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PROCURADORIA-GERAL DE JUSTIÇA
EXCELENTÍSSIMO SENHOR PRESIDENTE DO EGRÉGIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE GOIÁS
O PROCURADOR-GERAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE GOIÁS, no exercício de suas atribuições constitucionais e legais, previstas nos
artigos 129, IV, da Constituição da República, 29, I, da Lei Federal n. 8.625, de
12.2.1993, 60, V, e 117, IV, primeira parte, ambos da Constituição do Estado de
Goiás, e 52, II, da Lei Complementar Estadual n. 25, de 6.7.1998, vem perante
o Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de Goiás propor
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE
em face da Lei Complementar n. 224, de 16.1.2012, do
Município de Goiânia, em sua integralidade.
I
DOS FATOS
A Câmara Municipal de Goiânia, acolhendo projeto de lei de
iniciativa do Chefe do Poder Executivo da referida comuna, aprovou o teor do
que veio a se tornar, com a sanção e a publicação consequentes, a Lei
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PROCURADORIA-GERAL DE JUSTIÇA
Complementar n. 224, de 16.1.2012, veiculada no Diário Oficial n. 5273, de
20.1.2012.
Por meio dessa Lei Complementar n. 224, de 16.1.2012, foram
desafetadas de suas destinações primitivas várias áreas públicas municipais
(art. 2º), e, não somente isso, mas também incluídas, mediante inserção de
novo inciso no artigo 112 da Lei Complementar n. 171, de 29.5.2007 (Lei do
Plano Diretor do Município de Goiânia), entre as áreas adensáveis, vale dizer,
propícias à construção de edifícios para residência e funcionamento de
comércio.
Do exame dos autos do processo legislativo de que adveio a
Lei Complementar n. 224, de 16.1.2012, pode-se extrair, em substância, a
demonstrar sua inconstitucionalidade, que:
(a) não foram realizados, de antemão, pelo órgão municipal
competente, os estudos técnicos necessários à alteração da
destinação das áreas desafetadas e transformadas em áreas adensáveis, conforme denunciado, com precisão, no exaustivo
parecer da lavra do Consultor Jurídico Legislativo, lançado às fls.
103/116 dos autos do processo legislativo pertinente à elaboração da
normativa impugnada, violando-se, pelas razões que adiante serão
expostas, a norma do art. 84, § 2º, da Constituição do Estado de
Goiás;
(b) pela ausência dos estudos técnicos referidos, não se deu, por
consequência, a implementação de contexto deliberativo do qual
hajam participado “entidades representativas da comunidade”,
violando-se, igualmente, a norma do art. 84, § 2º, da Constituição do
Estado de Goiás, bem como o princípio da publicidade, previsto no
art. 92, caput, do texto constitucional goiano;
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PROCURADORIA-GERAL DE JUSTIÇA
(c) inclusão, por via de emendas parlamentares aditivas, das
seguintes alterações no teor do projeto enviado pelo Poder
Executivo, resultando no desvirtuamento de seu conteúdo original,
violando-se, como abaixo se verá, condicionamento específico ao
poder de emenda, conforme a compreensão da doutrina:
(c.1) somando-se, às trinta e três áreas originalmente previstas no
art. 2º do projeto enviado pelo Chefe do Poder Executivo do
Município de Goiânia (fls. 4/8 dos autos do processo legislativo),
outras trinta a serem, do mesmo modo, desafetadas (fls. 125/127
dos autos do processo legislativo), isso sem colheita adicional de
parecer jurídico e em desapego às medidas já sugeridas no parecer
de fls. 103/116 dos autos do processo legislativo;
(c.2) inserção do art. 5º-A e parágrafo único no texto do projeto de lei
(fls. 125/127 dos autos do processo legislativo);
(c.3) aumento do conjunto das vinte e nove áreas adensáveis,
previstas na redação primitiva do art. 6º, com mais duas unidades,
compondo os itens 30 e 31, além da inclusão de parágrafo único no
art. 6º do projeto original (fls. 135/136 dos autos do processo
legislativo);
(c.4) nova alteração, no art. 2º, com a indicação de mais uma área
pública municipal a ser desafetada, constituindo o item 64 (fl. 134 dos
autos do processo legislativo);
(c.5) adensamento do rol do art. 2º, com a especificação de mais
cinco áreas públicas a serem desafetadas, consubstanciando os itens
65 a 69 (fl. 137 dos autos do processo legislativo);
(c.6) ainda no art. 2º, o lançamento de derradeira área pública, a
compor o item 70 (fl. 140 dos autos do processo legislativo);
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PROCURADORIA-GERAL DE JUSTIÇA
(c.7) inclusão de novo artigo, vale dizer, do que seria o art. 9º, que,
por razão de técnica legislativa, veio a ser o art. 8º da normativa
impugnada, com manifesta inovação do projeto original (fl. 140 dos
autos do processo legislativo);
(c.8) alteração da redação do novo inciso, VI, a ser incluído no art.
112, da Lei Complementar n. 171, de 29.5.2007 (Lei do Plano Diretor
de Goiânia), modificando-se o texto do art. 6º do projeto original (fl.
143 dos autos do processo legislativo);
(d) o art. 1º da Lei Complementar n. 224, de 16.1.2012, cria unidade
de conservação sem a observância dos estudos técnicos e consulta
popular exigidos na legislação federal de normas gerais, exorbitando,
desse modo, do princípio da eficiência, da autonomia municipal e dos
limites da competência suplementar comunal, destoando dos artigos
92, caput, 62 e 64, II, da Constituição do Estado de Goiás.
Serão detidamente examinadas, nos capítulos subsequentes,
as inconstitucionalidades suso indicadas.
II
DA VIOLAÇÃO AO ART. 84, § 2º, DA CONSTITUIÇÃO DO
ESTADO DE GOIÁS: paralelismo das formas
(1) AUSÊNCIA DE PARTICIPAÇÃO POPULAR
Em consonância com as diretrizes gerais regentes da política
urbana, cujo objetivo é o de ordenar o pleno desenvolvimento das funções
sociais da cidade e da propriedade urbana, qualquer projeto de
desenvolvimento urbano deve observar, na sua concepção, execução e
acompanhamento, a “gestão democrática por meio da participação da
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PROCURADORIA-GERAL DE JUSTIÇA
população e de associações representativas dos vários segmentos da
comunidade”, ex vi do disposto no art. 2º, inciso II, da Lei Federal n. 10.257,
de 10.6.2001 (Estatuto da Cidade).
