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8/10/2019 xtase, Poesia e Dana Em Rumi e Hafiz
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UNIVERSIDADE DE SO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS.
DEPARTAMENTO DE LETRAS ORIENTAIS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ESTUDOS JUDAICOS E RABES
LEANDRA ELENA YUNIS
xtase, poesia e dana em Rm e Hfi
VERSO CORRIGIDA
SO PAULO
2013
8/10/2019 xtase, Poesia e Dana Em Rumi e Hafiz
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LEANDRA ELENA YUNIS
xtase, poesia e dana em Rm e Hfi
VERSO CORRIGIDA
Dissertao apresentada rea de Estudos Judaicos e rabes
do Departamento de Letras Orientais da Faculdade de Filosofia,
Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, para
a obteno do ttulo de Mestre em Letras.
rea de Concentrao: Estudos rabes
Orientador: Michel Sleiman
De acordo:_____________________________
SO PAULO
2013
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Autorizo a reproduo e divulgao total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio
convencional ou eletrnico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte,
conforme Resoluo CoPGr-5401e Lei de Direitos Autorais vigente na presente data.
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AGRADECIMENTOS
Agradeo Cristina Salmistraro, por ter-me feito danar os pssaros de Attar;
Cristina Schafer, por me transmitir as danas persas e seus segredos; a Robyn Friend e
Antony Shay, pelos esclarecimentos e dicas de materiais sobre dana e msica persa; a
Ibrahim Gamard, pelas verses originais em farsi dos poemas de Rm; a James R.
Newell, pelo poemrio de Hfi, a Arman Entezari, pelas aulas de farsi; aos professores
Miguel Attie Filho, Mamede Jaruche, Safa Jubran e Iv Lopes, pelos ensinamentos,
materiais e incentivo; a Marco Lucchesi, por presentear-me com seus livros; s
professoras Adma Muhana e Alice Kiyomi, pelas valiosas crticas e sugestes;
CAPES, pela concesso da bolsa e ao pessoal do Departamento de Letras Orientais da
USP, pela solicitude. Agradeo especialmente ao meu orientador Michel Sleiman pela
confiana, dedicao, entusiasmo e generosidade.
Dedico este trabalho aos meus avs, Hermnia Rodrigues Almorim, Vicente
Coutinho Sacchitiello, Maria Miguel, Luis Yunis, e aos meus pais, Flavia Regina
Coutinho Sacchitiello e Cristian Luis Yunis, pelos dons, amor, apoio, amizade e certa
dose de humor com que cada um, a seu modo, ensinou-me que no devo crer em bruxas,
pero que las hay...E, portanto, aos invisveis que habitam os seres, as pedras, as plantas,
o fogo, o mar, a terra, o cu, as estrelas.
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RESUMO
O xtase mstico costuma ser estudado a partir da anlise de rituais de incorporao,
possesso de espiritos, transe de curanderia e outros processos que no raro envolvem
msica para propiciar estados alterados de conscincia. Considerando que os rituais
sufis integram msica, dana e poesia com propsito exttico, este trabalho aborda a
relao entre a poesia e a dana mstica em Rm e Hfi, propondo uma metodologia
que utiliza noes de linguagem da dana para a anlise de poemas.
Palavras-chave: xtase, dana, poesia, sufismo, literatura persa.
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ABSTRACT
The mystical ecstasy is usually studied from the analysis of rituals of incorporation,
possession of spirits, trance curanderia and other processes that often involve music to
provide altered states of consciousness. Whereas Sufi rituals integrate music, dance and
poetry with purpose ecstatic, this work addresses the relationship between poetry and
mystical dance in Rm and Hfi proposing a methodology that uses notions of dance
language for analyzing poems.
Keywords: ecstasy, dance, poetry, Sufism, Persian literature.
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SUMRIO
INTRODUO...............................................................................................................7
CAPTULO I: Sufismo e cultura persa...........................................................................10
CAPTULO II: Dana e jogo exttico.............................................................................29
CAPTULO III: Poesia persa..........................................................................................49
CAPTULO IV: Versos ldicos......................................................................................64
CONCLUSO...............................................................................................................101
APNDICES.................................................................................................................111
GLOSSRIO: Termos rabes e persas.........................................................................118
BIBLIOGRAFIA...........................................................................................................120
ANEXO.........................................................................................................................128
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INTRODUO
Quem no conhece a prpria essncia e fecha os olhos para essa beleza lunar,Faz o qu com a same o pandeiro?A sam para a unio com o Bem Amado.
Os que se voltam para a qblahtm nela a samdesse mundo e do outro.Que dir este crculo de danarinos que giram e tm dentro de si a prpria kabah!
