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PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DO RIO GRANDE DO SUL FACULDADE DE TEOLOGIA
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM TEOLOGIA MESTRADO
VOLNEI JUNIOR VANASSI
XODO E ADVENTO:
ENCONTRO DE ALTERIDADES NA TEOLOGIA DE BRUNO FORTE
Prof. Dr. Leomar Antnio Brustolin
Orientador
Porto Alegre 2007
2
VOLNEI JUNIOR VANASSI
XODO E ADVENTO: ENCONTRO DE ALTERIDADES
NA TEOLOGIA DE BRUNO FORTE
Dissertao apresentada Faculdade de Teologia, da Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul, como requisito parcial para obteno do grau de Mestre em Teologia, rea de Concentrao em Teologia Sistemtica.
Orientador: Prof. Dr. Leomar Antonio Brustolin
Porto Alegre 2007
3
4
AGRADECIMENTOS
Agradeo a todos aqueles que, direta ou indiretamente, possibilitaram a
realizao desse trabalho. Aos professores e funcionrios da Faculdade de Teologia
da PUCRS, Capes, pelos recursos fornecidos. Agradeo Ordem dos Cnegos
Regulares Lateranenses pela possibilidade concedida para a realizao dos
estudos; aos confrades que me auxiliaram nos momentos de necessidade. Agradeo
ao Pe. Alfredo Miccinilli e minha irm Vanilse Vanassi, pelo auxlio nas tradues.
Dirijo especial agradecimento ao Prof. Dr. Leomar Brustolin pelo incentivo e
orientao dessa pesquisa. Finalizo agradecendo a Deus, desejando crescer na
humilde aproximao de seu Mistrio.
5
RESUMO
A presente dissertao demonstra como a necessidade de dar razes vida
e a histria humana, torna-se pertinente e atual num tempo marcado pela crise de
esperana e vazio de sentido. luz da teologia de Bruno Forte, parte-se das
categorias xodo, advento e encontro para demonstrar como, no humano andar do
xodo, acolhido pelo divino vir do advento, o encontro entre alteridades plenifica a
vida humana, abrindo-a esperana. No encontro com o Outro, reafirma-se o
compromisso cristo com o presente, alimentado pela esperana escatolgica que
deixa entrever, na Ptria Trinitria, o horizonte de sentido do peregrinar humano.
Palavras-chave: Histria; Trindade; Revelao; Escatologia; Esperana.
6
ABSTRACT
The present paper demonstrates how the need to give life and the human
history a sense of meaning and purpose becomes relevant and updated in times
marked by lack of hope and meaning. In the light of Bruno Forte`s theology, we start
from the exodus, advent and discovery to show how in the human journey of the
exodus, welcomed by the divine coming of the advent, an encounter within
alterities fills up the human life and opens it to hope. In the encounter with the Other,
Christian commitment with the present time is reassured, nourished by the
eschatological hope that captures, in the Trinitarian Home, the horizon of meaning of
the human journey.
Key-Words: History; Trinity; Revelation; Eschatology; Hope.
7
SUMRIO
INTRODUO.............................................................................................................9
1 XODO E ALTERIDADE........................................................................................15
1.1 A Identidade e a Diferena do xodo..........................................................15
1.1.1 Peregrinos na Vida, Mendicantes do Cu............................................17
1.1.2 A Dialtica do xodo............................................................................21
1.1.3 O xodo como Desafio dos Contextos.................................................23
1.2 O xodo nos Cenrios do Tempo.............................................................24
1.2.1 A Modernidade e os Totalitarismos: da Luz ao Declnio......................25
1.2.2 Do Declnio Noite do Mundo: o xodo carente de Advento............28
1.2.3 Procura do Outro: da Noite do Mundo Aurora.............................31
1.3 Cenrios do Corao: da Tragicidade da Existncia Esperana..........32
1.3.1 A Interrogao sobre a Dor e a Morte.................................................33
1.3.2 Seres para a Vida................................................................................35
1.3.3 Abertos Esperana e ao Amor.........................................................36
1.4 O Trplice xodo de Jesus e o Trplice xodo do Discpulo......................37
1.4.1 Discpulos do nico..........................................................................40
1.4.2 Servos do Amor................................................................................41
1.4.3 Testemunhas do Sentido..................................................................42
1.5 O xodo para o Advento..........................................................................44
1.6 O xodo como Alteridade........................................................................50
2 ADVENTO: A RE-VELAO DO DEUS QUE VEM..............................................53
2.1 O Advento acolhe o xodo......................................................................53
2.2 A Dialtica da Revelao: entre a Offenbarung e a Re-velatio...............55
8
2.3 O Advento da Palavra: a Linguagem........................................................60
2.4 O Silncio Eterno: Mistrio do Pai............................................................63
2.5 A Palavra Encarnada................................................................................68
2.6 O Mistrio do Esprito: o Silncio do Encontro.........................................72
2.7 O Evento Sacramental: Silncio, Palavra, Encontro................................74
2.8 A Palavra nas Palavras............................................................................78
2.8.1 O Zimzum e a Kenosis...................................................................79
2.8.2 Dabar e Logos...................................................................................81
2.9 O Sofrimento que acolhe o Advento da Ptria........................................82
3 O ENCONTRO, ALIANA ENTRE ALTERIDADES..............................................86
3.1 O Encontro entre xodo e Advento.........................................................86
3.1.1 O Encontro que Transforma: a Eternidade no Tempo.....................89
3.1.2 O Encontro que Liberta: Crise do Sentido e Redescoberta da Escatologia...92
3.2 O Encontro como Esperana: entre o j e o ainda no......................96
3.2.1 Futuro Relativo e Futuro Absoluto: a Irrupo do Novum...........97
3.2.2 A Escatologia como Novo Pensamento.........................................99
3.2.3 Por uma Escatologia Pascal: entre a Identidade e a Diferena.....103
3.2.4 Para alm da Morte: entrever o Sentido.........................................106
3.3 A Trindade como Sentido e como Ptria..............................................108
3.3.1 A Igreja, cone da Trindade: Antecipao da Ptria......................112
3.3.2 O Horizonte de Sentido.................................................................114
3.4 A Reserva Escatolgica.....................................................................115
3.4.1 A Beleza Salvar o Mundo............................................................116
3.4.2 Um Itinerrio Cristo a partir da Reserva Escatolgica..............119
CONCLUSO..........................................................................................................125
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS........................................................................135
9
INTRODUO
A Questo do Sentido
Podemos legitimamente pensar que o destino futuro da humanidade est nas
mos daqueles que souberem dar s geraes vindouras razes de viver e de
esperar (Gaudium et Spes, n. 31). Quais so as razes de viver e de esperar para o
ser humano? A questo diz respeito aos homens e mulheres, de todos os tempos,
quanto prpria existncia, o transcorrer da vida e da histria. Essa razo que
fundamenta o viver e o esperar humanos, profundamente anloga questo do
sentido. As indagaes sobre as razes da prpria existncia, do viver e do morrer,
sempre constituram a grande questo da humanidade. Para os cristos, questo
das razes e do sentido da existncia associa-se tambm a questo da esperana
crist e do futuro da humanidade, do mundo e da histria.
A intuio conciliar expressa a necessidade de uma esperana militante e
ativa, mas no deixa de evidenciar a dramaticidade da questo. Nem sempre o
futuro da humanidade esteve nas mos daqueles que, legitimamente, deram
razes s buscas e questionamentos do ser humano. s indagaes do ser humano
foram dadas, muitas vezes, respostas presunosamente totalitrias. As
conseqncias manifestam-se na crise de esperana que vive o mundo atual. A
perda do sentido e a crise da esperana ganham forma no descuido pela natureza
com a atual crise ecolgica , no descaso pelo sofrimento do outro, evidenciado nas
gritantes desigualdades sociais e no individualismo exacerbado. No apenas a
perda do sentido, mas at a perda do interesse pela prpria questo do sentido.
Manifesta-se o triunfo do vazio e do efmero. Se eu ao menos pudesse sentir
alguma coisa?1 Esta expresso utilizada pelo filsofo francs Gilles Lipovetsky
resume o sentimento crescente de homens e mulheres do novo milnio. No
1 LIPOVETSKY, G. A Era do Vazio, p. 71.
10
possvel, porm, renunciar interrogao sobre o sentido enquanto permanece a
indagao sobre o sofrimento: Por que o sofrimento no mundo? A busca de uma
resposta aceitvel para essa interrogao nos mostra como ela se identifica com a
questo do sentido: tem sentido o sofrimento? Tem sentido a vida? A luta cotidiana e
o destino universal de morrer tm um significado que torna digna a fadiga de viver?
Da cruz da histria se levanta a interrogao sobre o sentido da prpria histria.2
Delimitao
Sem dvida, o Vaticano II provocou e fomentou o dilogo da f crist e da
prpria Teologia com as questes atuais, com um mundo em transio e
transformao nos mais diversos nveis. Na esteira da proposta conciliar, a obra
teolgica de Bruno Forte3 quer ser tambm dialogante com o tempo presente
carregado de indagaes e em busca do sentido , tendo como pano de fundo o 2 FORTE, B. Teologia della Storia, p. 5. 3 Bruno Forte nasceu em 1949 em Napoli, Itlia. Ordenado sacerdote em 1973, doutorou-se em Teologia no ano de 1974 e em Filosofia no ano de 1977. Atualmente arcebispo de Chieti (Itlia). Telogo de renome internacional, Bruno Forte foi professor de Teologia Dogmtica na Pontifcia Faculdade Teolgica da Itlia Meridional e membro da Pontifcia Comisso Teolgica Internacional. Em relao ao seu pensamento, destacam-se algumas influncias: Em primeiro lugar, o pensamento da Itlia meridional. Sendo napolitano, exerce-lhe especial influncia a escola napolitana, que tem em seus pensadores uma ampla valorizao da histria como fio condutor de suas elaboraes. A isso, soma-se a formao acadmica realizada na Universidade de Tbingen, caracterizada, de modo geral, pelo retorno e valorizao da histria por meio da redescoberta do dado bblico e patrstico. Em Tbingen, Forte recebeu a influncia de uma teologia eclesial, reflexo da tradio viva da f, bem como da exigente abertura teolgica aos problemas do prprio tempo e o dilogo com as culturas. A elaborao teolgica de Tbingen marcada especialmente pela eclesialidade, cientificidade e abertura aos problemas do tempo. Foi igualmente de grande valia o dilogo de Bruno Forte com os telogos evanglicos, especialmente J. Moltmann e E. Jngel, que lhe deram percepo de como a forma histrica do pensar teolgico no pode realizar-se margem da emergente questo ecumnica. Bruno Forte foi tambm influenciado pelo contato e aproximao com a Teologia parisiense, com seus grandes precursores da renovao conciliar. O retorno s fontes bblicas, patrsticas e litrgicas empreendidas pela nova teologia, que tanto influenciaram e prepararam a renovao empreendida pelo Vaticano II, vo ter na histria a expresso da atualidade de tal renovao. De fato, o pensamento de telogos como M. D. Chenu, Y. Congar e H. de Lubac, so testemunhas de como a memria teolgica pode ser inovadora. Para Bruno Forte, o encontro com este mundo significou um aprofundamento do sentido da histria, j presentes no seu pensamento teolgico. A teologia de Bruno Forte evidentemente uma teologia conciliar enquanto se coloca em continuidade com a renovao da prpria Teologia em seu dilogo ecumnico, bem como com o mundo plural, cada vez mais desafiador e problemtico. Napoli, Tbingen e Paris, os meus itinerrios de pensamento, que esto unidos entre si sob o sinal da f e da histria. (Cf. FORTE, B. Teologia Viatorum. In: SARTORI, L. Essere Teologi Oggi, p. 71). Assim, a teologia de Bruno Forte pode ser caracterizada pelo seu forte acento histrico, na linha da grande tradio italiana marcada pelo pensamento e reflexo sobre a histria, podendo aqui ser exemplificada por G. B. Vico e, propriamente na rea teolgica, Joaquim de Fiore, Toms de Aquino e Afonso de Ligrio. (MONDIN, B. Dizionario dei Teologi, p. 244).