Outorgando especial concreção à essa diretriz geral, o art. 40, §
4º, incisos I a III, do Estatuto da Cidade, revela-se explícito em relação à
gestão democrática no tocante à elaboração do plano diretor, litteris:
“Art. 40. O plano diretor, aprovado por lei municipal, é o instrumento
básico da política de desenvolvimento e expansão urbana.
§ 4º. No processo de elaboração do plano diretor e na fiscalização de
sua implementação, os Poderes Legislativo e Executivo municipais
garantirão:
I – a promoção de audiências públicas e debates com a
participação da população e de associações representativas dos
vários seguimentos da comunidade;
II – a publicidade quanto aos documentos e informações
produzidos;
III – o acesso de qualquer interessado aos documentos e
informações produzidos.” (ênfase acrescentada)
De seu turno, a Constituição do Estado de Goiás, em seu art. 84, § 2º, contém regra em perfeita sintonia com a normativa constante da lei
nacional mencionada, verbis:
“Art. 84. O Plano Diretor, aprovado pela Câmara Municipal,
obrigatório para as cidades com mais de vinte mil habitantes, é o
instrumento básico da política de desenvolvimento e expansão
urbana.
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PROCURADORIA-GERAL DE JUSTIÇA
§ 2º O Plano Diretor, elaborado por órgão técnico municipal, com
a participação de entidades representativas da comunidade,
abrangerá a totalidade do território do Município e deverá conter
diretrizes de uso e ocupação do solo, zoneamento, índices
urbanísticos, áreas de interesse especial e social, diretrizes
econômico-financeiras, administrativas, de preservação da natureza
e controle ambiental.” (ênfase acrescentada)
Sucede, porém, que, na contramão da ordem constitucional
goiana, alterou-se, com as graves consequências a que alude parecer
contrário, exarado por Consultor Jurídico Legislativo às fls. 103/116 dos autos
do processo legislativo, o Plano Diretor do Município de Goiânia, sem
observância das formalidades atinentes à gestão democrática e à participação
popular, olvidando-se a necessária presença de entidades representativas:
“A matéria em exame, portanto, prevê a desafetação e o
adensamento das áreas. O que na prática significa uma autorização
para que a Prefeitura venda essas áreas, nas quais serão,
obviamente, construídos empreendimentos residenciais e comerciais.
A área total prevista para verticalização é de 550.539 metros
quadrados, dos quais 337.136 metros quadrados estão na região
do Paço Municipal.
Em nossa análise, não obstante as boas intenções do Chefe do
Executivo, nitidamente, no sentido de arrecadar recursos com a venda de áreas públicas, em região de grande interesse do
mercado imobiliário, para investi-los em diversas obras e projetos,
de interesse da população, o projeto, da forma como foi
produzido, apresenta uma série de vulnerabilidades frente,
sobretudo, aos diplomas normatizadores do planejamento
urbano.” (ênfase acrescentada)
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PROCURADORIA-GERAL DE JUSTIÇA
Posto que em jogo extensão tão imensa de áreas públicas,
transformadas em adensáveis, não foi propiciada uma fase administrativa
prévia de discussões com a comunidade, acerca de sua conveniência e
oportunidade, abalroando-se o princípio da publicidade, previsto no art. 92,
caput, da Constituição do Estado de Goiás.
Afaste-se, de pronto, a objeção burlesca de que não se cuida
de criação de Plano Diretor, senão que apenas de sua alteração.
O enfoque exagerado da mera literalidade do texto do art. 84, §
2º, da Constituição do Estado de Goiás, propicia exemplo escolar daquilo a
que, já no vetusto Carlos Maximiliano, se tacha de a pior das interpretações, a
literal, que obedece “à lei do menor esforço” (GODOY, Arnaldo Sampaio de
Moraes, Memória Jurisprudencial: Ministro Carlos Maximiliano, Brasília:
Supremo Tribunal Federal, 2010, p. 28, v. g.).
Redunda o apego maior à “interpretação literal” em burla à
teleologia da norma constitucional, franqueando aos poderes públicos que,
uma vez aprovado, com a observância de todas as formalidades, o Plano
Diretor, se possa dar de barato a gestão democrática de sua formulação,
com a subsequente alteração legislativa brusca de seus termos, num contexto
de lassidão maior no tocante à observância do requisito da participação
popular.
Na expressão conhecida de Hans Kelsen (Teoria Geral do Direito e do Estado, 1ª ed., São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 259, v. g.),
seria tomar com uma das mãos o que se fingiu dar com a outra, perpetrando-
se, às escâncaras, fraude à ratio legis constitucional, tudo a demonstrar que
essa jamais poderia ser a leitura correta da referida exigência constitucional.
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PROCURADORIA-GERAL DE JUSTIÇA
Vigora, no plano do direito positivo, postulado normativo
conhecido como princípio da simetria, ou do ato contrário, ou do paralelismo
das formas, à luz do qual, o caminho para se desfazer ou alterar determinado
ato jurídico, inclusive os de natureza legislativa, é o mesmo preconizado para
sua criação.
Isso, sob pena de as formalidades constitucionais exigidas – a
despeito da solenidade com que proclamadas – se converterem em frágil e
inconsequente anteparo, transformando a experiência concreta de aplicação da
Constituição do Estado de Goiás na “ingenuidade de erguer uma fortaleza
com paredes indestrutíveis, mas, afinal, fechada com portas de papelão”,
na famosa metáfora de Geraldo Ataliba.
Se na elaboração do plano diretor, quis a ordem constitucional
goiana, em norma peculiar, que antecedesse a discussão popular ao envio do
projeto de lei, importa ter presente a inarredável identidade de caminho a
perfilhar-se, quando em mira alterações de magnitude tão ampla como as
implementadas pela Lei Complementar n. 224, de 16.1.2012, do Município de
Goiânia.
