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Estranhamentos e identidades Direitos humanos, cidadania e o sujeito migrante Representações em textos diversos Mary Garcia Castro * São focalizadas representações sobre o migrante, com ênfase em temas de direitos humanos e cidadania, debatendo-se tais conceitos. Combinam-se reflexões e pesquisas em textos de jornais, entre início de 2003 e fevereiro de 2004 em diversos paises. Classificam-se manchetes, indicações de movimentos contraditórios, mas complementares, quais sejam: a mais alta diapasão da voz e da assunção de sentimentos contra o outro, o migrante, pelos ditos nacionais, principalmente em países da União Européia e nos Estados Unidos, e a ampliação dos movimentos de solidariedade e dos protestos, inclusive articulados pelos próprios migrantes. Antes do capítulo sobre o migrante na mídia, algo sobre a sua representação na literatura, ilustrando a plasticidade quanto a sentidos dos conceitos de migrante e estrangeiro. Ao final, uma reflexão sobre o conceito de estranhamento, questionando fronteiras entre nacionais e migrantes. Palavras-chave: Migrante. Cidadania. Direitos humanos. Estranhamento. Os conceitos de direitos humanos e de cidadania, e o texto entre textos Direitos humanos e cidadanias Vive-se o paradoxo hoje do discurso sobre direitos humanos, cidadania, o reconhecimento de identidades diversas e ambiências de violências institucionais, desigualdades globalizadas, controles por perspectiva de segurança nacional, e direito de Estado que atropela direitos mínimos de privacidade e de integridade biopolítica 1 de cidadãos. Violações di- geridas pela opinião pública como necessárias, pois dirigidas contra um outro, um estranho, como um possível terrorista, um estrangeiro, um migrante que está em R. bras. Est. Pop., São Paulo, v. 22, n. 1, p. 5-28, jan./jun. 2005 * Professora da UCSAL, pesquisadora da Unesco-Brasil; pesquisadora associada da Unicamp-Cemi –Centro de Estudos Migratórios; membro da Comissão Nacional de População e Desenvolvimento; integrante da Comissão Global de Migrações Internacionais e professora aposentada da UFBA. 1 Giorgio Agamben filósofo e professor na Universidade de Veneza e na Universidade de Nova York, em artigo para o jornal Le Monde, intitulado “Não à tatuagem biopolítica”. Ele considera que o fichamento dos estrangeiros por técnicas de controle das características biológicas, por impressões digitais, por exemplo, seria uma prática de controle próxima à tatuagem usada em Auschwitz “como a maneira mais normal e mais econômica de organizar a inscrição e o registro dos deportados nos campos de concentração”. Esse autor adverte que o que seria iniciado como prática de controle contra a entrada de terroristas em território norte-americano aproxima-se de um “controle e manipulação dos corpos em direção ao que Foucault chamava de animalização progressiva do homem, implementada por técnicas mais sofisticadas”. Segundo Agaben: “A tatuagem biopolítica que os Estados Unidos nos impõem nesse momento para podermos penetrar em seu território pode muito bem ser o sinal precursor daquilo que, futuramente, nos será exigido aceitar como a inscrição normal da identidade do bom cidadão nos mecanismos e engrenagens do Estado. É por isso que devemos nos opor a ela” (Agaben, 2004).

Estranhamentos e identidades - pucsp.br · e do Cidadão, de 1789, uma das conquistas da Revolução Francesa, é somente em 1948, com o término da Segunda Guerra Mundial, que, criada

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Estranhamentos e identidadesDireitos humanos, cidadania e o sujeito migrante

Representações em textos diversos

Mary Garcia Castro*

São focalizadas representações sobre o migrante, com ênfase em temas dedireitos humanos e cidadania, debatendo-se tais conceitos. Combinam-sereflexões e pesquisas em textos de jornais, entre início de 2003 e fevereiro de2004 em diversos paises. Classificam-se manchetes, indicações de movimentoscontraditórios, mas complementares, quais sejam: a mais alta diapasão da voz eda assunção de sentimentos contra o outro, o migrante, pelos ditos nacionais,principalmente em países da União Européia e nos Estados Unidos, e a ampliaçãodos movimentos de solidariedade e dos protestos, inclusive articulados pelospróprios migrantes. Antes do capítulo sobre o migrante na mídia, algo sobre asua representação na literatura, ilustrando a plasticidade quanto a sentidos dosconceitos de migrante e estrangeiro. Ao final, uma reflexão sobre o conceito deestranhamento, questionando fronteiras entre nacionais e migrantes.

Palavras-chave: Migrante. Cidadania. Direitos humanos. Estranhamento.

Os conceitos de direitos humanos e decidadania, e o texto entre textos

Direitos humanos e cidadanias

Vive-se o paradoxo hoje do discursosobre direitos humanos, cidadania, oreconhecimento de identidades diversase ambiências de violências institucionais,

desigualdades globalizadas, controles porperspectiva de segurança nacional, edireito de Estado que atropela direitosmínimos de privacidade e de integridadebiopolítica1 de cidadãos. Violações di-geridas pela opinião pública comonecessárias, pois dirigidas contra um outro,um estranho, como um possível terrorista,um estrangeiro, um migrante que está em

R. bras. Est. Pop., São Paulo, v. 22, n. 1, p. 5-28, jan./jun. 2005

* Professora da UCSAL, pesquisadora da Unesco-Brasil; pesquisadora associada da Unicamp-Cemi –Centro de Estudos Migratórios;membro da Comissão Nacional de População e Desenvolvimento; integrante da Comissão Global de Migrações Internacionais eprofessora aposentada da UFBA.1 Giorgio Agamben filósofo e professor na Universidade de Veneza e na Universidade de Nova York, em artigo para o jornal Le Monde,intitulado “Não à tatuagem biopolítica”. Ele considera que o fichamento dos estrangeiros por técnicas de controle das característicasbiológicas, por impressões digitais, por exemplo, seria uma prática de controle próxima à tatuagem usada em Auschwitz “comoa maneira mais normal e mais econômica de organizar a inscrição e o registro dos deportados nos campos de concentração”. Esseautor adverte que o que seria iniciado como prática de controle contra a entrada de terroristas em território norte-americanoaproxima-se de um “controle e manipulação dos corpos em direção ao que Foucault chamava de animalização progressiva dohomem, implementada por técnicas mais sofisticadas”. Segundo Agaben: “A tatuagem biopolítica que os Estados Unidos nosimpõem nesse momento para podermos penetrar em seu território pode muito bem ser o sinal precursor daquilo que, futuramente,nos será exigido aceitar como a inscrição normal da identidade do bom cidadão nos mecanismos e engrenagens do Estado. É porisso que devemos nos opor a ela” (Agaben, 2004).

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situação “irregular” – termo que já demarcafronteiras.

Por tais ambiências, entretanto, cadavez mais o outro sou eu, somos nós, e asfronteiras entre os regulares e os irregularessão diluídas por métodos próprios paradocumentar os antes tidos como marginaisem estabelecimentos policiais – comosugere o fichamento de turistas em aero-portos dos Estados Unidos. Assim, sepreanuncia a fluidez das fronteiras entreidentidades, já que no futuro, possivelmente,“a classe perigosa será toda a humani-dade”, como adverte Agamben (2004) (vernota 1).