11
prprio Mistrio da f crist. Assim, esta dissertao pesquisa respostas sobre o
sentido do existir humano a partir da teologia de Bruno Forte. O itinerrio do
presente trabalho serve-se da reflexo teolgica empreendida por Bruno Forte,
partindo das seguintes indagaes: As categorias xodo, advento e encontro,
desenvolvidas por Bruno Forte, so capazes de responder questo da busca de
sentido atual? Diante da indiferena e do vazio, o intento da teologia de Bruno Forte
capaz de despertar novamente o interesse pela interrogao sobre o sentido?
O ttulo da presente pesquisa xodo e Advento: Encontro de Alteridades na
Teologia de Bruno Forte, expressa o itinerrio da reflexo: parte-se das categorias
xodo e advento, atravs das quais o telogo italiano elabora sua teologia,
articulando os dados da f e a histria. O xodo entendido por Bruno Forte como
o mundo da temporalidade, o humano andar que se abre ao futuro e na f
demonstra buscar uma ptria... Enquanto exodal, a condio humana abertura que
quebra o cerco da identidade absoluta, peregrinao, que atravessa as insdias do
nada em direo ptria entrevista na promessa, mesmo que ainda no possuda
na verdade.4 Por sua vez, o advento o mundo da eternidade enquanto se volta ao
homem e visita sua casa, o livre autodestinar-se de Deus criatura e o gratuito
dom da autocomunicao divina.5 O humano andar do ser humano em sua
alteridade6, acolhido pelo divino vir de Deus que, na sublime Alteridade e doao,
acolhe o xodo humano, dando-lhe sentido. Assim, a pesquisa procura-se articular
a partir da compreenso que d Bruno Forte s categorias xodo, advento e
encontro a busca humana pelo sentido (xodo) e o encontro com a Palavra e o
Silncio da revelao (advento), que teve lugar em Jesus de Nazar. Encontro esse
que abre a vida e a histria humanas para o Mistrio do Deus Trino, Princpio e Fim
da existncia.
4 FORTE, B. LEternit nel Tempo, p. 29. 5 Ibidem, p. 29. 6 A alteridade entendida aqui como sair de si em direo ao outro, inter-relao, encontro. Est em correlao ao xodo enquanto busca e encontro com o Outro, sem contudo esgot-lo; e com o advento enquanto em sua kenose, o Verbo manifesta a divina alteridade que vem ao encontro do ser humano, assumindo sua condio.
12
A teologia de Bruno Forte mostra-se dinmica e dialogante com a histria e
suas problemticas. Em face de alguns estudos j realizados7, mostra-se relevante a
abordagem dada por Forte ao tema do sentido, da complexidade da histria e do
mundo atual com os quais a Teologia deve dialogar e interagir. A especificidade do
presente estudo est em abordar, de forma sincrnica, as categorias xodo, advento
e encontro, trabalhando os principais conceitos teolgicos ligados a elas. A partir
dessas categorias, procura-se identificar como essa elaborao teolgica pode
dialogar e responder questo do vazio e da crise de sentido do mundo atual.
Assim, entre a busca humana e sua condio exodal, a revelao apresentada
como possibilidade do encontro com Deus e com os outros, numa dinmica que
transforma a vida e a histria. A f crist, atravs da reflexo escatolgica, faz
entrever o futuro como perene novidade que transforma desde j o mundo em vista
da Ptria.
O mtodo utilizado na presente pesquisa, parte de uma leitura sincrnica em
base a alguns conceitos fundamentais da teologia de Bruno Forte. Deixa-se em
aberto a questo cronolgica, isto , os diversos momentos evolutivos de seu
pensamento no conjunto de sua teologia. Algumas consideraes a respeito da
cronologia sero feitas na concluso. Quanto s obras8, privilegiar-se- aquelas que
mais se aproximam da temtica do presente estudo, de modo particular as obras da
Simblica Eclesial, bem como as mais recentes, dentre elas, artigos publicados e
estudos sobre Bruno Forte.
Estruturao
O resultado da pesquisa est articulado em trs captulos, objetivando
trabalhar as trs categorias de Bruno Forte: xodo, advento e encontro. A 7 Por exemplo, o estudo de Jess Martinez GORDO, intitulado LArmonia della Rivelazione in un Tempo Disarmonico, em que trata a complexidade do mundo atual, a crise de sentido e o desafio da Teologia diante da pluralidade, a partir do pensamento de Bruno Forte. GORDO, Jess Martnez. LArmonia della Rivelazione in un Tempo Disarmonico. In: ASCIONE, Antonio (org). Una Teologia come Storia. Milano: San Paolo, 1998, p. 237-253. Tambm sobre os diversos aspectos da teologia de Bruno Forte, destacam-se os estudos presentes em ASCIONE, Antonio (org). Una Teologia come Storia. Milano: San Paolo, 1998. 8 A obra de Bruno Forte est sistematicamente organizada em trs grupos: A Simblica da F, a Dialgica do Amor e a Potica da Esperana, correspondendo ao pensamento das trs virtudes teologais,. Evocam tambm trs diversas formas de pensar: o argumentar narrando da simblica, o dialogar argumentando da dialgica, e o narrar dialogando da potica. (Cf. FORTE, B. La Parola della Fede, p. 254).
13
grandiosidade da obra de Forte exige optar por determinadas questes teolgicas
em detrimento de outras, uma vez que as trs categorias so transversais em
grande parte de sua obra. Tais opes se fundam na aproximao pergunta sobre
a qual esto baseadas as demais interrogaes que iro surgir no decorrer da
pesquisa: diante da atual crise de sentido, possvel redescobrir o sentido do viver e
do morrer humanos?
O primeiro captulo trata do xodo humano. Primeiramente define-se a
categoria xodo na obra de Bruno Forte. Reflete-se a perda de sentido, delineada a
partir das presunes totalizantes e ideolgicas da poca moderna, passando pela
crtica do Iluminismo e desembocando no vazio e na crise de sentido da poca ps-
moderna. A interrogao sobre o sofrimento e a morte leva o ser humano a sair de
si, a autotranscender-se. Partindo dos cenrios do tempo e dos cenrios do
corao, abordam-se os sinais da redescoberta do sagrado. Descreve-se como, em
Jesus, o xodo humano tem delineado o caminho e a meta pelos quais acolhe o
advento da revelao. O primeiro captulo encerra com a questo: Onde e como o
Outro se apresenta?9
O segundo captulo reflete sobre a categoria advento. Aps uma aproximao
entre advento e xodo, aborda-se a revelao da Palavra e do Silncio, em seu
carter dialtico. Descreve-se a funo da linguagem nesse processo dialtico da
revelao, ponto de partida para o entendimento da Trindade como Silncio, Palavra
e Encontro. Num mundo onde a descartabilidade da palavra evidente, o final do
segundo captulo apresenta algumas correspondncias de termos da tradio
hebraico-crist, propriamente firmada sobre a palavra. Essas correspondncias
evidenciam o valor da Palavra como fundamento da re-velao do Mistrio divino.
Finalmente, descreve-se como, na cruz de Cristo, a cruz do mundo encontra seu
sentido, entrevendo, pela ressurreio, uma esperana nova. Entre o j e o ainda
no da revelao, o ser humano peregrina em direo Ptria. O segundo captulo
remete s seguintes indagaes: Como se d o encontro entre xodo e advento? De
que forma a esperana crist apresenta-se como resposta questo do sentido da
existncia?
O terceiro captulo trata sobre a categoria encontro. Descreve-se sobre o
recproco acolhimento entre o xodo humano e o advento divino como aliana entre
9 Cf. FORTE, B. Escuta do Outro, p. 7.
14
alteridades. Abordam-se implicaes da redescoberta da escatologia como
reafirmao da esperana e da novidade crist. relatividade do futuro que passa,
contrape-se o futuro absoluto que faz entrever a Ptria trinitria, sentido da
histria, da vida e da morte do ser. Entre o j e o ainda no, descreve-se como os
cristos, de modo particular, so chamados a viver a reserva escatolgica, fiis ao
mundo presente e ao mundo que deve vir. O terceiro captulo remete a uma
pretensa concluso desta pesquisa. Retomando-se sinteticamente os diferentes
aspectos desenvolvidos, so apresentadas algumas apreciaes crticas, bem como
caminhos para uma prxis de resgate do sentido e da esperana.
15
1 XODO E ALTERIDADE
1.1 A Identidade e a Diferena do xodo
Para compreender o xodo na teologia de Bruno Forte, preciso entend-lo
como categoria inserida no seu mtodo teolgico. Seus escritos constituem uma
teologia histrica, ou melhor, uma teologia como histria.10 No desgnio de Deus,
que se realiza atravs da economia da salvao, o mistrio escondido em Deus
alcana a humanidade na histria. Esta vislumbrada a partir da fonte eterna do
mistrio da Trindade e acolhida nos questionamentos do tempo, do sentir e do existir
humano. A misso da sua teologia, portanto, explicitar essa economia, esse
desgnio misterioso de salvao, argumentando a partir do sentido que tem a vida do
ser humano na sua condio histrica atual. O prprio Bruno Forte assim se
pronuncia:
A forma da minha teologia, toda marcada pelo pensar histrico posto a servio da reflexo da f, tende ento a superar uma impostao especulativa, conceitual e abstrata em vista de uma proposta bblica, existencial e dinmica, que na concretude do tempo, apanhe e apresente na experincia fontal da igreja nascente, parte de uma linguagem narrativa e contagiosa, e seja corajosamente e serenamente aberta ao advento. A minha teologia quer ser uma teologia bblica e eclesial, em dilogo com o meu tempo, aberta ao novo e nutrida do desejo ecumnico: disposta sempre, como o velho Simeo, a cantar o seu nunc dimittis frente Luz que vem do alto.11
Para Bruno Forte, o mtodo histrico representa a aproximao respeitosa do
j, no prescindindo do valor do passado e da fora do presente, estando ao
mesmo tempo aberto ao futuro. assim que a compreenso histrica do passado
10 Cf. FORTE, B. La Parola della Fede, p. 57. 11 FORTE, B. Teologia Viatorum. In: SARTORI, L. Esseri Teologi Oggi, p. 74.