A propósito, calham as considerações do renomado professor
Victor Carvalho Pinto (Direito Urbanístico: plano diretor e direito de propriedade, 3ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 242, v. g),
litteris:
“Um plano já em vigor pode ser alterado parcialmente,
respeitado o mesmo processo de planejamento previsto para a elaboração do plano. A desvirtuação das normas de
zoneamento, comum a praticamente todos os Municípios brasileiros,
não decorre do caráter pontual das alterações, mas de sua
completa falta de embasamento técnico. A mudança do plano
diretor é uma decorrência normal do processo de planejamento, em
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PROCURADORIA-GERAL DE JUSTIÇA
que tem de haver uma retroalimentação permanente a partir da
realidade da cidade, que é dinâmica, mas é preciso que as alterações
pontuais respeitem a coerência global do plano.” (ênfase
acrescentada)
Nesse diapasão, imprescindível notar que o Chefe do Poder
Executivo, na justificativa de que faz acompanhar o projeto de lei, em nenhum
intervalo de suas razões dá a conhecer o que tenham, a respeito, sugerido as
entidades representativas da população (fls. 13/15 dos autos do processo
legislativo), tampouco alude a estudos realizados por “órgão técnico municipal”,
ou traz documentação comprobatória de sua realização.
(2) AUSÊNCIA DE ESTUDOS TÉCNICOS PRÉVIOS
Forçoso convir, no tocante ao projeto que deu ensejo à Lei
Complementar n. 224, de 16.1.2012, do Município de Goiânia, que a omitida
participação popular, no fundo, deve-se à ausência de atuação do “órgão
técnico municipal”.
Ele não foi chamado a exercer suas funções, ocasião em que,
dando início às suas atividades na matéria, abriria as portas, em procedimento
administrativo qualificado pela nota de publicidade, à ingerência salutar da
população, sobretudo por suas associações ou entidades representativas,
colhendo todos os elementos que pudessem influir na substância dos
(omitidos) estudos técnicos.
A peça que o Poder Executivo juntou ao projeto foi o de suas
justificativas políticas, ressaltando-se que nem mesmo o estudo pertinente
ao “impacto de trânsito” logrou fornecer.
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PROCURADORIA-GERAL DE JUSTIÇA
Também no particular, o parecer de fls. 103/116 (autos do
processo legislativo) revela-se acachapante na demonstração do afogadilho
político, como se lê no trecho seguinte:
“2 – Evidentemente que, o adensamento populacional daquelas
áreas, com a implantação de empreendimentos residenciais e
comerciais causará um expressivo impacto no trânsito. Com a
ocupação daquele espaço por prédios residenciais e comerciais, a
previsão é de que o fluxo de veículos aumente muito para o lado
leste da cidade, piorando ainda mais o trânsito.
Para atravessar a BR-153 em direção às áreas que poderão vir a ser
vendidas, são três caminhos principais: o viaduto próximo ao Estádio
Serra Dourada, o da Avenida Jamel Cecílio, que dá acesso à GO-
020, e o que atravessa a rodovia perto do Jardim Botânico.
Evidentemente que quem transita ou mora em áreas próximas ao
Paço Municipal tem motivos de sobra para se preocupar com o
agravamento do tráfego de veículos no local, que já é intenso. Nós
já temos o trânsito local e o trânsito da rodovia misturados, o que tem
resultado em muitos acidentes.
Neste sentido, recomendamos também a audiência, mediante
Parecer técnico, da Agência Municipal de Trânsito para manifestar-
lhe acerca da situação atual e das medidas que haverão de ser
implementadas, previamente, para evitar ou minimizar um possível
estrangulamento do trânsito naquela região, pois, não há vias arteriais para receber esse fluxo de veículos. O projeto adensa
áreas que não têm estrutura de escoamento suficiente e cujas vias são limitadas.” (fls. 105/106) (ênfase acrescentada)
O parecer de fls. 121/124 dos autos do processo legislativo, da
lavra de vereador, fazendo as vezes de “órgão técnico municipal”, demonstra, a
mais não poder, a ausência de estudos técnicos, patenteando o amadorismo
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PROCURADORIA-GERAL DE JUSTIÇA
do projeto, reforçado pelo caráter leigo das ideias que concebe para resolver o
aumento do fluxo:
(a) menciona-se, vagamente, tratativa entre o Governo Federal e o
Estadual com vista a alteração da BR-153, transformando-a,
parcialmente, em via expressa;
(b) fala-se em expansão de vias e corredores, tendo em conta o
transporte coletivo, a ser efetuada “tão logo as áreas comecem a ser
adensadas”;
(c) sugere-se, ainda em relação ao transporte coletivo, que “serão
utilizadas as vias já existentes, assim como poderão ser implantadas
outras para suporte”.
Leia-se, em textual (fls. 123-124 dos autos do processo
legislativo):
“Quanto à rede viária, convém salientar a existência de projeto em discussão entre os governos federal e estadual, com vista ao
desvio da BR-153, que transformará parte da rodovia em via
expressa, com sinalização e fiscalização pelo Município, alcançando,
dessa forma, a área que ora se pretende alienar. Encontra-se em andamento a abertura da continuidade da Av. PL-1, denominada Av.
João Alves de Queiroz, que interligará as regiões contíguas à àrea a
ser alienada ao sistema viário da cidade, permitindo o deslocamento
da população sem estrangulamento do trânsito da região.
Em relação ao transporte coletivo, ressalte-se que soluções para
expansão das vias e corredores específicos serão objeto de
implantação tão logo as áreas comecem a ser adensadas. Para
tanto serão utilizadas as vias já existentes, assim como poderão
ser implantadas outras para suporte, uma vez que a Secretaria
Municipal de Planejamento e Urbanismo manifestou pela existência
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PROCURADORIA-GERAL DE JUSTIÇA
de 'dimensão e acesso farto' e que possibilitam a execução do
projeto diferenciado de urbanização.
Nada obsta, portanto, que a região do Paço, após seu adensamento,
não possa ser beneficiada com um eixo de desenvolvimento, no
que se refere ao transporte coletivo, sem que isso venha
descaracterizar o Plano Diretor de Goiânia. É oportuno salientar que
a ocupação urbana, por ser dinâmica, está a reclamar a constante
intervenção do poder público nos espaços físicos. Por essa razão é
que se determina que o Plano Diretor seja revista a cada dois anos.”
(ênfase acrescentada)
Em suma, o manuseio dos autos do processo legislativo não
permite aperceber um documento sequer demonstrativo de reunião do “órgão
técnico municipal” competente, na qual estivessem presentes as “entidades
representativas” dos diversos segmentos da comunidade, tampouco do
resultante estudo técnico.
