Eu Quero Votar Para Presidente_ Uma Análise Sobre a Campanha Das Diretas - Edison Bertoncelo

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    Universidade de So Paulo

    2009

    "Eu quero votar para presidente": uma anlise

    sobre a Campanha das Diretas

    Lua Nova: Revista de Cultura e Poltica, n.76, p.169-196, 2009

    http://producao.usp.br/handle/BDPI/6947

    Downloaded from: Biblioteca Digital da Produo Intelectual - BDPI, Universidade de So Paulo

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    Departamento Sociologia - FFLCH/FLS Artigos e Materiais de Revistas Cientficas - FFLCH/FLS

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    EU QUERO VOTAR PARA PRESIDENTE: UMAANLISE SOBRE A CAMPANHA DAS DIRETAS

    Edison Ricardo Emiliano Bertoncelo

    Introduo

    O tema central deste artigo a investigao da dinmica esignificado da Campanha das Diretas-J. Nela, vrios grupos

    sociais e polticos se uniram e organizaram manifestaes

    pblicas diversas (comcios, passeatas, caravanas etc.) para

    reivindicar o direito de escolher o Presidente da Repblica

    pelo voto direto.

    Mais do que uma campanha, na verdade trata-se de um

    movimento social (ver Sandoval, 1998). Movimentos sociais

    podem ser definidos como:

    coletividades agindo com algum grau de organizao

    e continuidade fora dos canais institucionais ou

    i i i bj i d d fi d f d

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    Conceb-la dessa maneira permite iluminar aspectosque seriam marginalizados caso a tomssemos apenas comouma manobra das oposies partidrias ou como eventos deprotesto isolados: vnculos de solidariedade, simbolizao,crenas compartilhadas, desafios a autoridades polticas ecdigos culturais, redes sociais sustentando aes coletivas,dimenses essas enfatizadas em vrias definies de movi-mento social (entre outros, Dellaporta e Diani, 1999).

    A emergncia da Campanha das Diretas-JA campanha das diretas emergiu sob um regime militar-auto-

    ritrio em uma conjuntura de grave crise poltica. essencialinvestigar os processos autonomamente determinados(Skocpol,1979) que geraram essa conjuntura e o modo pelo qual elaconformou a emergncia dos protestos por eleies diretas.

    A relao entre crise e movimentos sociais foi inicialmen-

    te investigada pela(s) teoria(s) do comportamento coletivo.Nelas, os movimentos sociais so vistos como fenmenosde comportamento coletivo que emergem em perodos deruptura dos mecanismos de controle social e dos imperati-vos morais, resultando em formas irracionais e desviantes de

    comportamento. Os perodos de crise so vistos como estadospatolgicos em que emergem comportamentos irracionais(para uma viso geral, ver Buechler, 2004). Diferentemen-te, para Michel Dobry (1986), o que diferencia conjunturascrticas de conjunturas rotineiras o grau em que as aes

    dos atores sociais se orientam para as lgicas especficas que

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    regulam os setores que compem o sistema social, e no pro-priamente a elevao de tendncias de desequilbrios ou aescalada de conflitos sociais e polticos. Em conjunturas crti-cas, h um processo de dessetorializao conjunturaldo sistemasocial. As lgicas setoriais perdem eficcia na regulao dasorientaes de ao e se tornam referncias pouco precisaspara os clculos dos atores, o que implica uma reduo daautonomia dos setores e de sua capacidade em delimitar asarenas de conflito e em definir o valor relativo dos recursos.Como consequncia, forma-se um espao ampliado de intera-o, em que se confrontam jogadas intersetoriais que opem

    atores, recursos e linhas de ao de setores distintos.A perspectiva de Dobry permite estabelecer uma relao

    bidirecional entre conjunturas crticas e protestos coletivos,que so um tipo de mobilizao intersetorial (ou multisseto-rial). O aumento relativo daqueles tende a aumentar a flui-

    dez do sistema social. Isto, por sua vez, tende a gerar um con-texto ampliado de interaes em que jogadas intersetoriaisse multiplicam. Com base nisso, pode-se argumentar que acampanha das diretas foi, em parte, o produto da multipli-cao de jogadas intersetoriais em um contexto ampliado de

    conflito, produzido por uma conjuntura de grave crise polti-ca que se materializou especialmente a partir de 1983.

    Essa conjuntura de crise poltica teve trs dimenses dis-tintas. Em primeiro lugar, havia a dimenso da crise de Estado,gerada pela drstica reduo da capacidade estatal em pro-

    mover o desenvolvimento capitalista e em intermediar os inte-resses sociais em esfera corporativa Isso provocou uma eroso

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    ticipao popular para os (esvaziados) canais eleitorais. Porfim, havia uma crise de governo, caracterizada pelo enfraqueci-mento da autoridade presidencial, pela paralisia decisria epela fragmentao da base de sustentao poltico-partidriado governo federal no Congresso Nacional.

