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EVOLUÇÃO DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL: MESA REDONDA NO I SEMINÁRIO DE POLÍTICA DEMEMÓRIA INSTITUCIONAL E HISTORIOGRAFIA*
EVOLUTION OF THE CRIMINAL PROCESS CODE: FIRST CONCLAVE ON INSTITUTIONAL ANDHISTORY MEMORY ROUND-TABLE
DES. LUIZ MELÍBIO UIRAÇABA MACHADO**
Eminente Des. Pedro Henrique, Coordenador deste evento, ilustres Colegas que integram esta
Mesa, senhoras e senhores.
Em primeiro lugar, desejo agradecer ao eminente Des. Pedro Henrique o convite para participar
deste Painel. Para mim é um privilégio compartilhar este momento com este auditório e principalmente
com os Colegas que aqui estão.
Desejo cumprimentar o Tribunal por este evento e aplaudir a excelente coordenação que tem.
O tema Evolução do Processo Penal pode ser desenvolvido em vários planos. Eu pensei que seria
melhor examiná-lo do ponto de vista da proteção do réu numa passagem muito rápida pelos tempos,
porque os Colegas de Painel haverão de abordar segmentos mais específicos.
Relembro, apenas para estabelecer os tópicos da exposição, que o Direito é uma expressão cultural
e identifica-se com o tempo no qual ele é examinado. Evolui como a sociedade evolui, pára quando ela
pára, é a expressão da sociedade em que vivemos ou no momento em que esse Direito está sendo estudado
e surpreendido para estudo - o Direito material, porque o Direito Processual define como se estabelecem
as relações entre o poder e o indivíduo.
Na história do Processo Penal, identifica-se bem isso. Se estamos vivendo um momento de
autoritarismo, ele se expressa por intermédio do processo como instrumento desse autoritarismo.
* Antiga sala do Tribunal Pleno, Palácio da Justiça, Porto Alegre, 13 de setembro de 2002.** Desembargador aposentado do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.
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O estudo da formação dos governos absolutistas, dos governos monárquicos, na Europa, por
exemplo, mostra-nos bem que a política exercida para chegar à monarquia foi exatamente por meio do
Judiciário, e, no Judiciário, por meio da Justiça Penal e do Processo Penal.
Feita essa exposição preliminar, lanço a primeira tese deste Painel: o Estado, para exercer-se como
Poder, não precisa de processo, ele precisa de rotinas. Quem precisa de processo é o cidadão, é o súdito,
porque o processo é a garantia do cidadão frente ao arbítrio.
Vamos identificar uma situação vivida na história portuguesa, pelos anos 1300, início de 1400,
quando sobrevieram as Ordenações Afonsinas. Já de antes havia essa regra. Sempre relembro dois
episódios das Ordenações, porque me parecem um paradigma. Diz o CXXXVII das Ordenações o
seguinte: “Quando nós condenarmos alguma pessôa à morte,” - nós, o Rei está ordenando, é uma
ordenação – “ou que lhe cortem algum membro, por nosso próprio moto, sem outra ordem, e figura de
Juizo, por ira, ou sanha que delle tenhamos, a execução da tal sentença seja spaçada até vinte dias”.
Então, o Rei, num momento de ira ou sanha, indignado com algum súdito seu, gritava para os seus
soldados: “Prende e rebenta”. E os soldados, sem qualquer tardança, executavam a sentença.
Afonso II determinou que isso viesse para a Ordenação a partir de um episódio de Afonso I, o
qual, num momento de ira e sanha contra o réu, determinou que ele fosse degolado, o que foi feito
imediatamente. Depois de passada a ira, não se sabe bem se a ira ou a embriaguez, arrependeu-se
profundamente, porque o executado era um amigo que ele queria muito bem. Aquilo ficou muito marcado,
não houve mais como suspender os efeitos daquela sua decisão. Depois disso, Afonso II resolveu colocar
na Ordenação a ressalva de que a execução fosse espaçada por vinte dias.
Temos aí, então, uma sentença do Rei com a eficácia contida por vinte dias. Temos uma norma de
eficácia contida e um reexame necessário. Esse é o exercício do puro arbítrio.
É muito interessante observar que o exercício do puro arbítrio pelo Rei era aceito pela comunidade
como uma norma de cultura sua, da comunidade, porque o indivíduo também praticava fatos em
momentos de ira ou de sanha contra alguém. Isso, em determinadas circunstâncias, transformava aquele
comportamento em um comportamento lícito.
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Há um dispositivo muito interessante para ilustrar o que estou dizendo. As Ordenações Filipinas,
no Livro Quinto, Titulo XXXVIII, diz o seguinte: “Achando o homem casado sua mulher em adulterio,
licitamente poderá matar assi a ella, como o adultero” - após, vem uma ressalva estabelecendo um
privilégio de foro que, a meu juízo, se justifica e deveria existir até hoje – “salvo se o marido for peão, e o
adultero Fidalgo, ou nosso Dezembargador (...)”. Então, o marido traído tinha direito de matar a mulher e
o seu cúmplice, ressalvado o Fidalgo e o nosso Desembargador, o que me parece uma providência muito
útil para evitar um julgamento sumário de um Desembargador.
“Porém, quando matasse alguma das sobreditas pessoas,” - Fidalgo ou nosso Desembargador –
“achando-a com sua mulher em adulterio, não morrerá por isso mas será degradado para Africa com
pregão na audiência pelo tempo, que aos Julgadores bem parecer, segundo a pessoa que matar,” - a
graduação - “não passando de treze annos”. O limite para o degredo era treze anos.
Depois que o Brasil foi descoberto, no início, a degradação era para o Brasil. A pena de degredo
para o Brasil era considerada muito mais grave do que o degredo para a África, que já era um País
civilizado, com os seus africanos bastante evoluídos, inclusive com organizações estatais. No Brasil, os
degredados eram deixados na altura de Copacabana, entregues aos índios, o que equivalia a uma pena de
morte.
O que temos aqui? Uma pessoa comum, do povo, com direito de vida e morte, em determinadas
circunstâncias, sobre a mulher e o seu cúmplice, sem qualquer figura de juízo, sem processo. Era-lhe lícito
julgar, condenar e executar. Vemos uma ressalva que estabelece um privilégio de foro para fidalgo ou nosso
Desembargador, que deveriam responder a processo perante o Rei, porque os fidalgos e os nossos
Desembargadores só respondiam perante o Rei. A garantia que se tinha contra a discrição do marido traído
era pela qualidade da pessoa achada como cúmplice. Esses tinham alguma garantia processual, os demais
não.
É muito interessante observar como isso era cumprido e como essa norma de cultura do “prendo e
rebento” é do nosso tempo. O nosso ex-Presidente Figueiredo, num momento de indignação, de ira, de
sanha contra alguém, disse: “Não façam isso comigo, porque eu prendo e rebento”. Isso aconteceu faz
meia dúzia de anos. Há pouco tempo, passamos um período do “prendo e rebento” como regra, sem vinte
dias espaçados para execução. O “prendo e rebento” existe até hoje, porque o exercício do poder é algo
terrível. Talvez a coisa mais terrível que possa acontecer para alguém é o exercício do poder, do
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autocontrole de estabelecer para si os seus limites. O Delegado, na Delegacia, num momento de ira ou de
sanha contra alguém, determina “prende e rebenta”. E se der chance e oportunidade para o Promotor, ele
manda prender e arrebentar. Se for para o Juiz, nem se fala, ele tem Oficiais de Justiça para isso. Estou
fazendo uma caricatura do que existe aí fora hoje; existe, como existia em 1300 ou há dois mil anos.
E como fazer para livrar-nos do arbítrio do poderoso, do poder, de quem tem o poder, do Estado?
Temos que ter regras de processo para isso, porque elas constituem as garantias. De que valem as regras de
processo e uma Constituição com garantias individuais se não há uma cultura que force a sua obediência?
Eu volto ao começo, principalmente o Processo Penal expressa relação de poder entre o Estado e o
indivíduo, e o processo existe para o indivíduo, não para o Estado.
É muito interessante observar que, nos tempos primitivos, quando não havia um Estado com um
aparato como hoje temos, o processo penal e a execução penal eram feitos pelo chamado Vingador do
Sangue. Quando algum membro do agregado social, da família, do clã, sofria alguma violência corporal, a
família reunia-se e elegia um Vingador do Sangue que era o encarregado de ir atrás do ofensor e puni-lo.
Isso era lícito, esse era o sistema.
Ao tempo dos babilônios, sabia-se que havia uma regra que estabelecia limites para o Vingador do
Sangue. Se a vítima havia perdido um olho, ele poderia tirar um olho do ofensor, se a vítima havia perdido
um dente, ele poderia tirar um dente. Se a vítima tivesse sido o filho de alguém, e o ofensor tivesse um
filho, matava-se o filho do ofensor. Era o olho por olho, dente por dente, na proporção exata, porque até
então não havia proporção alguma, o Vingador do Sangue exercia a sua sentença como bem lhe parecesse.
Evidentemente que isso levava a uma vendeta; os parentes e amigos, os que ficavam solidários com
o ofensor uniam-se para revidar. E assim vêm os tempos com a famosa vendeta, mas a Pena do Talião
estabeleceu uma certa proporcionalidade.
Estou mostrando como o réu necessita de proteção. É muito interessante observar-se quando o réu
se encontrava foragido e era condenado. Dependendo da natureza do crime, ele era declarado fora da lei.
Isso significava, em termos processuais, que, se ele era declarado out law, fora da lei, qualquer pessoa que o
encontrasse e onde o encontrasse poderia executar a sentença, que, no caso, era a morte, ou seja, quando o
Tribunal ou o Rei declarava alguém fora da lei, qualquer um poderia ser o executor da pena.
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Nas Ordenações do Reino - já estamos em 1500 -, o Rei estabeleceu reexames necessários. Já está
bem evidente que o Rei, como monarca, queria ter o controle disso tudo. Seguindo onde dizia que por ira
ou sanha determina a morte de alguém, a Ordenação dispunha: “Porém, no que fôr condenado per via, e
ordem de Juizo,” - mediante um processo regular - “sendo primeiro ouvido com seu Direito, tanto que fôr
condenado per Nós, ou per nossos Dezembargadores, que para isso tenhão nossa authoridade, seja feita
execução nelle, pela maneira abaixo declarada, dando-lhe tempo, que razoadamente se possa confessar, e
comungar”.
Então, já começa a ser estabelecida uma norma, a execução tinha uma eficácia contida; primeiro,
tinha que ser dada oportunidade ao que ia ser executado de se confessar e comungar, e isso poderia
demorar tempo até que o padre fosse encontrado.
“Porém, se o condenado à morte stiver preso, no lugar onde Nós a esse tempo stivermos, antes de
se nelle fazer execução, no-lo farão saber”. Se o Rei estivesse no território onde a execução haveria de ser
feita, havia o reexame necessário pelo Rei, o assunto deveria ser levado ao Rei, e a execução só se faria
depois que ele a confirmasse. As penas capitais ficavam reservadas, efetivamente, para o Rei.
Mais adiante, surgem regras a respeito do processo sumário. O procedimento sumário tinha o
seguinte rito: não guardava qualquer solenidade, o réu não precisava ser citado, e nem as testemunhas
transformavam-se em testemunhas judiciais, não eram ouvidas em uma solenidade judicial. O réu não era
citado e, sem solenidade alguma, condenado e executada a sentença. Esse era o chamado procedimento
sumário para crimes graves.