RM1
O presente trabalho aborda a interao entre elementos da poesia e da dana
persas na produo do xtase mstico; destacando o papel das imagens centrais das
danas persas como elementos significadores da poesia sufi, apresenta uma abordagem
analtica de poemas de Rm(1207-1273) e de Hfi (13251390), que utiliza noes
de linguagem da dana. Com isso, propomos um horizonte interpretativo e
metodolgico que pretende aproximar os campos tericos da poesia e da dana e
verificar como estas se inter-relacionam no mbito especfico da cultura persa e do
sufismo.
Num primeiro olhar, encontramos nas danas tradicionais persas
deslocamentos simtricos e giros que finalizam as frases coreogrficas tal como as
rimas fecham os versos persas, divididos em hemistquios. No entanto, verificamos uma
relao ainda mais profunda entre as imagens poticas e os elementos coreogrficos
com origem mitopotica em comum, que interagem tanto no mbito da construo dosentido potico quanto da significao coreogrfica para promover o xtase.
No capitulo Sufismo e Cultura Persa que abre este estudo, discutem-se algumas
definies da dana exttica e apresentam-se os princpios coreogrficos e musicais
1RM, 1973, p.217-218. Verso nossa da traduo de Eva de Vitray-Meyerovich e Mohammad Mokri.
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relacionados ao xtase na cultura persa, considerando-se que o ritual da audio
caracterstico do giro dervixe e de outras tradies persas, de modo geral tambm
denominadassam, possui forte vnculo com a poesia do renascimento literrio persa.
Hfi e Rm abordaram explicitamente os temas da audio (sam), da dana
(raq) e do xtase (l) em seus poemas, que buscaremos compreender a partir da
perspectiva sufi no capitulo seguinte Dana e Jogo Exttico. Recorremos ali aos tericos
medievais do sufismo que abordaram os fundamentos do processo exttico, destacando
o conceito-chave de imaginao criativa de Ibn Arab (1165-1240), as definies de
audio e corao apresentadas por Alazl (1058-1111) e o uso das faculdades da
alma segundo Ibn Sn(980-1037).
Compreendemos que a poesia e a dana so abarcadas pelos mesmos princpios
ldicos do ritmo e da imaginao, conforme a teoria formulada por Johan Huizinga em
Homo Ludens (1971), e que o xtase compartilhado corresponde catarse na dana.
Apoiados num estudo de Jean Michot sobre a dana exttica, propomos um paralelo
entre os conceitos dos msticos medievais e dos tericos contemporneos, buscando
definir os modos e usos das faculdades anmicas em termos de atitudes ldicas.
sabido que o processo da imaginao na dana exttica encontra paralelo
com a metfora potica persa, pelo uso de imagens em comum e pelo modo similar designificao dinmica. Contudo no possvel verificar isso nos poemas sem antes
explicitar os princpios compositivos da poesia persa e suas particularidades, como
faremos no capitulo Poesia Persa. Como a metfora consiste numa rede de significaes
que utiliza o silogismo para dotar o poema de profundidade interpretativa, adotaremos a
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perspectiva de Paul Ricoeur em Metfora Viva. (2005) para observar o seu carter
discursivo.
No capitulo seguinte Versos Ldicos, analisaremos trs poemas a partir dos
princpios compositivos da poesia persa, observando o modo como as imagens da dana
por eles veiculadas produzem a sensao de movimento corporal. Para isso, seguiremos
o carter cintico das imagens poticas e utilizaremos os elementos coreogrficos como
metforas no verbais do fator movimento no plano da significao do poema. A
metodologia baseia-se na concepo cognitiva de Gibbs (2007).
Por fim, apresentaremos o resultado de nossas investigaes e anlises feitas
nos captulos anteriores e as nossas consideraes finais sobre o intercmbio relativo
mmesisda natureza, representao cultural e significao existencial entre dana e
poesia.
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CAPTULO I: Sufismo e cultura persa
Em nossa ordem o vinho lcitoMas, cipreste, rosa do corpo! Sem tua face, ilcito
Meu ouvido est todo na voz da flauta e na melodia da harpaHFI2
O sufismo, expresso do misticismo islmico, tem o auge de sua visibilidade
nos sculos XI, XII e XIII, perodo que coincide com o surgimento de grandes escritores
persas, como Ferds,Attr, Nizam, Rm, Jm, Sad, com sua poesia mstica repleta
de referncias alquimia e ao zoroastrismo, ao simbolismo platnico-cristo e s
correntes pags, sincretizadas, incorporadas e como que destiladas pelo islamismo
emergente na regio.3 O florescimento dessa tradio potica e mstica ocorre numa
poca de retrocesso religioso com severas censuras e proibies dana e msica por
sua associao ao vinho, prostituio e s prticas mgicas. Como o prprio Coro
surgira em linguagem fortemente potica possvel que, por esse motivo, a poesia no
somente estivesse imune a tais proibies, como fosse altamente estimulada e cultivada
como uma arte de refinamento que refletia erudio e distino social, tal como ocorria
entre os rabes.4
No sculo X, em meio s infindveis discusses legais sobre a licitude da
msica no contexto devocional destaca-se a figura de Alazl, cuja teoria apresentada
2HFI, 1974, azal 46, p.47. Verso nossa da traduo de Wilberforce Clarke.