O migrante, em particular o sem-papéis,ainda que uma figura histórica, é um reapre-sentado, uma construção de intenções, adepender dos interesses e da época. E isso,nos mais diversos textos, das mais distintasinscrições, estilos e tendências políticas epelos mais diferentes propósitos, quer talconstrução se oriente pela defesa de seusdireitos sobre sua potencialidade de fazerfrente ao Império ou à globalização comonovo sujeito da revolução (Hardt e Negri,2000), quer pela prescrição do seu controlee incriminação, como advogam principal-mente representantes da nova direita naEuropa e nos Estados Unidos. Independen-temente das intenções, o migrante comu-mente é um outro representado, “assujeitado”.

Tal remodelação de sentidos se dámesmo em textos de defesa dos direitoshumanos dos indivíduos, entendendo-ostanto como os construtos de cidadania civiljuridicamente promulgados, quanto comoos eticamente acordados entre naçõesvia ONU e ainda como “idéia utópica derespeito e tolerância, de denúncia deviolências diversas até vários e singularesconceitos sobre aquilo que as pessoas eos grupos, com suas particularidadesculturais, vêem como direitos humanos”(Catella, 2001, p. 36).

O paradoxo é que com aquela repre-sentação dos direitos de outros fere-se o

2 “Se a discussão sobre os direitos do homem inicia-se no século XVIII, com o ordenamento jurídico dos Estados e, no século XIX,toma corpo, com o estabelecimento da ordem burguesa, cujo marco de maior expressão foi a Declaração dos Direitos do Homeme do Cidadão, de 1789, uma das conquistas da Revolução Francesa, é somente em 1948, com o término da Segunda GuerraMundial, que, criada a ONU, os direitos humanos passaram a fazer parte da agenda internacional”. (2001, p. 28-35 ).

primeiro artigo, instituído na Declaração dosDireitos do Homem aprovada pelas NaçõesUnidas em 1948, qual seja o direito a tervoz e, por aí, o reconhecimento da diversi-dade e do direito dos indivíduos à auto-representação de seus direitos.

Entretanto, como não ferir tal artigo quan-do o migrante se encontra precisamente nafronteira entre os direitos dos seres huma-nos e o direito do Estado? Se sem papéis,sem o aval do Estado, sem uma cidadanialegal pode apenas ser representado por ter-ceiros. Essa é uma das armadilhas do pen-samento liberal, no qual se inscreve a noçãoburguesa de direitos humanos e de cidadania.2

Além dos modismos e expiações liberaisda turma do mea culpa, ex-gauche, que re-corre ao conceito de cidadania comosubstituto do conceito de classe, há que sereconhecer que, por outro lado, nesse concei-to há uma sugestão de busca por um saberfazer, com ênfase na participação popular.Um acento ético, um reconhecimento do “di-reito a ter direitos” (expressão de HannaArendt, 1994), e recusa de reducionismoseconomicistas das necessidades humanas.Sinalizaria para “respeito, direitos, e digni-dade”, segundo Fraser e Gordon (1994).

Para Bart Van Steenbergen (1994,p. 20) “cidadania é um conceito proble-mático. Seu significado nunca foi unívoco”.Alguns autores consideram que o pro-blemático do conceito seria a implícitaperspectiva de uma cidadania passiva, pelaqual cabe ao Estado estender, redistribuirum estoque de direitos, quando haveria umenfoque de “cidadania ativa”, por criaçãode direitos e novos jogos de relacionamentoentre sociedade civil e Estado. Isso radica-lizaria ou resgataria o que para Gramsciseria a potencialidade do conceito decidadania, isto é, vir a remodelar o Estado,através da composição de uma força contra-hegemônica (Adamson, 1980; Turner apudSteenbergen, 1994).

Ora, no âmbito de uma cidadania ativa,realiza-se o sujeito. É quando gênero/sexo,

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etnicidade, raça e nacionalidade passam aser linguagens culturais e políticas de outrosestilos de vida.

Autores que focalizam as mulheres, oshomossexuais, os negros e os migrantes paraalém do paradigma de desigualdades, masapostando na potencialidade dos excluídosde fazerem uma outra história (e.g. Fraser eGordon, 1994), comumente se orientam pelaassociação entre cidadania social e cultural(Laó-Montes, 2000; Castro, 2001, 2000,1997). Reapropriam-se da cidadania política,não como refletida no direito de exercer o jogopolítico formal, mas no de criar novos jogosou formas de exercício da política.

Tanto aqueles autores como outrosestudiosos que trabalham com o concei-to de “cidadania global” (Falk apudSteenbergen, 1994) e de “cidadania ecoló-gica” (Steenbergen, 1994) enfatizam ofortalecimento de redes, militânciastransnacionais relacionadas a açõeslocalizadas em movimentos sociais.

Hoje, quase 50 anos após o trabalhopioneiro de Marshall sobre cidadania – quese referia tão-somente à civil, política esocial –, muitos autores não aceitam que asocial seja o estágio mais acabado decidadania. Há referências a outras, no iníciodo século XXI, como a cidadania cultural,ou o direito de um grupo étnico-cultural tersuas referências próprias, sua ancestrali-dade, não necessariamente comuns àmédia ou à do Estado-nação dominante.

De fato, em sociedades multiétnicas,divididas por fronteiras político-culturaisintraterritorializadas, a cultura, a tradição ea memória são construtos de identidade,de resistência.

Na reivindicação de cidadania culturalnão está o apelo à “passividade” originaldo conceito de cidadania, isto é, de partici-pação como sinônimo de integração. Pelocontrário, cidadania passa a ser reivindi-cação de alteridade, resgatando a pers-pectiva de “atividade” por singularização(Turner, 1990).

Contudo, tal afirmação de cidadaniacultural, se divorciada dos outros tipos decidadania – a civil, a política e a social, emsuas variações –, pode ser vivida comoresistência, mas com a maior probabilidadederiva em guetos étnicos tolerados, se nãovendidos como mercadoria exótica, “étnica”.

O termo cidadania cultural refere-setanto a acesso à produção de culturaquanto ao direito de ser produtor cultural eao direito de usos de símbolos, identificaçãoprópria. É complexo e sujeito a disputas quevão além das fronteiras entre esquerda edireita, e adentram o debate sobre aimportância de datar e localizar a questãodos direitos humanos, quer universais querfocalizados, ademais de se mesclar com pa-râmetros de interesses políticos ambíguos.

Assim, na polêmica sobre o direito ounão ao uso do hiyab por meninas muçul-manas em escolas e repartições públicasna França, final de 2003 e início de 2004,muitos dos que argumentaram contrainsistiram no princípio de laicidade ou daseparação do Estado e de religiões (tido noOcidente como direito universal) e na defesados direitos das mulheres (direito humanofocalizado). O véu seria considerado uminstrumento de desigualdade e diferen-ciação. Contudo, se as mulheres muçul-manas falassem com sua voz, não se teriauma orientação unívoca sobre o tema.3

Tourraine, um dos membros da co-missão Stasi que assessorou o governo,sugerindo a proibição na França do uso desímbolos religiosos nas escolas, defendeusua posição advogando precisamente aquestão dos direitos culturais, mas esta-belecendo limites em nome da crítica aodiferencialismo e da primazia de valoresuniversais, redefinindo então cidadaniacomo a antítese do que chama “comuni-tarismos”. Nessa apreensão de cidadania,prevalece a noção de cidadão para umEstado modelado por certos parâmetros, nocaso ocidentais, modernos, racionais, laicose únicos ou totalizantes.