Ao tempo, eram considerados crimes graves: sodomia-homossexualismo, na linguagem de hoje -,
assalto à mão armada – o assaltante à mão armada era encontrado e já executado na hora no procedimento
sumário -, e outros crimes que, a juízo do Rei, seriam decretados assim para aquele momento, por meio de
um decreto seu. Aquele crime era considerado grave, o procedimento será sumário: encontra e mata.
Nesse sistema, presidia a idéia de presunção de culpa. Até chegarmos a uma presunção de
inocência, atravessamos séculos.
Hoje, na proteção do réu, temos a necessidade de um processo regular. Mais importante ou tão
importante que a expressão nulla poena sine lege, princípio da reserva legal, parece que é nulla poena sine judicio.
Não sei se a garantia maior é o da reserva legal ou de que nenhuma pena pode ser lançada sobre alguém
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sem que tenha havido primeiro o processo regular. Parece que a garantia do devido processo legal e a
reserva legal de que não se pode criar um crime para o réu são irmãos gêmeos.
A proteção do réu está, portanto, em ter um processo regular perante um Juiz imparcial, com a
presunção de inocência. Por conseguinte, o ônus da prova é da acusação.
Hoje, para dar essa proteção ao réu, no nosso padrão cultural, deveria haver uma defesa prévia real,
ou seja, antes de recebida a denúncia para processar, o réu deve ter o direito de ser ouvido e explicar-se. Se
as suas explicações forem convincentes, o processo deve ser encerrado nesse momento.
Qualquer um de nós que tem um mínimo de experiência sabe o padecimento que se impõe a um
réu pelo só fato do processo, se o réu é inocente. Só se saberá se é culpado ou inocente depois de julgado.
Até esse momento, ele sofre o padecimento do processo como se culpado fora.
Então, deve haver uma defesa prévia real, de maneira que o Juiz ouça o réu, ouça a sua explicação
e, convencido da sua inocência, pronuncie-se desde logo, ou seja, julgue conforme o estado do processo
para absolver ou extinguir o processo.
Fazendo um salto de 2000 anos, hoje, um outro problema muito sério que vejo no sistema de
garantias do réu é o princípio constitucional da igualdade ou de equilíbrio entre as partes. A balança não
pode pender nem para um lado nem para o outro, tem que estar em equilíbrio. A defesa e a acusação
devem estar em ponto de equilíbrio.
O perigo que corremos de desequilibrar a igualdade processual está em se repetir com o Ministério
Público o que ocorreu com o Judiciário no Brasil Colônia: o policialismo judiciário, ou seja, entregava-se
para a Polícia funções típicas do Judiciário, coisa que existia até pouco tempo, iniciando-se processos
judiciais mediante portaria, ou o inverso, o judiciarismo policial, o Juiz assumir funções policiais.
Hoje, estamos observando esse risco a partir da figura do inquérito civil seguido. Quase que
diariamente observa-se isto: o Promotor chama de inquérito civil e faz um inquérito policial e produz
unilateralmente a prova que vai ser depois utilizada contra o denunciado ou contra o acusado. Ele
investiga, ele faz a prova e ele acusa. Isso é mais ainda da que o juizado de instrução, porque, no juizado de
instrução, pelo menos, o inquérito é presidido por um Juiz. É um risco muito grande que corremos, o
desequilíbrio da igualdade ou de oportunidade entre as partes com esse tipo de distorção da função.
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Então, pode acontecer, como aconteceu com o Judiciário, que tenhamos um Ministério Público
levado a exercer funções policiais ou uma Polícia querendo exercer funções do Ministério Público.
Evitada que sejam essas distorções, com o sistema que temos, com as garantias constitucionais que
temos, parece que os nossos acusados estão suficientemente protegidos do arbítrio, salvo, evidentemente,
do “prendo e rebento”.
DES. JOSÉ ANTÔNIO P. BOSCHI***
Ilustre Presidente desta Mesa, Des. Pedro Henrique, prezado companheiro Des. Melíbio, prezado
companheiro Dr. Paulo Olímpio, prezado companheiro de Mesa Dr. Sérgio da Costa Franco.
Antes de mais nada, Sr. Presidente, quero agradecer a gentileza do convite para este evento.
Deixou-me muito orgulhoso, em especial também pela oportunidade de participar aqui de debates com
figuras tão expressivas da cultura gaúcha.
Quero-me referir ao Prof. Des. Melíbio, com quem tive a honra de atuar na 3ª Câmara Criminal do
Tribunal de Justiça, ele como Desembargador, e eu como Procurador. Lá o conheci e testemunhei os seus
méritos de homem público, de jurista e de cidadão, e pude verificar a extraordinária capacidade de um
homem como ele que, como ninguém, exerce o enorme poder de criar, de pensar, de ser um grande
argumentador. Para mim, um dos melhores argumentadores que eu conheci na minha atividade judiciária.
Portanto, é uma honra estar aqui com o Des. Melíbio.
Agradeço a oportunidade também por estar aqui junto com o prezado amigo e companheiro de
Ministério Público, o Dr. Paulo Olímpio Gomes de Souza.
Há pouco prestei o meu depoimento no Ministério Público sobre a minha vida funcional, e lá
registrei a minha gratidão por ter conhecido e convivido com Paulo Olímpio, que foi quem, no Ministério
Público, me abriu as portas para poder exercer atividade classista e, a partir dali, encontrar aquele poço de
onde eu recolhi como fonte toda a minha realização pessoal. Portanto, sempre que vejo Paulo Olímpio,
*** Desembargador do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.
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relembro esses momentos muito felizes do Ministério Público, e é por isso que eu agradeço esta chance de
poder reencontrá-lo aqui. A vida nos separa, ficamos cada qual num canto da cidade, e, sempre que me
encontro com Paulo Olímpio, não consigo deixar de expressar esta minha alegria profunda, esta minha
gratidão pelo convívio que tive com ele e pelas lições de vida e de MP que eu apreendi naquele período.
Quero também cumprimentar e agradecer a oportunidade de falar aqui junto com o Procurador de
Justiça, Dr. Sérgio da Costa Franco, um homem de cultura, de letras, uma expressão do pensamento
gaúcho na área do Direito, na área da História, da Ciência, da Sociologia, da Política.
Falar, portanto, aos senhores que visitam o Estado, aos senhores que pertencem a esta Casa, junto
com tão extraordinárias pessoas, é motivo de muita alegria e muita honra para mim.
Gostaria de tentar articular aqui uma tese - alinhavei onze pontos, mas, num espaço reduzido de
vinte minutos, certamente não vou falar sobre todos eles -, a tese de que a história do Código de Processo
Penal, no mundo todo, é uma história de luta entre dois grandes sistemas de processo. De um lado, o
sistema inquisitivo, que se caracteriza pela concentração dos atos de acusar e de julgar na figura de uma só
pessoa, na pessoa de um só indivíduo, no caso, o acusador-julgador; de outro lado, o processo acusatório,
que é um processo democrático, que se estrutura a partir de uma divisão de atribuições: de um lado, quem
acusa; de outro, quem defende e, de outro, quem julga.
Penso que a história do processo se debate neste enorme conflito pendular: de um lado, o modelo
acusatório; de outro lado, o modelo inquisitivo. E penso possível dizer, pelos estudos que fiz, que podemos
apontar aqui, como brasileiros, uma grande contradição: um País que, desde as Ordenações, até 1988,
quando veio a atual Constituição Federal, caminhou sempre progressivamente, caminhou sempre
crescentemente, caminhou sempre continuamente na direção do modelo acusatório, e, por incrível que
pareça, com a promulgação da Constituição Federal de 88, que é garantista, que é protetiva e que é liberal,
o que se percebe hoje é um caminho inverso, um caminho de retorno ao tempo da Idade Média, um
caminho de retorno ao modelo inquisitivo, acentuando-se, portanto, essa grande contradição de um País
como o nosso, que é um País cheio de contradições.
É claro que, com a rapidez necessária, eu não pretendo fazer uma reconstituição da história da
Humanidade, até porque seria uma tarefa hercúlea que não estaria dentro das minhas condições pessoais e
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que, naturalmente, demandaria um tempo enorme. Mas, se me permitirem, eu me localizaria, como ponto
de referência, na Idade Média.
Na Idade Média, notadamente a partir de 1300, quando o Estado se consorciou com a Igreja e
desencadeou o processo da Inquisição, viveram-se, talvez, os momentos, mais extraordinários de
sufocamento das liberdades individuais, de aniquilamento das condições de dignidade das pessoas
humanas. A Idade Média foi um período em que o Estado, consorciado com a Igreja, fez do Direito Penal
o chamado Direito Penal do horror, aquele verdadeiro instrumento ideológico para manutenção e
reprodução do poder político da época. Foi quando o solo europeu ficou ensopado pelo sangue de
milhares de inocentes.
A Idade Média foi um período em que, servindo-se da Inquisição, a Igreja submeteu os povos sob
o seu domínio a verdadeira camisa de força. Devassou o íntimo das pessoas e transformou em crime,
passível de fogueira, o simples ato de pensar em desacordo com ela. Abolido ficou o sadio direito de cada
ser humano de fazer as suas opções, sempre montando quadros muito coloridos. A arma utilizada para
submeter as pessoas era o terror; para que alguém fosse preso, bastava mera denúncia secreta.
A partir daí, o acusado via-se submetido a alucinante processo feito sob a égide do segredo e da
dor. Desconhecia a identidade de quem o delatara e das testemunhas que contra ele depunham.
Escondiam-se-lhe as provas colhidas, ignorava o conteúdo das acusações, mas, sem embargo, exigiam-se-
lhe que se confessasse culpado e admitisse que, no recôndito da alma, ele era um herege.
Foi um período em que as pessoas eram levadas à fogueira não por que faziam alguma coisa, mas
simplesmente porque pensavam em alguma coisa, como aconteceu com tantos mártires conhecidos que já
fazem parte da nossa História.
Nesse período, era tão extraordinária a atuação do modelo inquisitivo, em que as funções de acusar,
de produzir provas e de julgar estavam na mão de uma única pessoa, que até mesmo a função do advogado
era reservada, conforme se extrai do livro Manual dos Inquisidores, na verdade o Código de Processo
Penal que foi escrito em 1300 por Frei Nicolau Eimerich. Era tão extraordinária a figura do advogado da
defesa que se dizia que o papel do advogado era fazer o réu confessar logo e se arrepender, além de pedir a
pena para o crime cometido.
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Nesse Manual dos Inquisidores, diz-se que o grande número de testemunhas é a primeira causa da
demora inútil dos processos e do atraso na proclamação da sentença. É inútil, dizia o Manual dos
Inquisidores, quando o réu, reconhecido por três, quatro ou cinco testemunhas idôneas, faz a confissão de
acordo com os termos da delação, e isso independentemente de admitir, ou não, que confessou. O fato de
dar o direito de defesa ao réu também é motivo de lentidão no processo e de atraso na prolatação das
sentenças. Essa concessão, algumas vezes é necessária; outras não.