3Ver CAMARGO, 2002, p. 29.
4Ver SLEIMAN, 2007, p. 23 em diante.
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no captulo oitavo de Revificao das cincias religiosas (Iy ulm addn) 5 teve
grande peso no estabelecimento e regularizao das ordens sufis, que obtiveram
permisso para preservar tradies musicais e coreogrficas em distintas localidades do
isl.6Nesse livro, o autor defende que a msica no incita ao pecado, apenas estimula o
que j existe no corao do ouvinte conforme sua prpria inclinao moral e seus
desejos, sendo a dana mera expresso corporal disso. Ademais, por modos poticos e
musicais apropriados, a audio feita com inteno em Deus confere dana e msica
carter sagrado.7
A despeito das acusaes contra os sufis e suas prticas pouco ortodoxas
que preconizavam a embriaguez espiritual, Alazlafirma ser possvel atingir o xtase
sbrio, sem prejuzo da conscincia. Sutis e variados estados anmicos (l) levam ao
estado de unidade no Ser (wujd), ou unio do homem com Deus, atravs dos seguintes
estgios: a) receber a impresso fsica do som; b) sentir prazer e ouvir com
entendimento o som agradvel; c) aplicar o que se ouve ao sentido interno; d) observar
seu estado e ento desvelar os mltiplos sentidos do verso; e) ultrapassar os variados
significados poticos e atingir o xtase, que acessvel para aquele que mergulhou no
oceano profundo das variedades, passou da praia de estados e tarefas e ocupou a si
5ALAZL, 1901, traduo de Duncan Black McDonald.
6Ver ROBINSON, 2007, p. 31.
7Parece ter havido um grande debate a esse respeito, envolvendo legisladores muulmanos de diversascorrentes. Entre os debatedores esto: As, irmo de Alazl, com o tratado Em defesa da audio ,Ab-Bakr Ibn-Alarab (Sevilha, 1076 Fez, 1148), Amad Ibn-Muammad Alixbl (m. 1253)com oLivro da audio e seus regulamentos , Tj Addn Aarad (Sria - m. 1275) com Condenao aosam, Ibn-Ibrhm Alfirkah (m. 1291)com Levantando o vu na soluo dosame Ibn-Taymiyyah(Iraque, 1263Cairo, 1328). Ver: FARMER, 1929; ROBSON, 1938; ARTHUR, 1991, pp. 43-62; IBNTAYMIYYAH, 1991, traduo para o francs de Jean R. Michot.
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mesmo com a pureza da Unidade, confirmado em absoluta sinceridade. 8 A
embriaguez exttica consiste aqui na contemplao da beleza, atributo da criao
divina. Segundo Alazl, se at os animais possuem propenso natural para a
apreciao esttica, aquele que no se deixa levar pelos estmulos musicais mais bruto
que as bestas, desprovido de simetria e alheio espiritualidade.9
Essa problemtica do xtase mstico retomada com frequncia nos estudos
contemporneos sobre o ritual dasamdos dervixes rodopiantes, que comparado aos
transes de curanderia, possesso ou incorporao de espritos. Na tese Uma Perspectiva
Antropolgica da Epistemologia Sufi, Lena Tatiana Dias Tosta indica que o sam
requer uma abordagem especfica por ser uma forma especial de ikr que utiliza
diferentes recursos meditativos a partir da epistemologia sufi.10
Gisele Guilhon de Camargo, em seu trabalho Sama, etnografia de uma dana
sufi, faz uma descrio detalhada do ritual que se realiza atualmente na ordem Mavlevi
de Konya, onde a prtica do giro foi estabelecida por Rm.11Na introduo, a autora
descreve o estado de xtase provocado pela dana sufi, da seguinte maneira:
No Sama, a ao de girar repetidamente, e por um tempo prolongado, coloca o
danarino em harmonia com o movimento dos astros e do cosmos, produzindo nele
8This is the rank of him who wades the deep sea of varieties and has passed the sh oreland of states andworks, and has occupied himself with the puritiy of the Unity and is confirmed in absolute sincerity.ALAZL, 1901, p. 717. Trata-se de uma provocao que o autor dirige aos proibidores da msica.
9 he who is not moved by them [music and singing] is one who has a lack, declining from symetry, farfrom spirituality, exceeding in coarseness of nature and in rudeness camels and birds, even all beasts, forall feel the influence of measured airs. ALAZL, 1901, p. 219.