3 Hanan Touzani, uma mulher muçulmana de 31 anos que há 14 mora em Madri, declarou a um repórter que quando passa pelasruas, de véu, sente os olhares e sofre insultos. Mas que essa não seria uma atitude generalizada. Segundo ela: “Sem o véu me sintonua. O hiyab chama a atenção sobre o que está ocorrendo no mundo árabe. Sei que me julgam uma terrorista por usá-lo”. In:Guilayn, Priscila. “O choque cultural dos espanhóis muçulmanos”. O Globo, 22 jun., 2003.

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Em quase todos os países do mundo, aquestão dos direitos culturais é colocadano centro da vida social, uma questão queenvolve o direito que cada um tem de serreconhecido pela sociedade não apenascomo cidadão ou trabalhador, mas tambémcomo portador de uma cultura, isto é, deuma língua e uma religião, tanto quanto deum sistema de parentesco ou de costumesalimentares. É verdade que muitos países,e a França em particular, criticaram, muitasvezes com razão, o risco de diferencialismo,mas também resistiram a reconhecer opluralismo cultural.

A preocupação que despertou em todaparte com o mal chamado “caso do véuislâmico” mostra a dificuldade de conciliaro respeito ao pluralismo cultural com aresistência ao comunitarismo que ameaçaa idéia de cidadania (Tourraine, 2004).

Outros autores, em posição contrária àassumida pelo governo francês, lembramque a proibição do hiyab não pode estarorientada por princípios gerais, abstraindo-se o fato de que tem data e lugar histórico –período de expansão da “islamofobia” naFrança; de provocações racistas contraárabes em vários países da União Européia;do alerta sobre o crescimento da populaçãomuçulmana na França (estimada em 3,7 mi-lhões em 2004, quando seriam 2,5 milhõesem 1993); de ser a religião muçulmana asegunda de mais adeptos na França; decomoção pela ocupação do Iraque por forçasocidentais; da disposição da opinião públicapor identificar o árabe como terrorista; e aidentificação de muitos jovens com símbolosda cultura muçulmana, justamente como umapostura política de crítica àquela ocupação(dados e referência à “islamofobia” e religiãomuçulmana na França, em Charles e Lahouri,que se contrapõem ao argumento dalaicidade como base para o banimento dovéu nas escolas (Charles e Lahouri, 2003).

E o migrante? E este texto?

Insiste-se nas ressalvas antes anun-ciadas sobre os conceitos de direitoshumanos e de cidadania, ou seja, de seremconceitos que não subvertem as fronteirasdo sistema capitalista e circulam por

inclusões, principalmente no campo dojurídico. Mas, por outro lado, há que sesublinhar o reconhecimento de que adialética sobre direitos humanos no geral éum ganho da modernidade. Tem como refe-rência a humanidade e os direitos humanosde muitos, considerando suas singulari-dades tanto em termos de vulnerabilidadesnegativas quanto de possibilidades, vivên-cias e linguagens próprias.

É quando se sai dos conceitos clássi-cos da virada do século de uma cidadaniasocial, civil e política, para lidar com taisreferências, levando-se em conta as desi-gualdades de um sistema de classe eampliando-se o debate sobre cidadaniacultural, mas entrelaçando esse tipo de ci-dadania àqueles, reconhecendo as singu-laridades de muitos.

Nesse momento é que se passa a fazerreferências aos direitos humanos dasmulheres, dos homossexuais, dos negros,dos indígenas, dos migrantes, das crianças,dos jovens, dos mais velhos e de tantasoutras populações que, por construçõessociais pautadas em desigualdades einiqüidades na classe, seriam o outro ou aoutra do outro, e assim mais negativamente“vulnerabilizado” socialmente do que outros.

É também quando se questiona a ge-neralidade implícita na nomeação deidentidades em si, como a de ser migrante,e considera-se a diversidade social que otermo comporta.

Em tempos de violações de princípiosmínimos de respeito ao humano e, no casodo migrante, principalmente o de peleescura ou que possa ser tomado por árabe– em particular após o 11 de setembro de2001, dia do ataque às torres gêmeas emNova York –, é importante resgatar osconceitos de direitos humanos e de diver-sos tipos de cidadania, mesmo que porvozes de terceiros, como da mídia.

Neste texto mais se focalizam as repre-sentações sobre o migrante, com ênfase emtemas de direitos humanos e cidadanias.Combinam-se reflexões e pesquisas emtextos de jornais (de ampla circulação, comode uma mídia ativista), ressaltando manche-tes publicadas em diversos paises, entre2003 e fevereiro de 2004.

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A intenção é demonstrar que tal tendên-cia não é nova, em que pese a relevânciado 11 de setembro de 2001 para a maisexplícita assunção por Estados de políticasnão antimigrantes, mas de seleção econtrole de acordo com interesses instru-mentais do capitalismo. Por outro lado, nosúltimos anos vem se ampliando o númerode matérias sobre violações de direitoshumanos e cidadanias na mídia, junta-mente com a maior visibilidade política deorganizações e partidos com plataformascontra migrantes e a declaração explícita afavor de políticas de controle, principal-mente nos Estados Unidos e na UniãoEuropéia.

Em quadros apresentados ao final, sãoclassificadas manchetes de jornais, alémde indicações de movimentos contradi-tórios, porém complementares, quaissejam: o mais alto diapasão da voz e daassunção de sentimentos contra o outro, omigrante, pelos ditos nacionais naquelespaíses, e a ampliação dos movimentos desolidariedade e protestos, inclusivearticulados pelos próprios migrantes.

O reconhecimento de que entreestranhamentos viria se gastando ummigrante, sujeito político, que maisexerceria uma cidadania ativa, protestando,organizando-se, reivindicando, nãonecessariamente se confunde com a teseque considera o migrante um revolucionárioem potencial, pela sua possibilidade dedesestabilizar localismos e se configurar emarauto de uma cidadania globalizada.

Mas defendemos que a migração étema que deveria mais interessar às esquer-das anticapitalistas, mesmo sem a instru-mentalização do migrante, ou seja, construí-lo como um novo sujeito de revolução.

Para Marx, o migrante é uma das váriaspopulações do capital, um sujeito na classe,não essencialmente um sujeito para aclasse. O migrante pode ou não ser sujeitode uma classe para si, mas a migração inte-gra o movimento e a reprodução de capitale, não por acaso, vem cada vez mais preocu-pando Estados, que multiplicam esforçospara seu controle.

A migração insere contradições aocapitalismo localizado, e mesmo globa-

lizado, pelas diversas lealdades domigrante. Contudo, não necessariamenteo horizonte do migrante ultrapassa o direitoliberal de fazer jus a riqueza, serviços e bensacumulados e territorializados, o que já emsi pode trazer entraves (não revoluções) aosistema capitalista cêntrico, por limites àinclusão dos excluídos.