    Embora deflagrada apenas no incio da dcada de 1980,essa conjuntura crtica foi gestada ao longo da dcada anterior.Destaco primeiramente as consequncias do transbordamen-to do processo de abertura poltica em relao aos termos doprojeto de distenso, iniciado com a ascenso de uma novacoalizo militar ao centro do Estado, que resultou na escolha

    do General Ernesto Geisel para a Presidncia da Repblica em1974. A despeito do enorme gradualismo e dos casusmos quemarcaram a implementao desse projeto, a dinmica do pro-cesso produziu resultados que o afastaram das intenes dacoalizo dirigente. As eleies de 1982, especialmente, envol-

    veram uma distribuio real de poder entre os atores polticos(instaurando uma diarquia no sistema poltico), na medida emque as oposies partidrias (no caso, PMDB e PDT) conquis-taram dez governadorias, passando a controlar parte da mqui-na estatal (Lamounier, 1988). Os resultados para a Cmara dos

    Deputados, em seu conjunto, tambm foram desfavorveis aoPDS e aos dirigentes do regime. Embora o PDS tenha obtidoo maior nmero de cadeiras, 235 no total, os demais partidosobtiveram 244, retirando a maioria parlamentar do partidogovernista na Cmara Federal. Com a ampliao da competi-

    o poltico-partidria, os partidos de oposio, especialmenteo PMDB lograram expandir-se nacionalmente e enraizar-se

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    Em parte como resultado desses processos, a dinmi-ca sociopoltica de uma sociedade que se urbanizava e seindustrializava (Faria, 1983) materializou-se mais fortemen-te na cena pblica a partir do final dos anos de 19702.

    Excetuando-se as aes de guerrilhas e grupos revolu-cionrios, setores da Igreja Catlica constituram a nicafora de oposio societria ao regime militar at meadosda dcada de 1970. No final dessa dcada, os protestos con-tra a ordem poltica autoritria se intensificaram, com asmobilizaes de entidades profissionais e de associaesestudantis e com a volta do movimento grevista cena pbli-

    ca (Noronha, 1991). Essa onda de protestos estimulou umsurto associativista, uma redefinio das formas de aocoletiva e a formao de novas identidades coletivas, tantoentre fraes de trabalhadores manuais quanto entre pro-fissionais de camadas mdias, em torno de reivindicaes

    por diversos direitos civis, polticos e sociais (Cardoso, 1983;Boschi, 1987; Rodrigues, 1991). Fundamentalmente, houveum processo de autonomizao poltica de amplas camadassociais, que extravasou o aparato corporativo-estatal, susten-tando a construo de formas mais pluralistas de articula-

    o de interesses e demandas (Diniz, 1991).Em 1983, esses fenmenos se conjugaram a uma profunda

    crise econmica, que j se delineava desde o final da dcadaanterior. Sob o impacto de choques externos (aumento dopreo do petrleo e das taxas de juros internacionais), soma-

    dos ao enorme endividamento externo da economia brasi-leira e aos efeitos da moratria mexicana de 1982 a capa-

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    cidade do Estado em se manter como polo organizador daeconomia nacional praticamente esgotou-se (Sallum, 2004).

    A estratgia de combate crise, que privilegiava medidasde impacto recessivo, gerou enormes reaes internas, o queenfraqueceu as bases de apoio social e poltico das autoridadesgovernamentais. De um lado, camadas empresariais dos seto-res pblico e privado, membros da aliana sociopoltica arti-culada no Estado, opuseram-se fortemente estratgia reces-siva porque viam no crescimento econmico o valor bsico aser alcanado pelos dirigentes estatais (Sallum, 2004, p. 50).Alm disso, temiam que as consequncias polticas e sociais

    das medidas recessivas pudessem colocar em risco o processode abertura poltica (Bertoncelo, 2007). De outro lado, profis-sionais assalariados do setor privado, funcionrios pblicos efraes de trabalhadores manuais se mobilizaram em aes deprotesto visando especialmente poltica de reduo da massa

    salarial. Entre outras coisas, isso resultou em um aumento donmero de greves (393 em 1983 contra 144 no ano anterior)e na realizao, em julho desse ano, da primeira greve geraldurante o regime militar, que mobilizou especialmente traba-lhadores manuais das indstrias modernas (Sandoval, 1994).

    Alm de materializar o enorme descontentamento deamplas camadas sociais em relao situao econmica epoltica, a intensificao dos protestos sociais funcionou comoum mecanismo de presso sobre os polticos profissionais emtodos os partidos, que se tornavam mais sensveis diante das

    presses da opinio pblica, e mais autnomos diantedas orientaes do ncleo do regime no contexto da abertu-

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    tico ao regime militar, crescimento poltico-institucional eorganizacional das oposies partidrias e a crescente auto-nomizao poltica de camadas sociais) alteraram a estruturade oportunidades polticas confrontando os vrios atores sociaise polticos3. Essa conjuntura facilitou aes contenciosas dasoposies visando ao esvaziamento da ordem poltica auto-ritria (e tambm de dissidncias dentro do regime), poisreduziu a eficcia dos recursos disposio dos dirigentesdo regime para o controle dos processos polticos e sociais.Isso se materializou especialmente nas tentativas fracassadasdo presidente Figueiredo em unir as diversas correntes no