Dos sucessivos Diários Oficiais do Município, outrossim, não
constam publicações referentes à atuação, no particular, de órgão técnico
municipal em conjunto com os segmentos representativos da comunidade.
Acresça-se, para afastar supostos óbices processuais, que a
JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL não é, segundo anotado por Gilmar Ferreira
Mendes (Controle Abstrato de Constitucionalidade: ADI, ADC e ADO, 1ª
ed., São Paulo: Saraiva, 2012, p. 287, v. g.), infensa à “APRECIAÇÃO E
REVISÃO DE FATOS E PROGNOSES LEGISLATIVOS”, a qual, em casos
como o dos autos, se mostra decisiva e inevitável para o exame da questão
constitucional e o escorreito desempenho do controle de constitucionalidade
abstrato.
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PROCURADORIA-GERAL DE JUSTIÇA
Na espécie, há uma única maneira de fazer valer, na jurisdição
constitucional abstrata, a norma do art. 84, § 2º, da Constituição do Estado de
Goiás, sob pena de se conceder um bill de indenidade às leis que a
descumpram: examinando os autos do processo legislativo e aquilatando se
se se pauta ele ou não em projeto de autoria do Chefe do Poder Executivo
fundado em procedimento administrativo prévio que, além de estudo técnico,
demonstre haver sido conformado no âmbito de uma discussão popular, com a
presença das entidades representativas a que faz alusão o preceito
constitucional.
Perante o postulado normativo aplicativo do paralelismo das
formas, não se concebe outra opção: alteração dessa envergadura no PLANO DIRETOR local somente se legitimaria em contexto no qual se observassem
formalidades idênticas àquelas que estiveram à base de sua criação.
III
DA VIOLAÇÃO AO ART. 84, § 2º, DA CONSTITUIÇÃO DO
ESTADO DE GOIÁS: pressupostos vinculados do ato
legislativo
A rigor, a normativa questionada elaborou-se à margem dos
“pressupostos vinculados do ato legislativo”, vale dizer, requisitos objetivos ao
exercício da competência legislativa que, embora não componham as notas
clássicas do processo legislativo em sentido estrito, são, nos dizeres do sempre
lúcido mestre José Joaquim Gomes Canotilho (Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª ed., Coimbra: Almedina, 2003, p. 1322), “elementos
externos ao procedimento de formação das leis”, que, porém,
“condicionam o exercício da competência” das Casas Legislativas.
Nessa categoria entram, sem favores, a prévia existência de
estudo técnico e a imperiosa participação popular.
13
PROCURADORIA-GERAL DE JUSTIÇA
Eis, em textual, o que disserta o mestre lusitano, versando
questão essencialmente idêntica, na Constituição portuguesa, litteris:
“A doutrina tradicional considera que os vícios formais da lei incidem
sobre o procedimento constitucionalmente estabelecido para a
formação das leis e sobre o acto-lei, como momento terminal desse
processo.
Hoje, põe-se seriamente em dúvida se certos elementos
tradicionalmente não reentrantes no processo legislativo não poderão
ocasionar vícios de inconstitucionalidade. Estamos a referir-nos aos
chamados pressupostos, constitucionalmente considerados como
elementos determinativos de competência dos órgãos legislativos em relação a certas matérias (pressupostos objetivos).
Atentemos nestes exemplos extraídos da nossa Constituição. O art.
54.º/5/d considera como direito das comissões de trabalhadores
'participar na legislação do trabalho e dos planos econômicos-sociais
que contemplem o respectivo setor”. O mesmo direito é reconhecido
às associações sindicais no art. 56.º/2/a. Se uma lei, decreto-lei ou
qualquer acto legislativo, estabelecer a disciplina normativa das
relações de trabalho sem a participação das comissões de
trabalhadores ou das associações sindicais estaremos perante uma
hipótese de falta de um elemento integrativo da competência dos órgãos legislativos quanto à legislação do trabalho e que não
se pode considerar propriamente como fazendo parte do procedimento legislativo. No entanto, à semelhança do que
acontece com os pressupostos de facto do acto administrativo, a
participação dos trabalhadores através das suas comissões ou
associações é um elemento vinculado do acto legislativo, decisivamente condicionante da competência dos órgãos
legislativos quanto a matérias respeitantes aos direitos dos
trabalhadores. A participação é aqui um pressuposto objetivo do
acto, cuja falta origina a inconstitucionalidade da lei.
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PROCURADORIA-GERAL DE JUSTIÇA
O art. 229.º/2 determina a audiência obrigatória, pelos órgãos de
soberania, dos órgãos de governo regional quanto a questões
relativas às regiões autónoma. Assim, se uma lei da República definir
a política fiscal das regiões autónomas sem ouvir os respectivos
órgãos de governo, faltará um pressuposto do exercício de
competência em relação a matérias respeitantes às regiões
autónomas e essa falta determinará a irregularidade do acto
legislativo.
Nestes casos e noutros semelhantes, a audiência e a participação obrigatórias são elementos externos ao
procedimento de formação das leis, mas condicionam o exercício da competência da Assembleia da República ou do
Governo em matérias respeitantes aos direitos dos trabalhadores ou
às regiões autónomas. A sua falta afecta a constitucionalidade do
acto, sendo apenas problemático se a inconstitucionalidade pode ser
invocada autonomizando exclusivamente estes pressupostos. A nós
parece-nos que sim, tanto mais que no juízo de inconstitucionalidade o juiz ou o Tribunal Constitucional não
poderão deixar de conhecer dos pressupostos como elementos vinculados do acto legislativo (cfr., porém, infra). (ob. cit., p. 1321-
1322, ênfase acrescentada)
Na espécie, a qual se agasalha a lição transcrita, a elaboração
por órgão técnico municipal e a participação de entidades representativas
da comunidade são claros exemplos de pressupostos vinculados do ato
legislativo, que, por sua natureza mesma, condicionam o exercício da
competência nomogenética, cuja ausência inquina de inconstitucionalidade a
normativa impugnada na presente sede instrumental.
Quanto à participação de entidades representativas da
comunidade, nenhum óbice reside no fato de que a Constituição do Estado de
15
PROCURADORIA-GERAL DE JUSTIÇA
Goiás, art. 84, § 2º, ao exigi-la, não especifica em que termos necessariamente
se dará.