Precedem a análise da mídia interna-cional contemporânea breves menções àrepresentação do migrante na literatura,para melhor enfatizar a plasticidade do temae, segundo se anuncia ao princípio destetexto, como o estrangeiro é um outro quepor outros é apresentado, modelado pordiversas referências.

O migrante e o estrangeiro na literatura

Enquanto nas ciências humanas, nafilosofia e na literatura chama-se a atençãopara a estranheza e o fascínio exercidospelo estrangeiro, não só por trazer o novo,mas por colaborar na ultrapassagem defronteiras na subjetividade, na descobertade outros em nós (Kristeva, 1988), nostextos de políticas sobre migrantes aimpressão é que implicitamente se lida comum infrator, alguém que paga impostos,trabalha mais tempo e por menos, que vemde países com histórias de trocasassimétricas com os hospedeiros, deeconomias presas a dividas concêntricascrescentes, mas alguém que tem de mostrarque não é o culpado.

Nos Estados Unidos e nos países daComunidade Européia, já em períodos pós-11 de setembro, o estrangeiro, principal-mente se migrante, é equacionado à figurade suspeito de terrorismo. De fato, em mui-tos tratados e acordos há explicitamente aassociação entre migrantes e terroristas.Recentemente, o Congresso americano(maio de 2005) aprovou um projeto paraampliação do muro na fronteira com oMéxico e uma medida que nega licençapara dirigir a migrantes indocumentados,que fazem parte de um pacote orçamentáriocontra terrorismo e de apoio à guerra noIraque.

O migrante e a migrante são mão-de-obra barata, bem-vinda em certos ciclos,

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períodos e setores da economia de paísesdesenvolvidos. É rotulado de competidordesleal dos trabalhadores nativos por outrosanalistas ou saberes competentes e pode-rosos, não necessariamente em outros ci-clos, períodos e setores de economia, masno mesmo tempo e espaço. Para alguns éum “desadaptado” que não aprende a lín-gua dominante ou que cria uma outra língua,um “assimilao”, em jargão “espanglish” deporto-riquenhos em Nova York; um assimi-lado, sem identidade, que amassa inglêscom espanhol, por exemplo. Para outros, omigrante, como o latino nos Estados Unidos,é um inovador, que enriquece, diversifica etransforma culturas monolíticas em culturashíbridas, transculturais. De fato, a críticaliterária americana desde os anos 80 vemressaltando a contribuição criativa dos es-critores latino-americanos que vivem e quenasceram nos Estados Unidos (segundageração) (Castro, 1997 e 2000).

O estrangeiro em textos de literatura eensaios da crítica cultural é metáfora deliberdade, de buscas, de inconformismo.

Simmel (1974), no início do século, des-tacava a liberdade de ir e vir do estrangeiroe as relações simbólicas entre espaços queele, o estranho, potencializa. Enquanto estáem terra estranha, o estrangeiro, segundoSimmel, viveria até mais intensamente ogrupo de pertença que elege, que o acolhe,trazendo novas qualidades ao grupo e umasingular interação, pois está perto e estálonge. Simmel lembra que o estrangeiro foio divulgador nato da cultura, como o merca-dor, trazendo os produtos não produzidosno grupo, de fora, “negociando o novo”,fascinando pela criatividade e mobilidade.

Por não pertencer, por ser de fora, eraeleito por alguns povos, como os italianos,para avaliar casos, em júris, considerandoque teria mais objetividade. Proximidade edistância provocariam uma tensão peculiarem sua participação em grupos nativos.Subjetividade e objetividade se entrela-çariam no ser estrangeiro. Objetividadedefinida como liberdade, que seria ressigni-ficada em subjetividades tidas como perigo-sas, de pessoas estranhas, “agitadores”(segundo crença de povos antigos), ou“inovadores”, segundo outros.

Kristeva (1994), em ensaio de suges-tivo título, Estrangeiros para nós mesmos,reflete sobre a importância da figura doestrangeiro em tempos de buscas e questio-namentos de identidades:

Estranhamente, o estrangeiro habita em nós:ele é a face oculta da nossa identidade (...)o estrangeiro começa quando surge aconsciência de minha diferença e terminaquando nos reconhecemos todos estran-geiros, rebeldes aos vínculos e àscomunidades (Kristeva, 1994, p. 9).

Caio Fernando Abreu (1977), em Estra-nhos estrangeiros, ao se referir à “ambigüi-dade do exílio”, ao “desgarramento doemigrado”, aponta seu sentido de liberdade,liberdade não alegre, mas a do emigrado,sofrida, espaço criado e alimentado emfraternidades de caminho.

Já no Estrangeiro de Camus, 1972,segundo introdução de Sartre, o exílio seriabem ou mal comum, relacionado ao absur-do, e esse à “deslocação”. Mas o Estrangeiroé também contra o absurdo (Sartre) e opersonagem rompe a rotina, a ordem.

Num universo subitamente despojadode ilusões e de luzes, o homem sente-seum estrangeiro. Tal exílio é sem recurso,visto que está privado das recordações deuma pátria perdida ou da esperança de umaterra prometida (Sartre apud Camus,1972).

Borreil (1993) também investe emreflexão sobre o papel transgressor dafigura do estrangeiro, para o questiona-mento da doxa da modernidade, dascertezas sobre razões hegemônicas ehomogêneas. O estrangeiro, o quaseestrangeiro, incomodaria a todos.

Choque do estranho, choque da es-tranheza, choque do estrangeiro. Antes demais nada, é a doxa que é atingida, a opiniãoque tenho sobre “mim”, a opinião que tenhosobre “o outro”. A tolerância é primeira-mente a relação desse conforto (uma doxa)e desse choque. Toleramos a alteração queela produz, ou... ou o quê? Não há verbo,aqui, para dizer o negativo. Intolerar?(Borreil, 1993, p. 133)

Exilado é aquele que passa de umailha a uma outra. O país natural é uma ilha,um isolamento, uma solidão, e a naciona-lidade, o sentido interdito da poesia. O

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tradutor é então aquele cujo ato é umapaixão, uma passividade que passa. É oque Antoine Berman chama “a prova doestrangeiro”, essa prova que se defrontacom o nacionalismo e o colonialismo detoda cultura e de toda língua – pois todacultura e toda língua são colonialistas nosentido de que tendem ao homogêneo -– ese expõe à violência da estranheza, nointervalo de uma espécie de suspensão(Borreil, 1993, p. 140).

Estranha passagem dá-se entre o es-trangeiro, que viaja, e o migrante, que estáou não está. Da figura que atrai por suaalteridade, ou pelo que nos sugere sobreos outros, as outras, em textos de lei, namídia, na opinião pública dos países cên-tricos, como nos Estados Unidos, passa aser o imigrante recentemente associado àfigura de usurpador de direitos conquis-tados ou direitos que seriam para os“nativos”, res natura.