16
ser sempre carregada de um significado existencial, interpelada pelo hoje,
interpelando o agora e aberta ao que h de vir - o ainda no. A histria, na
Teologia exige, portanto, que a reflexo crtica venha a situar-se em relao ao
passado fontal, na densidade do presente, para orientar o futuro. A memria
conjugada companhia da f e da vida se faz profecia do amanh. Entre o xodo
que a condio humana em permanente busca e desejo pelo Mistrio Absoluto e o
advento, no qual a Palavra de Deus e o seu Silncio habitaram o tempo das
pessoas, a Teologia parte de dois movimentos. De um lado, o ser humano, peregrino
na busca pelo sentido da existncia, desejoso por encontrar a ptria, na constante
luta atravs da vida, contra o vazio do nada e a tragicidade da vida e a morte. De
outro lado, Aquele que o Incio, o pressuposto e o fundamento de tudo, que vem
ao encontro do ser humano na Palavra revelada e no seu insondvel Silncio. No
ato de pura gratuidade e amor, a Palavra vem dar sentido ao tempo e existncia,
apontando para o horizonte ltimo: a Ptria a ser vislumbrada.
Dessa forma, a teologia da histria compreendida por Bruno Forte como
memria, companhia e profecia: Palavra do homem a Deus na companhia da
existncia em xodo; palavra de Deus ao homem na memria transformadora do
advento; palavra sobre Deus e sobre o homem, de Deus com o homem e do homem
com Deus na profecia da vida nova que h de vir.12 Remetendo-se fonte da f, ou
seja, revelao, a Teologia memria (docta fides), enquanto escuta e adeso
do crente revelao conservada e transmitida por meio da Tradio viva da Igreja.
A Teologia tambm companhia (docta caritatis) enquanto chamada no s a
acolher a revelao, mas tambm discernir os sinais dos tempos, estabelecendo
relao dialogal com a atualidade histrica e cultural e procurando responder aos
desafios e questionamentos de cada tempo de modo inteligvel e significativo.
Olhando para o futuro, a Teologia no pode descurar de sua ndole escatolgica. Ela
chamada a ser proftica (docta spes) na dinmica do encontro do divino que vem
at o ser humano (advento) e do humano que busca a Deus (xodo).
Nesse itinerrio, sob o sinal da ntima correlao entre f e histria, Bruno
Forte empreende sua elaborao teolgica, utilizando-se de forma muito singular as
categorias de xodo, advento e encontro. Com uma linguagem renovada, o telogo
italiano vale-se dessas categorias para fazer a correlao entre natureza e graa,
12 FORTE, B. La Parola della Fede, p. 63.
17
Deus e o ser humano, tempo e eternidade, Absoluto e histria e tantas outras
relaes fundamentais da f. Ele tem a preocupao de que o Absoluto no se
dissolva na histria, mas seja possibilidade nova do ser humano e da histria
abrirem-se nEle para o futuro.
Em seu itinerrio teolgico, Bruno Forte dispensa especial ateno ao
dilogo, seja com as outras religies e expresses de f, seja com o mundo filosfico
e interdisciplinar. O telogo tem presente, de modo particular, a poca atual, tentada
pela seduo do nada e da falta de sentido. Dessa forma, o telogo entende que a
estrutura que sustenta a existncia humana um movimento de xodo, sua
autotranscendncia, a permanente tenso de sair de si mesmo, de superar-se, rumo
ao Mistrio absoluto.13 Forte busca favorecer mais do que um simples confrontar
de idias, mas um verdadeiro encontro, de modo especial, com os indiferentes. De
fato, a indiferena se apresenta hoje como a nova figura do atesmo prtico.
Propondo uma vida sem Deus, o indiferente tende a esquivar-se da f pensada, o
que lhe coloca aqum da possibilidade de pr-se a caminho, de buscar o sentido, de
estar em xodo.
1.1.1 Peregrinos na Vida, Mendicantes do Cu
Quem se aventura na reflexo da prpria existncia, da condio do mundo e
do ser, instigado a olhar para a histria, para as buscas e os questionamentos que
movem a existncia em torno do sentido. Falando de Filosofia e de Teologia na era
da ps-modernidade, um pensar no negligente investigar ento, antes de mais
nada, no tanto que respostas oferecem, mas sobretudo as verdadeiras questes
com que se deparam.14 preciso partir das inquietaes do mundo de hoje: talvez
seja essa a condio faltante no dilogo da Teologia com a atualidade. Talvez se
tenham demasiadas respostas prontas para perguntas que poucos fazem. Onde a
vida se faz interrogao, a se torna possvel a revelao do corao e o encontro
que transforma a vida. E quais so os questionamentos do corao humano, quais
as angstias e esperanas que movem o existir? O que a vida do ser humano
13 FORTE, B. Mendicante do Cu, p. 176. 14 Idem. Escuta do Outro, p. 7.
18
sobre a terra? preciso escutar as perguntas e inquietaes que esto no corao
da humanidade, levar em conta a dramaticidade da existncia que se reflete nos
caminhos da prpria histria: so elas que abrem o ser humano ao Mistrio.
Para Bruno Forte, o vazio e a debilidade da existncia instalados no corao
do ser humano ps-moderno, trazem lume o fato de que h uma carncia de
paixo pela verdade. Em sua obra A Palavra da F, o telogo italiano afirma que se
o homem estruturalmente um peregrino na vida, o que constitui a verdadeira
tentao paralisante sentir-se chegado, no mais em xodo neste mundo, mas
possuidores, dominadores de um hoje que quer parar a permanente transcendncia
do caminho.15 Falta aos homens e mulheres do nosso tempo o desejo de busca,
aquela inquietao manifestada por Santo Agostinho na abertura de suas
Confisses na qual revela o desejo profundo do corao humano: Fizeste-nos para
Ti, e o nosso corao est inquieto enquanto no descansar em Ti.16 Nisso, a
humanidade ps-moderna vive no exlio da apatia e da indiferena.
Para Bruno Forte, o advento do Deus vivo nega o movimento exodal do
tempo enquanto contradiz todo seu possvel fechamento: a presuno do parar ou
do se possuir estavelmente converte o instante em ato idoltrico.17 Aquele que
sucumbe no xodo da existncia nada mais lhe resta do que permanecer no exlio
do indiferentismo: o verdadeiro exlio no comea quando se deixa a ptria, mas
quando no h mais no corao a nostalgia, o desejo pela ptria. O exlio de quem
esqueceu o destino, a meta maior, o cu do desejo e da esperana.18 O xodo
configura-se, portanto, como o sair do exlio da apatia. xodo busca, nostalgia,
questionamento sobre a vida e seu sentido. O homem est em xodo enquanto
chamado permanentemente a sair de si, a interrogar-se, e estar em buscar de uma
ptria.19 Na expresso de Maritain, citada por Bruno Forte, somos mendicantes do
cu20 e, como na aurora do dia, vislumbramos as luzes do Eterno, sedentos, porm,
15 FORTE, B. La Parola della Fede, p. 17. 16 SANTO AGOSTINHO. Confisses n.1, p. 15. 17 FORTE, B. LEternit nel Tempo, p. 30. 18 Idem. Confessio Theologi ai Filosofi, p. 17. 19 Ibidem, p. 18. 20 O que sou afinal?... Talvez eu seja uma espcie de rabdomante com o ouvido colado terra, para captar o murmrio das fontes escondidas, o imperceptvel rumor das germinaes invisveis. E talvez, como qualquer cristo... sou tambm um mendicante do cu disfarado de homem do nosso sculo, uma espcie de agente secreto do Rei dos reis nos territrios do prncipe deste mundo... (MARITAIN, J. Ricordi e Appunti, Brescia, 1967, prefcio.) A expresso tambm se aproxima de Santo Agostinho: O homem um mendigo de Deus. (SANTO AGOSTINHO, Sermo. 56,6,9).
19
do calor, e desejosos da plenitude da luz divina. Assim, carregando a fora das
verdadeiras perguntas e a humildade da escuta acolhedora, a reflexo teolgica
quer ser caminho revelador da Verdade, livre de mscaras. No Advento da Palavra
Encarnada e Silenciosa esto os questionamentos do corao humano em xodo,
bem como a fora transformadora das respostas. O xodo , assim, o mundo da
temporalidade, o humano andar que se abre ao futuro e na f demonstra a procura
de uma ptria. (...) Enquanto exodal, a condio humana abertura que rompe a
procura pela identidade absoluta, peregrinar, que atravessa o nada em direo
ptria, vislumbrada na promessa, ainda que no possuda na realidade.21
Enquanto ser-no-tempo, o ser humano traz em si a nostalgia da busca pelo
sentido. Procura vencer a obscuridade ltima da morte, almejando dar valor e
dignidade sua obra e aos seus dias, face tragicidade do viver e do morrer. O
telogo italiano exalta a condio histrica humana como lugar do xodo,
querendo, com ele, definir o movimento de autotranscendncia que atravessa a vida
e a orienta em direo ao advento. o novum vislumbrado no Totalmente Outro22,
na Ptria, qual o ser humano encontra o horizonte de sentido. Em seu advento,
Deus no est acima da histria, mas na histria, transformando e qualificando-a.
Nisso se evidencia a relao existente entre Deus e o ser humano, de modo que o
Absoluto no seja esgotado na histria, mas seja possibilidade nova, para a
histria abrir-se ao que vir. O futuro entendido, aqui, como novum, isto , no
como condio temporal passageira, e que esmorece, mas como constante
esperana, vinda e renovao.
