado e amedrontado com tão inesperada visão.

– Eu sou uma sereia do mar e fui atirada para cima desta rocha por uma onda grande e feia que tinha inveja da minha beleza. Agora

estou aqui presa e se não voltar à água acabarei por morrer.

– Não morres, não senhor – exclamou o pescador, num primeiro impulso, porque eu vou devolver-te às águas de onde vieste.

No entanto, ao olhar bem para aquela criatura fabulosa, sentiu a cabeça cheia de ideias confusas e contraditórias. Se aproveitasse a

parte de baixo, teria alimento para pelo menos uma semana. Se ficasse com a metade de cima, poderia gabar-se em toda a aldeia de ter

arranjado como namorada a mais bela rapariga que até então fora vista naquelas paragens. Mas, nem uma nem a outra solução lhe agradavam,

pois ambas eram incompletas. No fundo, ele sabia que o estranho ser que lhe pedia auxílio não era, afinal, nem peixe nem carne. Ao dar conta

da perigosa hesitação do pescador, a sereia apressou-se a fazer-lhe uma proposta:

– Se me puseres depressa dentro de água, eu virei todas as semanas, num dia certo, aqui à praia, para trazer-te ouro e prata. Será essa a

recompensa do favor que me vais fazer.

O jovem pescador, que era pobre e tinha irmãos mais novos para sustentar, não pensou duas vezes: pegou na sereia ao colo e lançou-a à

água, não sem que antes combinasse o dia e a hora em que ela o visitaria todas as semanas.

Durante anos, a bela sereia cumpriu o que prometera. Sempre que se encontrava na praia com o pescador, entregava-lhe quantidades

consideráveis de metais preciosos, que ele ia aplicando em negócios vários. Não foram necessários muitos encontros para que ele pudesse

considerar-se um homem rico.

Os anos passaram, e o pescador sentiu no corpo o peso da idade. Envelhecera. A sereia, porém, mantinha-se inalteravelmente jovem e

bela, demonstrando pertencer ao mundo das coisas eternas.

Um dia, o pescador, que já possuía casas, barcos, automóveis e outros bens que lhe dariam para viver regaladamente o tempo de várias

vidas, interrogou-se:

«Será que eu venho à praia todas as semanas para receber a minha recompensa ou para ver a sereia?» Não tardou a perceber que era a

presença da sereia e a sua beleza que o faziam percorrer aquele caminho, fizesse chuva ou sol. Ao ouro e à prata, já pouca atenção dedicava. Se

um dia ela desaparecesse, a sua vida deixaria de ter sentido.

Apesar de ter muitas pretendentes, o pescador nunca chegou a casar-se, e no dia em que a sereia, considerando cumprida a sua

promessa, deixou de aparecer na praia, sentiu que se apoderava dele uma grande tristeza e que nem toda a riqueza do mundo o voltaria a fazer

feliz. Para a recordar, mandou erguer sobre a rocha, onde muitos anos antes a encontrara, uma bela estátua de bronze, que ali permaneceria

como homenagem à sua beleza.

Solitário e triste, voltava todas as semanas ao único local onde conseguira ser feliz durante toda a sua vida.

Um dia, já muito velho e enfraquecido pela doença, sentou-se na rocha e, chorando baixinho, disse:

– Só para voltar a ver-te, minha bela sereia, eu daria toda a riqueza que acumulei ao longo destes anos!

Foi, então, que uma pequena onda com caracóis de espuma deixou aos seus pés a bela sereia, com a mesma beleza e frescura, que tinha

no primeiro encontro.

– Ainda bem que ouviste o meu chamamento – disse o pescador.

– Ainda bem que nunca deixaste de te lembrar de mim – respondeu a sereia.

Um longo e apertado abraço selou aquele reencontro de amor. Depois desse dia, nunca mais ninguém voltou a ver o pescador,

contando-se ainda hoje na aldeia muitas histórias acerca do que lhe poderá ter acontecido.

A verdade é que, no dia da semana em que, durante anos, se deu o encontro de ambos, a sereia de bronze, imóvel sobre a rocha, chora

lágrimas de felicidade, e canta uma estranha melodia que atrai os barcos para a praia, e as ondas para o areal.

Em dias de tempestade, há sempre quem afirme ter visto o pescador e a sereia sobre uma onda alta, abraçados, como dois namorados eternos na linha do horizonte.