Cidadanias, violações de direitos ereações a favor do sujeito migrantena imprensa internacional hoje(jan./2003 a fev./2004)

Sobre mídia e migração, LorenzoPrencipe, diretor do Centre d’Information etd’Etudes sur les Migrations Internationales(CIEMI), em Paris, critica o que considera aênfase no “exotismo”, como uma “expressãodo etnocentrismo ocidental”, e nos“estereótipos”, contribuindo para a idéia deque os migrantes seriam uma totalidadehomogênea e considerada “diferente”vivendo em condições precárias de vida ede necessidades. Critica a mídia pelalegitimação da “tese de uma predisposiçãoquase ‘genética’ dos imigrantes para adelinqüência”. Ainda segundo Prencipe(2002, p. 37):

(...) a abordagem que a mídia faz sobre amigração é caracterizada mais por questõesem aberto do que por respostas efetivas(...)O mal-estar da mídia é o reflexo do mal-estar de toda a sociedade, que ainda nãoaceitou a imigração como um de seusprincipais elementos constitutivos.

Mas vem se gestando, principalmentepor organizações de solidariedade, uma

outra mídia, mais preocupada em criticaras tendências do discurso do Estado, o ima-ginário do senso comum sobre migrantes,e expor violações de direitos humanos. Umamídia alternativa que colabora para aafirmação de uma cidadania ativa, noti-ciando reações e protestos de migrantes eentidades de advocacia dos direitos dosmigrantes.

Migrações internacionais há muito é te-ma recorrente na mídia dos Estados Unidose de países da União Européia, mas nosúltimos anos não somente vem crescendoo espaço dedicado ao tema nessas regiões,como também ocupando algum destaqueem países como o Brasil, de tradição deemigração mais recente.

Na mídia internacional mais comercialé comum a recorrência ao sensacionalismodas estatísticas altas para o registro defluxos, seu crescimento, salientando-se, porum lado, a positividade da migração paracontra-restar o envelhecimento e as baixastaxas de fecundidade dos “nacionais” e, poroutro, para sugerir “invasões” e o perigo dasobrepopulação migrante, que em futuropróximo viria a ser a maioria. Assim, de formasubliminar, alimenta-se o receio sobresentidos da migração (Prencipe, 2002;Deponti, 2002).

A tendência é também selecionar as-pectos da migração, “em geral de modosimplista, sem remeter a informações maiscompletas que permitam aos leitores com-preender mais profundamente a complexi-dade do fenômeno migratório” (Deponti,2003, p. 31, sobre os migrantes na imprensaalemã).

São recorrentes também as notíciassobre tráfico, refugiados, pedidos de asiloe negatividades, como associações entremigrações e aumento de criminalidade ouo desenho de sombrias condições de vida.

Contudo, vale também consultar outrotipo de mídia, que vem crescendo e se alinhapor outros parâmetros: aquela produzidapor organizações de solidariedade.

Neste capítulo consulta-se essa mídiasolidária. São notas e artigos diversos veicu-lados entre 2003 e 2004 pelo NúcleoInterdisciplinar de Estudos Migratórios daUniversidade Estadual do Rio de Janeiro,

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Niem,4 pela internet. A intenção é identificaruma panorâmica dos textos mais ressal-tados na mídia internacional sobre o temamigrações internacionais, coletados porveículos alternativos.

Os quadros seguintes ilustram temas emanchetes sobre violações de direitosdiversos e sinalizam o cenário de vulnera-bilidades negativas ou cidadanias negadasque viriam se acentuando nos últimos anos,segundo distintos especialistas, pelos deli-berados controles de Estado e efeitos daglobalização sobre os trabalhadores e a suacirculação.5

Organizamos as notícias de forma arbi-trária, com o objetivo de chamar a atençãopara a diversidade de exclusões ou nega-ções de cidadanias, ou seja, como algumasvulnerabilidades se vinculam a dinâmicassociais mais amplas – por exemplo, violên-cias e desempregos – e outras à própria

condição de migrante, principalmente quan-do sem papéis, o que sugere que nas exclu-sões também se identificam tipologias.

Estima a ONU que em 2001 haveria 150milhões de pessoas vivendo como migran-tes, o que representaria 3% da populaçãomundial. Ainda que se ressalte a importânciadesses, em particular pelo lado econômico– remessas e como força de trabalho –, omais comum na mídia é destacar problemase mal-estares vividos pelos próprios migran-tes, o que representaria apenas uma visãoparcial de uma complexa dinâmica social.6

O tráfico, mais que a exploração daforça de trabalho imigrante, é mais enfa-tizado quer na mídia, quer nos acordosmigratórios (Quadro 1).

No Quadro 2, uma indicação de outratendência que viria se afirmando mais nopanorama da circulação de pessoas, oEstado. Nesse caso, manchetes sugerem

4 Disponível em: <[email protected]>, grupo coordenado por Helion Povoa.5 Sobre essas tendências, ver entre outros: Childeya, Farai. Fortress América. AlterNet, 6 jan. 2004. Disponível em:<[email protected]>. Acesso em: 3 fev. 2004; e SASSEN, Saskia. Migrações e cidadania transnacional migration.News, jan. 2004. Disponível em: <[email protected]>. Acesso em: 18 jan. 2004.6 O mesmo estudo da ONU registra que, daquele total de migrantes em nível mundial, 80 milhões seriam trabalhadores quemandam para seus países de origem cerca de US$ 77 bilhões anuais. (Folha de S. Paulo, 2001).

QUADRO 1Algumas manchetes e temas sobre migrações internacionais, quanto a vulnerabilidades,

violações de direitos humanos e cidadanias negadas por dinâmicas sociais e por condição de serum tipo de migrante – jan./2003 a fev./2004

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Fonte: Notícias de distintas mídias, veiculadas por rede sobre migração internacional, organizadas por Helion Povoa –<[email protected]> – período jan./2003 a fev./2004.(1) País/nacionalidade do migrante – país de chegada.

QUADRO 2Algumas manchetes e temas sobre migrações internacionais, destacando o lugar do Estado – jan./2003 a fev./2004

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Fonte: Notícias de distintas mídias, veiculadas por rede sobre migração internacional, organizadas por Helion Povoa –<[email protected]> – período jan./2003 a fev./2004.(1) País/nacionalidade do migrante – país de chegada.

QUADRO 3Algumas manchetes e temas sobre migrações internacionais, relacionadas à intenção de proteção dos direitos de

cidadania dos migrantes pelos países de origem – jan./2003 a fev./2004

Fonte: Notícias de distintas mídias, veiculadas por rede sobre migração internacional, organizadas por Helion Povoa –<[email protected]> – período jan./2003 a fev./2004.(1) País/nacionalidade do migrante - país de chegada.

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em particular seu papel de controle,exercido tanto por políticas como açõesrestritivas em diversas frentes. Esses tiposde ações excedem, em termos de man-chetes, as de tipo positivo, por exercício decidadanias.

Já as manchetes organizadas noQuadro 3 vão no sentido de ilustrar atendência, que também viria se ampliando,mais a favor dos migrantes, com ações dosEstados de origem dos migrantes em favorde seus co-cidadãos no exterior.