Quando o réu confessa o crime, sendo ou não reconhecido por testemunhas, para quem o
denunciou, e a confissão corresponde às denúncias, não vale a pena oferecer-lhe um defensor para atuar
contra as testemunhas. Na verdade, a confissão tem mais credibilidade do que o depoimento das próprias
testemunhas. Se o réu confessar, não há nenhuma necessidade de um advogado para defendê-lo.
Foi um período em que os processos inquisitivos, dominados por esta lógica, a lógica da confissão,
autorizavam a realização da tortura, para que a confissão, que valia acima de qualquer prova, viesse a
qualquer preço.
E nessa época de absoluta desumanidade, em que as penas foram usadas de forma desmedida, de
forma desproporcional e de forma desumana, também a intolerância e o obscurantismo eram a regra.
Tenho em mãos aqui um livro de Pietro Verri, Observações Sobre a Tortura, em que ele
reconstitui, com base em documentos autênticos, um caso ocorrido em 1630 na Itália. Nessa época, a Itália
e Milão foram acometidas por uma peste proveniente de Valtelina, na Alemanha. Essa peste estava
atingindo milhares de milaneses, e o governo dizia que aquilo não era nada, era invenção de médicos que
queriam ganhar dinheiro com os pacientes, que, em verdade, o que estava acontecendo era que quatro
pessoas, segundo um despacho mandado pelo Marquês Spínola, de Madri, haviam partido daquela cidade
com um veneno, com um ungüento, e que estariam a disseminar esse ungüento, esse veneno pelas paredes
dos prédios de Milão. Por isso é que as pessoas estavam morrendo, como se fosse possível as pessoas
manipularem um veneno tão letal e não serem por ele atingidas .
Passou a haver uma caça às bruxas, passou-se a tentar localizar, a qualquer preço, quem estava
matando os milaneses. Em certo dia, uma senhora, do alto de um prédio, vê que um pobre Comissário de
Polícia, chamado Guglielmo Piazza abrigando-se da chuva sob uma marquise, com a mão à parede, e ela
comunica rapidamente à Polícia que havia descoberto quem era o untador. Guglielmo Piazza, levado à
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Delegacia, é colocado sob tortura e, naturalmente, confessa que pratica o crime de dissipação do ungüento
pestilento na cidade de Milão.
Mas como a intolerância era de tal nível, o governo não admitia que Guglielmo Piazza fosse capaz
de fazer tudo aquilo sozinho e torturou-o, torturou-o, torturou-o até que ele entregasse os companheiros,
que, por sua vez, foram chamados e torturados e entregaram novos companheiros, numa sucessão
interminável de morticínios e de sacrifício de pessoas inocentes. Tudo em nome de um projeto de
supremacia de preservação de poder político da época, numa evidente demonstração de uso indevido do
Direito Penal como aparelho ideológico para manter e reproduzir o poder político da época.
Portanto, foi uma época de intolerância, foi uma época de obscurantismo, foi uma época em que o
Direito Penal exerceu essa função que o Professor Dotti chama de função do horror, e que se fez presente
também nas Ordenações Filipinas, dando um salto da baixa Idade Média, em 1300, quando a Inquisição se
consorciou com o Estado. A Inquisição condenava os réus, mas, como a Igreja não queria pôr a mão na
sujeira, entregava os réus para o Estado – o braço secular – para que ele os executasse.
Desse salto da Idade Média vamos para a baixa Idade Média e encontramos as Ordenações
Filipinas, cujo Livro V, mencionado pelo Des. Melíbio, continha disposições realmente de assustar.
A Ordenação Filipina, no Título CXXXIII, quando fala dos tormentos, diz: ”Não se pôde dar certa
fórma quando e em que casos o preso deve ser mettido a tormento, porque póde ser contra elle hum só
indicio, que será tão grande e tão evidente, que baste para isso, convem a saber, se elle tiver confessado
fóra do Juizo, que fez o malefício, por que he accusado, ou houver contra elle huma testemunha (...)”. “E
poderão ser contra elle muitos indicios tão leves e fracos, que todos juntos não bastarão para ser metido a
tormento; por tanto, ficará no arbítrio do Julgador, o qual verá bem, e examinará toda a inquirição dada
contra o preso.”
“Quando o accusado fôr mettido a tormento, e em todo negar a culpa, que lhe he posta, ser-lhe-ha
repetido em trez casos” - uma primeira vez, uma segunda vez e uma terceira. No terceiro caso, diz que, se
ele confessou o tormento no malefício e, depois, quando foi requerido para ratificar a confissão em juízo,
ele negou, então que seja outra vez levado ao tormento e à tortura e ao sacrifício.
Quer dizer, foi um período de absoluta iniqüidade, consagrado nos textos legais da época. As
Ordenações Filipinas vigeram no Brasil até 1830, quando houve o primeiro grande salto, o primeiro grande
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movimento, se é que se pode dizer assim, o primeiro grande abrandamento do modelo inquisitivo, e
caminhou-se, então, olhando-se para um novo modelo, o modelo acusatório.
Em 1832, publicou-se no Brasil o primeiro Código de Processo Criminal, o Código Criminal do
Império, no contexto do primeiro Código Penal do Império de 1830.
O Código de Processo Penal foi saudado por Pandiá Calógeras como a mais brilhante vitória do
domínio da justiça, e por Aureliano Leal como o mais formoso monumento do saber jurídico do espírito
liberal. Realmente, o Código de Processo Penal de 32, embora inquisitorialmente permitisse ao Juiz de Paz
recolher provas da materialidade (art. 12), e também, de ofício, iniciar a ação penal e ouvir as testemunhas,
mesmo sem a presença do réu (art. 141) - aspecto mencionado pelo Des. Melíbio -, que só poderia
contestar as testemunhas se fosse preso (art. 142), o novo Código, a despeito disso, instituiria a ação penal
pública a cargo do Ministério Público, a quem também incumbiria promover a execução das sentenças
criminais.
Quer dizer, de um modelo inquisitivo em que havia absoluto predomínio de ação de um só, já se
pensava, em 32, com o primeiro Código de Processo brasileiro, em entregar-se a um personagem a função
de acusar, a um personagem distinto daquele que tem que julgar, o que significava, portanto, um primeiro
olhar para o modelo novo que se vislumbrava naquela época, que era o modelo acusatório.
Em 1841, um pouco depois, o Brasil fez outro movimento na direção do modelo acusatório, ao
produzir a separação das funções policiais das judiciais, porque, até então, o Juiz era o Juiz e o Delegado.
Ele identificava o fato, ia atrás das provas, produzia essas provas e depois sentenciava.
Em 1841, pela Lei nº 261, separaram-se as funções, portanto, do Juiz e do Delegado de Polícia, o
que representou uma redução do nível de influência do Juiz na atividade que tem que ser reservada ao
Estado, ao Estado-Administração, por meio da Polícia e do Ministério Público.
Um outro movimento na direção do modelo acusatório aconteceu em 1871, trinta anos depois,
quando surgiu a primeira lei que disciplinou o inquérito policial, a Lei nº 2.033. O inquérito policial, como
nós o conhecemos hoje, foi estruturado nessa época, quando então ficou nitidamente acentuada aquela
idéia de que a investigação é da Polícia, a ação é do Ministério Público, e a atividade do Juiz é a de julgar.
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Claro que essa idéia não foi assim tão purificada quanto se imagina, porque, em realidade, algumas
reminiscências do modelo inquisitivo ainda haveriam de perdurar ao longo do tempo, como vou
demonstrar logo em seguida.
Por que o Brasil deu essa guinada com o Código de Processo Penal de 1832, deixando de lado as
Ordenações? Porque o Brasil viveu um momento muito fecundo, a reforçar o sentimento de que nós,
brasileiros, somos pessoas voltadas para o respeito, a dignidade da pessoa humana. Nós brasileiros somos
pessoas vocacionadas para a paz, ao contrário de outros povos, muito bem identificados, que são
vocacionados para a guerra.
Nesse período, 1830, o Brasil recebeu a influência de aproximadamente oitocentos brasileiros que
estudavam em Coimbra. Em 1772, em Coimbra, realizou-se a primeira reforma do ensino jurídico na
Europa. Portugal foi o primeiro País europeu a realizar a reforma dos cursos jurídicos, em razão das
influências já percebidas do Iluminismo e de Beccaria.
Em 1772, realiza-se a chamada Reforma Pombalina, graças ao trabalho do Marquês de Pombal, e a
Universidade de Coimbra altera radicalmente os cursos jurídicos. Aquilo que era apenas um estudo a partir
do Direito Romano e do Direito Grego, passou a ser um estudo a partir do Direito natural e, notadamente,
do Iluminismo e da proposta de Beccaria.
Nessa época, estudavam em Coimbra brasileiros que, vindos para o Brasil, trouxeram, portanto,
uma nova visão de mundo, uma nova concepção de mundo, uma visão mais libertária, uma visão mais
progressista, uma visão liberal, uma visão consentânea com os novos ventos que haveriam de soprar na
Europa logo depois e que redundariam na Revolução Francesa.
Dentre os brasileiros, Bernardo de Vasconcelos, que estudara em Coimbra, veio de Portugal para o
Brasil e aqui liderou o movimento destinado à criação do Código Penal de 1830, jogando no texto do
Código Penal de 1830 toda a concepção iluminista e a concepção de Beccaria. Um Código revolucionário
que serviu de modelo para a Espanha e para alguns países da América Latina. Tão revolucionário que a
Professora Ruth, que escreveu A Modernidade Portuguesa e a Reforma Pombalina, sustenta que o próprio
Hans Mittermaier, o grande Mittermaier, teria aprendido português só para poder ler o Código brasileiro de
30 no original.
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Dois anos depois, em 1832, veio o Código de Processo Penal elaborado por um outro grupo de
juristas sob a influência desse mesmo movimento. O que indica, portanto, que o Brasil, ainda sem ser
República, sob todo aquele grau de influência do Império, já conseguia se libertar a ponto de poder
direcionar a sua atividade política no sentido do respeito às liberdades fundamentais, delineando dois
estatutos, um Código Penal e um Código de Processo Penal, a partir de uma base ideológica iluminista e a
partir de uma concepção moderna como aquela proposta por Beccaria.
A modernidade que se implantou com a Revolução Francesa, e que separou as pessoas do mundo
daqueles indivíduos, vem exatamente a partir de Beccaria e a partir do Contratualismo dos iluministas, que
delinearam um novo padrão de Estado, com Judiciário, Legislativo e Executivo, que deixou para trás o
Rei, com seu poder absoluto, que era irresponsável política, administrativa e penalmente.
O grande passo não haveria de ser dado ainda. O abrandamento do processo inquisitivo
continuaria ao longo da República, quando, por meio da Constituição de 1934, extinguiu-se o pluralismo
processual dos Estados e promulgou-se o Código de Processo Penal que está em vigor hoje. O Código de
Processo Penal em vigor hoje, embora seja criticado e apontado, numa perspectiva unilateral, como um
código fascista, deu um grande e significativo passo na direção do maior aperfeiçoamento do modelo
acusatório, porque, por intermédio dele, a ação penal de ofício, que era a regra pelo Código Penal de 1832,
ficou restrita somente às ações contravencionais – aspecto também mencionado pelo Des. Melíbio –
naquele procedimento do art. 531, que acabou revogado pela Constituição Federal.