    PDS e no regime em torno de uma candidatura presiden-cial nica, leal aos ideais da Revoluo de 1964, fazendovaler a maioria dos votos desse partido no Colgio Eleitoral(segundo as regras institucionalmente estabelecidas, a esco-lha do sucessor de Figueiredo seria feita por delegados do

    Colgio Eleitoral em janeiro de 1985).Essa crescente dificuldade de coordenao do processo

    sucessrio foi interpretada por setores majoritrios das opo-sies partidrias4 (especialmente o PMDB) como umaoportunidade para superar os limites institucionais impos-

    tos sucesso presidencial e conquistar a Presidncia j em1985. Havia, de um lado, uma corrente liderada pelo deputa-do federal Ulysses Guimares minoritria dentro do PMDB

    3O conceito de estrutura de oportunidades polticasfoi usado para captar as mudanas

    em dimenses do sistema poltico que alteram as oportunidades/ameaas de aocoletiva por parte de desafiadores ao afetarem as chances percebidas de sucesso e

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    que reivindicava o restabelecimento da eleio direta paraa escolha do sucessor de Figueiredo. Embora essa propostatenha sido inicialmente colocada em fins de 1982, ela se for-taleceu com a apresentao da emenda Dante de Oliveira, emmaro de 19835. Uma campanha popular por eleies diretasfoi vista como um elemento de presso para angariar votospedessistas ou simplesmente para forar o ncleo do regimea negociar em termos melhores para as oposies6. Por outrolado, uma faco liderada pelo governador de Minas Gerais,Tancredo Neves, majoritria dentro do partido e com apoioda maioria dos governadores, calculava que as divises dentro

    do PDS se intensificariam com o crescimento da candidaturade Paulo Maluf, o que abriria espao para uma conciliaoentre faces pedessistas e oposicionistas para o apoio de umcandidato de consenso (no qual Tancredo esforava-se porse enquadrar) no Colgio Eleitoral.

    Talvez tenha sido essa diviso dentro do maior partidode oposio o principal fator explicativo do fracasso inicialde setores do PMDB, em relao ao PT e a alguns grupossociais, em deflagrar uma campanha por eleies diretasem 1983 (Bertoncelo, 2007, pp. 99-111). Essa configurao

    de foras foi alterada no final desse ano. A evidncia de quehavia um enorme potencial de mobilizao em torno dareivindicao por eleies diretas (como indicavam pesqui-sas de opinio pblica e mobilizaes de grupos sociais nacena pblica), somada incerteza que marcava os rumos da

    sucesso presidencial (incerteza aumentada pela abdicaode Figueiredo da coordenao do processo sucessrio em

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    dezembro de 1983), alteraram as estratgias da ala mode-rada das oposies partidrias, especialmente dos governa-dores. Calculando que uma ampla mobilizao societriapoderia aumentar os recursos das oposies na conforma-o do processo poltico, eles decidiram adotar um discursomais enftico de defesa de eleies presidenciais diretas nacena pblica e, mais fundamentalmente, decidiram apoiaras mobilizaes por eleies diretas.

    Em suma, processos autonomamente determinadosocorrendo em contextos de ao diversos interpenetraram-se, constituindo uma conjuntura de crise poltica em que se

    multiplicaram as jogadas intersetoriais visando s disputasem torno da sucesso presidencial. A campanha das dire-tas foi, ela prpria, produto dos esforos de construo deuma unidade entre diversas jogadas intersetoriais partindode atores sociais e polticos que, orientando-se por ideais

    democrticos, buscavam liquidar o regime militar superan-do os limites impostos sucesso presidencial.

    A construo simblica da campanha das diretasTarrow (1998) sublinha que a ao coletiva exige a coor-

    denao de atores coletivos e individuais, relativamenteisolados e dispersos, em ao concertada. Os esforos pormobilizar recursos e atores de forma coordenada so, emgrande medida, levados a cabo pelas chamadas estruturas demobilizao, que incluem desde organizaes formalmente

    ligadas a um movimento social at aquelas que so apro-priadas (Igreja sindicatos vizinhana associaes profissio-

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    rana dos participantes), eles foram atores centrais (pelomenos inicialmente) na coordenao do processo de mobi-lizao de recursos, um fator necessrio para transformar asoportunidades percebidas de superao da ordem polticaautoritria em aes de protesto7.

    A realizao relativamente bem-sucedida de um conjun-to de manifestaes por eleies diretas no incio de 1984(tanto em capitais quanto em municpios interioranos, levan-do s ruas mais de 400 mil pessoas em janeiro e cerca de 700mil no ms seguinte) incentivou outros grupos sociais e pol-ticos a mobilizar-se. Em parte, isso resultou na multiplicao

    dos comits pr-diretas em mbito nacional, processo que sealimentou da maior organizao dos partidos de oposioe da maior autonomia poltica e capacidade organizacionalde diversos grupos sociais. De fato, os comits, que reuniamos partidos de oposio, membros do grupo pr-diretas do

    PDS, alm de associaes e entidades sociais diversas, cons-tituram-se em grande medida apropriando-se do aparatoorganizacional existente e transformando-o em estruturas demobilizao. Esse foi um dos fatores que permitiu expandir aluta por eleies diretas pelo territrio nacional8.