José Jorge Letria, in Lendas do Mar

Page 24: Estafeta de leitura

A VIDA DE PI

O sol foi subindo no céu, atingiu o seu zénite e começou a baixar. Passei o dia inteiro encarapitado no

remo, só fazendo os mínimos movimentos necessários para manter o equilíbrio. Todo o meu ser estava

voltado para aquele pontinho que ia surgir no horizonte, vindo-me salvar. Era um estado curioso, um tédio

tenso que me fazia prender a respiração. Na minha memória, essas primeiras horas estão associadas a um

som que ninguém conseguiria adivinhar: não é o ganir da hiena, nem o murmúrio do mar, mas o zumbido

das moscas. Havia moscas naquele bote. Apareceram ali e ficavam voando do modo como elas fazem,

formando umas órbitas grandes e preguiçosas, a não ser quando se aproximavam uma da outra e, então,

giravam juntas em espiral, numa velocidade estonteante e zumbindo ainda mais alto.

Algumas eram corajosas o bastante para se aventurarem onde eu estava. Rodavam ao meu redor,

parecendo até uns monomotores a engasgar-se, até que acabavam por se irem embora. Não sei se eram

nativas do bote ou se tinham vindo com algum dos animais, mais provavelmente com a hiena. Mas, qualquer

que fosse a sua origem, elas não duraram muito; dois dias depois, tinham desaparecido. A hiena, ali atrás da

zebra, abocanhou algumas delas e comeu-as. Outras devem ter sido atiradas ao mar pelo vento. Talvez umas

poucas, com mais sorte, tenham chegado ao fim da vida e morrido de velhice.

À medida que ia anoitecendo, a minha ansiedade só fazia aumentar. Tudo me apavorava com relação

ao fim do dia. À noite, seria difícil um navio ver-me. À noite, a hiena voltaria à atividade e talvez Sumo de

Laranja também.

Veio a escuridão. Não havia lua. Nuvens encobriam as estrelas. Os contornos das coisas ficaram

praticamente impercetíveis. Tudo desapareceu: o mar, o bote, o meu próprio corpo. O mar ficou calmo e

quase não havia vento; portanto, eu nem me podia guiar por nenhum som. Tinha a impressão de estar a

flutuar num puro negrume abstrato. Continuei com os olhos pregados onde eu achava que ficava o

horizonte, enquanto os meus ouvidos se mantinham alertas, à espreita de qualquer sinal dos bichos. Não

imaginava que pudesse aguentar aquela noite. (…) A noite foi passando, minuto a minuto, muito devagar.

Eu estava com frio. Reparei nisso meio distraído, como se a observação não me dissesse respeito.

Amanheceu. Foi rápido, embora tenha acontecido gradualmente, de forma impercetível. Um canto do céu

mudou de cor. O ar começou a encher-se de luz. O mar calmo abriu-se ao meu redor como um grande livro.

Mas eu ainda sentia que era noite. De repente, já era dia. Só começou a aquecer quando o sol, parecendo

uma laranja acesa como uma lâmpada elétrica, despontou no horizonte, mas não precisei de esperar tanto

para a sentir. Com os primeiros raios de luz, ela surgiu em mim, viva: era a esperança. À medida que as

coisas iam aparecendo, simples contornos cheios de cores, a esperança crescia até se instalar como uma

cantiga no meu coração. Ah, como era bom aquecer-me daquela maneira! As coisas iam resolver-se. O pior

já tinha passado. Eu tinha sobrevivido à noite. Hoje, seria resgatado.

Yann Martel, in A vida de Pi

Page 25: Estafeta de leitura

PINOK E BALEOTE

Numa daquelas manhãs de pesca, estava eu a tirar peixe da água lá na minha enseada, quando oiço som

familiar:

— Vuushh! Olá Djon! Bu sta sabi mininu?

Era o meu amigo do mar!

— Baleote, que surpresa!

— Djon, tenho uma coisa muito importante para te dizer. Um amigo serve para ajudar... não é? Pois então

escuta com atenção.

— Estás a deixar-me assustado. Disse eu.