10 Ver TOSTA, 2000, p. 58. Ver tambm DURING, 2006, pp. 79-92. O ikr consiste em recitarmentalmente os 99 nomes (atributos) de Deus, conforme a prtica sufi, com foco na respirao e narepetio da imagem simblica que lhes associada.11Ver trecho do ritual em Istambul:http://www.youtube.com/watch?v=S45OJnQp6mI
http://www.youtube.com/watch?v=S45OJnQp6mIhttp://www.youtube.com/watch?v=S45OJnQp6mI8/10/2019 xtase, Poesia e Dana Em Rumi e Hafiz
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uma espcie de transe, ou xtase mstico. Os sufis chamam esse estado de fana
(aniquilamento), a anulao do ser individual. Nesse estado, as caractersticas do
pequeno ser se dissolvem para que o grande Ser possa se manifestar. um estado
ao mesmo tempo de transe e alerta, quando somos capazes de perceber nossa prpria
voz interior, apurando nossa percepo intuitiva. Nesse estado, corpo e mente esto
intensamente ocupados na atividade, as ondas cerebrais esto to sintonizadas com o
ritmo da dana, que o self normal se anula e a mente atinge um estado de ampliao
da conscincia.12
No trecho acima, a alterao da conscincia resultado da repetio do
movimento corporal. Nesse estado a nica coisa que importa a dana, e no o
danarino: ser e ambiente se fundem como na brincadeira infantil, onde a criana se
absorve inteiramente, e numa tal concentrao, que tanto ela como o mundo se
esvanecem.13A dana meditativa implica, portanto, numa transformao ambivalente,
interna e externa, de dissoluo e integrao.
Camargo tambm diferencia osam de outros processos meditativos. Osam
seria uma meditao ativa e participativa em contraposio yoga, na qual a
permanncia na posio (ssana) mxima e a repetio mnima. Novamente ela utiliza
o critrio da repetio para diferenciar contemplao e participao, ainda que tal
oposio no tenha sentido para os sufis, pois, como observou o mestre andalusino Ibn
Arab, a contemplao, a orao ou a unio com Deus pode ocorrer tanto com o corpo
em movimento como com o corpo em repouso.
14
12CAMARGO, pp. 22-23.
13CAMARGO, pp. 23.
14Ver IBN AL-ARABI, 1980, traduo de Ralph Austin; ver tambm ADONIS, 1990, traduo de JosMiguel Puerta Vlchez.
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Quanto ao fenmeno espiritual em si da experincia exttica, Camargo faz uma
interessante comparao entre danas sufis e rituais afrobrasileiros:
Os dervixes acreditam que no contemplando, mas sim participando do rodopio doscus que se pode atingir uma completa unio com a divindade. Encontramos
atividades anlogas na tradio afro-brasileira do Candombl e da Umbanda, que,
assim como os dervixes, tambm giram. Porm h uma diferena substancial entre as
duas tradies: apesar de ambas considerarem o giro, acompanhado de msica e canto,
formas eficazes de orao e meditao, somente na Umbandae no Candombla noo
de incorporao est associada ideia de possesso por espritos; no Sufismoessa
noo totalmente descartada; o que se incorpora, por assim dizer, o barakah
(substrato material e espiritual da vida, que deve ser invocado e percebido durante aprtica), anloga sim, ao ax afro-brasileiro.15
Podemos dizer que a autora diferencia o sufismo das prticas de possesso
espiritual pelos seus objetivos e efeitos; porm, h que se fazer ressalvas a essa
comparao. mais apropriado afirmar que no candombl no se incorporam espritos e
sim entidades divinas atribudas de diferentes poderes e funes (simultaneamente
espirituais e naturais). Quanto ao formato do ritual, se nos batuques afrobrasileiros as
cantigas se adequam ao ritmo,16na msica oriental o inverso: o ritmo que segue a
escala meldica ou a cano que, por sua vez, baseia-se na poesia. E apesar da
descrio detalhada que faz do ritual, com direito a um mapa etnogrfico contendo
partituras e poemas, ela considera o uso da msica e da poesia pelo seu carter
simblico e no funcional, desconsiderando, assim, os elementos que poderiam dar
15 CAMARGO, p. 23.
16As entidades espirituais afrobrasileiras tm pontos ou toques, isto , ritmos, que as caracterizam eservem para invoc-las, e os instrumentos de percusso so dotados de alma com funes rituaisespecficas. Ver SILVA, V. G. e AMARAL, R, 1992. Artigo eletrnico acessado em 02/11/2012:http://www.n-a-u.org/Amaral&Silva1.html
http://www.n-a-u.org/Amaral&Silva1.htmlhttp://www.n-a-u.org/Amaral&Silva1.html8/10/2019 xtase, Poesia e Dana Em Rumi e Hafiz
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pistas do percurso interno que leva ao xtase. 17 Se ambas as tradies tm algo em
comum, talvez no seja o carter giratrio (nem sempre caracterstico das
afrobrasileiras) ou simplesmente rtmico de suas danas (isto, por definio, toda dana
), mas o uso de movimentos especficos que tornam o poder da divindade ( barakahou
ax) efetivamente manifesto.