Sem embargo disso, o nosso Código de Processo Penal, que está em vigor ainda hoje, contém
resquícios de Inquisição. Por exemplo: o Juiz ainda controla o arquivamento do inquérito, quando essa é
uma atividade pré-processual; o Juiz pode decretar o seqüestro dos bens, de ofício (art. 127); o Juiz pode
instaurar incidente de falsidade, de ofício (art. 149); o Juiz pode instaurar incidente de insanidade mental do
réu (dispositivo expresso do CPP); o Juiz pode requisitar a prova, de ofício (art. 156), mesmo para
condenar o réu, suprindo, portanto a omissão do Estado acusador; o Juiz pode renovar o interrogatório a
qualquer tempo; o Juiz pode decretar a busca e apreensão, de ofício; o Juiz pode decretar a prisão
preventiva do imputado, de ofício; o Juiz pode alterar a acusação, a chamada mutatio libeli do art. 384, de
ofício; o Juiz pode interpor recurso, de ofício; o Juiz pode reinquirir o acusado, de ofício; as Câmaras
julgadoras, ao apreciarem apelações, podem ordenar novas provas, de ofício.
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Enfim, o processo penal brasileiro ainda tem resquícios de Inquisição, porque o início da
persecução penal começa com o inquérito policial, que é inquisitivo, e termina com a execução da pena,
que também é inquisitiva, porque, na fase de execução da pena, o Juiz é quem toma a iniciativa de mandar
lavrar a guia de recolhimento, na forma do art. 105 da Lei de Execuções Penais, e é ele, depois, quem, na
forma do art. 197 da Lei de Execuções Penais, pode instaurar procedimentos até para subtrair, para revogar
benefícios que o condenado alcançou durante a execução da pena.
O grande salto - vou suprimir alguns itens - viria com a Constituição Federal de 88, que consagrou,
de forma definitiva, o modelo acusatório puro, porque o réu tem garantias, o Juiz tem garantias, o acusador
tem garantias e o defensor tem garantias.
Sem embargo disso, a práxis dos tribunais tem sido a de não realizar a filtragem legal que deveria
realizar para ajustar o Código de Processo Penal, que contém tais reminiscências inquisitivas, à
Constituição, fazendo, por comodismo, por conservadorismo, toda tentativa absurda, iníqua, de ajustar a
Constituição às leis, e não de ajustar as leis à Constituição.
Essa é uma crítica que se faz aos tribunais, mas não só a eles. O legislador brasileiro tem feito
descaso do modelo acusatório, do modelo de garantias, e continua legislando sem a menor preocupação
com isso.
Vou citar apenas uma lei - haveria outras -, a Lei nº 9.304, que define meios operacionais para o
combate do crime organizado. Essa lei permite, expressamente, que o Juiz investigue em procedimento
secreto, que ele reúna provas que ninguém pode conhecer, que fiquem em autos apartados, que, quando
houver recurso, as provas sejam encaminhadas reservadamente ao tribunal e que o tribunal, ao julgar a
apelação, o faça sem a presença de público. Essa é uma lei pós 88, quando se esperava que o modelo fosse
purificado, e nos volta ao tempo de Idade Média, quando se fazia a transformação do acusado não em
alguém sujeito de direitos, mas em alguém objeto de toda investigação.
Enfim, parece-me possível dizer que, por incrível que pareça, evoluímos positivamente, em termos
de Direito penal comum, de Direito Processual Penal comum, desde as Ordenações, na direção de um
modelo de garantias, até 88, passando pelas ditaduras. Passamos pelo Estado Novo e pelo regime militar de
64, evoluindo sempre em direção a um modelo garantista. Basta apontar, por exemplo, o parágrafo único
do art. 310, que foi colocado no nosso CPP pelo governo da Revolução, e que diz que nenhum Juiz pode
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manter um réu preso em flagrante delito, a não ser que estejam presentes as condições para a prisão
preventiva. Por que essa abordagem? Para que ela seja uma abordagem de denúncia por uma práxis
equivocada dos tribunais, de denúncia por uma práxis política dos legisladores de visível ofensa à
Constituição. Por que de denúncia?
Quero finalizar exatamente empregando as palavras do Des. Melíbio, porque o Código de Processo
Penal é a carta magna do criminoso. Entre um país sem nenhum Código de Processo Penal e um país com
um péssimo Código de Processo Penal, eu prefiro o país com um péssimo Código de Processo Penal,
porque, longe de parecer que o CPP é só um instrumento que o Estado tem para a punição das pessoas,
em verdade, ele é o mecanismo de contenção do jus puniendi, ele é o escudo de proteção do Estado, que não
pode ir além daquilo que a lei autoriza. Ele é aquilo que o Von Liszt (2 24 20) dizia no seu programa de
Barburgo, em 1837, ele é a carta magna do criminoso, porque ele não apenas oportuniza a punição, mas
porque ele estabelece uma contenção, não permite que o Estado vá além dos seus limites.
Isso interessa para as pessoas? Evidentemente que sim. Talvez o povo, preocupado com a violência
e a criminalidade, confinado nas suas próprias casas, tenha até razão em pedir que os condenados sejam
tratados da pior maneira possível e que fiquem nas penitenciárias a pão e água, e eu não o condeno por
pensar assim. Mas nós, juristas, nós humanistas, não podemos fazer nenhum pronunciamento de apoio a
uma política de legislação no País de aposta no Direito Penal máximo, desconsiderando que o condenado
tem direitos. Talvez o problema mais sério, mais grave da execução da pena, no meu modo dever, não é o
que diz com a falta de recursos materiais nas cadeias, mas, sim, o constante, o contínuo, o indiscutível
desrespeito aos direitos dos homens que estão lá cumprindo pena e que nós, juristas, temos a obrigação de
defender.
Muito obrigado.
DR. SÉRGIO DA COSTA FRANCO****
**** Membro do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul e Procurador de Justiça aposentado –
Ministério Público do Rio Grande do Sul.
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Exmo. Sr. Des. Pedro Particheli Rodrigues, demais companheiros integrantes da Mesa. É com
muita satisfação que atendi ao convite para participar deste Painel. Mais ainda rejubilo-me por encontrar
aqui velhos colegas e amigos do Ministério Público, como o Dr. Paulo Olímpio e o Des. Paganella Boschi,
bem como o Des. Melíbio, que conheci como Juiz de Sobradinho, quando fomos cuidar da emancipação
de Arroio do Tigre. Eu representava o Ministério Público de Soledade, e a Comissão Diretora da
Emancipação era presidida pelo então Dr. Luiz Melíbio Uiraçaba Machado. Esta é uma bela oportunidade,
sobretudo, para aprender coisas novas ou rememorar um pouco dos problemas do processo penal, do qual
estou afastado há mais de vinte anos em função da minha aposentadoria.
Aposentei-me, abandonei o Direito, transferi meus livros de Direito para a minha filha, que é do
Ministério Público, e me dediquei, desde então, apenas à História e à pesquisa histórica. De modo que o
meu pronunciamento e a minha intervenção só podem cuidar de aspectos históricos. Problemas de lege
ferenda, reparos ao atual processo penal, restrições que o processo acusatório tem sofrido, disso abstenho-
me inteiramente de falar, porque realmente só me sinto habilitado a falar da arqueologia do processo penal
brasileiro.
Desde logo, cito as minhas fontes principais. Em matéria de processo penal, do Código de
Processo Penal do Império, tenho como bíblia o livro do Des. Conselheiro Paula Pessoa, que é um
comentário ao Código de Processo Criminal do Império, de 1832, e das leis subseqüentes, especialmente a
lei de 03-12-1841, e o Regulamento nº 120 daquele ano, que modificaram profundamente a sistemática
liberal do Código de Processo Criminal.
Nas minhas pesquisas nos arquivos de Porto Alegre, tive a ocasião de lidar com dois tipos de
procedimentos: o procedimento inquisitório, ainda do período colonial, que está em, pelo menos, doze
maços de processos do Arquivo Público do Estado, nos processos que se desenvolviam perante a Junta de
Justiça, que foi o primeiro tribunal criminal do Rio Grande do Sul, criado por Dom João VI, em 1816.
Desse tribunal pouco se sabia, até porque a carta de lei que o criou foi publicada apenas em parte e não
figurava nos repertórios de legislação. De modo que, quando no centenário do Tribunal, se publicou um
trabalho sobre a história do Poder Judiciário, não se falou nessa Junta de Justiça, porque realmente não se
conhecia a sua composição, o seu funcionamento. Tive, de certa forma, a fortuna de identificar
perfeitamente esse tribunal, do qual só havia referências dos viajantes, de Saint Hilaire e do nosso cronista
da cidade, o Coruja, que também fala dele, mas eram referências muito vagas.
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A Junta de Justiça criada por Dom João VI, tendo em vista a alta criminalidade da Capitania de São
Pedro, compunha-se do Governador da Capitania como Presidente, do Ouvidor, que era o antecessor dos
Juízes de Direito – era um só que atendia o Rio Grande do Sul e Santa Catarina –, e mais os Juízes de Fora,
de Rio Grande, de Porto Alegre e de Rio Pardo. Foram estas as primeiras circunscrições a terem o
chamado Juiz de Fora, que era um Juiz togado, representante do Rei, e não da população. Não era como os
Juízes ordinários das Câmaras, eleitos junto com os Vereadores; o Juiz de Fora era um Juiz togado de
nomeação real. Esses Juízes mais o Juiz da Alfândega, que era, a rigor, um funcionário administrativo, mas
tinha o título de Juiz e era bacharel, integravam essa Junta de Justiça. Havia aqui um Desembargador que
enriquecera casando com a mulher do Rafael Pinto Bandeira, o Des. Luiz Correa Teixeira de Bragança. Ele
havia sido Ouvidor, mas estava aqui meio desocupado e foi nomeado para integrar a Junta de Justiça.
Essa Junta de Justiça trabalhou desde 1818 efetivamente – data dos primeiros processos julgados
por ela -, mas passou muito além da Independência, o que, para mim, foi razão de estupefação, porque essa
Junta de Justiça funcionou até 1833, quando entrou efetivamente em vigência, o primeiro Código de
Processo Criminal do Brasil.
Nessa Junta, o processo era inquisitorial. Vinham as indagações sobre o crime feitas pelos Juízes
ordinários das Câmaras, subiam até a Junta de Justiça, onde o relator era sempre o Ouvidor, e ali, às vezes,
era ouvido o réu. A única prova praticamente de defesa era o interrogatório do réu. Encerrada a instrução,
podia-se eventualmente colher outras provas de ofício por determinação da Junta, e depois se abria um
prazo para um defensor. Aí, talvez, quem quiser rastrear a história da advocacia no Rio Grande do Sul, vai
encontrar os primeiros plaidoyers, as primeiras defesas escritas nos autos dentro desses processos da Junta
de Justiça.
Aliás, chama a atenção o baixo nível da advocacia. Não sei quando chegou aqui o primeiro bacharel
para o exercício da advocacia. Eram todos rábulas, os chamados solicitadores ou provisionados. O
primeiro que tinha um certo lustro chamava-se Henrique da Silva Loureiro, que devia ter algum princípio
de curso em Coimbra. Ele produziu defesas razoáveis, mas, afora ele, o restante é de muita pobreza. Em
seguida, o réu era julgado, e essa Junta julgava sem apelação, sem recurso algum para outra instância,
podendo, inclusive, aplicar a pena de morte.