— Essa chuva, tão esperada por todos, vai ser muito forte, enchendo levadas, arrastando o gado ribeira abaixo e

o vento arrancará acácias pelo pé. É melhor que a tua gente tome abrigo, pois no mar o aviso de tormenta já corre

veloz. Agora vou-me embora para perto da minha mãe, pois no fundo do oceano a tempestade sente-se menos.

E com isto, foi-se embora mergulhando nas ondas.

— Mas espera... Ka bu bai!

De regresso à Calheta, procurei meu pai entre as embarcações adormecidas na praia.

— Papai, o meu amigo Baleote avisou-me que se aproxima uma grande tempestade. Melhor que todos

procuremos abrigo e guardemos o gado dentro de portas, pois a chuva vai ser brava e o vento muito forte!

— Filho, não vês que teu pai está ocupado a consertar as redes? Assim perco a atenção na agulha.

— É verdade, não é mentira, não!

Poisou a rede no chão, espetando a agulha de madeira na areia e, com um belo sorriso, disse passando as mãos

pelo meu cabelo duro:

— Não tenhas medo Djon, mesmo que uma tormenta venha a teu pai segura-te para que o vento não te leve.

Nem meu pai acreditava em mim...

Resolvi avisar os outros pescadores que aquela estariam na taberna de nhu Djonzinho, bebendo grogu, uma

aguardente de cana que se bebe por aqui. Feito o relato, nhu Djonzinho saiu do balcão, enxotando-me com o pano da

loiça.

— Vai embora Pinok, vai passear fantasia para outro lado!

Nessa noite, o mar agigantou-se, as portadas da casa bateram violentamente e as bátegas de chuva irromperam

de um céu cor de chumbo. O vento começou por assobiar pelas frinchas da casa e, em breve, arrancava a acácia do

quintal com um ruído surdo.

Meu pai levantou-se dando ordens de abrigo e recolha da burra, mas o pobre animal tinha-se perdido no breu

agitado. As ondas do mar, num clamor apressado, pareciam dizer: Está tudo perdido! Está tudo perdido!

Sandrinha chorava no colo de minha mãe, enquanto eu, com água e lágrimas nos olhos, ajudava meu pai a

barrar a porta ao vento. A ribeira do dragoeiro, que engrossara com tanta água, levava tudo em direção à praia, numa

sopa lamacenta e rápida.

A manhã rompeu em silêncio; só cortado pelo piar solitário do gintxu.

Na praia os homens calados olhavam para os barcos destroçados e as redes perdidas.

Miguel Horta, in Pinok e Baleote

Page 26: Estafeta de leitura

FERNÃO CAPELO GAIVOTA

Como sabem, as gaivotas nunca hesitam, nunca se desequilibram. Desequilibrar-se no ar é para elas

uma desgraça e uma desonra. Mas Fernâo Capelo Gaivota não era um pássaro vulgar. Sem se atrapalhar,

abriu de novo as asas naquela difícil curva, abrandou e desequilibrou-se outra vez.

A maior parte das gaivotas não se querem incomodar a aprender mais que os rudimentos do voo,

como ir da costa à comida e voltar. Fara a maior parte das gaivotas, o que importa não é saber voar, mas

comer. Para esta gaivota, no entanto, o importante não era comer, mas voar. Mais que tudo, Fernão Capelo

Gaivota adorava voar.

Como veio a descobrir, esta maneira de pensar não o fazia muito popular entre as outras aves. Até os

próprios pais se sentiam desanimados ao verem que Fernão passava os dias sozinho, a experimentar,

fazendo centenas de voos rasos. Não sabia porquê, mas, por exemplo, quando voava sobre a água a uma

altitude inferior ao comprimento das suas asas abertas, conseguia manter-se no ar durante mais tempo e

com menos esforço. Os seus voos não acabavam com o habitual mergulhar de patas abertas no mar, mas

com um poisar leve, de patas bem unidas ao corpo. Quando começou a poisar em pé sobre a praia e depois

a medir o comprimento da aterragem, os pais ficaram deveras preocupados.

—Porquê? Fernão, porquê? — perguntava-lhe a mãe. — Por que não podes ser como o resto do

bando? Por que não deixas os voos rasos para os pelicanos e para o albatroz? Por que não comes? Filho, és

só penas e osso!

—Não me importo de ser apenas ossos, mãe. Só quero saber aquilo que consigo fazer no ar, e o que

não consigo, mais nada. Só quero saber.