Em Sentidos do caleidoscpio. Uma leitura mstica a partir de Muhiyyddn
IbnArab, Beatriz Machado tambm descreve a dana exttica da perspectiva sufi como
um lugar de errncia onde ocorre o dilaceramento do ego, transformando suas paixes
na Paixo, isto , no estado de amor e unio com o divino.18O ego considerado um
centro de positividade, de fixidez e de iluso, provavelmente no sentido islmico
atribudo alma em estado primitivo, que consiste na parte demonaca do ser humano.
Porm, a adaptao conceitual, que tambm foi proposta por Camargo, infeliz, pois a
definio de ego no tem paralelo entre os antigos msticos.
Para Machado, o mstico v a relao entre o plano divino e a realidade
sensvel como um caleidoscpio vivo, em que:
o tecido da realidade plstico. A natureza no possui leis; o que h, segundo uma
concepo tipicamente muulmana, so hbitos de Deus, que podem variar a qualquer
momento. O corpo no uma massa estvel, um conjunto de significaes, os
objetos no so coisas, so relaes, a impermanncia constante.19
17 Pesa o fato de que o ritual observado pela pesquisadora seja, como ela mesma sublinha, umaformatao moderna, algo que simplesmente no era assim no tempo de Rm.
18Ver MACHADO, 2000, p. 61 em diante.
19MACHADO, p. 77.
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O corpo se define como conjunto de significaes submetidas ao campo da
transitoriedade, e a dana mstica seria a via do autoconhecimento que consiste na
experincia direta do caminho a Deus, sem interferncias nem mediaes. A
representao corporal disso se d pelo uso simblico de eixos espaciais e direes do
corpo,20no qual o sagrado representado pela combinao do eixo vertical com o fator
peso. Esse simbolismo tambm foi assinalado por Camargo; entretanto, em Machado
ele se define somente a partir da perspectiva islmica.
Lorenzo Macagno, professor do departamento de antropologia da Universidade
Federal do Paran, um pouco mais ousadamente, pesquisou os sufis da ordem Rifaiyya
de Moambique, que se autodenominam Maulide e se mutilam fisicamente durante o
ritual. No artigo Isl, transe e liminaridade, ele apresenta o enigma da dana exttica
por outro prisma:
O ritmo e a dana vo in crescendo, o clmax atingido e o transe e a autoflagelao
consumam-se. Mas foram a msica, a dana e a repetio frentica dos cnticos que
conduziram a um transe anestesiado e, portanto, a uma autoflagelao indolor ou
foram a dor e o sofrimento que acabaram por provoc-lo? Essas questes encobrem,
na verdade, um dilema ilusrio, pois qualquer resposta, alm de no fornecer nenhum
dado relevante problemtica sobre a qual pretendemos debruar, corre o risco de
assumir a forma de uma mera fico explicativa. Em linhas gerais, podemos dizer que,
atravs do ikr, os homens do Maulide tentam possuir e, ao mesmo tempo, serem
possudos por Deus
21
.
20HENNI-CHEBRA e POCH, 1996.
21MACAGNO, 2007, p. 107. Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto tambm discutiu as relaes de poderenvolvendo as ordens sufis da Siria, num vis mais sociopoltico do que antropolgico, ver PINTO, 2005.
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Para este autor, a questo da liminaridade no s espiritual, mas tambm
social, uma vez que a prtica dos cultos de transe e possesso, especialmente nas
culturas africanas e afroamericanas que subsistem em sociedades dominadas por
monotesmos de pretenso universalista, tende a funcionar como uma ferramenta
catrticae, por conseguinte, uma sada simbolicorreligiosa para os excludos. Aqui, a
renncia ao mundo na extino do eu por meio do autoaniquilamento ocorre atravs
da automutilao e representa a liminaridade espiritual e social simbolizada diretamente
no corpo, denominado pelo autor como n semntico:
fornece limites e fronteiras e tambm a possibilidade do estabelecimento de fluxos e
canais produzidos, neste caso, pelos estiletes que possibilitam a transposio das
barreiras materiais e simblicas (...) J os limites do corpo expressam a simbolizao
de um outro tipo de ambiguidade social, na qual os homens do Maulide teriam sido
lanados em virtude de uma ligao a uma cosmogonia de renncias.22
Desprezando as estratgias musicais para se atingir o estado de transe,
Macagno conclui que o poder reside, fundamentalmente, na simbolizao das
condies existenciais. A msica e a poesia atuam de forma secundria, servindo apenas
para criar um ambiente propcio para a catarse.