Tampouco se pode atribuir estranheza ao fato de se exigir que
os poderes políticos encarregados do processo de formação das leis ouçam,
no que diz com normas do plano diretor, pessoas jurídicas de direito privado
“representativas da comunidade”.
Nesse ponto, ainda convém atentar para o que disserta o
eminente publicista português:
“Contra esta solução é irrelevante o facto de a Constituição não ter
estabelecido a forma concreta de participação de terceiros. Ao Tribunal Constitucional caberá determinar o limite mínimo
essencial, aquém do qual não se pode dizer ter havido participação ou audição. Nem se pode argumentar com o facto
de num dos casos se tratar de entidades sem estatuto jurídico público. A Constituição, sem atribuir aos sindicatos e às
comissões de trabalhadores estatuto público, atribuiu-lhes, contudo, funções públicas de carácter político.” (ob. cit., p. 1322,
ênfase acrescentada)
Em suma: a Lei Complementar n. 224, de 16.1.2012, do
Município de Goiânia, em sua integralidade, é fruto de competência legislativa
que não se exerceu, no particular, com respeito obsequioso aos prefalados
pressupostos vinculados do ato legislativo, sendo, pois, inconstitucional.
IV
DO ABUSO LEGISLATIVO DO PODER DE EMENDA
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PROCURADORIA-GERAL DE JUSTIÇA
Como já se antecipou, o projeto que resultou na aprovação da
Lei Complementar n. 224, de 16.1.2012, do Município de Goiânia, sofreu
emendas de que lhe advieram as seguintes modificações:
(a) soma, às trinta e três áreas originalmente previstas no art. 2º do
projeto enviado pelo Chefe do Poder Executivo do Município de Goiânia
(fls. 4/8 dos autos do processo legislativo), de outras trinta a serem, do
mesmo modo, desafetadas (fls. 125/127 dos autos do processo
legislativo), isso sem colheita adicional de parecer jurídico e em
desapego às medidas já sugeridas no parecer de fls. 103/116 dos autos
do processo legislativo;
(b) inserção do art. 5º-A e parágrafo único no texto do projeto de lei (fls.
125/127 dos autos do processo legislativo);
(c) aumento do conjunto das vinte e nove áreas adensáveis, previstas
na redação primitiva do art. 6º, com mais duas unidades, compondo os
itens 30 e 31, além da inclusão de parágrafo único no art. 6º do projeto
original (fls. 135/136 dos autos do processo legislativo);
(d) nova alteração, no art. 2º, com a indicação de mais uma área pública
municipal a ser desafetada, constituindo o item 64 (fl. 134 dos autos do
processo legislativo);
(e) adensamento do rol do art. 2º, com a especificação de mais cinco
áreas públicas a serem desafetadas, consubstanciando os itens 65 a 69
(fl. 137 dos autos do processo legislativo);
(f) ainda no art. 2º, o lançamento de derradeira área pública, a compor o
item 70 (fl. 140 dos autos do processo legislativo);
(g) inclusão de novo artigo, vale dizer, do que seria o art. 9º, que, por
razão de técnica legislativa, veio a ser o art. 8º da normativa impugnada,
com manifesta inovação ao projeto original (fl. 140 dos autos do
processo legislativo);
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PROCURADORIA-GERAL DE JUSTIÇA
(h) alteração da redação do novo inciso, VI, a ser incluído no art. 112,
da Lei Complementar n. 171, de 29.5.2007 (Lei do Plano Diretor de
Goiânia), modificando-se o texto do art. 6º do projeto original (fl. 143
dos autos do processo legislativo).
A doutrina, entretanto, que se tem debruçado sobre o tema da
construção do PLANO DIRETOR, atenta ao caráter eminentemente técnico
que a ordem constitucional lhe adjudicou, de há muito firmou compreensão no
rumo de vedar-se aos edis, no exame legislativo pertinente à sua aprovação ou
rejeição, a inserção, por emendas, de alterações que, à moda das que foram
efetivadas no projeto original da Lei Complementar n. 224, de 16.1.2012,
justificariam, a rigor, novos estudos técnicos e renovada participação
popular.
No ponto, forçoso reconhecer a dissidência da doutrina.
Para uns, suscetível ao poder de emenda parlamentar,
consoante adverte José Afonso da Silva (Direito Urbanístico Brasileiro, 5ª
ed., São Paulo: Malheiros, 2008, p. 147), não se legitima, por tal via, obter,
contudo, a “mera satisfação de interesse individual ou em detrimento do
interesse público”.
Para outros, nem mesmo há campo propício a emendas, pois
elas equivaleriam à negação, só por si, da nota de planejamento ínsita ao
projeto encaminhado pelo Poder Executivo.
Em textual (PINTO, Victor Carvalho, ob. cit., p. 242):
“[...] Além de apresentar natureza técnica, a elaboração do plano
pressupõe a existência de um conjunto de informações necessárias ao diagnóstico que só podem ser coletadas pela
prefeitura.
18
PROCURADORIA-GERAL DE JUSTIÇA
O projeto encaminhado pelo Executivo terá que ser aceito ou
rejeitado e não pode ser alterado pelo Legislativo. Caso contrário, poderiam ser introduzidas emendas à revelia do
processo de planejamento. As eventuais negociações necessárias
para sua aprovação, caso demandem alteração do projeto inicial,
terão que ser formalizadas mediante sua retirada, com o
encaminhamento de novo projeto pelo Executivo.
O processo de aprovação do plano diretor mais se aproxima do
relativo aos decretos legislativos, que se revestem do caráter de
ratificação ou autorização de atos do Executivo (declaração de
guerra, ratificação de tratados, autorização de endividamento pelo
Senado etc.). A iniciativa destes atos é do Executivo e a aprovação
definitiva, do Legislativo, não havendo necessidade de sanção ou
veto.
Embora possa parecer que este processo leve a impasses,
impedindo soluções de compromisso, ele na verdade exige que as negociações ocorram desde o início, evitando que as etapas de
consulta à população sejam meramente formais. Além disso,
exige que as decisões políticas ocorram sobre alternativas
tecnicamente aceitáveis e assegura a coerência das políticas
públicas.