    7Para a realizao do comcio da Praa da S (ocorrido na cidade de So Pau-lo em 25 de janeiro de 1984), o governador Franco Montoro (com o apoio doprefeito por ele indicado, Mario Covas) garantiu transporte gratuito ao local damanifestao, liberando as catracas do metr, nibus e trens. O secretrio de se-gurana, Miguel Reale Jr., reuniu-se com o ministro da Justia, Ibrahim Abi-Ackel,

    para assegurar-lhe que a segurana do evento seria feita pela polcia militar (haviao temor de que as tropas do Exrcito pudessem ser mobilizas pelo regime militar,

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    Os processos de transformao de oportunidades diver-sas em recursos e de criao e apropriao de estruturas demobilizao so mediados por processos interpretativos queocorrem no interior da ao coletiva (McAdam et al., 1996).

    Os estudos sobre os chamados quadros interpretativos deao coletivasalientam a importncia do sentido [meaning] em

    mediar a relao entre organizao, oportunidades e mobili-zao. Os movimentos sociais so vistos como atores engajadosem um trabalho de significaoou de construo de sentidos, doqual resultam os quadros interpretativos. Como conjuntos decrenas e sentidos orientados para a ao, eles geram inter-

    pretaes da realidade social e de seus objetos a fim de mobi-lizar potenciais participantes, obter o apoio de espectadores edesmobilizar adversrios, buscando, assim, inspirar e legitimaras atividades e campanhas de uma organizao de movimen-to social (Snow e Benford, 2000, p. 614 traduo prpria;

    Snow et al., 1986; Snow e Benford, 1988; Snow, 2004).Nesta perspectiva, a cultura tende a ser vista como um

    repertrio de smbolos, narrativas, definies que so apro-priadas pelos atores nos processos de mobilizao coletiva(Zald, 1996). Embora tal concepo avance em relao a

    outras que tomam a cultura como um mero epifenmenoou que simplesmente ignoram os componentes culturais daao coletiva (como o mainstreamda teoria da mobilizaode recursos), ela tende a retrat-la como um conjunto deelementos que existem concretamente fora dos atores, para

    os quais eles se orientam estrategicamente. Como conse-quncia disso temos que a lgica que informa a simbolizao

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    Essa concepo instrumental pode ser superada se tomar-mos a cultura no apenas como um repertrio, mas comoum contexto no contingente que estrutura a ao segundouma lgica especfica (Alexander, 1989). O contexto cultu-ral constitudo por padres simblicos que constrangem epossibilitam a ao ao estruturarem os compromissos norma-

    tivos dos atores e seu entendimento do mundo e suas possi-bilidades dentro dele (Emirbayer, 1996, p. 110). Nesse sen-tido, a cultura, ou melhor, uma estrutura cultural (Rambo eChan, 1990) um componente constitutivo da ordem social,informando a estrutura das instituies sociais, a natureza

    da cooperao e conflito sociais, e as atitudes e predisposi-es da populao (Sewell, 1985, p. 61 traduo prpria).

    Ento, os quadros interpretativos de ao coleti-va podem ser vistos como o produto da interao entrepadres simblicos e a estrutura de oportunidades que

    confrontam os atores externamente, ou seja, como o pro-duto da formulao de uma estrutura cultural em contextossocioestruturais especficos (formados por redes interpesso-ais e interorganizacionais)10. Nesse sentido, eles canalizamos esforos dos atores para aquilo que possvel e desejvel

    alcanar dadas as condies existentes. Obviamente, o que

    referimo-nos s prticas interpretativas que so deliberadas, utilitrias, orientadas paraobjetivos: quadros interpretativos so construdos e empregados para alcanar um ob-jetivo especfico recrutar novos membros, mobilizar adeptos, adquirir recursos e

    assim por diante. (Snow e Benford, 2000, p. 624 traduo prpria). Mesmo em en-foques tericos que empregam uma concepo de cultura diversa, essa mesma lgica

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    possvel alcanar e os meios para isso no so dados aosatores. Da, as disputas (nos processos discursivos) que ocor-rem em torno da construo de quadros interpretativos.