— Ouve lá, Fernão — disse-lhe o pai com bondade.

— O Inverno aproxima-se. Haverá poucos barcos, e o peixe das superfícies irá para zonas mais

profundas. Essa história dos voos está muito bem, mas sabes que não te podes alimentar disso. Se tens

mesmo de estudar, então estuda a comida e a forma de a conseguir. Não te esqueças de que a razão por que

voas é comer. Fernão baixou a cabeça, obediente. Durante os dias seguintes tentou comportar-se como os

outros; tentou mesmo a sério, disputando com o resto do bando a comida junto dos pontões e dos barcos

de pesca, mergulhando para apanhar pedaços de peixe e pão. Mas não conseguiu. «E tão inútil», pensou,

deixando cair deliberadamente uma anchova, que lhe custara bastante apanhar, aos pés de uma velha

gaivota que o perseguia. Poderia ter passado todo este tempo a aprender a voar. E há tanto que aprender!

Richard Bach, in Fernão Capelo Gaivota

Page 27: Estafeta de leitura

OS PIRATAS

Ficámos os dois muito quietos, escondidos entre as enxárcias do mastro da mezena. O velho chegou-se

perto de mim:

— Não faças barulho. É um navio de piratas. Passaram aqui a noite por causa do nevoeiro. Vão assaltar

a vila e pilhar tudo. Mas o pior é que raptam as mulheres e levam-nas com eles. Temos de salvar a ilha!

— E se nos descobrem?

— Se nos descobrem, enforcam-nos ou atiram-nos ao mar; não faças barulho.

Os piratas corriam no convés de um lado para o outro, e um de grande chapéu, barba negra e olhos

brilhantes esquadrinhava a costa com um óculo e resmungava: «Onde está o raio do porto? Onde está o

porto?» Depois ia à bitácula olhar a bússola e voltava, coxeando, à amurada perscrutando a ilha, envolta em

névoa.

— Alem a vela, suas bestas! Braceiem-me as vergas, que o vento dá de popa! — berrava da ponte para

os marinheiros.

A algazarra era enorme. Pelas escadas de bombordo subiam piratas carregando braçadas de espadas e

de fuzis. Outros subiam aos mastros à procura das luzes da vila. O capitão, a falar sozinho, entre dentes,

aproximou-se do sítio onde estávamos sempre a olhar pelo óculo. E, dando comigo, gritou:

— E tu, que estás aqui a fazer, grumete? Vai-me lá abaixo buscar outra garrafa!

Levantei-me cheio de medo e ele empurrou-me e tornou a gritar:

— De que estás à espera? Mexe-me essas pernas ou mando atirar-te aos tubarões!

— Vai — disse-me o velho baixinho. — Faz o que ele diz...

Desci as escadas e fui ao camarote. Peguei em duas garrafas sujíssimas de debaixo do beliche e trouxe-

lhas.

— Agora põe-te a mexer! Vai guardar os lampiões! E apanha o lenço, não quero ver ninguém sem o

lenço na cabeça!

Ao meu lado, no chão, estava um lenço vermelho que alguém, algum marinheiro, acho eu, deixara cair.

Apanhei-o e voltei para o pé do velho, a tremer.

— Ufa! — disse ele. — Safámo-nos de boa... Anda, além estamos melhor; aqui ainda nos descobrem.

Fui atrás dele em silêncio. Nessa altura, o capitão soltou um urro medonho:

— Terra! É aqui, tudo a estibordo, tudo a estibordo!

Manuel António Pina, in Os piratas

Page 28: Estafeta de leitura

Sexta-feira ou a vida selvagem

Robinson começou a percorrer toda a ilha, chamando por Sexta-Feira. Correu de uma praia a outra, das falésias

às dunas, das florestas aos pântanos, do monte de pedras aos prados, cada vez mais desesperado, tropeçando e

gritando, cada vez mais convencido de que Sexta- Feira o traíra e abandonara. Mas porquê? porquê?

Lembrou-se então da admiração de Sexta-Feira pelo belo barco branco, e de como saltava, muito feliz, rindo, de

uma verga para outra, muito acima das ondas. Era isso: Sexta-Feira fora seduzido por aquele novo brinquedo, mais

maravilhoso do que todos os que ele próprio construíra na ilha.

Robinson sentia-se esmagado pela dor.