A busca pelo sentido apresenta-se como contestao radical da vitria da
morte. A cruz do Ressuscitado, envolvida no silncio e aberta ao encontro, alcana,
acompanha e transforma a cruz da histria. Manifesta-se a o mistrio absoluto da
vida, o horizonte que envolve o existir e o guarda mais fortemente do silncio do fim
trgico. Inquietamente atrado por este horizonte ltimo, o ser humano se auto-
21 FORTE, B. LEternit nel Tempo, p. 29. 22 A expresso Totalmente Outro faz referncia a Deus. Sua origem prxima, como compreendem os telogos dialticos, remete diferena qualitativa infinita que separa o homem e Deus, segundo Kierkegaard. No entanto, as origens da expresso so longnquas referindo-se sempre transcendncia de Deus ou do Uno como o outro (thatron em Plotino) ou totalmente outro (aliud valde em Agostinho). Em 1917 no seu livro intitulado O Sagrado, o filsofo neo-kantiano R. Otto resgata a expresso que ser utilizada abundantemente pela Teologia da Crise do jovem Barth e de seus amigos. (cf. LACOSTE, Jean-Yves. Totalmente Outro. In: Idem. Dicionrio Crtico de Teologia, p. 1737).
20
manifesta como ser aberto ao Transcendente. Diante da realidade e da existncia,
experimenta a prpria autotranscendncia como capacidade de pr-se em xodo
na direo do Mistrio que envolve cada coisa, no desejo e na procura daquele que
Inefvel. Por sua vez, a autotranscendncia no se realiza como uma
autodeterminao moral exterior: essa a condio de possibilidade do encontro,
que exige, para efetuar-se, a deciso livre de abertura e acolhimento da
Transcendncia.23
Sem o consentimento gratuito do amor, em si mesmo livre, nem Deus se
abriria ao ser humano, nem o ser humano se abriria profundidade do ser divino.
Em sua obra Teologia da Histria, Forte descreve que o xodo acontece quando o
ser humano se pe diante daquele que a inaudita novidade para o mundo: o livre e
gratuito oferecimento do Eterno. Assim, o advento do Deus vivo visita o xodo da
condio histrica e o abre na f e na esperana a um sentido possvel e sempre
novo: o amor.24 Tal movimento condicionado pela limitao humana, pelo mal e
pela morte, mas no cessa de provocar no ser que vive essa condio exodal: o
dinamismo da busca e da esperana. Se de um lado o ser humano se afronta com a
angstia, a ausncia e as interrogaes da existncia; por outro, possvel abrir-se
quele sempre disponvel, ao sempre espervel, quele que sempre maior. O
xodo exprime, em ltima anlise, o carter peregrino do ser humano.
A autotranscendncia do ser finito no pode acontecer seno em conexo
com um lugar determinado e a um evento concreto no qual a abertura do corao
humano se d de forma excelente. Lugar do encontro com o Mistrio onde a
existncia como xodo se disponha escuta de um possvel advento do Outro no
horizonte do tempo.25 assim que a abertura transcendental do ser humano
encontra na Palavra da revelao o seu cumprimento possvel e adequado. De fato,
na escuta da palavra, carregada de silncio, porque invocativa da realidade que a
comunica e que sempre a transcende, o homem abre-se livremente livre
autocomunicao de Deus.26
23 FORTE, B. Teologia della Storia, p. 166. 24 Ibidem, p. 6. 25 FORTE, B. La Parola della Fede, p. 15. 26 Ibidem, p. 15.
21
1.1.2 A Dialtica do xodo
A categoria xodo na obra de Bruno Forte est intimamente relacionada com
as categorias advento e encontro. Particularmente, a categoria xodo, entendida
como sair de si em busca do sentido e do horizonte ltimo da existncia, est
determinada pelo advento da Palavra e do Silncio de Deus. Aqui, Forte afirma a
assimetria e a dialtica existente entre os dois movimentos:
A relao que a f afirma entre o mundo do sujeito histrico e o da Alteridade absoluta entrada na histria, igualmente assimtrica e dialtica. A relao assimtrica porque, se na concepo bblica a identidade se manifesta como xodo humano, a diferena apresenta-se como advento divino. Entre os dois plos no h medida comum, nem de proporcionalidade: nenhuma proporo do finito com o infinito. O Deus que vem incomensuravelmente Outro e soberano a respeito do homem que e permanece criatura.27
Abrir-se ao advento , para o ser humano, a possibilidade de encontrar o
sentido e a liberdade diante da existncia histrica, marcada pela angstia do
sofrimento, da morte e do nada. No livre acolhimento do Eterno, o ser humano
depara-se com Aquele que a fonte, o caminho e o prprio fim da liberdade, sem o
qual nem mesmo a existncia seria possvel, quanto mais a liberdade e o prprio
peregrinar. Abrir-se ao Infinito da Palavra e do Silncio corresponde a estar diante
do escndalo da impossvel possibilidade do Eterno28 assumir e habitar a histria
da humanidade, vindo ao encontro de seu xodo.
Se, biblicamente, o ser humano compreendido como sujeito ativo da aliana
com Deus, isto se d no reconhecimento da liberdade e aqui aparece o xodo
como caminho de liberdade. Perante Deus e com Ele, o ser humano decide pr-se,
ou no, no horizonte do tempo e da eternidade atravs da f:
O horizonte dos arqutipos e da repetio foi pela primeira vez superado pelo judeu-cristianismo, que introduziu na experincia religiosa uma nova categoria: a f... A f significa a emancipao
27 FORTE, B. La Eternit nel Tempo, p. 28. 28 Ibidem, p. 28.
22
absoluta de toda espcie de lei natural e, portanto, a mais alta liberdade que o homem possa imaginar: a de poder intervir sobre o mesmo estado ontolgico do universo... Somente tal liberdade capaz de proteger o homem moderno do terror da histria: liberdade que tem a sua fonte, encontra a sua garantia e o seu apoio em Deus. Toda outra liberdade moderna, por quantas satisfaes possa dar a quem a possui, no justifica a histria, e isso, para cada homem sincero consigo mesmo, equivale ao terror da histria.29
Enquanto Palavra e Divino Silncio que entram na histria, Deus revela-se
empenhado e comprometido com a humanidade. A aliana, assim, passa a ser a
categoria central da f hebraico-crist. O Mistrio da Eternidade no tempo revela o
advento que se cumpre no xodo, abrindo-se possibilidade do encontro oferecido
ao ser humano. Longe de lhe fazer concorrncia, a transcendncia do Deus vivo
representa a possibilidade da preterida liberdade humana. Estabelece-se, dessa
forma, uma relao de identidade e diferena entre xodo e advento. Se para Bruno
Forte o xodo o mundo da temporalidade, o humano andar que se abre ao futuro
e, na f pe-se procura de uma ptria30; o advento , para ele, o mundo da
eternidade enquanto se dirige ao ser humano e visita a sua casa, o livre
autodestinar-se de Deus criatura e o dom gratuito da autocomunicao divina.31 A
relao entre identidade e diferena, revelada entre xodo humano e advento na
aliana, no s assimtrica, pela incondicionada primazia do Eterno, mas,
tambm, dialtica:
Os dois plos xodo e advento no se anulam reciprocamente, como acontece na antropologia do triunfo da identidade ou naquela do domnio do nada, mas se possuem reciprocamente, mesmo na infinita distncia e diferena, conforme um movimento de negao, de afirmao e de superao do tempo na eternidade.32
De um lado, o ser humano, na sua condio de xodo, aberto procura do
sentido e do fundamento, chamado a romper o crculo da identidade absoluta.
29 ELIADE, M. Il Mito dellEterno Ritorno, p. 162. 30 FORTE, B. La Parola della Fede, p. 29. 31 Ibidem, p. 29. 32 FORTE, B. LEternit nel Tempo, p. 29-30.
23
Nisso, o xodo torna-se peregrinao, atravessando o desafio da angstia e do nada
em direo Ptria, entrevista na promessa, j realizada e ainda no possuda
na realidade, pois ainda dever consumar-se plenamente. Aqui a assimetria entre o
humano andar e o divino vir incomensuravelmente maior e determinante. De outro
lado, Bruno Forte vale-se da dialtica hegeliana33 afirmao, negao e superao
estabelecendo a ntima relao entre o humano sair e o divino vir. Na negao de
si, em direo ao Outro, o humano realiza sua vocao e encontra razes para
existir, tornando-se criatura nova, partcipe da vida divina, superando assim a
angstia e a condio finita do nada. No divino vir, a Palavra rompe o Silncio que
permanece Silncio e assume verdadeiramente a vida e a histria humana. Em
sua kenose34, o Verbo esvazia-se de sua condio (cf. Fl 2,7s), negando-se, para
que toda a criatura encontre Nele a salvao, desgnio da Trindade para que Deus
seja tudo em todos (1Cor 15,28).
1.1.3 O xodo como Desafio dos Contextos
Para o telogo italiano, o desafio e a busca pelo sentido so marcados, de um
lado, pelos contextos da histria e da existncia humana: o xodo a existncia
humana (existir estar fora).35 Por outro lado, o xodo deve vislumbrar e
direcionar-se ao inaudito advento da revelao. O desafio da Teologia est na
tentativa de fazer falar a um s tempo o xodo e o advento, no como quem fala s
margens, mas no meio da cidade, isto , na histria concreta, na dramaticidade da
33 Assim afirma Bruno Forte: Com deciso e coragem, Hegel quer pensar a vida, levando palavra o movimento, a contradio, o superamento, que so o sangue quente do nosso existir na histria. Nele, a verdade no contemplao assptica de essncias imutveis e eternas, no um objeto: ela devir perene que afirma, nega e completa, para novamente superar-se a si mesmo. (FORTE, B. Teologia como Companhia, Memria e Profecia, p. 115). 34 O termo kenose, formado pelos Padres gregos a partir do verbo kno, esvaziar (e, portanto, com o pronome reflexivo esvaziar-se de si mesmo), encontra sua origem numa expresso do hino de Filipenses 2,7. A designao de Jesus como Senhor (2,9) precedida nesse contexto de uma seqncia que descreve a humilhao daquele que era de condio divina (2,6). Outrossim vemos tambm que um esquema kentipo intenso est no cerne do sistema hegeliano: a Idia absoluta se esvazia como Verbo. Foi ele Hegel que fundou, em filosofia, o vocbulo Entusserung que traduz kenose na Bblia de Lutero. (cf. BRITO, E. Kenose. In: LACOSTE Jean-Yves. Dicionrio Crtico de Teologia, p. 983, 985). 35 FORTE, B. Teologia como Companhia, Memria e Profecia, p. 13.