    No ser possvel reconstruir aqui em detalhes as dis-putas que conformaram o quadro interpretativo que emer-giu no contexto das mobilizaes por eleies diretas11. No

    entanto, podemos dizer que seus componentes principaisforam assim construdos:

    Quadro 1

    Componentes do quadro interpretativo das Diretas-J

    Diagnstico

    O centro poltico da sociedade visto como o principal respon-svel pela grave situao socioeconmica e por suas consequn-

    cias sociais e polticas (aumento do desemprego, reduo darenda, dentre outras). A enorme centralizao do poder poltico

    faz com que os custos do ajuste recaiam desigualmente sobre

    as camadas sociais;

    Prognstico

    O restabelecimento da eleio direta para a Presidncia da Rep-

    blica pode abrir maior espao para a participao societria na

    arena poltica e, com isso, permitir que as principais demandas

    sociais sejam atendidas. O futuro governo, tendo como base um

    presidente eleito diretamente pela populao, teria maior repre-sentatividade para implementar polticas de resoluo dos princi-

    pais problemas percebidos na sociedade;

    Motivao para agir

    A participao na campanha das diretas uma forma de manifes-tar a insatisfao diante da situao poltica, econmica e social

    do pas. O amplo apoio da populao e dos partidos luta por

    diretas-j pode forar os congressistas a aprovar a emenda Dante

    de Oliveira, viabilizando a demanda pelo restabelecimento ime-

    diato da eleio direta para presidente.

    A construo desse quadro interpretativo apropriou-sed ( f i d ) d i bli d

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    ca desde meados da dcada de 1970. Sublinhe-se que, ao asso-ciar a eleio direta para presidente possibilidade de enca-minhamento de diversas reivindicaes e de superao da cri-se econmica de forma socialmente mais justa, esse modode interpretar a luta pr-diretas criou condies propcias formao de uma ampla coalizo sociopoltica de oposio ao

    regime militar e para sua ao unificada na cena pblica.Se, por um lado, o quadro interpretativo das diretas moti-

    vou atores sociais e polticos diversos a mobilizar recursos eapropriar-se de estruturas de mobilizao, por outro, foi amobilizao dessa base organizacional (com o apoio de seto-

    res da imprensa escrita) que facilitou que a produo sim-blica do movimento pelas diretas fosse difundida nacional-mente, a despeito do bloqueio imposto pelo regime militarao principal meio de comunicao na poca (a televiso).

    A reao do regime e a proposta de negociaoEm uma onda de protestos, como argumenta Tarrow(1998), os movimentos sociais no apenas se aproveitam deoportunidades de mobilizao, mas tambm as ampliam,tanto para si mesmos como para outros movimentos ou

    insurgentes. Alm disso, os desafios produzidos por insur-gentes geram contramobilizaes por parte dos atores afe-tados por eles, que impactam igualmente sobre a estruturade oportunidade do protesto coletivo. De um lado, vimosque os grandes comcios do incio de 1984, especialmente o

    comcio da Praa da S, demonstraram as oportunidades deao a outros atores individuais e coletivos incentivando-os

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    so sobre os polticos profissionais do PDS, cujo destino polti-co dependia cada vez mais da aproximao com o eleitorado.Muitos entre eles calculavam que a postura oficial da cpu-la pedessista definida em reunio em janeiro de 1984, dedefender a legitimidade do Colgio Eleitoral poderia produ-zir um enorme desgaste poltico-eleitoral ao partido, possivel-

    mente ameaando seu desempenho nas eleies de 1986. Porisso, a multiplicao e ampliao das mobilizaes por eleiesdiretas acabaram por fragmentar ainda mais esse partido12.

    Inicialmente, a estratgia do ncleo do regime paraconter os efeitos da campanha das diretas baseou-se em ten-

    tativas de reconstruir a unidade do PDS em torno de umanica candidatura apoiada pelas vrias faces. Esses esfor-os no tiveram os efeitos desejados. De fato, com a cres-cente polarizao entre as candidaturas de Paulo Maluf eMario Andreazza, era improvvel que surgisse um nome de

    consenso no partido (Bertoncelo, 2007, p. 144).Diante disso, o ncleo do regime modificou sua estra-

    tgia, balizando-a em termos de dois elementos. Em pro-nunciamento nacional em 31 de maro de 1984, Figueiredomanifestou a inteno de enviar uma emenda que, entre

    outras coisas, restabeleceria a eleio direta para a suces-so de seu sucessor. Denomino esse elemento de propostada negociao, porque, em certo sentido, buscava atenuaro desgaste poltico do PDS e do governo ao atender par-cialmente s demandas das oposies. A isso, somava-se um

    outro elemento: o da presso militar. No mesmo pronun-ciamento Figueiredo afirmou que a eleio de seu sucessor

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    conservadoras do PDS, em vetar uma possvel aprovao daemenda Dante.