A aprovação pela Câmara Municipal não descaracteriza a dimensão
técnica do plano diretor. Se for necessária uma reformulação do projeto para que seja aprovado, esta terá de ser feita mediante a
elaboração de um novo projeto, pelo mesmo autor do original ou por outro profissional habilitado.” (ênfase acrescentada)
De todo modo, admitida que seja a incidência, em projetos
concernentes ao Plano Diretor, do poder de emenda dos edis, não se poderá
perpetrar, por esse modo, menoscabo ao sobredito caráter técnico de seus
termos.
19
PROCURADORIA-GERAL DE JUSTIÇA
No caso, além de o projeto de lei não se afeiçoar ao caráter
técnico do Plano Diretor, as emendas resultaram no agravamento do vício
original, pelas seguintes razões:
(a) mais que dobrou o número de áreas desafetadas (de trinta e três
para setenta), e isso, sem estudo técnico e prévia audição da
comunidade por suas entidades representativas;
(b) aumento, em duas unidades, das áreas adensáveis, também sem
estudo técnico e participação da comunidade.
Outras emendas, precisamente as que incluíram, no texto do
projeto, os arts. 5º - A e parágrafo único, e 9º (que ficou como 8º), são apenas
acessórias das emendas parlamentares já referidas.
Chama atenção, no entanto, a alteração empreendida no texto
do art. 6º do projeto original, no que diz com a redação do novo inciso atribuído
ao art. 112 da Lei Complementar n. 171, de 29.5.2007 (Plano Diretor do
Município de Goiânia).
No projeto original, a alteração seria para transformar em áreas
adensáveis as do rol que trazia logo abaixo (fl. 8 dos autos do processo
legislativo).
Com a emenda parlamentar, condicionou-se a identificação,
como adensáveis, das áreas arroladas no novo inciso VI do art. 112 da Lei do
Plano Diretor “ao Estudo de Impacto de Trânsito – EIT, nos termos do art. 95,
inciso III, desta Lei”, vale dizer, da Lei do Plano Diretor do Município de
Goiânia.
Mas tampouco isso serve para coonestar alteração de Plano
Diretor em manifesta ausência de preocupação do poder político com a oitiva
20
PROCURADORIA-GERAL DE JUSTIÇA
da comunidade, pois, no ponto, houve desnecessário acréscimo, evidente
superfetação, já que, como revela o próprio teor do art. 95 da Lei do Plano
Diretor local, tal estudo, além de outros, de qualquer modo, já se exigia.
Em suma, as emendas parlamentares:
(a) exorbitaram, em ampla e inadmitida extensão, do projeto original;
(b) revelaram desatenção ao interesse público, pois alheias, do
mesmo modo que o projeto original, a estudos técnicos;
(c) não contaram com a participação popular, pois, quanto à
própria audiência pública havida na fase legislativa – que não importa
na sanação da eiva de ausência de debate e participação popular na
fase administrativa da elaboração do projeto de alteração do PLANO
DIRETOR –, mesmo depois de sua realização, os parlamentares
aumentaram, sponte sua, o rol das áreas adensáveis.
Evidente o menoscabo “ao sentido e ao valor da reserva de
iniciativa”, pois, segundo registra, com precisão, a doutrina (SILVA, José
Afonso da, Processo Constitucional de Formação das Leis, 2ª ed., 2ª tir.,
São Paulo: Malheiros, 2007, p. 201-202), mutatis mutandis:
“As questões, assim mesmo, não ficam inteiramente resolvidas. Por
isso devemos voltar um pouco ao sentido e ao valor da reserva de iniciativa legislativa. O art. 63 da CF declara inadmissível aumento
de despesa neles prevista. Ora, se a exclusividade é conferida também quanto à regulamentação dos interesses referentes à
matéria reservada, claro está que o poder de emenda parlamentar encontra aí um forte limite de atuação. Não se pode
admitir emendas que modifiquem os interesses contidos no projeto de lei, pois isso seria infringir a regra de reserva.
21
PROCURADORIA-GERAL DE JUSTIÇA
Reserva-se ao Presidente da República a iniciativa exclusiva de leis
que regulem os interesses vinculados à matéria prevista no § 1º do
art. 61, não podendo o Legislativo mudar a fixação desses
interesses.” (ênfase acrescentada)
Na essência, é o que convencionou chamar, na jurisprudência
do Supremo Tribunal Federal (ADI MC 1050, Rel. Min. Celso de Mello, RTJ
192/412, v. g.), de “pertinência” ou “pertinência temática”, no domínio do
processo legislativo, requisito de validade das emendas parlamentares que,
malgrado não constante de norma constitucional expressa, decorre da própria
lógica do sistema, pois, a se entender possível qualquer alteração por obra dos
membros do Poder Legislativo, restaria infirmada, em rombuda fraude
constitucional, a outorga do poder de iniciativa reservada.
A mesma conclusão, é presente no magistério da doutrina,
observando-se, na matéria, consenso virtual (MENDES, Gilmar Ferreira, e
BRANCO, Paulo Gustavo Gonet, Curso de Direito Constitucional, 6ª ed.,
São Paulo: Saraiva, 2011, p. 904/905; MORAES, Alexandre de, Constituição do Brasil Interpretada e Legislação Constitucional, 8ª ed., São Paulo: Atlas,
2011, p. 1076, v. g.).
Ressabido, nessa senda, o idêntico posicionamento do Tribunal
de Justiça do Estado de Goiás, firme na necessária preservação, em relação à
extensão do poder de emenda parlamentar em projetos de iniciativa reservada,
da pertinência temática (Autos n. 200995178640, Corte Especial, Rel. Des.
Floriano Gomes, votação unânime, acórdão de 11.2.2010, DJ 531 de 4.3.2010,
v. g.).
Na esteira das lições doutrinárias e da jurisprudência
invocadas, pode-se averbar, sem detença, terem as emendas edilícias violado
as normas do art. 77, II e VIII, d, da Constituição do Estado de Goiás.
22
PROCURADORIA-GERAL DE JUSTIÇA
Com efeito, ao se atribuir, isoladamente, ao Prefeito o poder de
deflagrar o processo formativo da Lei do Plano Diretor, a ordem constitucional
estadual, por coerência, não o quis converter em forma vã, num sino sem
badalo, admitindo que, por via de emendas parlamentares, fosse perpetrada a
ilimitada modificação do projeto de lei e, pois, infirmado, de modo oblíquo, o
sentido da reserva de iniciativa.