24
existncia humana.36 Nele, a Palavra vem preencher e perturbar o comodismo, o
silncio e a apatia humana. assim que, entre xodo e advento, a Teologia vem a
se propor como palavra no s margens, mas no meio da cidade: verdadeiramente
algum se torna telogo vivendo, ou melhor, morrendo e tomando posies.37
O pensamento teolgico, entre xodo e advento, quer ser um interrogar-se
sobre o significado que Deus e o ser humano tm um para o outro, a partir da boa-
nova revelada e da concretude do tempo real. De fato, enquanto a Teologia
linguagem reflexiva sobre a f, ela realiza seu verdadeiro sentido e misso no
encontro entre o viver humano e a Palavra de Deus. De um lado, a Palavra do
advento se expressa na condescendncia de Deus com relao ao homem
segundo o esprito dos Padres gregos.38 De outro, o xodo manifesta-se na
nostalgia do Totalmente Outro que existe no corao humano.39 assim que, entre
o humano sair e o divino vir, desenvolve-se o itinerrio da teologia do xodo em
direo ao advento na obra de Bruno Forte.
1.2 O xodo nos Cenrios do Tempo
Bruno Forte empreende sua reflexo sobre a histria recente pesquisando
nela a busca pelo sentido do ser e do existir. Partir da histria partir da concretude 36 Bruno Forte cita repetidas vezes o filsofo Dietrich Bonhoeffer para explicitar a dramaticidade da condio humana, do falar de Deus e com Deus: As pessoas religiosas falam de Deus quando a conscincia humana chegou ao limite (talvez por preguia de pensar) ou quando falham as foras humanas...; mas este sistema funciona apenas at quando os homens conseguem com suas energias lanar adiante os limites e Deus se torna suprfluo como deus ex machina... Eu gostaria de falar de Deus no nos limites, mas no centro, no na debilidade, mas na fora, no na morte e na culpa, mas na vida e na bondade do homem... A Igreja no reside onde a capacidade do homem nada mais pode, nos limites, e sim no meio da cidade. (BONHOEFFER, D. Resistncia e Submisso, p. 132). Dietrich Bonhoeffer (1906-1945) foi telogo luterano, oriundo da culta burguesia alem. Em 1931, Bonhoeffer foi nomeado capelo universitrio de Berlim. Nos debates provocados no seio das Igrejas protestantes pela tomada do poder por Hitler em 1933, Bonhoeffer se distanciou vigorosamente do movimento dos cristos alemes e do regime social-nacionalista. Sua participao na resistncia anti-hitleriana lhe trouxe a seguir novas experincias profanas, s quais deveria dar forma em uma tica que ficou inacabada. Detido em abril de 1943, pde, graas complacncia de certos guardas, manter uma correspondncia teolgica no censurada com seu amigo E. Bethge, que publicar suas cartas em 1951, sob o ttulo Resistncia e Submisso. Pouco antes do fim da guerra, foi enforcado no campo de concentrao de Flossenbrg. Sua despedida foi marcada pelo pensamento: o fim, e para mim, o comeo de uma nova vida. (Cf. SHARFFENOTH, Ernest-Albert. Bonhoeffer. In: LACOSTE, Jean-Yves. Dicionrio Crtico de Teologia, p. 320). 37 FORTE, B. Teologia como Companhia, Memria e Profecia, p. 13. 38 Ibidem, p. 12. 39 Ibidem, p. 12.
25
do ser que, mesmo s apalpadelas, procura o sentido da prpria existncia. O
telogo italiano destaca dois momentos histricos, ao mesmo tempo filosficos, que
so paradigmticos: primeiro, a modernidade e o Iluminismo, perodo em que o
idealismo de Hegel aparece como chave de leitura; e a ps-modernidade, passando
pela dialtica do Iluminismo, onde F. Nietzsche e a morte de Deus so os
smbolos. A esses cenrios do tempo, correspondem tambm diferentes
antropologias que assim so definidas por Bruno Forte: a antropologia do domnio
da identidade, caracterstica da ideologia moderna; a antropologia da diferena
irredimvel, caracterstica do niilismo ps-moderno e a antropologia da Eternidade
no tempo, caracterstica de um novo humanismo cristo.40 Outrossim, entender o
ser humano e sua histria corresponde a vislumbrar tambm para onde aponta seu
horizonte de sentido.
1.2.1 A Modernidade e os Totalitarismos: da Luz ao Declnio...
No primeiro cenrio, Bruno Forte denuncia o pensamento hegeliano, em sua
pretenso de aprisionar e esgotar o Mistrio de Deus nos limites do conceito.
mrito de Hegel ter reduzido totalmente o devir na mente e nas mos do ser
humano, libertando o sujeito histrico de toda dimenso transcendente e
responsabilizando-o at o fim como nico artfice do prprio destino. O totalitarismo
da ideologia , segundo Bruno Forte, o resultado final do sistema elaborado por
Hegel, promovendo o triunfo do sujeito e do ato da razo em todas as frentes. Com a
pretenso de dar sentido a tudo, os totalitarismos histricos acabaram aprisionando
a reflexo e sufocando as diferenas. A racionalidade ideolgica fez o mundo
mergulhar num contexto onde a realidade deve se dobrar diante do poder
onipresente do conceito41, engendrado pelas ideologias totalitaristas. A metfora da
luz revela o princpio inspirador da modernidade que tem na razo emancipada a
ambiciosa pretenso de compreender e dominar tudo.
40 Cf. FORTE, B. Para onde vai o Cristianismo? p. 99s. 41 Ibidem, p. 14.
26
A emancipao uma espcie de palavra-chave, capaz de identificar toda a poca que est sob o signo do Iluminismo: ela exprime o projeto caracterstico da razo moderna de tornar o homem finalmente adulto, livre de hipotecas ultramundanas, capaz de querer e ser sujeito da prpria histria. Como tal, ela significa o processo de auto-libertao e de auto-afirmao do homem, quer considerado individualmente numa espcie de triunfo da subjetividade, quer entendido coletivamente como dinamismos histricos de mudana revolucionria. A emancipao projeto de fundo, a nsia e a meta cobiada da modernidade.42
O projeto emancipatrio do ser humano a base do Iluminismo em todas as
suas expresses. o que Bruno Forte define como antropologia do domnio da
identidade.43 Seu objetivo no seno compreender o mundo e suas relaes de
forma racional, concedendo ao ser humano a plena liberdade, tornando-o senhor e
protagonista do prprio futuro e alheio a qualquer possvel dependncia.44 A razo
adulta e emancipada de todo condicionamento , ao mesmo tempo, protagonista e
meta do modernismo. Ela , em poucas palavras, o horizonte de sentido a ser
alcanado. Desde Descartes, na exaltao e primazia do sujeito que pensa,
passando pelo chamado sculo das Luzes, at o desencadear da Revoluo
Francesa e da ousada sistematizao especulativa do sistema hegeliano, a razo
tende a abraar toda a realidade da histria e do mundo. Tudo deve ser reduzido s
normas e medidas da razo, de tal forma que tudo que se ope emancipao, ou
no seja iluminado clara luz da compreenso racional, seja rejeitado. Somente
assim, pode tomar corpo o projeto prtico de fazer do ser humano o nico sujeito do
evoluir histrico.
A pretenso de encontrar em si mesmo o sentido do ser e da histria, acabou
por desviar o ser humano de seu caminho, fazendo-o refm do prprio desejo
libertador. Por querer abraar e compreender toda a realidade, a razo moderna
postula a sede de totalidade que a torna conseqentemente violenta. Essa
antropologia da identidade absoluta, em sua pretenso de tudo explicar e mudar o
mundo atravs da razo totalizante, acaba desencadeando um verdadeiro reverso 42 FORTE, B. Para onde vai o Cristianismo? p. 81. 43 Ibidem, p. 99. 44 Desde que houve o sol no firmamento e os planetas comearam a girar ao redor, jamais se havia visto que o homem se punha ereto e de cabea erguida, ou seja, sobre o pensamento e construa a realidade segundo este ltimo... Somente agora o homem foi capaz de compreender que o pensamento deve reger toda a realidade do esprito. E esta uma aurora preciosa. (HEGEL, F. Lezioni sulla Filosofia della Storia, p. 204).
27
tico. assim que a modernidade, tempo do sonho emancipatrio, torna-se tambm
o tempo das vises totais do mundo. As ideologias surgem como tentativa de impor
a luz da razo realidade inteira, at o ponto de estabelecer a equao entre o ideal
e o real. A pretenso de abarcar o entendimento da realidade, da histria e do ser
humano atravs dessas vises totais, no tardar em converter-se nos
totalitarismos. Por sua vez, esses totalitarismos passam a fazer da histria uma
realidade dura e violenta. De fato, o sonho da emancipao esbarra na inaudita
violncia que a poca da emancipao produziu. Os sinais mais evidentes podem
ser vistos nas guerras, nas limpezas tnicas, nos tantos genocdios do sculo
passado e deste sculo tambm, do terrorismo, at o drama das gritantes
desigualdades e a prpria fome que cada dia extermina milhares de vidas no mundo.
O desenvolvimento da modernidade ocidental constitutivamente ambguo.
De um lado, ela abraa os sonhos e os projetos de emancipao que visam tornar o
ser humano sujeito e no objeto da prpria histria. Nesse sentido, delineiam-se
importantes iniciativas pela emancipao dos povos explorados, passando pela
libertao e valorizao das minorias tnicas, das classes e raas oprimidas at a
emancipao da mulher. A modernidade iluminada produziu conquistas decisivas e
representou expectativas de grande valia. Porm, o perodo a partir do Iluminismo
tambm marcado pela violncia ideolgica praticada pelos diversos totalitarismos
histricos. Se o projeto de emancipao demonstrou ser positivo em muitos
aspectos, no entanto produziu tambm efeitos devastadores:
O sonho de totalidade se faz inexoravelmente totalitrio: a totalidade assim como compreendida pela razo produz totalitarismo. No por acaso, nem por um simples acidente de percurso, todas as aventuras da ideologia moderna, tanto de direita como de esquerda, desde a ideologia burguesa como a revolucionria, vo desembocar em formas totalitrias e violentas. E precisamente a experincia histrica da violncia dos totalitarismos ideolgicos que produz a crise e o ocaso das pretenses da razo moderna.45
A parbola das ideologias modernas, com todas as suas presunes,
evidenciar uma assustadora cadeia de conseqncias desastrosas, tanto em
45 FORTE, B. A Essncia do Cristianismo, p. 15.
28
termos humanos como sociais e ecolgicos. A dialtica do Iluminismo surge, ento,
como reao s presunes totalizantes da razo, como denncia dos limites e das
pretenses da razo emancipante.