Tendo em vista que o xtase provocado pelo processo da audio que,
segundo a definio de Alazl, leva ao xtase, no compreendemos por que tais
estudos enfatizam o ritmo ou a repetio de imagens simblicas para explicar o
processo exttico e ignoram a melodia. O xtase no resultaria de um jogo entre a
variao meldica e as combinaes rtmicas? Ademais, no podemos pensar numa
relao direta entre a dana e a poesia para efeito do xtase? Para responder a tais
22MACAGNO, 2007, pp. 108-109.
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questes devemos considerar, sobretudo, a definio do xtase segundo a tradio persa,
na qual outras danas desam, alm do giro dervixe, tm sua origem.
No sufismo persa o termosam, que de origem rabe, designa toda forma de
audio de poesia, msica e dana com inteno meditativa. Em termos compositivos, a
dana guiada pela msica, mas ambas baseiam sua estrutura formal e tematica em
imagens e modos poticos e, em contrapartida, a poesia persa incorpora tambm a
musicalidade e as imagens coreogrficas, tal como vemos na poesia de Hfi e Rm.
Para Hfi, que experimentou na prpria pele as turbulentas invases mongis
do sculo XIV, os versos polissmicos de intensa musicalidade falam da embriaguez e
da dana como reflexos de uma existncia mundana catica, que desmascara a
desconexo e a bipolaridade espiritual do homem.23 Para Rm que, pelo contrrio,
tivera uma existncia contemplativa no sculo XIII, a dana sintoniza o homem ao
universo:
dia, levanta-te! Enquanto as partculas de ar danam.
Almas alegres, levadas pela inteno e pelos ps, danam.
Para quele em torno do qual giram e os cus danam,
Vou lhe contar ao ouvido aonde se dana.24
O rodopio anti-horrio dessa dana mimetiza o movimento de rotao e
translao dos astros em torno de um ponto csmico central que, semelhana dos
23Ver RIDGEON, 2006, p. 137.
24Traduo nossa. RM, 2008, p. 702, G:712.
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planetas em torno do sol, fazem reverncia ao Criador, centro de toda a Criao.25 O
Homem Perfeito, como definiu o mstico Ibn Arab, sendo feito imagem e
semelhana do Criador, tem em si a fagulha divina, que se expressa no ser humano
atravs da autoconscincia. Essa autoconscincia se completa no movimento, que
combina a experincia exterior do corpo com a atividade espiritual interior.26
A concepo cosmognica do medievo oriental transparece nos versos msticos
do poeta danarino, que incorporam tambm a funo filosfica e didtica de revelar a
ordem do mundo: a Terra, o centro mais denso do universo onde os seres se formam
pela combinao dos quatro elementos, terra, gua, fogo e ar, e ordenam-se na seguinte
escala evolutiva: mineral, vegetal, animal e humano, sendo este ltimo o nico dotado
de esprito. Em torno dela esto as esferas da Lua, Mercrio, Vnus, Sol, Marte, Jpiter,
Saturno, zodaco e estrelas fixas, que sendo dotadas de alma se regem pelo princpio
pitagrico do movimento das esferas celestiais. Sua irradiao passvel da influncia
musical, por sua vez capaz de alterar o estado corporal e anmico dos seres na matria
sublunar.27
Em tal cosmologia, correspondncias entre elementos, planetas, qualidades,
tons, cores, perfumes, nmeros, metais, ervas, animais e emoes, eram encontradas por
25 Na dana tradicional persa se gira em ambos os sentidos. Uma dana do povo uyghur, de carterxamnico, pode ter originado o giro dervixe. A esse respeito ver JOHN, s/d, acessado em 20/10/2011:http://www.easternartists.com/DANCE%203%20Central%20Asia.htmle MARKOFF, 1995, acessado em20/12/2012:http://www.alevibektasi.org/index.php?option=com_content&view=article&id=686:introduction-to-sufi-music-and-ritual-in-turkey&catid=46:aratrmalar-ingilizce&Itemid=69
26Ver IBN ARAB, 1980.Traduo para o ingles de R.W.J. Austin e prefcio de Titus Burckhardt.