Bem se vê que, também por essa razão, não tem como
prosperar, à luz da Constituição do Estado de Goiás, a normativa alvejada.
V
DA AUSÊNCIA, NO TOCANTE AO PARQUE MUNICIPAL
“JARDIM BOTÂNICO DO CERRADO”, DE OBSERVÂNCIA
A NORMAS GERAIS, DE ALCANCE NACIONAL, DITADAS
PELA UNIÃO, NO DESEMPENHO DA COMPETÊNCIA
LEGISLATIVA CONCORRENTE
O art. 1º da Lei Complementar n. 224, de 16.1.2012, do
Município de Goiânia, diz que “fica criado” o PARQUE MUNICIPAL “JARDIM
BOTÂNICO DO CERRADO”.
Na justificativa da lavra do Chefe do Poder Executivo (fl. 13 dos
autos do processo legislativo), Sua Excelência sustenta que parte da área
destinada à instalação do Parque, prevista no Decreto n° 1.531, de 10.11.1992,
teria sofrido, segundo a Agência Municipal do Meio Ambiente – AMMA,
antropização, havendo necessidade de alterar os limites da unidade de
conservação para o fim de se corrigir a descaracterização.
23
PROCURADORIA-GERAL DE JUSTIÇA
Disse, nessa linha, o Prefeito, que o “novo Parque” deveria ser
“criado por Lei, bem como ser autorizada a alienação de parte da área
antropizada” (fl. 13 dos autos do processo legislativo).
Contudo, é necessário levar em conta que:
(a) a unidade de conservação já existia, desde o Decreto n. 1.531, de
10.11.1992 (fl. 20 dos autos do processo legislativo), conforme dão
conta as próprias justificativas que acompanharam o projeto de lei (fl.
13 dos autos do processo legislativo);
(b) o decreto é instrumento normativo idôneo à criação de unidades de conservação (SILVA, José Afonso da, Direito Ambiental Constitucional, 6ª ed., São Paulo: Malheiros, 2007, p.
253, v. g.);
(c) com o Decreto n. 2.585, de 10.8.2011, houve a ampliação da
área da unidade de conservação;
(d) o art. 1º da Lei Complementar n. 224, de 16.1.2012, do Município
de Goiânia, manteve a área total do parque público estabelecida no
Decreto n. 2.585, de 10.8.2011;
(e) o art. 1º da Lei Complementar n. 224, de 16.1.2012, do Município
de Goiânia, exemplifica a utilização, em tese admissível, da lei em
sentido formal, para conferir maior proteção a tema particularmente
sensível;
(f) de todo modo, a criação e a ampliação de limites de área de
parque público condicionam-se a prévios estudos técnicos e a consulta pública, por força do que se extrai da interpretação
sistemática dos §§ 2º e 6º do art. 22 da Lei Federal n. 9.985/2000;
24
PROCURADORIA-GERAL DE JUSTIÇA
(g) não se observou, no caso do art. 1º da Lei Complementar n. 224,
de 16.1.2012, do Município de Goiânia, a sujeição dos poderes políticos locais a essas exigências.
Imperioso registrar que a Lei Federal n. 9.985/2000 estabeleceu
normas gerais, de alcance nacional, que não poderiam ter sido olvidadas
pelos poderes políticos do Município de Goiânia, mas observadas sempre,
presente que às municipalidades, segundo o art. 64, II, da Constituição do Estado de Goiás, cumpre, inclusive em se cuidando de direito ambiental, a
suplementação, no que couber, da legislação federal e da estadual.
Logo, na espécie, onde salta à vista a ausência de estudos
técnicos prévios à criação da unidade de conservação, bem como se
ressente a atuação política da ausência de consulta à população, descurou-
se, num passo demasiadamente largo, dos estritos limites da competência
legislativa municipal, editando-se lei divorciada de comandos normativos gerais
nacionais de incidência indisputável no plano das coletividades locais.
Da leitura atenta dos autos do processo legislativo resulta,
também neste ponto, amadorismo maior, no que se relegou à inocuidade o
planejamento, à míngua de estudos técnicos e de consulta pública, malferindo-
se o princípio da eficiência, previsto no art. 92, caput, da Constituição do Estado de Goiás.
Investiu-se o Município de Goiânia de poderes que refogem de
sua “autonomia política”, que, segundo o art. 62 da Constituição do Estado de Goiás, tem sua dimensão ditada pela Constituição da República, explícita,
no seu art. 24, VI, ao situar, no rol das competências concorrentes, a
“conservação da natureza” e a “proteção do meio ambiente”.
No ponto, há a necessidade de imperioso cotejo de preceitos
da Constituição originária do Estado de Goiás com outros, contidos inicialmente
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PROCURADORIA-GERAL DE JUSTIÇA
na Constituição Federal, devidamente estadualizados por efeito de
remissão perpetrada pela ordem constitucional local.
Não se depara, a respeito, com o que se possa questionar. A
doutrina, em plena consonância com a jurisprudência do Supremo Tribunal
Federal, reconhece o adensamento da ordem constitucional local por obra de
norma estadual remissiva (LEONCY, Léo Ferreira, Controle de Constitucionalidade Estadual – as normas de observância obrigatória e a defesa abstrata da Constituição do Estado-membro, 1ª ed., São Paulo:
Saraiva, 2007, p. 88-96, v. g.).
Saliente-se que, muito embora o texto do art. 24, caput, da
Constituição da República não mencione as municipalidades no âmbito da
competência concorrente, participam eles, mesmo assim, da “partilha” de
competências, consoante adverte o magistério da doutrina (ALMEIDA,
Fernanda Dias Menezes de, Competências na Constituição de 1988, 5ª ed.,
São Paulo: Atlas, 2010, p. 138-139), litteris:
“A leitura do caput do artigo 24 mostra que a competência legislativa
concorrente foi distribuída entre a União, os Estados e o Distrito
Federal, não se mencionando os Municípios entre os aquinhoados.
Isto não significa que estes estejam excluídos da partilha, sendo-lhes
dado suplementar a legislação federal e estadual, no que couber,
conforme dispõe o art. 30, II, da Constituição.” (ênfase acrescentada)
Malgrado com ligeira distinção, André Ramos Tavares (Curso de Direito Constitucional, 8ª ed., São Paulo: Saraiva, 2010, p. 1162) pontua o
dever de o Município, no âmbito da competência suplementar, compatibilizar
suas leis com a “legislação federal e estadual”.