1.2.2 Do Declnio Noite do Mundo: o xodo carente de Advento
A dialtica do Iluminismo e a conseqente crise da razo iluminada que na
Europa se manifestou com a falncia dos vrios totalitarismos ideolgicos d lugar,
nas culturas do Ocidente, chamada ps-modernidade.46 Diante das certezas das
ideologias, ela aparece como reao violncia totalizadora da idia e das
presunes absolutistas. Afinal, onde esto os novos cus e a nova terra que os
relatos ideolgicos tinham prometido? O drama com o qual se encerra o sculo XX
um drama moral, uma crise de sentido, um vazio de esperana. Se para a razo
moderna e as pretenses ideolgicas tudo tinha sentido, para o pensamento fraco
da condio ps-moderna nada mais parece ter sentido: tempo de naufrgio e de
queda; a indiferena substitui a paixo ideolgica. A crise de sentido torna-se a
caracterstica peculiar da inquietude ps-moderna. Neste tempo, o que triunfa a
indiferena, a perda do gosto em procurar as razes ltimas do viver e do morrer.
Perfila-se, deste modo, o extremo rosto do sculo que chega ao fim. Corresponde a
uma antropologia que Bruno Forte define como da diferena irredimvel 47: o rosto
do niilismo.
46 Aps algumas ocorrncias espordicas, a histria do termo ps-modernidade comea com a nova crtica americana, que o tomou de emprstimo a Arnold Toynbee (1889-1975), no final dos ano 1960 (S. Maier 1989). Tinha, ento, um sentido pejorativo e designava o abandono do agir prprio verdadeira modernidade. Mas, seduzidos pela fuso da modernidade e do veio popular que encontravam em certas obras literrias, Leslie A. Fiedler e Susan Sontag lhe deram logo um sentido positivo. Hassan (1980) aplicou o termo para a cultura em geral: para ele, as idias que foram de vanguarda so hoje recuperadas por uma sociedade em que reinam a publicidade e os mass media, e em que o equvoco e a transgresso se tornam, assim, de uso corrente. Para Lyotard (1979), na poca ps-moderna a verdade dos diferentes jogos de linguagem, adquire um estatuto plural. A ps-modernidade niilista, onde no existe verdade objetiva tanto quanto no existe unidade do sujeito. Apesar de sua ambigidade, o termo ps-modernidade pode designar trs fenmenos recentes. O primeiro a passagem, no domnio esttico, da abstrao e da evocao da verdade subjetiva ao uso irnico de modos mais antigos de narrao e de representao. O segundo a combinao de procedimentos de vanguarda e de manipulao comercial das imagens. O terceiro a passagem, no domnio filosfico, de uma teoria do conhecimento que supe que haja um sujeito e um objeto reconhecveis a uma filosofia do evento, em que se mesclam aspectos objetivos e subjetivos. (Cf. MILBANK, John. Ps Modernidade. In: LACOSTE, Jean-Yves. Dicionrio Crtico de Teologia, p. 1412). 47 FORTE, B. Para onde vai o Cristianismo? p. 101.
29
O niilismo no o abandono dos valores ou a renncia a viver alguma coisa
pela qual valha a pena, mas um processo mais sutil. Ele priva o ser humano do
gosto de se empenhar por uma razo mais alta, despojando-o daquelas motivaes
fortes que a ideologia ainda parecia oferecer. Segundo Forte, a doena que hoje
mais se alastra a falta de paixo pela verdade. Cresce o imediatamente desfrutvel
e calculvel, o interesse pelo consumo imediato. o triunfo da mscara, em
detrimento da verdade. At os prprios valores so, muitas vezes, reduzidos mera
roupagem que se exibe para esconder a ausncia de sentido. rfo das ideologias,
o ser humano corre o risco de tornar-se mais frgil e sujeito tentao de fechar-se
na solido do prprio egosmo. Isso corresponde ausncia daquela vontade e do
desejo de procurar o sentido da vida e da morte. As sociedades ps-modernas esto
se tornando sempre mais multides solitrias, onde cada um cuida de seu prprio
interesse, segundo uma lgica exclusivamente egosta e instrumental. Diante do
vazio do sentido ltimo, a pessoa se agarra ao interesse penltimo, conquista da
posse imediata.
No clima da decadncia, tudo conspira a levar os homens a no pensar mais, a fugir da fadiga e da paixo do verdadeiro, para abandonar-se ao imediatamente fluvel, calculvel, s com o interesse do consumo imediato. o triunfo da mscara em prejuzo da verdade: o niilismo da renncia a amar, onde os homens fogem da dor infinita da evidncia do nada, fabricando-se mscaras, atrs das quais se d a tragicidade do vazio.48
O niilismo uma espcie de xodo sem advento. essa a razo do triunfo do
consumismo escancarado, do hedonismo e do imediatamente desfrutvel; tambm
este o motivo do emergir e do afirmar-se das lgicas sectrias, tnicas e
nacionalistas que se difundiram no fim do milnio. Quando algum no tem
horizontes grandiosos de verdade, facilmente se afoga na solido egosta daquilo
que lhe particular e penltimo. Justamente esse processo mostra a necessidade
de um pai-me comum que liberte da priso da solido, que oferea um horizonte
pelo qual se possa esperar e amar. No se trata de um horizonte violento como o da
ideologia, mas um horizonte libertador para todos. 48 FORTE, B. La Riconciliazone, dono di Dio e sorgente di vita nuova. Presenza Pastorale, v. 67, p. 20, 1997/5.
30
Se na ideologia tudo fazia sentido, no pensamento fraco da condio ps-
moderna nada mais parece ter sentido. Vivemos uma verdadeira era do vazio49,
onde esmorece a paixo pela verdade. As motivaes fortes e coletivas da
humanidade, que ilusoriamente as ideologias pareciam oferecer, cederam lugar ao
imediatamente til e conveniente s particularidades subjetivas e difusas.
antropologia da presuno das ideologias ope-se, agora, uma antropologia da
contaminao com ausncia de valor. O todo, abarcado pela razo ideolgica, cai
agora no domnio absoluto do nada. violncia induzida pelo totalitarismo,
corresponde a trgica solido do ser humano, incapaz de comunicar-se e de amar
de modo verdadeiro e autntico. Para o telogo italiano, a ps-modernidade revela o
extremo rosto da crise: o rosto da decadncia.50 A decadncia priva a pessoa da
paixo pela verdade, despoja-a da busca pelo sentido ltimo, afirma nica e
exclusivamente a fragilidade e a imediatez do penltimo:
o triunfo da mscara em detrimento da verdade, a cujo servio e com tanta freqncia trabalham os persuasores ocultos da civilizao da multimdia que foi se impondo com impressionante acelerao nos ltimos decnios do sculo. A cultura forte, expresso da ideologia, deu origem s culturas fracas, s multido das solides em que a penria de esperanas amplas dobra cada um no curto horizonte do pormenor. As razes de viver e de viver juntos so substitudas pela reivindicao do imediatamente til e conveniente: os conflitos tnicos e a emergncia de particularismos muitas vezes absurdos e caprichosos neste fim de sculo so uma difusa prova disso.51
49 sugestivo o ttulo, bem como a obra de LIPOVETSKY, G. A Era do Vazio: Ensaio sobre o Individualismo Contemporneo. Relgio DAgua: Lisboa, 1983. 50 Bruno Forte pe-se em continuidade com a reflexo de Bonhoeffer que assim escreve, refletindo sobre o drama da conscincia ps-moderna: No havendo nada durvel, enfraquece o fundamento da vida histrica, ou seja, a confiana, em todas as suas formas. E por no haver confiana na verdade ela substituda pelos sofismas da propaganda. Faltando a confiana na justia, declara-se justo o que convm... essa a situao de nosso tempo, que um tempo de autntica decadncia. (BONHOEFFER, D. tica, p. 64). 51 FORTE, B. La Trinit, Fonte di ispirazione per la Comunit dei Popoli Europei. Il Nuovo Areopago, v.18, p. 27, 1999/3.
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1.2.3 Procura do Outro: da Noite do Mundo Aurora
Perfilam-se alguns sinais de expectativa e de esperana. H uma nostalgia
que se deixa reconhecer nas inquietaes do presente, como uma espcie de
procura pelo sentido perdido. No se trata, porm, de um saudosismo simples e
imediato. Trata-se do esforo em resgatar o sentido para alm do naufrgio, a fim de
reconhecer o horizonte ltimo em vista do qual se possa avaliar o caminho, o que
penltimo, fundamentando assim, eticamente, a prxis. A essa esperana Bruno
Forte define como a aurora de uma antropologia da Eternidade no tempo52. Ela
corresponde redescoberta do sentido do senhorio de Deus sobre a histria e da
sua absoluta transcendncia, opondo-se a toda absolutizao indevida das
possibilidades do ser humano. Essa concepo contrape-se ao advento do
atesmo. assim que o mundo fechado da razo totalizadora abre-se s surpresas
do Totalmente Outro que advm, e arma sua tenda entre os seres humanos. Graas
ao dom da revelao, que se realiza atravs de eventos e palavras intimamente
ligadas, o advento vem habitar no tempo do xodo e o manifesta como capaz de
uma aliana. A verdadeira consistncia da criatura est na sua existncia, isto , no
estar fora, no abrir-se ao Outro e em hosped-lo em si. a realizao do xodo
humano.
De um lado, Deus parece uma idia insensata diante do humano feito adulto e
emancipado: vive-se em um mundo sem Deus, o que nem sempre corresponde
negao de Deus ou oposio contra Deus, mas um gradual processo de
indiferena. De outro lado, aflora no corao humano a nostalgia do Totalmente
Outro. Evidentemente, tanto esse processo de emancipao, quanto a prpria volta
ao sagrado, mostraram e ainda mostram suas ambigidades. No obstante
indiferena, a busca religiosa muitas vezes se faz ao gosto do mercado. Pseudo-
religies pregam uma espiritualidade difusa e subjetivista, que satisfaz as
necessidades do imediato egosmo, vazio de sentido.53 Mas h uma saudade do
52 Cf. FORTE, B. Para onde vai o Cristianismo? p. 103. 53 No momento em que o crescimento econmico se esgota, o desenvolvimento psquico reveza-o; no momento em que a informao se substitui produo, o consumo da conscincia se torna uma nova bulimia: ioga, psicanlise, expresso corporal, zen, terapia piramidal, dinmica de grupo, meditao transcendental... Canalizando as paixes no sentido do Eu, promovido assim categoria de umbigo do mundo, a terapia psi, ainda que colorida de corporeidade e de filosofia oriental, gera uma figura indita de Narciso. (LIPOVETSKY, G. A Era do Vazio, p. 52).
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amor e da beleza, um desejo de esperana e de justia a se realizar: o homem
secular no encontra Deus nas experincias limitadas, mas no limite de toda
experincia, quando percebe a priso do imanente, do semelhante, do interesse
penltimo, e comea a ter sede de uma palavra que rompe o silncio da morte, e
sustente, na esperana, a luta de hoje.54
A indiferena ao Mistrio divino, a afirmao absoluta do finito e do dado
imediato no conseguiram abafar a nostalgia do Infinito inscrita no corao humano.