27Ver FARMER, 1929,p. 151, 144 e 203. Traduo de trecho do Kitab al-musiqa al-kabirde Alfrbpara o espanhol em FUERTES, 1853. Existe tambm um livro latino atribudo a Al Knd, que aborda arelao entre os raios estelares e a msica. ALKND, 1975. Traduzido por Robert Zoller.
http://www.easternartists.com/DANCE%203%20Central%20Asia.htmlhttp://www.alevibektasi.org/index.php?option=com_content&view=article&id=686:introduction-to-sufi-music-and-ritual-in-turkey&catid=46:aratrmalar-ingilizce&Itemid=69http://www.alevibektasi.org/index.php?option=com_content&view=article&id=686:introduction-to-sufi-music-and-ritual-in-turkey&catid=46:aratrmalar-ingilizce&Itemid=69http://www.alevibektasi.org/index.php?option=com_content&view=article&id=686:introduction-to-sufi-music-and-ritual-in-turkey&catid=46:aratrmalar-ingilizce&Itemid=69http://www.alevibektasi.org/index.php?option=com_content&view=article&id=686:introduction-to-sufi-music-and-ritual-in-turkey&catid=46:aratrmalar-ingilizce&Itemid=69http://www.easternartists.com/DANCE%203%20Central%20Asia.html8/10/2019 xtase, Poesia e Dana Em Rumi e Hafiz
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meio de contiguidade, analogia, afinidade ou semelhana. Nesse tecido de relaes
sincrnicas, as cincias, a religio e as artes tambm operavam de forma inter-
relacionada, pois a viso medieval do mundo baseava-se no conceito de semelhana
que, como notou a pesquisadora Sylvia Leite, direcionou no somente a explicao das
coisas visveis e invisveis, mas tambm a interpretao de textos e a organizao de
smbolos, alm de ter dado suporte para as artes. 28Nesse sistema, o fazer potico
consistia numa cincia da alma, tal como a filosofia e a msica e, no tecido persa
propriamente dito, a dana ressaltava os elementos zoroastrianos, sobretudo o principio
da conexo espiritual interna e direta com a divindade, sem intermediaes.
Danas persas
As danas tradicionais persas esto repletas de referncias ao zoroastrismo e
outras religies pr-islmicas, devido sua origem em antigos ritos dedicados s
divindades locais.29 Elas agregam a sofisticao sufi tnica dada pelos elementos
mazdestas (ou zoroastrianos) que preservaram traos do mitrasmo, como o ritual da
dana em torno do fogo durante os solstcios e equincios anuais. 30 O fogo no centro
representaria simbolicamente o antigo deus solar, suplantado no zoroastrismo por Ahura
Mazda (senhor sbio), cujos atributos centrais so a sabedoria e a vida, presentificadospela luminosidade e o calor.
28 A autora elenca quatro tipos de semelhana mais frequentes: convenincia, emulao, analogia esimpatia, sendo que esta ltima se distinguia pelo seu poder de transformao de uma coisa em outra, apartir da aproximao e identificao por qualidades. LEITE, 2007, p. 30-31.
29Ver SHAHBAZI, 1993, pp.640-641.
30Ver KIANN, 2000. Acessado em 20/10/2011:http://www.artira.com/nimakiann/history/preislamic.html
http://www.artira.com/nimakiann/history/preislamic.htmlhttp://www.artira.com/nimakiann/history/preislamic.html8/10/2019 xtase, Poesia e Dana Em Rumi e Hafiz
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Tais traos caracterizam as danas tpicas que se apresentam nas festividades
pblicas ou familiares,31cujos repertrios musicais e coreogrficos so preservados por
msicos e artistas de diversas etnias da sia Central, como uzbeques, tadjiquis, afegos,
armnios, bakhtiaris, mazandaranis, lores, balchis, bandaris, curdos, azeris, iranianos,
entre outros, muitos dos quais se encontram em companhias profissionais atualmente
estabelecidas no estrangeiro desde a proibio da dana em 1982, no Ir.32H ainda as
danas cnicas e as representaes da tradio, devendo-se observar estas ltimas em
seu hibridismo que mescla os aspectos da tradio com os princpios cnicos, conforme
indicou Anthony Shay.33 De forma geral, todas essas modalidades compartilham de
certos elementos coreogrficos, como giros e transies de braos em alternncia e
simetria contralateral de membros superiores e inferiores.34
Algumas modalidades de danas tradicionais esto explicitamente ligadas
poesia: 1) o zorneh, mistura de dana de guerra com arte marcial, em que se
executam movimentos ao ritmo da percusso e da leitura de trechos de poesia pica ao
31Consideramos danas tradicionais aquelas cujos elementos coreogrficos centrais se definem por suaorigem mtica, religiosa, ritualstica, mgica ou laboral, com uso determinado por regras prefixadas e suatransmisso, de gerao em gerao, restringe-se a uma dada coletividade, conforme observou CmaraCascudo em CASCUDO, 1971. A tradio responsvel pela preservao e transmisso dos elementoscoreogrficos centrais, que podem ou no ser transpostos para o palco, podem ou no ser populares,podem ou no fazer parte de repertrios folclricos. No lugar de tradicional tambm se costuma utilizaros termos popular, folclrico e tnico, mas de forma incorreta, ideolgica ou imprecisa. VerORTIZ, 1985.