A relação do migrante com a dinâmicado trabalho e a produção de riquezas en-

fatizada por distintos autores não passadespercebida para a mídia, sendo comuma visibilidade desse tema nas notícias sobremigrantes e migração. Como se indica noQuadro 4, tal propriedade comporta apre-ciações negativas e positivas.7

Na associação entre gênero e migração(Quadro 5), outras identificações revelam-se e também vulnerabilidades são desta-cadas pela mídia, como a exploração dasmulheres no comércio sexual. Estima-se,por exemplo, segundo a OIT, que 300 a 600mil mulheres são contrabandeadas por anopara o comércio do sexo na Europa e nos

7 A importância do migrante como força de trabalho é um dos temas mais destacados na literatura sobre migrações e merece damídia também atenção, mas limitando-se a expressões numéricas ou condições de trabalho. Segundo Gillin, para a AssociatedPress, os imigrantes que aportam os Estados Unidos, principalmente latino-americanos, são responsáveis pela metade docrescimento do mercado de trabalho daquele país entre 2000-2003. (Gillin, 2004).

QUADRO 4Algumas manchetes e temas sobre migrações internacionais, relacionadas ao mercado de trabalho

e à economia – jan./2003 a fev./2004

Fonte: Notícias de distintas mídias, veiculadas por rede sobre migração internacional, organizadas por Helion Povoa –<[email protected]> – período jan./2003 a fev./2004.(1) País/nacionalidade do migrante – país de chegada.

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Estados Unidos (Folha de S. Paulo, 2001).As noticias sobre tráfico são ambíguasquanto ao exercício do arbítrio das pessoasenvolvidas, como, por exemplo, as traba-lhadoras do sexo, confundindo-se muitasvezes a necessária denúncia contra o tráficode seres humanos e a discutível crítica aoexercício da prostituição por vontade própria.

Também chamam a atenção casos emque a condição de vulnerabilidade por gêne-ro ou por opção sexual foi considerada umaviolação de direitos que faria jus a pedidode asilo.

Vem se alertando também para ocrescimento das expressões antimigrantes,quer no plano institucional, como o cres-cimento de partidos com plataforma nessesentido, quer por hostilidades declaradasou assumidas por atores vários, quer porviolências político-econômico-culturais,como o racismo e intolerâncias. No Quadro6, colecionam-se algumas manchetes quesugerem a vigência de tais dinâmicas emdiferentes países, em particular nas áreas

axiais de imigração, como países da Comu-nidade Européia e nos Estados Unidos.

Pesquisa realizada na Espanha, em2003, constatou que os imigrantes repre-sentariam 5,4% da população, entretanto,em outra em que se estudaram percepçõesda população sobre tal contingente, ametade dos espanhóis teria declarado que“há demasiados estrangeiros” e que só sedeveria permitir a entrada dos que “viessemcom emprego”.8

Várias matérias chamam a atenção paraa associação entre o crescimento eleitoraldos partidos de direita em países europeusa suas declarações contra a imigração,destacando-se, neste caso, países como:Holanda, onde uma pesquisa indicou que60% seriam favoráveis a medidas derestrição às migrações, Suíça, Dinamarca eNoruega. Em outros, nas eleições locais,tal perspectiva também significaria ganhoseleitorais, indicando a tendência para umimaginário contrário aos migrantes, casosda Inglaterra e Alemanha.9

QUADRO 5Algumas manchetes e temas sobre migrações internacionais, relacionadas a gênero – jan./2003 a fev./2004

Fonte: Notícias de distintas mídias, veiculadas por rede sobre migração internacional, organizadas por Helion Povoa –<[email protected]> – período jan./2003 a fev./2004.(1) País/nacionalidade do migrante – país de chegada.

8 Pesquisa realizada pela Fundação Funcas, La Nación. Buenos Aires. Disponível em: <[email protected]>. Acessoem: 22 jan.2003.9 FEKETE, Liz. Anti-foreigner politics make for extra right gains across Europe. IRR News, 14.1.2004; e em Expatica (Holanda),14.11.2003. Disponíveis em: <[email protected]>. Note-se que Moser e Rech (2003) advertem que expressões contraestrangeiros e migrantes, naturais de Estados do Nordeste, também são registradas no Brasil, ainda que sem visibilidade e extensãoequivalentes àquelas noticiadas na Europa. Mas vale para embasar a tese de que os estranhamentos e mal-estares com o outro,em particular o considerado diferente, não se limitam aos países desenvolvidos.

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QUADRO 6Algumas manchetes e temas sobre migrações internacionais, relacionadas a enfoques e perspectivas

negativas aos migrantes – jan./2003 a fev./2004

Fonte: Notícias de distintas mídias, veiculadas por rede sobre migração internacional, organizadas por Helion Povoa –<[email protected]> – período jan./2003 a fev./2004.(1) País /nacionalidade do migrante – país de chegada.

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A articulista Liz (ver nota 12) chama aatenção para o fato de que as posturascontra os migrantes tendem a ser maisverbalizadas e indicadas por pessoas deestratos médios e baixos, mais atingidossocialmente pelo desemprego e por restri-ções ao consumo, jogando-se assim parao próximo, o migrante, a inculpação por pro-blemas vividos relacionados com a economia.

É comum analistas ressaltarem asrepercussões negativas do 11 de setembrode 2001 no cotidiano dos migrantes e noprocesso de emigração: a deportação, omedo, a hostilidade aberta ou camuflada

Fonte: Notícias de distintas mídias, veiculadas por rede sobre migração internacional, organizadas por Helion Povoa –<[email protected]> – período jan./2003 a fev./2004(1) País /nacionalidade do migrante – país de chegada.

QUADRO 7Algumas manchetes e temas sobre migrações internacionais, associando

migração a terrorismo – jan./2003 a fev./2004

nas ruas, a demora do visto, o fichamento,o desrespeito dos funcionários e expressõesde “antiarabismo” ou “islamofobia”, extensi-vas a todos que fisicamente lembrem pes-soas árabes.10

Em várias notícias de fato se destacaser corrente a associação entre migração eterrorismo, o que mais contribui para es-tigmatizar o migrante e lhe dificultar emvários sentidos o ser e o estar. No Quadro7, algumas manchetes sobre tal associaçãoespúria e nefasta.

Junto a notícias que mais ressaltamadversidades ao se referirem a migrações,

10 “Meu departamento, o de ciência política, promoveu um painel em 2001, em que abordamos os efeitos do atentado nas relaçõesentre os países árabes e os Estados Unidos. Também participei de um outro painel sobre os americanos de origem árabe e asmedidas discriminatórias adotadas pelo governo de Washington contra essa minoria, como a detenção arbitrária de passageirosretirados sem justificativa de seus aviões, interrogatórios sem a presença de um advogado ou fichamento arbitrário de descendentesárabes. Avança o antiarabismo, estamos sob risco parecido com o do macarthismo.” Hayat Alvi da Universidade Americana doCairo. Folha de S. Paulo, A-24, 14 dez., 2003.

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também há expressões de reconhecimentode cidadanias, ilustrando a complexidadede categoria que por ser social comportadiversos sentidos. No Quadro 8, juntam-semanchetes diversificadas sobre váriascidadanias conquistadas ou em disputa.

Se estes são tempos de hostilidadesao outro/outra, o estranho, também viriamse afirmando reações, solidariedade,modelações do sujeito migrante que, poruma mídia própria e organizações ativistas,advogam direitos. Nos Estados Unidos, porexemplo, estariam aumentando os casosde reconhecimento dos direitos departicipação sindical, inclusive de migrantesindocumentados.