Podemos dizer, ento, que a experincia da ausncia de Deus, fruto do desejo
emancipador do ser humano, pode ser caminho para uma redescoberta da prpria
dignidade, de novos ideais e sentido para a prpria existncia. Se o cenrio do
tempo contempla um estado de frustrao e descrdito, de perda do rumo e direo
do caminho a percorrer, o cenrio do corao, no vazio do individualismo e da falta
de sentido, tambm lugar da escuta do divino, da busca e do retorno ao sagrado
como horizonte unificador da vida e da existncia humana. preciso oferecer s
conscincias caminhos para que a vida e a histria possam redescobrir seu sentido.
Para negar a frustrao, ser preciso optar pela verdade. As verdadeiras
perguntas do corao humano encontram-se no rosto escondido e revelado Daquele
que o pai-me no amor, sentido da vida e da esperana do mundo. Na pergunta
que cada pessoa se faz, no mais profundo do corao, toma consistncia a nostalgia
da imagem do pai-me no amor. Para o telogo italiano, essa imagem metafrica diz
respeito necessidade de cada pessoa confiar sem reservas, de ter um porto
seguro onde possa fazer repousar o cansao e o sofrer, na certeza de no ser
lanada no abismo do nada. Delineiam-se, assim, os cenrios do corao humano.
1.3 Cenrios do Corao: da Tragicidade da Existncia Esperana
O ser humano essencialmente inquieto na busca pelo sentido do ser e do
existir, do fazer e do no-fazer, do viver e do morrer. A prpria histria tambm
parece estar sob os encalos da dor, manifestada nos conflitos, guerras entre povos,
raas e classes. A dor verdadeiramente a categoria universal do ser humano, quer
seja a dor fsica da doena, da fome, da violncia, a dor moral da falta de amor, do 54 FORTE, B. Jesus de Nazar, Histria de Deus, Deus da Histria, p. 16.
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abandono, ou mesmo, a dor social da excluso que aliena milhes de pessoas das
dignas condies de sobrevivncia. Frente dor e morte como aparente caminhar
e finitude trgicos da vida humana, a existncia caracterizada pelo xodo, revela que
o homem nostalgia de plenitude; enquanto um ser para o mistrio (K. Rahner),
o seu corao permanece insatisfeito diante de toda oferta parcial.55 Em tudo isso, a
pergunta sobre a dor e a morte caminho que propicia a abertura da vida como
xodo em direo ao sentido ltimo do ser e do existir.
1.3.1 A Interrogao sobre a Dor e a Morte
Basta um olhar sobre a vida humana e logo se revela a precariedade do
existir, donde nasce a angstia e a certeza. A morte o grande limite do ser e do
existir da pessoa. De fato, a vida no est seno misturada dor e angstia da
condio finita da existncia. Nisso a grande pergunta, sobre a qual recai a verdade
de cada interrogao, a questo da dor:
Se no houvesse a morte, no haveria tampouco o pensamento, tudo seria uma montona eternidade, ao menos para nossa limitada capacidade de pensar: neste sentido, viver tambm aprender a morrer, educar-se para conviver com o silencioso, resistente e persistente desafio da morte.56
A vida humana parece, de fato, estar lanada no abismo da angstia,
condenada tragicidade do nada. Por que tudo isso? Por que a dor? E, sobretudo,
por que a dor inocente? o problema de J, a eterna questo que desde o peso da
morte eleva-se para a ansiada plenitude da vida.57 A interrogao sobre o
sofrimento tem uma inevitvel e quase certa direo: Se Deus existe, por que o
sofrimento? O que significa sua ausncia e silncio diante do sofrimento do mundo e
especialmente do sofrimento inocente?
55 FORTE, B. Teologia como Companhia, Memria e Profecia, p. 38. 56 Idem. Escuta do Outro, p. 7. 57 Idem. Teologia como Companhia, Memria e Profecia, p. 38.
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Alm da espada e da fome, existe uma tragdia maior, aquela do silncio de Deus, que no se revela mais e parece estar fechado em seu cu, como que desgostoso do agir da humanidade. As perguntas a ele dirigidas tornam-se tensas (...). Se o povo se converter e retornar ao Senhor, tambm Deus mostrar-se- disposto a ir ao seu encontro para abra-lo.58
Diante das grandes barbries humanas, de ontem e de hoje, nem as falsas
esperanas ideolgicas da modernidade, nem mesmo o vazio trgico do niilismo
ps-moderno que, como num xodo sem advento, renuncia ao prprio desejo de
perguntar entregando-se a superficialidade do imediato, podem dar sentido ou
mesmo respostas sobre a dor. Se, de um lado, a voz atia diante do sofrimento
parece proclamar o fim da esperana derradeira, de outro, isso no significa seno
a morte de um Deus sem corao, do Deus dos piedosos e dos justos seguros de
seus prprios direitos perante ele convencidos da justia da dor no mundo.59 Ao
lado do inocente que morre, junta-se a cruz de Cristo. O Deus da cruz faz-se
compassivo com as dores humanas, no como quem longnquo e estranho. o
Deus que, segundo Forte, fez sua a dor do mundo para dar-lhe sentido e consolo.
O evangelho da cruz no esvazia o valor da condio de xodo em que se acha o homem: entrando na vida dos homens, o Filho faz sua a sada deles da morte, at o ltimo e doloroso xodo da paixo. Igualmente, o evangelho da cruz no enfraquece o sentido do advento: Deus continua Deus, at sujando as mos na histria do vencidos e dos sem Deus, que ele faz sua e a redime, a fim de que os que esto longe se tornem vizinhos e seja anunciada a boa-nova aos prisioneiros.60
Bruno Forte no pretende solucionar o mistrio do mal e da morte. A prpria
existncia humana, vivida como xodo e advento, capaz de transformar a pergunta
sobre a morte em inaudita certeza de que a proximidade divina aos sofredores,
atravs da companhia do Crucificado, pode transformar a dor em amor, o desespero
em esperana, a renncia em empenho, a histria do sofrimento em histria de amor
58 JOO PAULO II, Audincia Geral, quarta-feira, 11 de dezembro de 2002. Apud FORTE, B. Guerra e Silncio de Deus, p. 5. 59 FORTE, B. Teologia como Companhia, Memria e Profecia, p. 40. 60 Ibidem, p. 41.
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para o mundo. Nisso, a razo e o sentido do existir no so renncia nem atalho,
mas companhia de Deus no caminho da existncia.
1.3.2 Seres para a Vida
Para o nosso telogo, a pergunta que habita no fundo de nosso corao,
aquela que nos torna inquietos e pensativos, a interpelao da infinita dor do
mundo, a pergunta inevitvel sobre a morte e sobre o fim de tudo.61 A
provisoriedade e a fragilidade do ser que sofre e que morre, suscita no homem a
pergunta, desperta a sede de busca, abre o desejo de sentido. Atravs do flagelo da
dor, revela-se no s a precariedade e a debilidade da vida, mas tambm, a vida
que supera a prpria morte. O ser humano instigado a tomar conscincia de no
ser simplesmente lanado na morte e na finitude vazia, mas chamado vida.
assim que da morte move-se o pensar peregrino em direo vida:
A luta contra a morte se perfila nas questes que nascem dentro do corao como feridas lancinantes, muitas vezes de improviso ou inesperadas: O que ser de mim? Que sentido tem a minha vida? Para onde vou com a bagagem dos meus sofrimentos, das consolaes e alegrias? E quando houver, enfim, conquistado o alvo dos meus desejos, o que ainda poderei desejar seno a ltima vitria, a vitria sobre a morte? Justamente o fato de que a morte nos faz pensativos e de que sentimos a necessidade de dar sentido s obras e aos dias, o sinal de que, no mais fundo do corao, os peregrinos da morte so, na realidade, chamados vida.62
O itinerrio do pensar humano se desloca da morte vida como pensar
peregrino, existncia em xodo. As falsas esperanas e o niilismo trgico
constituem, em si, o exlio humano na dor e na tragicidade de uma vida sem meta e
sem sentido. Colocar-se em xodo a perene afirmao de que a morte no tem a
61 FORTE, B. A Essncia do Cristianismo, p. 22. 62 Ibidem, p. 24.
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ltima palavra. De que o ser humano destinado vida; vida que, no encontro com
o advento, adquire significado radicalmente novo.63
De fato, a vida humana enquanto est em xodo, revela-se aberta ao futuro.
Para Forte, o futuro constitui a qualidade do ser, nas palavras de Ernst Bloch.64 Isto
quer dizer que somente o qualitativamente novo rompe o cerco do eterno retorno;
somente o no-evolutivo, o no-programado e o no-programvel quebra o encanto
mortal do no obstante sedutor enlevo da realizao.65 Se o Crucificado
companhia divina nos sofrimentos do mundo, o Ressuscitado esperana
qualitativamente nova do ser humano em direo vida em plenitude: Eu vim para
que todos tenham vida e a tenham a abundncia (Jo 10,10).
1.3.3 Abertos Esperana e ao Amor
O ser humano, no xodo de si, anseia pela Ptria. No aparente triunfo da
morte e da dor, permanentemente provocado, interrogado e atrado ao horizonte
ltimo do sentido. Contra a renncia niilista e o negativismo da dialtica iluminista,
renasce o sentimento e a busca pelo Totalmente Outro atravs da redescoberta do
sagrado. o despertar e a conscincia da necessidade de um horizonte ltimo e de
uma ptria. De formas mais diversas, perfila-se um retorno ao Pai, embora nem
sempre desprovido de ambigidades e at de saudosismo ideolgico. Na realidade,
se a crise da modernidade representou o fim das pretenses absolutistas da razo,
os sinais dessa superao apontam para a redescoberta do Outro, capaz de
oferecer razes para a vida e para a esperana.
A morte suscita o pensamento. Faz refletir sobre a vida e suas possibilidades,
sobre suas razes e seu fim, sobre seu sentido derradeiro: viver tambm aprender
a morrer, a conviver com o desafio silencioso, resistente, perseverante da morte.66
Mesmo num mundo marcado pelo sofrimento, mesmo mergulhados na angstia da
evidncia da morte, no mais fundo do corao toma vulto uma indestrutvel 63 Assim expressa Santo Agostinho: Quando eu estiver inteiramente em Vs, nunca mais haver dor e provao; repleta de Vs por inteiro, minha vida ser verdadeira. (SANTO AGOSTINHO, Confisses, p. 27). 64 Cf. FORTE, B. Jesus de Nazar, Histria de Deus, Deus da Histria, p. 28. 65 FORTE, B. Teologia como Companhia, Memria e Profecia, p. 43. 66 Idem. Deus Pai no Amor quer todos salvos em Cristo, o Filho Amado. Teocomunicao, v. 33, n. 142, dez. 2003, p. 719.