    Embora a unidade dofrontoposicionista sempre tenhasido muito tnue, a proposta de negociao (somada per-cepo da insatisfao de setores militares com a campanha)foi interpretada por algumas lideranas oposicionistas (espe-

    cialmente aquelas gravitando em torno de Tancredo Neves)como uma oportunidade para relanar a estratgia daconciliao no jogo sucessrio, adotando uma postura maismoderada na cena poltica. No tanto pela emenda alternativaa ser apresentada pelo Executivo Federal, que no trazia datas

    e no negociava o essencial. O ponto que a manutenodo ritmo crescente das mobilizaes pr-diretas poderia serinterpretada, no campo adversrio, como uma recusa a nego-ciar, radicalizando ainda mais as disputas polticas e, no limite,ameaando as conquistas obtidas pelas oposies ao longo do

    processo de abertura poltica. Por isso, apesar da postura ofi-cial do PMDB (e dos demais partidos de oposio) em susten-tar a luta pelo restabelecimento imediato das eleies diretas,surgiram evidncias de tentativas de frear a campanha pr-diretas por parte de lideranas oposicionistas (especialmente

    os governadores) (Bertoncelo, 2007, pp. 153-157).Essas tentativas, no entanto, no foram bem-sucedidas.Na verdade, ao longo do tempo, o crescimento da base orga-nizacional da campanha contribuiu para reduzir o controledo PMDB e dos governadores sobre ela. Alm disso, como

    vimos, a construo simblica da campanha como um movi-mento que buscava superar o regime militar-autoritrio e ins-

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    setores das oposies partidrias, aparentemente prevendo aderrota da emenda Dante de Oliveira, j se preparassem paranegociar uma candidatura no Colgio Eleitoral, as mobili-zaes societrias que alimentavam a campanha por eleiesdiretas cresciam continuamente (Bertoncelo, 2007, p. 158).

    Apoiada nessa larga base de apoio societrio, a campanha

    produziu as maiores manifestaes pelas diretas (e tambmda histria brasileira) em abril. Os comits pr-diretas tiveramum papel central na coordenao dos eventos, especialmentedevido resistncia de governadores oposicionistas em parti-cipar mais ativamente da organizao deles (idem, p. 168). A

    expectativa de bom comparecimento aos eventos pressionouos governadores de volta aos palanques. Os eventos de maiordestaque foram, sem dvida, os comcios da Candelria, noRio de Janeiro, e do Vale do Anhangaba, em So Paulo.

    Alm de ter levado mais de um milho de pessoas s ruas,

    o comcio da Candelria (realizado em 10 de abril) logrouromper a censura estabelecida pelo regime sobre as emisso-ras de televiso. A Rede Globo, que at ento havia omitidoa luta pelas diretas de seus noticirios, abriu amplo espaopara a manifestao do Rio em sua programao (Berton-

    celo, 2007, pp. 163-164). Em 16 de abril, assistiu-se maiormanifestao da campanha, a passeata-comcio no Vale doAnhangaba, que reuniu cerca de 1,5 milho de pessoas.Novamente, o bloqueio censura foi quebrado, e trechos dapasseata e dos discursos foram transmitidos ao vivo.

    A mudana de posicionamento do principal rgo daimprensa nacional quanto campanha das diretas foi em par-

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    As grandes manifestaes do ms de abril levaram maisde trs milhes de pessoas s ruas em vrias regies do pas(houve comcios em vrias capitais, como em Recife, Natal,Goinia, Porto Alegre, Vitria, Salvador). O impacto porelas produzido talvez pudesse ter gerado recursos suficien-tes para que as foras oposicionistas e dissidncias do PDS

    obtivessem os nmeros necessrios para aprovar a emendaDante na Cmara dos Deputados, no fosse a mobilizaodo ncleo do regime. A estratgia de conter os efeitos dacampanha das diretas, combinando elementos de negocia-o e de interveno militar, foi implementada oficialmen-

    te. De um lado, o governo acenou com a possibilidade deatender a algumas das demandas das oposies e de dissi-dncias no PDS, embora postergasse a sua realizao. Em16 de abril, Figueiredo anunciou em cadeia nacional derdio e TV o envio de uma emenda ao Congresso Nacional

    que restabelecia as eleies diretas para Presidente em 1988e as eleies nas capitais em 15 de novembro de 1986; redu-zia o mandato presidencial para quatro anos e aumentavaprerrogativas legislativas, entre outras medidas. De outro,o governo tomava a iniciativa de sublinhar o veto militar ao

    restabelecimento imediato da eleio presidencial direta,com a declarao das Medidas de Emergncia em Braslia emunicpios prximos por 60 dias (em 18 de abril), impedin-do o acesso de caravanas, a realizao de manifestaes naslocalidades e a transmisso ao vivo da votao.

    O resultado j sabido: a emenda Dante foi rejeitada.O principal significado dessa derrota foi o afastamento das

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    Vitria das Diretas-J: efeitos polticos e significado simblicoNa literatura dos Novos Movimentos Sociais, as dimensessubjetiva e cultural so vistas como centrais aos movimentossociais contemporneos. Isso entendido como um produtoda transformao das sociedades industriais em ps-indus-triais (entre outros, Touraine, 1985; Melluci, 1985; Eder,1985). No contexto dessas profundas mudanas macroes-truturais que transformaram o modo de produo e asformas de estratificao social emerge um novo campode conflitos sociais em torno da construo e preservaode espaos para a formao de identidades pessoais e para

    a reivindicao de demandas universalistas. Da, a nfasesobre o impacto dos movimentos sociais contemporneossobre os cdigos culturais.