Em novembro de 2003, a OIT solicitouformalmente aos Estados Unidos quereconhecessem o direito à participaçãosindical de 8 milhões de trabalhadoresindocumentados, acatando processo formaliniciado pela central norte-americanaAFLCIO nesse sentido, mas note-se que osEstados Unidos não figuram entre os 142países que ratificaram a convenção sobrea liberdade de associação sindical da OIT.(El Comercio, 2003).

O Quadro 9 ilustra, como registra amídia, essas vozes defensoras dos direitoshumanos dos migrantes, e expressões domigrante como sujeito de protestos eafirmação de uma cidadania ativa que, maisque a inclusão, cobra direitos (Turner apudSteenbergen, 1994).

Várias entidades na sociedade civil hámuito trabalham no campo da solidarie-dade, assistindo migrantes, em particularas de corte religioso, de distintas denomina-ções, e algumas focalizando socializaçãocomo formas de organização e resistência.Publicação de 1996 (Maolain, 1996) lista 9mil organizações comunitárias de apoio,grupos anti-racistas, ONGs e agênciasespecializadas que em distintos paísestrabalhariam em solidariedade ou relacio-nados a migrantes ou ainda geridos pormigrantes. Estima-se que a maioria selocaliza nos Estados Unidos.

Por outro lado, registram-se massivascampanhas de protesto e práticas de cola-boração transnacional na história da classetrabalhadora americana, envolvendo, por

exemplo, mexicanos no México e nosEstados Unidos, desenvolvidas por sindi-catos rurais e outros.

Nos anos 60, nesse país o movimentochicano de resistência, conhecido como LaRaza, foi famoso por sua atuação. E asmulheres chicanas descendentes de me-xicanos, nascidas nos Estados Unidos,tiveram especial participação, trazendoinclusive temas feministas para a agendada organização (Poggio, 1997). Note-seque em 1911 organizou-se o primeiro con-gresso “mexicanista”, quando as mulheresintroduziram questões como abuso sexual,e educação não sexista, formando depoisa Liga Femenil Mexicanista, comprometidana luta “por la raza y para la raza”.

Em 1993, a maior central sindical,AFLCIO, deu uma virada histórica elegendopara vice-presidente uma mulher chicanae dando destaque a trabalhos junto commigrantes e desempregados, também aonível da comunidade. Hoje, aquela centraltem desenvolvido ação de apoio aosmovimentos antiglobalização e à orga-nização local de associações e sindicatosde trabalhadores indocumentados, emespecial no campo de serviços, como detrabalhadores em casas particulares.

Alguns grupos latinos, como os porto-riquenhos e mexicanos, contam hoje comformas transnacionais de defesa dosimigrantes nos Estados Unidos, enviandoprotestos e lobbies a autoridades nacionaisno México e Porto Rico contra legislaçõesrestritivas. Escritores e ativistas nessespaíses são porta-vozes na defesa de direitosde cidadania dos que estão em territórionorte-americano, fenômeno não tão comumtempos atrás, quando, inclusive entre gru-pos de esquerda, havia velada ou decla-rada condenação dos que partiram.

Apostam os ativistas na criação deredes transnacionais de movimentossociais por direitos humanos dos imigrantes.Algumas ONGs têm postos no Comissa-riado de Migrações das Nações Unidas,como a entidade American Friends Service,que financia um jornal de movimentofeminista nas Filipinas sobre as tra-balhadoras de multinacionais e zonas deexportação, e atividades de grupos de

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QUADRO 8Algumas manchetes e temas sobre migrações internacionais, relacionadas a

diversas cidadanias – jan./2003 a fev./2004

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QUADRO 9Algumas manchetes e temas sobre migrações internacionais, relacionadas a uma cidadania ativa - reações a

violações de direitos – jan./2003 a fev./2004

Fonte: Notícias de distintas mídias, veiculadas por rede sobre migração internacional, organizadas por Helion Povoa –<[email protected]> – período jan./2003 a fev./2004.(1) País /nacionalidade do migrante – país de chegada.

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trabalhadores na América Central relacio-nados a movimentos de solidariedadee apoio de migrantes daquela regiãoamericana.

Se são vocais e visíveis os movimentosde migrantes, de trabalhadores, de povosde pele escura, das mulheres nos EstadosUnidos, por outro lado, pesquisadoresconsideram que os norte-americanos viriamdeixando de lado uma tradição de trabalhovoluntário, o “sentido de cidadania” e desolidariedade, em especial com osestrangeiros da nova migração, aquelesque viriam da América Latina, da África eda Ásia, por exemplo (Klusmeyer, 1996).

A hipótese a pesquisar é que no paísnorte-americano viriam se delineandocontornos mais nítidos de classe ou de gru-pos de interesse, autônomos, gerenciadospor migrantes e outras “minorias”, redu-zindo o caráter assistencial dos grupos desolidariedade de outros tempos, mastambém sob o risco de isolamento.

Observem-se, no quadro anterior, no-tícias sobre protestos organizados pelospróprios migrantes contra legislaçõesrestritivas a seus direitos.

Na Espanha estão se fazendo maisvisíveis grupos de imigrantes, inclusive sempapéis, em marchas públicas contra oracismo e as discriminações infligidas amigrantes. Na faixa de um migrante indocu-mentado equatoriano, em uma dessasmarchas, em Madri, um registro com acentode reparação, indicando que mais queinclusão, ao se pedir a legalização de suacidadania, estaria se cobrando uma dívidahistórica. Em sua faixa se lia: “Documentospara todos, somos pessoas. Nossosdocumentos já foram pagos quandoColombo descobriu a América.” (Imigrantesilegais, 2001).

Reflexões finais: estranhamentos eintolerâncias

A assimetria entre a liberdade de mobili-dade para o capital e o fechamento defronteiras para os que se movem, incitadospela globalização da economia e da cultura,bem como a crescente intolerância emrelação aos que não são parte da nossa

tribo, nossa classe, nosso país, nossa raça,nosso sexo, ou seja, os outros, as outras, éface também de crescente movimento deexclusões múltiplas.

Tal estado de coisas derivaria emestranhamentos, freando o livre navegardas promessas de criatividade, de auto-enriquecimento, sugeridas pela literaturasobre o ser estrangeiro, sobre o ousartransitar por múltiplas territorialidades, porjogos na subjetividade.

Luckacs (apud Vieira Martins, 1997)define como estranhamento a contradiçãoentre o desenvolvimento da capacidadehumana, processo histórico objetivo ca-racterizado pelo aumento da potencialidadede transformação da natureza, e as possi-bilidades dos indivíduos em lidar com taissituações. Subjetividade e condiçõesobjetivas entrariam em choque.

A difusão do estranhamento traz consigo umnão-reconhecimento da realidade que aprópria espécie humana criou. A trans-formação da condição do sujeito, decondição ativa numa condição objetificada éum dos traços mais característicos doestranhamento. É por essa via que oshomens não se reconhecem naquilo que sãoe naquilo que fazem. No capitalismo maisavançado, a perda de experiência de autoriada própria vida seria dramática. De algumaforma tal sentido seria parte do que Freud sereferiu como ‘mal-estar da civilização’ (Vieira,1997 p. 127).