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nostalgia da face de Algum que possa acolher a nossa dor e as nossas lgrimas,
que resgate a infinita dor do tempo.67 Se do fundo do corao humano brotam
questes sobre a vida e a morte, sobre as razes da existncia e seu fim, brota
tambm o desejo de, na aparente vitria da morte, na aparente desiluso em face
aos sofrimentos, sentir a proteo e o consolo que superem o aparente abandono do
nada. Bruno Forte trabalha a metfora do pai-me para expressar o desejo
humano de proteo e consolo. Essa caracterstica tipicamente italiana revela que,
diante da angstia, do desafio da morte e do sofrimento, a figura paterno-materna
representa o descanso do corao humano, o sentido do xodo para a ptria
desejada. No xodo, como sada de si, o ser humano peregrino em direo ao
Totalmente Outro. No obstante, so dois os possveis caminhos: a vida, ou
peregrinao ou antecipao da morte... ou a vida paixo, procura e, por isso,
inquietao, ou deixar-se morrer cada dia um pouco... 68 Voltar a ser peregrinos,
pr-se a caminho ao encontro do Pai: este o desafio de um mundo feito adulto,
extraviado e distante da casa paterna, porm sedento de sua paz.
1.4 O Trplice xodo de Jesus e o Trplice xodo do Discpulo
Com a categoria xodo, Bruno Forte exprime a busca e o caminho em
direo ao horizonte ltimo, no qual o ser humano possa repousar e encontrar o
fundamento do prprio existir. A Teologia deve, assim, dar conta do caminho do ser
humano, peregrino rumo Ptria definitiva que , ao mesmo tempo, a origem e o
fundamento de sua condio exodal. Para a f crist, esse horizonte ltimo, ao qual
anseia o corao humano, o Cristo. Diante do abandono do sentido totalizante e
do emergir de uma nova nostalgia de sentido frente ao vazio da ps-modernidade,
tendo presente as angstias e perguntas do existir frente morte e finitude
humana, a f crist encontra em Jesus Cristo no s o sentido, mas tambm o
caminho de sua condio exodal. Em suas recentes obras, o telogo italiano traa o
trplice xodo que caracteriza a vida do Verbo feito carne:
67 FORTE, B. A Essncia do Cristianismo, p. 24. 68 Idem. Deus Pai no Amor quer todos salvos em Cristo, o Filho Amado. Teocomunicao, v. 33, n. 142, dez. 2003, p. 724.
38
O xodo do Pai (exitus a Deo); o xodo de si mesmo (exitus a se); e o xodo para o Pai (reditus ad Deum). esse trplice xodo que vem quebrar o crculo fechado da razo ideolgica ou do pessimismo niilista e, de modo geral, a priso de um mundo sem Deus: e luz desse xodo que se pode compreender, em toda sua profundidade, a revelao que Jesus faz do Pai e do Esprito Consolador e, portanto, a boa-nova do Deus Trindade, histria eterna do amor que se oferece tambm s outras religies como plena autocomunicao da vida divina.69
O trplice xodo de Jesus o fundamento da busca empreendida pelo ser
humano. No trplice xodo de Jesus, o xodo humano encontra o advento de Deus
que se revela. Ao utilizar o termo xodo, o telogo italiano adota uma linguagem
que se identifica intimamente com o termo advento; categoria que abordaremos no
segundo captulo deste trabalho. Aqui importante ter presente que para Bruno
Forte, assim como o desejo no propriamente o fundamento da realidade, o xodo
humano no propriamente a razo do advento. o advento que, pela sua
misteriosa alteridade, fundamenta, constitui e provoca o xodo humano com a
nostalgia pelo sentido e pelo descanso que inunda sua existncia e seu ser. assim
que o Deus Trino, revelado na histria por meio do Verbo Encarnado Jesus Cristo,
a resposta absoluta nostalgia de Infinito que se manifesta no ser humano.
graas ao advento que a autotranscendncia exodal encontra-se com a
autocomunicao divina. Portanto, o advento o incio, uma vez que a iniciativa do
encontro sempre divina, e fim, enquanto horizonte ltimo. O Deus de todo
testemunho bblico um Deus em xodo de si mesmo, um Deus que encontrou
tempo para o ser humano e, vindo histria, estabeleceu uma aliana com ele.70
69 FORTE, B. A Essncia do Cristianismo, p. 47. 70 Ibidem, p. 49.
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Se Jesus o caminho e ao mesmo tempo o fim das aspiraes humanas,
verdadeiro Deus e verdadeiro Homem71, o trplice xodo de Jesus apresenta-se
como itinerrio e como meta do xodo humano. De fato o mesmo Verbo de Deus,
por Quem todas as coisas foram feitas e se encarnou e habitou na terra dos homens
(cf. Jo 1, 3 e 14), entrou como homem perfeito na histria do mundo, assumindo-a
em Si mesmo e em Si recapitulando todas as coisas (Gaudium et Spes, n. 38).
Jesus caminho, enquanto Homem, j revelado; fim, enquanto Deus. Ele
um na Trindade, que com o Pai e o Esprito Santo constituem a Ptria ainda no
alcanada, somente vislumbrada. O contedo profundo da verdade seja a respeito
de Deus seja da salvao do homem se nos manifesta por meio dessa revelao em
Cristo que ao mesmo tempo mediador e plenitude de toda revelao (Dei Verbum,
n. 2). De fato, mostra-se assim que Jesus eficaz e eficiente, meio e fim. Ele
Caminho que aponta para a Verdade, j realizada nEle mesmo. Vida ainda no
plenamente consumada, mas j nEle realizada. O meio j antecipa o fim, mas
no o esgota. O fim j plenifica o caminho dando-lhe sentido.
Segundo o trplice xodo de Jesus xodo do Pai, de si e para o Pai o
discpulo instigado a viver, na prpria existncia, um trplice xodo ao encontro do
sentido da prpria existncia. Nos passos de Cristo, com Cristo e em Cristo, na fora
do Esprito Santo, deve pr-se, ento, a caminho da Ptria.
71 Partindo do Prlogo de Joo (Jo 1,1-5.14), Bruno Forte assim se expressa: Os dois plos dessa relao paradoxal so o Verbo (ho logos) e a carne (sarx): o primeiro a Palavra, que no princpio estava com Deus e era Deus (...). Em virtude desta co-eternidade na distino que ser caracterizada pelo Conclio de Nicia (325) como consubstancialidade do Filho com o Pai (homosion to patri) o Verbo mediador indispensvel do ato criador e o lugar da vida, que brilha como luz para os homens. O outro plo da relao, a carne, nos indica, em sentido oposto, o horizonte concreto deste mundo: aquilo que humano, com sua condio de debilidade e finitude, com sua corporeidade determinada, sujeita aos condicionamentos do espao e do tempo e, portanto, com suas potencialidades limitadas e, no obstante, acentuadamente dramticas, porque capazes de escolher ou rejeitar o Esprito, nico que vivifica. A carne simultaneamente, a humanidade concreta do homem, o mundo com sua caracterstica terrena determinada e finita; numa palavra, o ser histrico com toda a riqueza das relaes que o condicionam e diante das quais capaz de se situar graas sua origem. Se, por um lado, o Verbo indica o sujeito divino do evento da encarnao, com toda a riqueza da sua divindade consubstancial ao Pai e com toda sua especfica distino pessoal em relao a ele, carne, por sua vez, nos evoca o horizonte encorpado da histria, enquanto determina o homem e produzido pelo homem. (FORTE, B. Teologia da Histria, p. 105-106).
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1.4.1 Discpulos do nico
No trplice xodo do discpulo, a expresso discpulos do nico usada por
Bruno Forte para caracterizar o discpulo em xodo para a Ptria. preciso ler a dor
do tempo com todas as suas crises e escutar as angstias do corao humano.
Diante da perda do sentido e da renncia a questionar-se sobre o vazio, os cristos
so chamados a encontrar em Cristo o sentido de suas vidas. Apaixonados pela
verdade, os cristos tornam-se discpulos do nico, do Deus vivo que liberta e
salva, o Deus revelado em Jesus Cristo. A Palavra que se fez carne e que acolhida
na f, faz do discpulo uma pessoa que tudo recebe de Deus, que tem a Deus como
primazia, que tem no encontro com o Outro o horizonte de sentido. Para Bruno Forte
essas razes no esto em ns mesmos ou no horizonte exclusivo deste mundo,
mas fora de ns, no Outro que vem a ns, naquele ltimo horizonte que a f
reconhece como revelado e dado em Cristo.72 Assim, o primado da f revela-se em
Bruno Forte como o primeiro passo no trplice xodo do discpulo, no modelo do
trplice xodo de Jesus. Viver a unio com Deus por Cristo, na fora do Esprito
Santo, viver a memria poderosa do Deus-conosco, abandonar-se sua
verdade e ao seu amor, no seguimento do prprio Jesus que, em seu xodo de
Deus, revela-se verdadeiramente como o autor e o consumador da f (Hb 12,2).
A f a posse antecipada do que se espera, meio de demonstrar as realidades que no se vem (Hb 11,1). Enquanto tal, ela exige completo sair de si para ir ao Outro, xodo sem arrependimento e sem retorno rumo ao Estrangeiro que convida, e tambm aceitao do que ele prope, assentimento s palavras de sua verdade. Crer em Deus o movimento do xodo do corao, entrega de si; crer tudo o que se revela profisso de f, acolhimento expresso e reflexo do mundo que vem do alto nas obras e nos dias dos homens.73
A existncia da f, portanto, um contnuo receber a vida das mos do Pai e,
ao mesmo tempo, uma entrega e um abandono sua verdade. Jesus, saindo de
Deus, jamais cessou de viver no Pai. Portanto, compreende-se que o xodo da f 72 FORTE, B. A Essncia do Cristianismo, p. 109. 73 Idem. Teologia como Companhia, Memria e Profecia, p. 54.
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nos faz livres das sedues da posse e da busca obsessiva das seguranas
humanas.
1.4.2 Servos do Amor
Como servos do Amor, a caridade o segundo passo do xodo do
discpulo. Jesus, no xodo de si, entrega-se totalmente na Cruz. Ele entrega a
prpria vida por amor. Portanto, fazer-se servos por amor o grande passo a ser
dado pelos cristos. Isto se torna ainda mais evidente na nossa poca ps-moderna,
poca de solides e renncia de amar, reflexo do niilismo e da decadncia. Nenhum
discpulo pode furtar-se a, como Cristo, tambm assumir as cruzes da humanidade,
vivendo o xodo de si mesmos sem retorno, seguindo o exemplo Dele, solidrios
especialmente com os mais fracos e os mais pobres dos seus com