    Diferentemente, as Teorias do Processo Poltico e daMobilizao de Recursos enfatizam os efeitos de movimen-

    tos sociais sobre as estruturas formais e alianas informaisdo sistema poltico, que podem resultar na ampliao doacesso ao processo de tomada de decises polticas paradesafiadores e/ou em transferncias de poder entre os con-tendores (Giugni, 1998).

    Seguindo estudos mais recentes, que tentaram sinteti-zar os argumentos acima (Diani e Dellaporta, 1999; Alvarezet al., 2000), busco sublinhar tantoos efeitos polticos quantoos significados culturais associados s aes do movimentopelas diretas.

    Anteriormente, a campanha das diretas foi concebidacomo o produto de uma conjuntura de crise poltica Gos

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    as pedessistas de conduzir o processo poltico em moldes

    favorveis reproduo de suas posies de poder.Ressalte-se, em primeiro lugar, que o amplo apoio socio-

    poltico campanha isolou o ncleo do regime, forando-oa ceder, parcialmente verdade, s presses vindas das ruas,esvaziando-o de seu carter autoritrio. No plano poltico-

    partidrio, vimos como o grupo pr-diretas e os setores libe-rais no PDS, no-alinhados s candidaturas de Paulo Malufe Mrio Andreazza e que aceitavam negociar com as opo-sies, ganharam fora na conjuntura poltica desencadea-da pela campanha.

    No plano societrio, a campanha afastou irremediavel-mente parcelas significativas das camadas empresariais dasorientaes dos dirigentes do regime no campo sucessrio.Ressalte-se que, apesar do empenho das lideranas da cam-panha em atrair lideranas empresariais, estas no subiram

    aos palanques das diretas. De fato, boa parte delas preferiauma sucesso conduzida dentro das regras institucionalmen-te estabelecidas, de modo que se evitassem os efeitos sociaispotencialmente mais transformadores associados a uma elei-o direta. Entretanto, tais lideranas no estavam tampouco

    alinhadas com as orientaes do chefe do Executivo federale dos dirigentes militares, temerosas de que um sucessorsado diretamente das hostes do regime no tivesse o apoiosocietrio e poltico necessrio para promover as medidas deajuste econmico de modo eficiente. A enorme mobilizao

    sociopoltica em torno da campanha reforou essa percepo(Bertoncelo 2007 pp 191-193) Por isso a escolha preferida

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    Em segundo lugar, o apoio macio da populao cam-

    panha das diretas acelerou o processo de deslegitimao doregime, questionando o principal mecanismo de sua repro-duo, o Colgio Eleitoral (Lamounier, 1985). Mais funda-mentalmente, o movimento pelas diretas afetou as basesmais profundas do regime militar e o padro de dominao

    poltica longamente estabelecido nos mecanismos do Esta-do Varguista. Neste ponto, sobressai-se o impacto do movi-mento das diretas sobre os padres simblicos que informa-vam as estruturas polticas.

    Em sua anlise sobre o caso Watergate, Alexander (1988)

    investiga os processos culturais (como ritualizao e sacraliza-o) em contextos de crise poltica. Estes so tomados, segun-do Parsons, como momentos de generalizao. Neles, o focode ateno dos atores generaliza-se do nvel dos objetivos,interesses e poder para o nvel mais fundamental dos valores,

    que so padres simblicos generalizados que informam oscdigos e as normas que regulam a autoridade poltica e osprocessos de resoluo de interesses. Esses valores constituemo chamado centro sagrado da sociedade (Shils, 1975). Daa forte ritualizao dos processos sociais em tais perodos, em

    que os atores experimentam, de forma no mediada, valo-res fundamentais e reinterpretam ou reafirmam o sistemade classificao. Embora a anlise de Alexander sobre o casoWatergateseja um tanto idealista por no incorporar sistema-ticamente o modo pelo qual o ambiente material da ao

    limita o processo de generalizao e constrange os processosculturais a ideia de que em perodos de crise h uma inten-

    E id li b C h d Di

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    ondas de protesto e especialmente em situaes revolucio-

    nrias, a ritualizao expande-se pelo tecido social: atoresfrequentemente enfocam smbolos coletivos e invocam valo-res sociais. Em arenas sociais diversas, estruturas culturaisdominantes podem ser contestadas e transformadas, dandoorigem a estruturas alternativas que fornecem categorias e

    princpios para a reinterpretao da realidade social e, pormeio de suas obrigaes morais, impulsionam os esforosdos atores no sentido de reconstrurem a ordem social epoltica. A energia emocional produzida nos rituais podesedimentar vnculos de solidariedade e mobiliza conflitos

    (Collins, 1988; Tiryakian, 2005).A crena fundamental que movia os atores do movimen-

    to pelas diretas era de que eleger diretamente o Presidenteda Repblica permitiria superar o regime militar-autoritrioe fundar uma sociedade democrtica, construda em torno

    de valores ou princpios, como igualdade (entendida de for-ma muito ampla, como igualdade socioeconmica, igualdaderacial, igualdade de gnero etc.), representatividade popular,liberdade poltica, entre outros. Emergindo dos discursosgerados nas redes que ligavam grupos sociais e polticos diver-

    sos (e que sustentaram o processo de autonomizao polti-ca da sociedade), essa crena que informou as estratgiasdos atores nas tentativas de reconstruo da ordem poltica materializou-se na ritualizao ensejada pelo movimento.