Em função da existência dessa Junta, executaram-se as primeiras sentenças de morte no Rio
Grande do Sul. Até então, deve ter havido condenações à morte, em processos que não encontrei, mas as
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execuções não foram aqui. Primeiro, porque os réus eram enviados a Laguna, onde era a sede da
Ouvidoria. Depois, como cabia recurso para a Casa de Suplicação do Rio de Janeiro, eles eram remetidos
ao Rio de Janeiro, onde certamente terá havido execução de gaúchos. A primeira execução em Porto
Alegre é de 1821, e aí se inicia a seqüência. Encontrei vinte e dois enforcamentos judiciais praticados em
Porto Alegre, sendo 12 julgados pela Junta de Justiça e 10 pelo Tribunal do Júri.
Esse procedimento perante a Junta de Justiça é o procedimento das Ordenações Filipinas, é o
procedimento inquisitorial em que o Juiz é que investiga, o Juiz produz as provas e o Juiz julga. Não há
ainda nessa Junta de Justiça nenhum sinal da presença do Promotor. Embora, no Direito português,
perante a Casa de Suplicação, funcionasse um membro com título de Promotor de Justiça, aqui não. Quem
lançava uma espécie de libelo nos autos, uma síntese da acusação, em que dava os dispositivos nos quais
incidia o réu, era o Escrivão. O Ouvidor determinava que o Escrivão lançasse a síntese da acusação, que
era um libelo, um libelo informal em que havia um elenco dos dispositivos nos quais estava enquadrado o
réu. Defesa quase nula, impossibilidade de recurso - os processos dessa Junta de Justiça eram realmente
terríveis.
Depois, os condenados à morte ainda tinham direito a um recurso para a própria Junta, que decidia
em 48 horas, de modo que, em geral, entre o acórdão e a execução da pena, eram dois ou três dias apenas.
Essa situação não era apenas aqui do Rio Grande do Sul, era do Brasil todo, porque havia outras
Juntas de Justiça no Brasil, e, perante a Casa de Suplicação, também o rito era o mesmo. Essa situação
prevaleceu até além da Independência. O primeiro vagido, vamos dizer, de um processo acusatório, vem
em 1822 com a Lei de Imprensa.
A Lei de Imprensa de 1822 criou um Júri de Imprensa e criou a figura de um Promotor. Tivemos
aqui esse mesmo Henrique da Silva Loureiro, que era o melhor advogado local, como primeiro Promotor,
mas creio que ele nunca interveio em julgamento nenhum simplesmente por uma razão: em Porto Alegre
não havia nenhum jornal. O primeiro jornal foi surgir em 1827. Então, não havendo jornal, não havia Lei
de Imprensa a aplicar. Havia um prelo primitivíssimo aqui, que veio em 1821, que mais servia para a
impressão de formulários judiciais, para recibos de custas - não vi outro emprego desse prelo. Portanto, a
Lei de Imprensa, em 1822, alguns meses antes da proclamação da Independência, é o primeiro sinal da
intenção de criar um processo acusatório.
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Mas há, em 1830, como referiu o Des. Boschi, um momento muito importante, que é o Código
Criminal. O Código Criminal de 1830, que teve Bernardo Pereira de Vasconcelos como o seu principal
cabeça, é um grande passo à frente, pois livrava-nos daquele terrível Direito Penal do quinto Livro das
Ordenações. Mas o Código, inicialmente, ficou no ar, porque não tinha um processo correspondente, o
processo só vem em 1832. Quer dizer que houve a situação de as Juntas de Justiça e dos antigos Ouvidores
ainda terem de aplicar, com toda a sua velha estrutura judicial, o Código moderno de 1830.
O ano de 1832, sob a influência da Regência, momento da primeira experiência republicana do
Brasil, foi uma época muito importante, pois foi um momento de triunfo do liberalismo. Isso se reflete
muito fortemente nesse Código de Processo Criminal, pois até os agentes mais importantes, como os
Juízes Municipais e o Promotor Público, passavam a ser eleitos, eram escolhidos pelas Câmaras Municipais.
Era escolhida uma lista tríplice, que ia aos Governadores, aos Presidentes de Província, pois eles é que
faziam a escolha. Foi a primeira experiência de justiça eletiva criada por este Código de Processo Criminal.
Havia, um pouco antes, a Lei de 1827, que criou os Juizados de Paz. Os Juízes de Paz também
foram eletivos, e assim continuaram durante todo o Império. Mas o Juiz Municipal e o Promotor eram
eleitos em lista tríplice pelas Câmaras, o que já era um grande passo no sentido da democracia.
Entretanto, mais adiante, quando houve a reação conservadora, a partir de 1837, o chamado
período do Regresso, como entrou para a história política no Brasil, essas instituições liberais do Código de
Processo foram as mais criticadas. A eletividade dos Juízes de Paz, a eletividade dos Promotores, isso foi
apontado como uma das grandes causas das agitações liberais do período da Regência. Claro que isso, em
geral, acontece, os governos tolerantes e liberais são os que sofrem mais severa oposição, isso nós vemos
até na atualidade.
Durante a Regência, o que aconteceu? Instituições muito liberais, com esse belíssimo Código de
Processo Criminal, que era inovador sob todos os pontos de vista, e revoluções, como a Revolução
Farroupilha, a Balaiada, no Maranhão, a Cabanagem, no Pará, a Sabinada, na Bahia, além de outros vários
motins e insurreições em todo o território nacional.
Isso deu margem a uma reação conservadora, que viria a partir de 1837, até sob a liderança de
Bernardo Pereira de Vasconcelos. Uma das fontes mais importantes para estudo dessa época é a biografia
de Bernardo Pereira de Vasconcelos, por Otávio Tarquínio de Souza, um belo livro.
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Então, a liberalidade das instituições desse Código levou a uma reação conservadora muito forte,
que veio com a Lei de 03-12-1841. Essa lei acaba com a eletividade do Promotor, com a eletividade do Juiz
Municipal; não acabou com a eletividade do Juiz de Paz, mas tirou os seus poderes. O Juiz de Paz, que,
pelo Código de Processo Criminal, era o policial, era o homem que investigava os crimes e que formava
corpo de delito, com a Lei de 1841, perde essa função.
Quem vai exercer a Polícia? Um Chefe de Polícia, que era necessariamente um Juiz ou
Desembargador. Em geral, ficava desligado da função judicante, passava a ser apenas Chefe de Polícia. Foi
uma posição muito importante, mas que, na verdade, não somou para o progresso da Magistratura, não
somou para o progresso do Poder Judiciário, pois foi a judicialização da Polícia.
Então, temos o Chefe de Polícia, que era um Juiz, mas desligado da sua função judicante, e que
nomeava, em cada Município, um Delegado. A expressão Delegado de Polícia tem esse sentido, é o
delegado do Chefe de Polícia, é o representante do Chefe de Polícia, que era esse magistrado que
comandava a Polícia nas Províncias. Por sua vez, esse Delegado nomeia os Sub-Delegados, nomeia os
Inspetores de Quarteirão, uma série de outros funcionários que o próprio Código de Processo Criminal
previa.
Durante muito tempo, tivemos um processo que, a princípio, era meramente inquisitorial também.
A investigação era feita pelos Delegados de Polícia, que formavam o processo e lançavam a sentença de
pronúncia. Era uma confusão entre o Poder Judiciário e a ação policial. Só depois intervinha o Ministério
Público perante o Júri. Aí é que funcionava o Promotor, que, com base na pronúncia, elaborava o libelo.
Vinha, então, a fase do Júri, muito semelhante ao de hoje. Nessa parte não mudou, o Código de Processo
mais ou menos foi mantido pela Lei de Reforma de 1841.
Examinamos muitos processos dessa época e constatamos que tudo se desenvolve sem o
Promotor, até o Júri. Em princípio, todos os crimes iam ao julgamento do Júri; apenas as infrações
policiais, as contravenções não iam a Júri. Aliás, a Constituição do Império previa que o Júri julgasse até as
causas cíveis. Isso nunca foi regulamentado, mas a Constituição do Império dava ao Júri uma abrangência
que ele não tem hoje.
É interessante como o Ministério Público cresce dentro da legislação do Império com leis
sucessivas que lhe vão acrescentando atribuições ou até com avisos ministeriais, porque, durante o Império,
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muita coisa se legislava mediante simples avisos, que eram decretos de Ministros. Em determinado
momento, um aviso determinava que as funções de Curador Geral de Órfãos passassem a ser exercidas
preferencialmente pelo Promotor Público; um aviso também mandava que o Promotor fosse o Curador
dos escravos nas ações de manumissão, nas ações declaratórias de liberdade. Então, foi assim que cresceu o
Ministério Público, de forma lenta e com disposições de caráter administrativo.
Em 1850, houve um projeto importante do Conselheiro Nabuco de Araújo no sentido de uma
disciplina maior do Ministério Público, o que provocou algum crescimento, mas o Ministério Público, a
rigor, somente na República é que vai adquirir forma. O Ministério Público do tempo do Império
compunha-se de Promotores isolados, sem uma articulação, sem um comando, sem uma hierarquia
administrativa, completamente diferente do que nós temos hoje. O Promotor era invariavelmente um
cargo político, mal remunerado, muitas vezes remunerado apenas por emolumentos e custas. Creio que,
durante quase todo o tempo do Império, o Promotor ganhava por emolumentos, conforme os trabalhos
que produzisse, e nada mais.
Portanto, é realmente com a República que o Ministério Público vai adquirir uma estrutura melhor,
a começar pelo Ministério Público Federal, que teve a sua lei ainda com Campos Salles, enquanto Ministro
da Justiça, Presidente que regulamentou em 1890 o Ministério Público Federal, que depois mais ou menos
serviu de modelo aos Ministérios Públicos dos Estados.
A matéria é muito vasta, e eu não sou professor, não tenho a mínima experiência de aulas, de modo
que vocês vão desculpar-me esta desordem na exposição.
Esse processo da Lei de 1841 chama a atenção. Essa parte policial é impressionante, porque o
Império foi um Império de fantasia: normas jurídicas muito bonitas, regras elegantes davam a idéia de um
País muito estruturado, muito bem organizado, e, na prática, as coisas funcionando muito mal.
É o caso desse sistema dos Delegados de Polícia, que não eram bacharéis, eram apenas homens
valentes que faziam investigações e que tinham por chefe um magistrado; eu examinei vários desses
processos, e é impressionante como indivíduos aparentemente despreparados elaboravam investigações e
procedimentos complexos e chegavam até o juízo da pronúncia. Pronunciavam, quer dizer, submetiam o
réu a julgamento pelo Júri. O que era, evidentemente, um excesso de poder.
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Examinando alguns processos que envolveram graves erros judiciários, vê-se que isso teve efeitos
desastrosos.
Pedindo desculpas pelo descosido da exposição, encerro aqui a minha contribuição, salientando a
importância dos nossos arquivos para quem quiser investigar não só a história do Judiciário, mas a história
social de um modo geral, a importância dos arquivos judiciários que estão hoje no Arquivo Público do
Estado.
O processo criminal, em primeiro lugar, é o documento do pobre, em que se pode investigar o
comportamento social do pobre, das pessoas sem brilho, das pessoas sem destaque social. O
comportamento social, de um modo geral, reflete, muito especialmente no período do escravismo, as duras
condições do escravo e as ameaças legais e extralegais que sobre ele incidiam.