26
PROCURADORIA-GERAL DE JUSTIÇA
Exorbita do âmbito da competência suplementar a lei municipal
em duas hipóteses:
(a) quando estabelece regramento geral colidente com as normas
válidas da União ou do respectivo Estado-membro;
(b) quando, como na espécie, ao alvedrio dos ditames contidos em
normas gerais válidas da União ou do Estado-membro em cujo
domínio territorial se situa a municipalidade, rege, por lei, situação
específica de seu peculiar interesse.
Irremissível, portanto, a inconstitucionalidade da norma do art.
1º da Lei Complementar n. 224, de 16.1.2012, do Município de Goiânia, pois,
na criação de unidade de conservação, não se ateve aos condicionamentos
compulsórios do regramento nacional.
VI
DA TUTELA DE URGÊNCIA
Se é certo que o controle concreto (incidenter tantum) de
constitucionalidade não se revela apto a extirpar, diretamente, normas do
ordenamento em cujo plano de existência hajam ingressado, o controle
abstrato de constitucionalidade tem, nesse efeito necessário de suas decisões
de procedência, sua especificidade mesma e, nesse diapasão, a justificação
maior de sua existência autônoma, inclusive com a possibilidade de
emanação de pronunciamentos jurisdicionais típicos de tutela de urgência.
O Ministério Público do Estado de Goiás propôs Ação Civil
Pública (autos n. 201200293783), em trâmite na 2ª Vara da Fazenda Pública
Municipal da Capital, havendo logrado a concessão de providência de tutela de
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PROCURADORIA-GERAL DE JUSTIÇA
urgência para o fim de obstar, dentre outros, a alienação dos imóveis arrolados
no art. 2º da Lei Complementar n. 224, de 16.1.2012, do Município de Goiânia.
De toda sorte, isso não implica em óbice à concessão, no
âmbito de processo de controle abstrato de constitucionalidade, de
medida cautelar suspensiva da eficácia da normativa impugnada, sobretudo
quando a ação direta de inconstitucionalidade estadual possui o
desiderato de afastar do cenário jurídico, do sistema de direito positivo,
preceitos legais destoantes da Constituição do Estado-membro,
transcendendo, portanto, litígios de índole subjetiva ou ações de tutela de
interesses metaindividuais que se tenham instaurado com pleito de tutela
inibitória.
Basta, ademais, o risco de reversão da decisão prolatada nos
autos da referida Ação Civil Pública para demonstrar que não se põe fora de
propósito medida cautelar suspensiva da eficácia da Lei Complementar n. 224,
de 16.1.2012, do Município de Goiânia.
Essa insegurança jurídica, que o processo coletivo em curso,
com todas as vicissitudes técnicas que lhe são naturais, não logra, como visto,
afastar, somente se debela com medida expedita, situada no plano próprio do
controle abstrato, que obste qualquer ensaio administrativo ou judicial de
aplicação provisória das regras impugnadas.
Assim, não há dúvida da presença, no caso, do periculum in
mora, sugestivamente definido por Luís Roberto Barroso (O Controle de Constitucionalidade no Direito Brasileiro, 5ª ed., São Paulo: Saraiva, 2011,
p. 212), como “a possibilidade de prejuízo decorrente do retardamento da
decisão postulada”.
28
PROCURADORIA-GERAL DE JUSTIÇA
Presente a plausibilidade jurídica das alegações (fumus boni
juris), aquilatada nas razões externadas em relação a cada uma das causas de
pedir, e constatada a insegurança jurídica trazida pelo quadro de indefinição,
no plano normativo, da questão da inconstitucionalidade, com todos os riscos
de aplicação açodada e socialmente danosa das normas objeto da
presente ação (periculum in mora), o caso comporta a concessão de medida
cautelar.
De todo modo, convém que se atente, por oportuno, para a
configuração, na espécie, do requisito alternativo da conveniência (NEVES,
Daniel Amorim Assumpção, Ações Constitucionais, 1ª ed., Rio de Janeiro:
Forense; São Paulo: Método, 2011, p. 19, v. g.), a que o Supremo Tribunal
Federal tem se apegado em situações, como a da presente ação, de flagrante
inconstitucionalidade.
Impositiva, por isso, a suspensão cautelar da eficácia do
regramento legal objeto da presente ação de controle concentrado de
constitucionalidade.
VII
DOS REQUERIMENTOS E DO PEDIDO
Ante todo o exposto,
REQUER-SE:
(a) o exame do pleito de medida cautelar, nos termos do art. 10,
caput, da Lei Federal n. 9.868/99, observada a regra de
reserva de plenário, com seu deferimento para o fim de
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PROCURADORIA-GERAL DE JUSTIÇA
suspender a eficácia normativa da Lei Complementar n. 224,
de 16.1.2012, do Município de Goiânia, em sua integralidade;
(b) a solicitação de informações aos requeridos, Câmara
Municipal de Goiânia e Prefeito Municipal de Goiânia, nos
termos do art. 6º, caput, da Lei Federal n. 9.868/99,
determinando-se, inclusive, ao primeiro deles a apresentação,
in totum, de cópia dos autos do processo legislativo que
resultou na aprovação da da Lei Complementar n. 224, de
16.1.2012, do Município de Goiânia, e bem assim cópia de seu
texto integral;
(c) a citação do Senhor Procurador-Geral do Estado, para
exercer, nos autos, a função de curador da presunção de
constitucionalidade da legislação impugnada, ex vi do disposto
no art. 60, § 3º, da Constituição do Estado de Goiás;
(d) após, a remessa dos autos ao Ministério Público, antes do
julgamento definitivo, para pronunciamento final, por analogia
com o disposto no art. 8º da Lei Federal n. 9.868/99.
Por derradeiro, PEDE-SE, no mérito, o julgamento de
procedência do pedido, em ordem a que se declare a
inconstitucionalidade da Lei Complementar n. 224, de
16.1.2012, do Município de Goiânia, em sua integralidade.
Goiânia, 20 de fevereiro de 2013.
BENEDITO TORRES NETO
PROCURADOR-GERAL DE JUSTIÇA
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