(...) Apesar de tudo, porém, não queria que o seu corpo fosse despedaçado por aquelas aves necrófagas.

Lembrou-se então do fundo da gruta, onde passara horas tão boas.

Encaminhou-se, portanto, a passos curtos, para o amontoado de rochas que se erguia no local da gruta. Depois

de muito procurar encontrou, com efeito, uma abertura estreita, como uma passagem para gatos, mas sentia-se a tal

ponto mirrado pelo desgosto que tinha a certeza de poder passar. Meteu a cabeça, para tentar ver se a passagem

conduzia realmente ao fundo da gruta. Nesse momento, ouviu uma coisa mexer-se lá dentro. Uma pedra rolou e

Robinson recuou. Um corpo obstruiu a fenda e passou por ela, com algumas contorções. Robinson tinha na sua frente

uma criança, com o braço direito dobrado sobre a testa, para se proteger da luz ou receando uma bofetada. Robinson

estava atónito.

- Quem és tu? Que fazes aqui? - perguntou-lhe.

- Sou o grumete do «Whitebird» - respondeu o rapaz. - Queria fugir daquele barco, era tão infeliz. Ontem,

enquanto servia à mesa do comandante, haveis-me olhado com bondade. Ouvi- vos dizer, depois, que não partirieis.

Resolvi esconder-me na ilha e ficar convosco.

- E Sexta-Feira? Viste Sexta-Feira? - insistiu Robinson.

- Justamente! Esta noite, eu tinha conseguido atravessar o convés e ia atirar-me à água para tentar chegar à

praia a nado, quando vi um homem acostar com uma piroga. Era o vosso criado mestiço. Subiu a bordo com uma

pequena cabra branca. Entrou na cabina do imediato, que parecia estar à espera dele. Percebi que ele ficava no navio.

Nadei então até à piroga e subi para dentro dela. Remei depois até à praia.

É por isso que as duas embarcações estão lá! - exclamou Robinson.

Escondi-me no meio das rochas - prosseguiu o paquete. - Agora, o «Whitebird» foi-se embora sem mim, e fico a

viver convosco!

- Como te chamas? - perguntou Robinson ao grumete.

- Chamo-me Jean Neijapaev. Nasci na Estónia - acrescentou ele, como para se desculpar de ter um nome tão

difícil.

- De agora em diante – disse-lhe Robinson – chamar-te-ás Domingo. É o dia das festas, dos risos e dos jogos. E,

para mim, serás sempre um filho do domingo.

Michel Tournier, in Sexta-feira ou a vida selvagem

Page 29: Estafeta de leitura

O caranguejo verde

No grande mar azul, junto às grandes rochas roídas pelas ondas e pelo vento, vivia um pequeno caranguejo

verde. Gastava o dia a trepar pelas muralhas de pedra, em correrias desengonçadas. De tão desajeitado, todos

troçavam dele.

Voavam as brancas gaivotas no ar e no seu voo liso, pareciam preguiçosas bailarinas cansadas de dançar. Às

vezes pousavam nas rochas negras; o pequeno caranguejo ficava a olhá-las, enquanto penteavam as longas penas

finas, brancas, com a vaidade de quem se sente belo e admirado. As penas velhas caíam sobre as pedras, mas mesmo

essas eram ainda tão leves e macias que o caranguejo verde, de casca dura, rugosa sonhava ter um vestido assim

lindo, leve, branco como uma espuma, um vestido que o fizesse voar.

Então, em segredo, todas as noites, quando os bichos dormiam e as próprias estrelas piscavam os olhos de

sono, o pequeno caranguejo saía da sua toca para apanhar as penas caídas. Tantas foi juntando, tantas e tão belas,

que o feio esconderijo de pedra mais parecia um ninho de pássaros.

Já ninguém agora via o caranguejo trepar pelos rochedos, arrastado e triste, pois o seu prazer era unir as penas,

de forma a arranjar um vestido da mais fina penugem, com longas asas brancas como as das gaivotas, para parecer

uma delas.

— Que será feito do caranguejo verde? — perguntavam as algas.

— Nunca mais se viu... Terá fugido com vergonha de ser tão feio.

— respondiam os peixes, e as ondas brincalhonas ficavam a cantarolar:

Caranguejo / não te vejo / caranguejo / não te vejo.