Muito obrigado.
DR. PAULO OLÍMPIO GOMES DE SOUZA*****
Sr. Presidente, inicio minha intervenção, se me permite, quebrando um pouco a solenidade, como
aquele jogador de futebol que é escalado pelo técnico, com a partida já favorável por 3x0, e é escalado para
ganhar o “bicho”. E o “bicho”, Excelentíssimo Des. Pedro Henrique, é a honra de estar aqui, na condição
de convidado de V. Exa., do Tribunal, a quem cumprimento pela iniciativa, e quero cumprimentá-lo
também, na condição de representante desta equipe de trabalho que o senhor comanda, e que é
responsável por esse trabalho exemplar, que traz ao Rio Grande representantes de outros Estados da
Federação. Meus cumprimentos a V. Exa.
Des. Luiz Melíbio, é uma honra também e um constante aprendizado ouvi-lo e recolher de V. Exa.
as lições de Direito, de vida, de conhecimento e de cultura.
Des. José Antônio Paganella Boschi, hoje, mais uma vez, o senhor demonstra mais um traço e uma
virtude do seu caráter e da sua personalidade, que é a gratidão. Reiteradas vezes tem agradecido a mim, de
público, por tê-lo colocado na história da Associação do Ministério Público, e eventualmente da
***** Procurador de Justiça aposentado do Ministério Público do Rio Grande do Sul.
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Instituição, em algumas posições chaves que careciam de talento específico e de qualificação muito
especial. O mérito nunca esteve em mim. O mérito sempre esteve com V. Exa. Foi o mérito de V. Exa.
que o colocou nesses postos, não fiz mais nada do que adequar a pessoa certa ao lugar certo, na hora certa.
E, ao longo da sua vida, tem demonstrado que, em todas as funções, V. Exa. se desincumbe com o mesmo
talento, com o mesmo brilho, com a mesma capacidade de então. Portanto, o mérito é seu.
Professor, jurista, historiador, cronista, Sérgio da Costa Franco. Se invadíssemos, saindo do
Império, de repente, a República, teríamos aqui lições do maior castilhista do Estado. Ninguém conhece
mais Júlio de Castilhos do que Sérgio da Costa Franco, e toda a história da Primeira e da Segunda
Repúblicas. E, pelas crônicas que tenho lido ultimamente, a história contemporânea é muito bem
interpretada por ele.
Por isso, sinto-me altamente confortável, descompromissado. O trabalho está feito, o jogo está
ganho, vou falar algumas coisas.
O nosso Código de Processo Penal está fazendo sessenta anos. O Código vigente tem sessenta
anos, é de 1941. A ambiência de 1941, não precisa dizer, era uma ambiência de totalitarismo e fascismo no
Brasil.
Sem embargo disso, como bem destacado pelo Professor Paganella Boschi, foi um avanço
fantástico o Código de 1941, no sentido de garantir ao indivíduo direitos fundamentais, porque, como já
destacado também pelo Professor Luiz Melíbio, o Código Penal evolui no sentido liberal e desejável, à
medida que a democracia e a civilização avançam, e o obscurantismo se retrai. E, efetivamente, embora a
ambiência fosse de autoritarismo, o Código trouxe avanços inestimáveis.
Cumpre também destacar que teve um outro mérito esse Código de Processo Penal de 1941:ele
unificou a legislação processual no País. Antes disso, na Primeira República, até 1941, mesmo depois de 30,
os Códigos de Processo eram estaduais. Nós, no Rio Grande do Sul, tivemos um Código de Processo
excelente, dentro de uma tradição republicana, democrática, elaborado por bons juristas, mas, um Brasil
multifacetado apresentava disparidades monstruosas, somente equacionadas num formato homogêneo
pelo Código de 1941. É verdade que com dificuldades: devido às disparidades de distâncias, geografia e
condições econômicas dos Estados, a aplicabilidade, evidentemente, encontraria dificuldades.
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Mas esse Código que está cumprindo sessenta anos está na vitrine carecendo de adequação aos
tempos modernos. Nasceu em um período de exceção e, ao longo de sessenta anos, sofreu reformas,
avanços, eventuais recuos, ao sabor de acontecimentos.
Essas mudanças foram pontuais, basta lembrar que, durante a Revolução de 64 - a leitura, de um
lado, é de revolução, de outro, é de golpe -, foi um Estado de exceção, muitas garantias foram suspensas e
retiradas do Código, basta lembrar o Ato Institucional nº 5, quer dizer, a força do habeas corpus encontrou
restrições.
Como essência, esse Código trouxe um viés do sistema acusatório: Juiz é Juiz, Promotor é
Promotor, advogado é advogado, quer dizer, cada um deles deve desenvolver um papel no processo penal.
E a Polícia? Esse é um ponto que merece um destaque especial.
Estou falando da República, tudo o que se deveria falar antes da República já foi dito e exaurido
pelos que me antecederam nesta tribuna. Na República, há esse sistema da dualidade probatória escrita, o
inquérito policial e o processo judicializado. De um lado, a Polícia apurando a prova, a autoria, a
materialidade, os elementos de prova, encaminhando esse inquérito, tomando depoimentos das
testemunhas, um rol de testemunhas, tudo por escrito, encaminhando o inquérito a juízo distribuído para o
destinatário natural, que seria o Promotor. Este, de imediato, denuncia e formaliza acusação contra o réu,
vai depender de o Juiz receber, ou não, para se instaurar a ação penal, mas, nesse caminho, o Ministério
Público, à falta de provas mais convincentes, requisita diligências, volta o inquérito para a autoridade
policial.
Enfim, essa dualidade de prova, esse distanciamento entre Delegacia de Polícia, Ministério Público,
o titular da ação penal pública, e o Juiz de Direito foi, ao longo do tempo, fragilizando, empobrecendo a
credibilidade na prova policial, a tal ponto que toda ela, tempos depois, deveria ser reproduzida em um
processo judicializado, com ampla defesa ao acusado, as mesmas testemunhas, anos, meses depois sendo
reinquiridas pelo Juiz, pelas partes. Quer dizer, todo um trabalho duplicado com prejuízo à busca da
verdade real, que, com o tempo, se vai dissipando ao natural.
Isso ocasionou, e a experiência demonstra, que o sistema tradicional - inquérito policial, base para a
ação penal promovida pelo Ministério Público - se exauriu. Quem diz isso não sou eu, quem diz isso, por
exemplo, é o Ministro Carlos Velloso, do Supremo Tribunal Federal, quando, numa estatística de São
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Paulo, de um milhão de inquéritos em um determinado ano resultaram menos de cem mil processo
judiciais. Quer dizer, notícias-crime que chegam às Delegacias, lá morrem.
Sempre disse, quando atuei no Ministério Público, na Associação do Ministério Público, que nós,
Promotores, nós Juízes, fomos também responsáveis pelo enfraquecimento da credibilidade do inquérito.
Nós, confortavelmente, ficamos no Fórum, nos elitizamos e ficamos distanciados do fato criminoso a tal
ponto que as delegacias se transformaram em fim em si mesmas. Essa autonomia policial ficou a tal ponto
efetivamente autônoma, que acabou por determinar o que deveria ser encaminhado a juízo - seria o que o
Delegado ou a autoridade policial entendesse de encaminhar.
Ali aconteciam as coisas, e não as melhores coisas, e a jurisprudência dos tribunais acabou
consagrando o princípio de que a prova policial, por si só, isoladamente, não tem valor probatório nenhum
se ela não tiver a convalidação em um processo judicializado, em juízo, com ampla defesa para o acusado.
Então, todo um desgaste, todo um trabalho que se foi desmoralizando ao longo do tempo.
Urge, nesse particular, não esvaziar toda a atividade policial, que é necessária, em muitos casos,
imprescindível, mas, reformular-se o necessário para a propositura da ação penal. Vamos simplificar o
inquérito policial, e isso já tem sido feito por meio de outros procedimentos.
O Des. Luiz Melíbio Uiraçaba Machado foi um dos grandes protagonistas, por exemplo, da criação
dos Juizados Especiais, em que a produção de prova escrita foi substituída pela oralidade, pela rapidez.
O vezo lusitano da prova escrita vê-se ainda em algumas comarcas do Interior, num trabalho
extraordinário, com caligrafias exemplares, e o Poder Judiciário sempre foi um pouco refratário a
mudanças e revoluções, tanto que, do trabalho manuscrito para a máquina de escrever levou-se muitos
anos, e da máquina de escrever para a informatização levou-se meio século, o que é uma mostra de quanto
esse processo é lento em determinadas áreas.
Então, vejam, essa simplificação do inquérito, o trabalho imprescindível da Polícia efetivamente
prestigiado, para uma Polícia investigatória, científica, apoiada e reconhecida, é indispensável. O que não se
pode é conviver com essa dualidade de procedimentos escritos, que demandam tempo e facilitam a
impunidade.
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Esse é um caminho que terá que ser trilhado. Os tribunais já acenam para isso. As comissões
encarregadas de adequação e modernização estão apontando para isso. Os Juizados Especiais estão
chegando a essas soluções. Hoje, a Polícia, para determinados crimes, simplesmente faz um documento,
um registro de ocorrências e encaminha para dar início à ação penal.
Isso também traz o reflexo de outras experiências, por exemplo, a experiência americana, o
processo penal norte-americano. Não podemos desconhecer o poder de influência, não só no âmbito
legiferante, no âmbito econômico, no âmbito cultural, dos Estados Unidos da América. Eles têm
procedimentos calcados na oralidade. Evidente que não sou um apaixonado pelo sistema americano, mas
eles são muito pragmáticos, e algumas daquelas idéias devem ser recolhidas por nós. As sanções
consensuais, por exemplo, do processo penal americano. O plea bargain, aquele acordo que estamos
acostumados a ver. Diria que 95% das causas criminais americanas morrem no acordo entre a acusação e a
defesa, em um processo negocial.
Aqueles Júris fantásticos que vemos em filmes - os americanos adoram aquele teatro do Júri, o
próprio cinema enaltece -, se todos os processos americanos obedecessem àquele ritual do Júri, estava
engessada a Justiça americana. O resíduo que vai àquele nível de julgamento chega a ser inferior a 5% dos
feitos. Todo o restante é feito por meio de barganhas, negócios entre acusação e a defesa, que facilitam.
Isso depura a justiça desde que fiscalizado por um Poder Judiciário que é efetivamente independente e
eqüidistante entre acusação e defesa e que, afinal, vai ser o chancelador dessa medida, e sob a proteção de
uma Constituição liberal e democrática. Essa uma das soluções que se pode visualizar, e já está sendo
aplicada em procedimentos específicos no Brasil.
Algo fundamental, e já está sendo aplicada antes de ser colocado na lei, é que não é atividade
privativa da Polícia Judiciária a investigação de crimes.