O paradoxo é que o estranhamento, osentido de não gozar das riquezas doséculo, não ser nem cidadão ou consumidordo mundo objetivo, tão rico, diversificado,próximo, transculturalizado, iria se dar emtempos de apologia à individualidade, aosdireitos de realização do eu. Já Marxchamava a atenção para tal desencontroentre o mundo objetivo e as possibilidadesdos indivíduos, ou da maioria deles, emestar, ser, naquele mundo:

A época que dá origem a este ponto de vida,o do indivíduo isolado, é precisamente aquelaem que as relações sociais (revestidas desteponto de vista em caráter geral) atingiram oseu máximo desenvolvimento (Marx apudVieira, 1997, p. 202).

Mas quem não é estrangeiro? Caberiamais questionar estranhezas ampliadas,

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que atingem a tantos. As intolerâncias senutrem de inseguranças, de estranhamen-tos, do medo de descobrir-se “quase outro”,ou seja, que entre “nós” e “eles” as fronteirasnão seriam tão claras como gostaríamos.

Borreil (1993) reflete sobre o “quaseoutro” e a utopia do reinventar o humanoem texto filosófico sugestivamente intituladoO Verbo Ausente:

O estrangeiro não inquieta: ele está noutraparte; o ‘quase-outro’ é semelhante ediferente, próximo e sempre na tangente.Ele é a figura do inestimável ladrão, do cínicoque confunde as fronteiras do público e doprivado.

(...)

Se tolerância e intolerância estão ligadas àestranheza – de sexo, de comportamento ede ethos, ou de nação –, é por estaremligadas a essa radical impropriedade que énosso quinhão e que cobrimos com o fantas-ma de um próprio e de uma pertença comoque produzindo nosso próprio, buscandoassim nossa singularidade lá onde não aencontraremos, porque ela ‘não está aí’, nomundo das opiniões, ao invés de a buscarlá ‘onde ela está’, na nomadização de umprocesso permanente, constantementedesfazendo-se ao fazer-se, de renasci-mentos jamais fundadores. Por isso, é sobreo estrangeiro que se cristaliza essa recusade si que faz as intolerâncias vulgares, oódio de si talvez, enquanto se tolera o intole-rável do que é seu. Porque o estrangeiro,com efeito, é aquele que nos põe a nu,aquele que nos mostra por onde passamos,por onde estamos passando, por ondepassaremos, por quais exílios – a nós quenos julgamos legítimos proprietários de umpróprio e de uma pertença.

Dessa marcha de nossos exílios, do exíliohumano, podem-se propor diferentes para-digmas: o ‘trabalhador imigrado’, o ‘cigano’,o ‘judeu’ [acrescentaríamos o negro, es-cravo da diáspora africana], o ‘alógeno’.Designo por este último termo as popu-lações de língua não-francesa, cujo territóriofoi anexado pelo poder real e que tiveramsuas repúblicas, tecnologias e economiasafrancesadas... Como se quisessem es-quecer que a França foi feita de uma sériede anexações que supuseram o empregode armas e fizeram vencidos, e que a inte-gração dessas populações passou de iníciopor sua quase-alteridade(...) gerações des-ses quase-outros já se sucederam(...)(Borreil, 1993, p. 133 e 147).

As intolerâncias nutrem-se também daarrogância de poderes não enfrentados,hegemônicos, e para o seu combate épreciso constituir grupos de pressão alémdas fragmentações. Grupos enredados,mas não submersos em homogeneizaçõesda pluralidade entre as subalternidades,indicando a recusa de uma vaga di-versidade multicultural, que escondeidentidades e histórias de submissões eresistências.

Tais alianças entre subalternidadesseriam orientadas por projetos de salva-guarda do humano. Seria necessário outroestranhamento, brechtiniano, o da rupturacom um “real” estranho, em um novo inter-nacionalismo a reinventar-se por projeto demuitos.

Pensar o humano, não na abstrata ir-mandade, mas por projeto de ruptura comsubalternidades, leva a apreciar, mas darlimites tanto aos bem intencionados traba-lhos sobre migração que se debruçam sobregrupos específicos, quanto às associaçõesdirigidas exclusivamente a certos grupos, eàs lealdades construídas em nome decomunidades.

Aqueles estudos e associações sãoimportantes, identificam, colaboram naconstrução de auto-estima, no apoio, naacolhida por proximidade, por histórias,características e culturas compartidas.Contudo há mais que questionar as invisi-bilidades e jogos de poder que se impõemem nome de comunidades.

As mulheres, por exemplo, histori-camente sempre tiveram suas reivindi-cações específicas preteridas em nome deum bem comum, do consenso contra po-deres hegemônicos, externos, quando nãose questionaria ou se secundarizaria asviolências domésticas entre os iguais.Pensar no humano é pensar o plural comsuas respectivas histórias e reivindicações.Retornando a Borreil (1993, p. 150): “Aceitarnosso destino de humano é assim aceitarser afetado pela pluralidade dos singularesque, de fato, nos atinge”.

Por outro lado, insisto, haveria quemais questionar poderes, a sutil manipu-lação na representação do outro, da outra,e considerar que o migrante, o estrangeiro,

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o mais visivelmente estranho seria hojesingularmente estigmatizado no plano dasleis nacionais, dos países desenvolvidos,não só por suas características nacionais,ainda que se argumente com estereótipos,racismos e preconceitos, mas principal-mente pela comunidade que sugere odestino do humano, do nomadismo que osnacionalmente protegidos podem vir aenfrentar. Não em ter que se mover porpaíses, mas entre situações de emprego adesemprego, entre classes e viradas napossibilidade de mestiçagem, de circu-lações por gêneros, deixando portos,âncoras e verdades.

O migrante é um estranho que joga onativo a se confrontar com seu estranhamen-to. O migrante é útil aos Estados, que aolegislarem sobre como controlar esse outro,intruso, culpam-no de exclusões, ocultandopoderes e interesses na defesa do movi-mento para o lucro.

Combinar identidades em negociaçõescom outras, mais além das tolerâncias porprojetos comuns diante de poderes, ousarbuscas, rupturas no lidar com estra-nhamentos, resgatando o onírico do serestrangeiro em desidentificações é umdesafio aos sujeitos que recusam subalter-nidades e codificações fixas.

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Abstract

STRANGENESS AND IDENTITIESHuman rights, citizenship and migrant subjectRepresentations of Migrants in Texts

This text deals with migration and emphasizes questions related to human rights and citizenship.It combines reflections and research into newspaper articles, focusing basically on headlinespublished between early 2003 and February 2004. Newspaper headlines that indicatecontradictory but complementary movements are classified at the end of the article: to wit, awide variety of voices and the assumption by locals, especially in the United States andEurope, of sentiments against the other, the migrant, countered by the growth of sympatheticmovements and protests, often led by the migrants themselves. Besides indications from themedia, literary essays are presented to indicate how the concepts of migrant and foreignertake on different meanings. Finally, the concept of strangeness is used to discuss the conceptof strangeness an question the borderline between migrants and natives.

Key words: Migration. Human rights. Citizenship. Strangeness.

Recebido para publicação em 28/02/2005.Aceito para publicação em 30/09/2005.