O caranguejo fingia nada ouvir, continuando a trabalhar no seu disfarce. Faltava-lhe só uma touca de penas.

Os polvos peganhentos e senhores de tantos braços, que viviam também nas rochas, andavam intrigados,

censurando entre si:

— Ora esta, ir-se embora sem avisar os vizinhos! Este caranguejo, afinal, não presta para nada e ainda por cima

é malcriado! O caranguejo ria, ria sozinho ao escutar tais conversas, no seu buraco, mascarado de gaivota.

Até que um dia, quando o sol ia bem alto no céu, com a cara redonda e quente toda a faiscar labaredas, voltada

para o negro castelo de rochas, o caranguejo saiu, majestosamente, do esconderijo, branco como um nenúfar, uma

noiva, uma espuma, uma gaivota. O próprio sol se ia deixando cair, de espanto, na praia. Pararam as ondas, com as

cristas erguidas. Os peixes ficaram com as bocas abertas. E o vento, mais atrevido, soprou de mansinho, que era essa a

sua maneira de cumprimentar.

Com a saudação, o caranguejo, de tão leve, voou pelo ar, ondejando lentamente, admirado e trémulo com a sua

proeza. Quando tornou a cair nas rochas já os polvos, os ouriços, os mexilhões, as algas estavam atónitos, a admirá-lo

e as próprias gaivotas vinham descendo dos seus passeios pelas nuvens.

— Que belo! Que gentil! Que pássaro maravilhoso! — exclamavam uns e outros.

— Que brancura! Que ligeireza! Que graça!

O pequeno caranguejo verde agradecia tanta simpatia, por baixo do seu disfarce, sorrindo.

Luísa Ducla Soares, in O caranguejo verde

Page 30: Estafeta de leitura

O guarda da praia

Lá cheguei por fim ao rochedo e agarrei-me o melhor que pude, embora os limos o tornassem escorregadio

como pele viscosa.

— E agora? — inquiri, temendo o pior.

— Agora, vês-me mergulhar duas vezes com atenção. A seguir, sobes para aqui e atiras-te — declarou, como se

se tratasse da coisa mais simples do mundo.

O coração começou a bater novamente num ritmo alucinante. O Dunas levantou-se e, sem vacilar, assumiu a

posição correta para um mergulho de cabeça. Esticou os braços, elevou-se nos ares entre a névoa da manhã e fendeu

o azul a pique, como um golfinho, sem fazer saltar uma única gota de água. .Observei-o, impassível, tentando registar

todos os seus movimentos, para não fazer má figura quando chegasse a minha vez. O segundo mergulho foi idêntico

ao primeiro, mas to rápido que quase não pude seguir-lhe a trajetória. No fim da sessão de demonstração, colocou-se

ao lado da rocha e incitou-me:

— Vá, sobe! Viste como se faz, não viste?

Acenei-lhe afirmativamente, embora estivesse consciente de que iria ser um autêntico desastre. Contudo, subi a

custo para o rochedo, apoiei os pés com toda a força para não escorregar e, quando me senti finalmente direita, parei,

sustendo a respiração. Aquilo era uma perfeita loucura. Eu só podia estar demente. Não havia sequer um banheiro

que pudesse vir salvar-me, caso tudo desse para o torto, como era de prever. O Dunas, sempre vigilante, leu-me os

pensamentos e quis tranquilizar-me:

— Vá lá! Eu estou aqui!

Fechei os olhos, respirei o mais fundo que pude, tão fundo que senti o mar inteiro invadir-me a alma. Recordo

que rezei mentalmente uma oração curta que inventei na altura e estiquei os braços. No instante seguinte, estava

debaixo de água, lutando para voltar à superfície. Quando consegui abrir os olhos, senti um ardor intenso no peito e

na barriga.

— Que grande chapão! — riu-se o meu instrutor. — Entraste mal. Agora tens de repetir.

Estava demasiado atordoada para falar e nem ousei contrariá-lo ou ralhar-lhe pela falta de cortesia. Nadei até à

rocha, subi com uma força nova (nascida toda do despeito que acabara de sentir), coloquei-me em posição e saltei.

Sem preparação psicológica. Sem me dar tempo a qualquer arrependimento.

— Foi um bocado melhor — disse-me, quando me viu irromper das profundezas. — Mas os pés não estavam

juntos.