Hoje, como advogado, atuo muito na área da criminalidade fiscal, criminalidade financeira,
criminalidade econômica, e não há, nas ações penais dessa área, inquérito policial que preceda a ação do
Ministério Público. O que existe são procedimentos administrativos dos órgãos - Receita Federal, Banco
Central - que subsidiam o Ministério Público, porque eles têm obrigação de ofício, sob pena de
prevaricação, ao elaborarem um auto de lançamento fiscal, constatando alguma fraude, de representar, para
fins criminais, ao órgão do Ministério Público Federal, se os tributos forem federais; Estadual, se os
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tributos forem estaduais, e os Promotores evidentemente terão ali autoria, materialidade, a prova necessária
para a propositura da ação penal. Não há inquérito policial, então, há outros meios.
A própria ação civil pública, com esse vício de origem muito bem detectado pelo Des. Melíbio -
geralmente, quem vai acusar ou eventualmente julgar, como no inquérito falimentar, traz no seu bojo esse
vício já desencadeado talvez por uma autoridade que vá julgar ao final -, quebra um pouquinho o princípio
acusatório, Des. Boschi, mas mostra que o inquérito não é imprescindível e necessário e não é privativo
para embasar uma ação penal.
Para concluir este tópico da Polícia, é preciso investir na Polícia, sim. O Ministério Público carece
de uma Polícia efetiva, técnica, preparada, acima de suspeitas, muitas vezes fundadas, com relação à
corrupção, para evidentemente apoiar a sua ação persecutória em nome da sociedade. Por isso é preciso
prestigiar a Polícia, a boa Polícia.
Com relação a outro tópico que ouvi e aprendi com o Des. Boschi em um programa da TV Justiça
- hoje, se tempo houvesse, ele estaria destacando isso também - quando entrevistado pela Joana Fomm,
atriz de teatro que está atuando também nessa área, é o vezo brasileiro, vezo legiferante, a solução da
panacéia das leis, “a lei vai resolver”, e isso tem sido terrível par o Direito Penal.
Muitas leis surgem ao sabor do escândalo, do estrépito. A Lei dos Crimes Hediondos surgiu em um
período em que se carecia de uma proteção maior da sociedade contra crimes terríveis, seqüestros com
morte, estupros violentos.
Edita-se uma lei de crimes hediondos. Parece que o governo toma a iniciativa, encaminha o projeto,
o legislador legisla, o Ministro da Justiça diz “resolvemos o problema, a lei está aí, penas severas”. Tudo
continua como dantes, estamos colocando a carroça diante dos bois, não é e nunca será a lei a solução para
a inibição da criminalidade. A lei, sim, é um mecanismo assegurador de que haverá punibilidade, e mais,
assegurador especialmente do processo penal, das garantias fundamentais do acusado, para que ele não
responda injustamente por alguma pena ou processo, porque o processo, como destacou o Des. Melíbio,
para as pessoas de bem, o processo criminal já é um pesado castigo em si mesmo.
Então, tivemos esses problemas dos crimes hediondos e, de repente, o homicídio qualificado passa
a ser um crime hediondo. Por quê? Porque foi hediondamente, é verdade, assassinada a filha da teatróloga
Glória Peres. Ao sabor daquele triste e trágico acontecimento, legisla-se em Direito Penal.
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Agora, ao sabor do caso Celso Daniel, Prefeito de Santo André, vinte e quatro projetos foram
elaborados no Congresso para resolver o problema da criminalidade violenta.
No ano 2000, o Ministro da Justiça convocou uma Comissão de juristas para reformar, para fazer
um projeto de Código Penal, de Código de Processo Penal e de Lei de Execuções Penais. Esses juristas,
altamente qualificados, distribuíram em sete tópicos o Código de Processo Penal - o novo, para substituir o
velho, que está fazendo sessenta anos. Isso está no Congresso.
Mas se vamos atualizar e modernizar o Código de Processo Penal à luz da Constituição de 88, com
as garantias ali preconizadas, um Código de Processo Penal civilizado, vamos elaborá-lo por inteiro,
sistematicamente, e não pontualmente, ao sabor de fatos escandalosos que chocam a nação brasileira.
Estamos sem técnica legislativa, e isso tem sido terrível para o nosso Código de Processo Penal.
Então, vimos como éramos; vimos como estamos. E para onde vamos? Penso que o caminho mais
científico é devolver a essa Comissão a competência, atribuição para elaborar esse Código de Processo
Penal, sob os auspícios dos direitos e garantias individuais da Constituição vigente, a de 1988.
Com isso, nós, cidadãos, nós operadores do Direito teremos a garantia de que as regras do jogo são
calcadas em um sistema democrático, em um sistema igualitário e de respeito, no qual prevalece a ordem
jurídica, sob eventuais interesses dos detentores de poder de plantão.
Mas há investidas no sentido do “prendo e arrebento”, Des. Melíbio. Há investidas saudosas a esse
respeito, e por quê? Porque surgem, dentro do sistema brasileiro, idéias extravagantes de copiar o sistema
italiano. Nada contra, acredito que há coisas boas lá. Mas já me tem acontecido de testemunhar situações
de investigações paralelas, com processos judicializados, desenvolvidas não só pela Polícia, mas sob a
chancela do Ministério Público. Isto me parece um pecado mortal, as idéias garantistas que se devem
preconizar na reforma do Código de Processo Penal. São idéias bizarras, soluções de emergência diante de
uma situação que não vai ser a lei penal nem processual penal que vai resolver. Antes disso, vai ser com a
educação, a distribuição de renda, a boa formação dos indivíduos, que a superestrutura legal vai poder,
evidentemente, dentro de padrões civilizados, aplicar.
Se nós vamos adotar em um processo judicial a barbárie, estaremos nivelando-nos aos criminosos
que tanto criticamos e queremos, evidentemente, combater.
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Assim, com esse Painel, sem visualizarmos ainda uma solução, entendendo que a lei e o Código de
Processo Penal vigentes atendem a um mínimo necessário do estado democrático de direito, carecendo dos
aperfeiçoamentos já destacados, parece-me que fizemos aqui, de forma muito bem desenvolvida, uma
evolução histórica das idéias processuais penais até o nosso ponto, com esse deficiente remate.
Muito obrigado pela atenção.
DEBATE
DES. PEDRO HENRIQUE PARTICHELI RODRIGUES (MEDIADOR)*****
Declaro aberto o prazo de 15 minutos para debates. Há alguma pergunta por parte dos integrantes
da platéia?
DR. GUNTER AXT:
Inicialmente, gostaria de agradecer à Mesa pela verdadeira aula que nós tivemos oportunidade de
acompanhar. O meu muito obrigado pelo exercício de virtuosismo.
Enquanto ouvia, registrei algumas indagações. Tentarei fazer uma seleção para não congestionar os
debates. Primeiramente, dirigindo a questão ao conjunto da Mesa, se nós considerarmos as Codificações
Justinianas do Século VI, seguidas das codificações do período carolíngeo no Século X e, finalmente, o
espaço que existe entre essas codificações e as Ordenações régias – Afonsinas, Manuelinas, Filipinas –, bem
como as Ordenações dos outros países europeus, o Direito foi invadido por práticas consuetudinárias nas
diversas cidades durante a Idade Média. Naquela época, havia uma grande pobreza de jurisconsultos, e o
que existe, parece-me, de codificação de Direito Penal vem a ser o Manual do Inquisidor, a Santa
Inquisição. Seria possível atribuir à Santa Inquisição uma tentativa de racionalização do Direito Processual
Penal, que depois acaba transpirando para as Codificações Afonsinas, Manuelinas, Filipinas, quer dizer, é
um primeiro passo nesse sentido, comparado com aquela disfunção do Direito consuetudinário anglo-
saxão que invade as diversas vilas? Penso, aqui, nos tribunais leigos e populares que aconteciam nas praças
das cidades.
***** Desembargador Coordenador do Memorial do Judiciário do Rio Grande do Sul.
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A segunda questão talvez fosse dirigida mais especificamente ao Dr. Sérgio: como funcionava na
época do Império o sistema de apelação nos processos criminais ao Supremo? Como o Supremo
posicionava-se ao receber uma apelação, na terceira instância? Existiam especificidades do período em
relação aos dias de hoje ou não?
Um terceiro aspecto gira em torno da Lei da Ação Civil Pública, de 1985, que tem sido
sistematicamente apontada como um dos grandes avanços institucionais da recente democracia brasileira,
porque permitiu ao Ministério Público preencher uma lacuna – e essa é a interpretação de inúmeros
historiadores – deixada pelo espaço da representação política, justamente porque a representação política
no Brasil vem tradicionalmente marcada por uma indistinção entre o espaço público e o espaço privado, o
que muitas vezes comprometeria certos direitos da cidadania. Enfim, como a garantia dos direitos da
cidadania pode ser vista em face da Lei da Ação Civil Pública de 1985?
Finalizando, o Dr. Paulo Olímpio chegou a mencionar, no início dos anos 80, que o Rio Grande do
Sul – isso quando se discutia a reforma da Lei de Execuções Penais, do Código de Processo Penal e do
Código Penal Brasileiro, antes, portanto, da Constituição de 1988 –, chegava a exportar experiência em
matéria de Lei de Execuções Penais e do tratamento do apenado. O que exatamente o senhor quis dizer
naquele momento e quais foram os aspectos, digamos assim, de experiência que foram incorporados pela
Constituição de 1988, enfim, pela legislação que temos hoje em vigor?
Obrigado.
DES. LUIZ MELÍBIO UIRAÇABA MACHADO:
Vou-me arriscar a responder à primeira indagação. A impressão que tenho é que realmente partiu
da Igreja a primeira disposição de regulamentar os processos para evitar, ou pelo menos coibir, traçar
limites para os abusos que vinham sendo cometidos pelos tribunais eclesiásticos. É muito interessante
observar isto: em determinado momento, os tribunais eclesiásticos assumiram, como lhes competia, o ônus
de reprimir as chamadas heresias, e isso ficava a cargo dos padres nas suas paróquias, que cometiam todo o
tipo de desatino, porque eles estavam tomados de ira santa para salvar a sua igreja, que estava sendo
destruída pelos hereges, pelos dissidentes. Era o problema da liberdade de pensamento, quem não estava
afinado com o dogma era considerado dissidente, com o nome de herege, e respondia um processo por
isso. Então, a Igreja foi editando regras, uma delas, lembro-me bem, a Saepe Clementissima, regulamentando
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os tormentos, e isso é que foi inspirando as Ordenações a regulamentarem também os tormentos e os
processos.
É interessantíssima a história dos tormentos, é precioso o conhecimento que se tira daí. Vejam
bem, o Ministro da Justiça tem este nome, Ministro da Justiça, porque era o sujeito que administrava os
tormentos. Ele era visto como o funcionário que estava administrando a Justiça.
Então, veio a regulamentação que foi referida pelo Des. Boschi em que se estabeleceram três fases.
Vejam que coisa estranha: é a mesma idéia que hoje temos da tortura. Muda o nome de tormento
para tortura, o que é a mesma coisa. Hoje, o réu é submetido a tormento, o indiciado é submetido a
tormento na Delegacia de Polícia, e confessa. Hoje, está acontecendo isso, e essa confissão só tem valor se
confirmada perante o Juiz durante o interrogatório. E ainda que não seja confirmada, sempre fica na mente
do julgador aquela dúvida, mas ele confessou. A partir dessa confissão obtida pelo tormento, é preciso que
o réu faça uma prova muito robusta da sua inocência. É aquilo que eu chamava de inversão do ônus da
prova. Isso foi regulamentado pela Igreja, e dali é que veio para as Ordenações. Nesse sentido, toda a idéia
até ali era a de que predominava o Direito Consuetudinário, os costumes. Quando entrava a
regulamentação, vinda por parte do Rei ou do Imperador, era para garantir o exercício do poder absoluto.