    Os eventos por eleies diretas povoaram ruas, praas,

    casas, entre outros, de smbolos coletivos fortemente carrega-dos de carga moral e emocional Ao entoarem o hino nacio-

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    sociedade foi profanizado, com a criao de bonecos sati-

    rizando figuras polticas importantes como Paulo Maluco,Mario Dazzar e Aureliano Chavo, a malhao de outros,representando Ministros de Estado, enterros simblicos doregime militar, do Colgio Eleitoral, do presidente Figueire-do etc. Essa profanizao do centro poltico em parte expli-

    ca a ineficcia das tentativas do ncleo poltico do regime emcolocar-se como representante da sociedade. Nas palavrasde algum que viveu os acontecimentos, a opinio pblicano quer mais ouvir falar na continuao de nada que estejaligado ao governo (Veja, 25.4.1984, Carta ao Leitor).

    A ritualizao ensejada pelo movimento das diretasfez emergir experincias liminares (Alexander, 1988): oseventos das diretas foram, em alguma medida, fenmenosfora do tempo e espao tradicionais, ensejando experin-cias separadas da vida institucional cotidiana13.

    As oposies simblicas construdas ou reinterpretadasnos processos de ritualizao (de um lado, verde e amarelo= massas = democracia = sociedade melhor; de outro, preto= elites polticas = autoritarismo = sociedade injusta) impacta-ram fortemente sobre os padres dominantes de classificao

    que informavam as estruturas polticas e relaes sociais. Ques-tionou-se o discurso incrustado na sociedade brasileira queassociava as massas desordem e falta de autoridade e quefazia da tutela poltica sobre a sociedade um princpio bsicodos regimes polticos (categorias essas que foram centrais s

    reivindicaes de legitimidade do golpe militar de 1964). Poroutro lado erigiu-se a praa pblica como lugar fundamental

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    redefinio dos contornos do espao pblico e a construo

    de um Estado cuja legitimidade se assentasse em sua capacida-de de aglutinar ampla representatividade sociopoltica.

    Obviamente, muitas das promessas a contidas no foramplenamente implementadas. Os processos de ritualizao ense-jados pelo movimento das diretas no penetraram a sociedade.

    Como vimos, havia grupos sociais e polticos que se opuserams reivindicaes trazidas pela campanha, em parte porque orestabelecimento imediato das eleies diretas para Presiden-te criaria condies pouco propcias para a realizao de seusinteresses. Ressalte-se, ainda, que a energia emocional canali-

    zada pelos eventos da campanha foi em parte manipulada porgrupos diversos para avanar interesses materiais e ideais espe-cficos (o palanque das diretas era usado para criar ou reforarvnculos de solidariedade com setores do eleitorado, a praaservia como um palco para demandas diversas, como a dos

    partidos comunistas que pediam sua legalizao etc.). Apesardisso, creio que a narrativa construda no movimento das dire-tas tenha informado, desde ento, tentativas de reconstruoda vida institucional (afinal de contas, os regimes polticos egovernos mais recentes ampliaram os canais para a participa-

    o mais efetiva da populao no processo poltico), alm de,provavelmente, ter alimentado outras manifestaes de mas-sa da sociedade brasileira, como as mobilizaes em torno daConstituinte de 1988 e aquelas em torno do impeachmentdopresidente Fernando Collor.

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    EU QUERO VOTAR PARA PRESIDENTE: UMA ANLISE SOBREA CAMPANHA DAS DIRETAS

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    Lua Nova, So Paulo, 76: 231-237, 2009

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    EDISON RICARDO EMILIANO BERTONCELO

    O tema deste artigo a Campanha das Diretas-J. Nele,

    buscamos investigar a emergncia desse movimento mar-cante da histria brasileira e seu impacto sobre a transi-

    o poltica para alm do regime militar, utilizando um

    quadro analtico construdo com base nas contribuies

    recentes da literatura sobre ao coletiva e sociologia da

    cultura.Palavras-chave:Campanha das Diretas-J; Crise poltica; Movi-

    mentos sociais; Democratizao; Cultura.

    I WANT TO VOTE FOR PRESIDENT: AN ANALYSIS OF THE

    DIRETAS-J CAMPAIGNThe main theme of this article is the Campanha das Diretas-J.

    We aim to investigate the emergence of this important movement

    to the Brazilian history and its impact on the political transition

    beyond the military regime, based on an analytical framework

    derived from recent contributions by the literature on collectiveaction and cultural sociology.

    Keywords:Diretas-J Campaign; Political crisis; Social movements;

    Democratization; Culture.