Irritei-me:

— Olha lá, Dunas, não achas que já chega de críticas?! Eu não sou como tu. Nunca fiz isto na vida!

(…)

Resolvemos então regressar à praia, mas, quando olhei o mar, sobressaltei-me. As ondas tinham aumentado

consideravelmente e era preciso passá-las para chegar à areia.

Maria Teresa Maia Gonzalez, in O guarda da praia

Page 31: Estafeta de leitura

O PELICANO E O CARANGUEJO

Nas margens do grande lago viviam muitas rãs e muitos caranguejos que tinham feito amizade com os peixes. Um dia

apareceu por lá um pelicano e todos o olharam com desconfiança. Mas ele gostou do ambiente e decidiu instalar-se para ficar.

Para se tornar simpático garantiu que não fazia mal a ninguém.

— Tens um grande bico - disse-lhe a rã muito desconfiada.

— Nasci assim, amiga rã. Cada um é como é.

— E comes o quê? — perguntou o caranguejo também desconfiadíssimo.

— Nada que haja aqui por perto. Quando precisar de comer, voo para longe e volto de barriga cheia.

Os peixes tinham vindo à tona de água e escutavam a conversa sem participar. Falaria verdade aquele passarão?

— Logo se vê— disse o chefe do cardume. — Por agora, o melhor é nadarmos para longe.

O pelicano, que os observava pelo canto do olho, fingiu que não os via e continuou a falar com as rãs e com os caranguejos.

Contou-lhes histórias fantasiosas das suas viagens, quis saber quem mais vivia por aquelas bandas, gabou a beleza das árvores e a

cor das águas, enfim, conseguiu o que queria. Ao anoitecer já todos acreditavam que o recém-chegado se tornaria um bom

companheiro, um bom amigo. E o pelicano soube aproveitar-se da situação. De manhã voava para longe e ia pescar noutros lagos.

Depois, com a barriga cheia, voltava para a floresta e entretinha os vizinhos contando histórias inventadas por si. Algum tempo

depois começou a sentir-se cansado e muito aborrecido por não poder pescar ali mesmo, em frente de casa.

«Tenho de resolver isto o mais depressa possível», pensou. «Se os habitantes da floresta acreditam em tudo o que eu digo,

basta inventar uma boa história e eles nem percebem que estão a ser enganados.»

Não precisou de dar muitas voltas à cabeça porque era um pelicano muito imaginativo. Nessa tarde apareceu com cara de

caso e anunciou:

— Más notícias, amigos. Este lago vai secar.

— Secar? Mas tem tanta água!

— Pois tem. É uma pena que desapareça, faz muita falta.

— Se faz! — agitaram-se os peixes. — Sem água, morremos todos.

— Nós ainda podemos saltar daqui para fora— disseram as rãs.

— E nós também podemos meter-nos ao caminho disseram os caranguejos.

— Para nós é que não há solução! — Choravam os peixes.

— Se quiserem levo-os para outro lago. Já viram o tamanho do meu bico? Posso transportar muitos peixes de cada vez.

Preparem-se, escolham quem vai primeiro, e partimos imediatamente porque as águas vão começar a desaparecer hoje mesmo.

Aquelas palavras afligiram todos os habitantes da floresta. Uns fugiram aos saltos, outros a rastejar, outros a voar. Só um

caranguejo velho e preguiçoso decidiu permanecer no seu canto.

«Quero ver descer as águas», pensou. «Depois lá irei, com o meu vagar, já não tenho idade para correrias.»

O pelicano entretanto abrira o bico e muitos foram os peixes que saltaram lá para dentro. Ele então bateu as asas e

afastou-se sobrevoando a copa das árvores a grande velocidade.

O velho caranguejo manteve-se de olhar fixo nas margens do lago. A que horas começariam a baixar as águas? Esperou,

esperou, e as águas não baixaram. No dia seguinte, quando o pelicano apareceu, o caranguejo chamou-o.

— Sinto-me muito cansado para fazer viagens por terra. Leva-me no teu bico para o lugar onde deixaste os peixes.

O pelicano acedeu todo contente. Tinha comido os peixes que transportara na véspera, apetecia-lhe saborear um

caranguejo.

Quando aterraram no rochedo onde o pelicano tinha comido os peixes, o caranguejo viu tudo coberto de espinhas e

percebeu de imediato o que se tinha passado. Então saltou do bico do pelicano para fora e gritou:

— Mentiroso! Mentiroso!