Isso aconteceu desde os egípcios, depois com os romanos, com os gregos e assim por diante.
Com relação a isso, convém não esquecer um fato que é importante do ponto de vista da História,
da evolução do próprio processo. É que, nos tempos primitivos, desde os egípcios, a Justiça era
administrada pelos sacerdotes no templo. Não eram Juízes leigos. Depois de uma lenta evolução, é que a
Justiça foi saindo dos sacerdotes para os tribunais leigos. Foi quando houve o enfrentamento na separação
da Igreja e do Estado. Penso que era isso.
Resumindo, os regulamentos, as bulas papais, vieram para disciplinar, para dar mais humanidade e
racionalidade aos processos, inclusive os processos inquisitoriais, expressos no Manual do Inquisidor.
Vieram para regulamentar e inspiraram as Ordenações a partir daí.
DR. PAULO OLÍMPIO GOMES DE SOUZA:
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Teria uma questão particularizada com relação à Lei de Execuções Penais – não propriamente o
Código de Processo Penal, Lei nº 7.210, que foi editada em 1985. O Professor Boschi tem uma monografia
sobre essa lei, que é referida hoje como documento padrão e exemplar. Ele estaria mais autorizado a falar
sobre o tema, mas todas as minhas lacunas ele irá depois preencher.
Vou avançar na matéria, porque eu, coincidentemente, em 1983, fui nomeado Superintendente dos
Sistemas Penitenciários do Rio Grande do Sul, antes da vigência da lei, mas já se discutia nacionalmente o
que deveria conter essa lei ou não.
A experiência gaúcha em penitenciarismo era regida por um decreto estadual – os
Desembargadores aqui presentes devem ter lembrança –, havia um regramento estadual da execução penal,
o Provimento nº 1. Não havia lei de execuções penais, mas o Rio Grande do Sul, a partir do
Desembargador que antecedeu Otávio Germano na Secretaria da Justiça, Danton de Oliveira, já procurou
implantar uma metodologia penitenciária muito avançada no sentido de investir-se em prédios, mas,
fundamentalmente, em recursos humanos. Isto é, o servidor penitenciário deveria ser um servidor
diferenciado do policial militar e do policial civil, aqueles que combatiam diretamente o crime e o
delinqüente, ele deveria ter uma formação específica de reeducação. Com isso, criou-se a Escola do Sistema
Penitenciário. Essa Escola foi altamente prestigiada, e criaram-se carreiras dentro do quadro penitenciário:
agentes, monitores, técnicos, etc.
Essa experiência foi altamente valiosa, tínhamos aqui um sistema penitenciário pioneiro e bem
moderno à frente do resto do País, e com uma vantagem sobre o resto do País, especialmente São Paulo, o
mais rico Estado da Federação: tínhamos os presídios grandes, os presídios municipais e os presídios
regionais. Com isso, havia uma capilarização da distribuição dos apenados do Estado, eles não se afastavam
da sua região de origem para cumprirem as suas penas.
Em 1983, Francisco de Assis Toledo, que era um dos protagonistas da reforma penal, esteve no
Rio Grande do Sul. Estivemos juntos discutindo, e ele ficou muito bem impressionado com a situação
gaúcha da época. Recolheu algumas idéias, inclusive levando-as à Comissão. O Dr. Boschi, na época, era
Secretário da Justiça Substituto - aquele auxiliar que eu havia indicado e nomeado para Secretário-Geral da
Associação passou a ser depois o meu chefe.
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Respondendo, então, objetivamente, nós estávamos no bom caminho. De lá para cá, tal como no
resto do País, ocorreu a superlotação. À época, eram 7.000 apenados, distribuídos em 91 estabelecimentos;
hoje são 15.000 apenados, praticamente na mesma rede física. É impraticável qualquer política penitenciária
dentro dos padrões que se preconizavam então. Não se investiu mais nem na Escola, nem na formação dos
servidores, nem na construção de prédios, porque forçoso também é admitir que havia outras grandes
prioridades sociais e básicas. A última prioridade era a construção de presídios que, vamos dizer, são o
ponto terminal do sistema penal. Politicamente não dá muitos dividendos, quer dizer, votos.
DES. JOSÉ ANTÔNIO P. BOSCHI:
Vou fazer uma rápida intervenção a propósito da pergunta formulada muito inteligentemente, com
relação a se teria havido uma tentativa da Inquisição de racionalizar o Direito praticado até então. Foi uma
pergunta inteligente – todas elas o foram –, penso que esta mereceria uma abordagem um pouco mais
detida na linha do que o Desembargador Melíbio apontou.
É bom lembrar que o Direito Romano ficou numa espécie de banho-maria até o século XII. O
Direito Romano, consubstanciado no Corpus Juris Civilis, era um Direito limpo, não admitia tortura, era um
Direito, digamos assim, estabelecido em padrões modernos. Ele ficou no limbo até o século XII. Nesse
século, o Direito Romano foi ressuscitado pela Universidade de Bologna, na Itália. E no século XII
estamos um pouco antes das celebrações do Papa Gelásio como poder soberano da época, para eclodir o
movimento da Inquisição, que estourou em 1200 e poucos, quase 1300.
O que fez a Igreja neste consórcio Estado-Igreja? Ela foi buscar precisamente no Direito Romano
todo o referencial legal e procedimental, mas introduziu um ingrediente que o Direito Romano não tinha,
que era o da tortura, da dor física.
Baseio-me nessa afirmação exatamente no livro que acho extraordinário, do João Bernardino
Gonzaga, em que diz: “O ingresso do Direito Romano representou, é certo, uma conquista magnífica,
acarretando um enorme progresso. Dentro dele, porém, havia um fruto venenoso que acabou sendo
também colhido: a tortura. Doravante, toda a instrução criminal até o século XVIII, será marcada pelo
denodo na idéia da confissão do acusado extorquindo a confissão pela dor. Firmou-se, dessa maneira, nova
orientação na Justiça criminal secular, em que se mesclavam influências do Direito Romano, do Direito
Canônico, tendo início, então, o tenebroso período, depois designado como de vingança pública, calcado
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no sistema inquisitivo tal como existia na Igreja, mas com estes acréscimos: processo secreto e escrito,
defesa inexistente ou fortemente cerceada, largo emprego da tortura”.
Quer dizer, a Igreja, consorciada com o Estado, para preservar o poder absoluto da época e
reproduzir as conquistas terrenas, piorou o Código Civil romano, piorou o Corpus Juris Civilis romano.
Com essa experiência, felizmente, não foi contaminada a Inglaterra, que conseguiu, com a sua
justiça dos cantões, permanecer à margem deste processo nefasto que foi entronizado, o processo da
tortura. Um processo, enfim, que tinha por escopo atingir o corpo do acusado e, naturalmente, o corpo do
condenado com execuções em grandes espetáculos públicos.
Isso perdurou até o século XVIII, quando, com a Revolução, mudou o quadro, e surgiu a chamada
modernidade, um dado puramente teórico, porque a modernidade nunca se implantou, é um projeto ainda
a ser implementado. Por isso, é inviável falarmos em pós-moderno, como fala Jacques Lyotard. Só
falaríamos em pós-moderno se a modernidade se tivesse implementado, mas o saber humano, trabalhado
ao longo dos séculos, tem sido empregado não para melhorar o homem, mas para piorá-lo cada vez mais.
Logo, não há modernidade ilustrada, há uma invocação a paradigmas da modernidade, mas sem uma
conformação prática.
Diria Michel Foucault que, com a modernidade, desapareceu esse poder físico sobre o corpo,
desapareceu a dor física, que substituiu uma nova economia de poder. A dor que era sobre o corpo passou
a ser sobre a alma. Hoje, o que nós temos, são milhares de pessoas jogadas em penitenciárias que padecem
de suplícios físicos e também de suplícios sobre a própria alma, o que significa, de algum modo, uma piora,
um agravamento do quadro que tínhamos na época medieval, o que é dramático para nós que pensamos
em humanidade, em liberdade, em fraternidade e solidariedade.
DR. SÉRGIO DA COSTA FRANCO:
Houve uma pergunta específica a respeito do Supremo Tribunal de Justiça do período imperial.
Apesar do nome, este Tribunal do Império não se confunde absolutamente com o Supremo Tribunal
Federal do período republicano, já porque o Império era de feição unitária, não havia o problema do
conflito de legislações estaduais. Quando se criou o Supremo Tribunal Federal, não foi só para ser uma
Corte Constitucional, mas para dirimir as questões relacionadas com a aplicação da Constituição e para
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resolver os conflitos de jurisprudência dos Estados. Ora, esse problema não existia no Império, quando a
Justiça era nacional e não havia autonomia estadual e poucas províncias dispunham de Tribunal da Relação.
Então, os recursos que se endereçavam ao Supremo Tribunal do Império eram,
predominantemente, os chamados recursos de revista. Julgado um caso pelas Relações, temos, na primeira
instância, o Juiz de Direito ou o Juiz Municipal, figura importante também no tempo do Império, era um
Juiz de menor categoria, mas até substituía o Juiz de Direito. Das decisões dos Juízes Municipais e dos
Juízes de Direito, cabia recurso de apelação para as Relações. No período imperial, chamavam-se Relações
os tribunais de recursos, a segunda instância. Das decisões das Relações, poderia caber para o Supremo o
denominado “recurso de revista”. Mas é interessante que o Supremo não entrava no mérito das decisões.
Se ele entendia mal julgado o caso, determinava que fosse apreciado por outra Relação. Isso, aliás, teve
conseqüências nos arquivos. Temos uma série de questões importantíssimas do Rio Grande do Sul, até de
Porto Alegre, em que os autos não estão no Arquivo Público do Estado, porque foram julgados em última
instância por Relações de outras Províncias.
Há um caso muito conhecido de Porto Alegre, uma grande questão de reivindicação de terras, a
reivindicação da Várzea, o atual Parque Farroupilha, que se arrastou por muitos anos – é uma questão cível,
não criminal – e terminou sendo julgada pela Relação de São Paulo. Esse processo é precioso para a
História da cidade, porque nele se discutiu toda a formação da propriedade urbana em Porto Alegre, mas
não está aqui entre nós. Conhece-se dele a defesa do Município, que foi impressa numa separata, mas o
processo foi julgado em São Paulo e está perdido. O assunto seria matéria de uma mútua colaboração entre
os diversos Arquivos dos Estados para haver uma permuta desses processos.
Há um outro processo muito importante da minha terra, Jaguarão, que também foi decidido, creio,
em São Paulo. Nunca pude colocar a mão neste processo, embora estivesse interessado, porque ele
informaria aspectos importantes da evolução de Jaguarão.
Então, o Supremo do Império não apreciava as questões de mérito. Entrava no mérito apenas para
entender que estava mal julgado, e mandava julgar de novo por outra Relação. Havia questões em que ele
podia entrar o mérito, funcionando como instância de apelação, por exemplo, nos crimes de
responsabilidade dos funcionários públicos.
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É claro que há muitas outras particularidades, mas, em princípio, isso pode ser visto na lei que criou
o Supremo Tribunal de Justiça que é de 1828.