Ainda tentou quebrar-lhe uma perna com as tenazes, mas o pelicano voou para longe e nunca mais apareceu.

Isabel Alçada e Ana Maria Magalhães, in O pelicano e o caranguejo

Page 32: Estafeta de leitura

História de uma gaivota e do gato que a ensinou a voar

O gato grande, preto e gordo estava a apanhar sol na varanda, ronronando e meditando acerca de como se estava

bem ali, recebendo os cálidos raios pela barriga acima, com as quatro patas muito encolhidas e o rabo estendido.

No preciso momento em que rodava preguiçosamente o corpo para que o sol lhe aquecesse o lombo ouviu o

zumbido provocado por um objeto voador que não foi capaz de identificar e que se aproximava a grande velocidade.

Atento, deu um salto, pôs-se de pé nas quatro patas e mal conseguiu atirar-se para um lado para se esquivar à gaivota que

caiu na varanda.

Era uma ave muito suja. Tinha todo o corpo impregnado de uma substância escura e malcheirosa.

Zorbas aproximou-se e a gaivota tentou pôr-se de pé arrastando as asas.

— Não foi uma aterragem muito elegante —miou.

— Desculpa. Não pude evitar — reconheceu a, gaivota.

— Olha lá, tens um aspeto desgraçado. Que é isso que tens no corpo? E que mal que cheiras! — miou Zorbas.

— Fui apanhada por uma maré negra. A peste negra. A maldição dos mares. Vou morrer — grasnou a gaivota num

queixume.

— Morrer? Não digas isso. Estás cansada e suja. Só isso. Porque é que não voas até ao jardim zoológico? Não é longe

daqui e lá há veterinários que te poderão ajudar — miou Zorbas.

— Não posso. Foi o meu voo final — grasnou a gaivota numa voz quase inaudível, e fechou os olhos.

— Não morras! Descansa um bocado e verás que recuperas. Tens fome? Trago-te um pouco da minha comida, mas

não morras — pediu Zorbas, aproximando-se da desfalecida gaivota.

Vencendo a repugnância, o gato lambeu-lhe a cabeça. Aquela substância que a cobria, além do mais, sabia

horrivelmente. Ao passar-lhe a língua pelo pescoço notou que a respiração da ave se tornava cada vez mais fraca.

— Olha, amiga, quero ajudar-te mas não sei como. Procura descansar enquanto eu vou pedir conselho sobre o que se

deve fazer com urna gaivota doente – miou Zorbas preparando-se para trepar ao telhado.

Ia afastar-se na direção do castanheiro quando ouviu a gaivota a chamá-lo.

— Queres que te deixe um pouco da minha comida? — sugeriu ele algo aliviado.

— Vou pôr um ovo. Com as últimas forças que me restam vou pôr um ovo. Amigo gato, vê-se que és um animal bom

e de nobres sentimentos. Por isso, vou pedir-te que me faças três promessas. Fazes? — grasnou ela , sacudindo

desajeitadamente as patas numa tentativa falhada de se pôr de pé.

Zorbas pensou que a pobre gaivota estava a delirar e que com um pássaro em estado tão lastimoso ninguém podia

deixar de ser generoso.

— Prometo-te o que quiseres. Mas agora descansa — miou ele compassivo.

— Não tenho tempo para descansar. Promete-me que não comes o ovo — grasnou ela abrindo os olhos.

— Prometo que não te como o ovo — repetiu Zorbas

— Promete-me que cuidas dele até que nasça uma gaivotinha.

— Prometo que cuido do ovo até nascer a gaivotinha.

— E promete-me que a ensinas a voar — grasnou ela fitando o gato nos olhos.

Então Zorbas achou que aquela infeliz gaivota não só estava a delirar como estava completamente louca.

— Prometo ensiná-la a voar. E agora que vou em busca de auxilio — miou Zorbas trepando de um salto para o

telhado.

Kengah olhou para o céu, agradeceu a todos os bons ventos que a haviam acompanhado e, justamente ao exalar o

último suspiro, um ovito branco com pintinhas azuis rolou junto do seu corpo impregnado de petróleo.

Luís Sepúlveda, in História de uma gaivota e do gato que a ensinou a voar