32Atualmente no Ir e no Afeganisto danar proibido, mas apesar da condenao religiosa, se danaem festas particulares e familiares. A maior parte das representaes cnicas realizadas pelas companhiasem territrio estrangeiro so reconstituies de tradies histricas e coreografias de dana clssica persa.
33 O autor denominou de tradio paralelaas tradies inventadas (no sentido dado pelo historiadorEric Hobsbawm) por companhias folclricas nacionais, em cujas representaes aparece a problemticapoltica e ideolgica da identidade nacional. Ver SHAY, 2001; HOBSBAWM e RANGER, 1997. Deve-se distinguir ainda a representao da tradio da dana de gnero, que uma modalidade de bal queempresta figurinos, adereos e as vezes tcnicas de outras danas, parecendo tradicional, mas sem s-lo.
34Ver FRIEND, 1996, pp. 6-18.
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fundo;352) as danas de celebrao de colheitas (arroz, norte do Ir) e da passagem das
estaes, como o Nrz, ano novo que inicia o equincio de primavera, que conta com
cortejos de dana, recital de poesia e musica, numa espcie de benzedeira artstica
semelhante das festividades de rua no Brasil; 3) a sam, que na cultura persa designa
um tipo de dana giratria executada de modo mais livre do que no ritual dos dervixes
rodopiantes de Konya,36e uma modalidade sacra que representa o universo e as quatro
estaes, 37sendo que todas envolvem audio de msica e poesia mstica; 4) as danas
de corte, que remontam aos saraus de pocas dinsticas e utilizam a poesia como fonte
temtica. Consideramos entre elas a dana persa clssica,38 a dana das rosas (ras-e
gol) de estilo palaciano39e o solo improvisado, que utiliza livremente os elementos de
todas as anteriores.40
35A dana ocorre numa espcie de grande gaiola em formato circular. Foi utilizada por lutadores livrespara preparar grupos subversivos contra a polcia do governo de Reza Pahlevi.
36Representaes cnica dasampersa:http://www.youtube.com/watch?v=3_LkxdUYA_8&list=PL5E6FB3B37548D3E1&index=41http://www.youtube.com/watch?v=9w77oOQjMbo&list=PL5E6FB3B37548D3E1&index=39
Representao cnica de giro dervixe com elementos da sam persa:http://www.youtube.com/watch?v=9wCinU_ymeU
37Essa tradio teria influenciado a dana andalusina, que realizada ao som da muachahat, sob o ritmosamai 10/8, praticada no Iraque e na Sria. Marcia Dib coletou uma verso palaciana, que distingue da
sufi nos seguintes termos: samah qadim, ou seja, a samah antiga, tambm chamada melaouie. umadana devocional, ligada mstica islmica, e sua complexidade solicita um trabalho parte. DIB, 2009,p. 283. Segundo os msticos, a figura rtmica dosamai, DssTsDDTss (D: grave, T: agudo, s: silncio),sintetiza ritmicamente a oraoLa ilaha il allah(no h divindade seno Deus).
38Dana persa clssica:http://www.youtube.com/watch?v=p_4m3MyOqb8&list=PL5E6FB3B37548D3E1&index=42http://www.youtube.com/watch?v=wFaYms5GWnQ&list=PL5E6FB3B37548D3E1&index=7
39Coreografia:http://www.youtube.com/watch?v=T0SLS3IbmVw&list=5E6FB3B37548D3E1
40Improviso tradicional:http://www.youtube.com/watch?v=1nghBJj-qyA&feature=related
Solo contemporneo:http://www.youtube.com/watch?v=HyVEHC983yc&feature=related
http://www.youtube.com/watch?v=3_LkxdUYA_8&list=PL5E6FB3B37548D3E1&index=41http://www.youtube.com/watch?v=9w77oOQjMbo&list=PL5E6FB3B37548D3E1&index=39http://www.youtube.com/watch?v=9wCinU_ymeUhttp://www.youtube.com/watch?v=p_4m3MyOqb8&list=PL5E6FB3B37548D3E1&index=42http://www.youtube.com/watch?v=wFaYms5GWnQ&list=PL5E6FB3B37548D3E1&index=7http://www.youtube.com/watch?v=T0SLS3IbmVw&list=5E6FB3B37548D3E1http://www.youtube.com/watch?v=1nghBJj-qyA&feature=relatedhttp://www.youtube.com/watch?v=HyVEHC983yc&feature=relatedhttp://www.youtube.com/watch?v=HyVEHC983yc&feature=relatedhttp://www.youtube.com/watch?v=HyVEHC983yc&feature=relatedhttp://www.youtube.com/watch?v=HyVEHC983yc&feature=relatedhttp://www.youtube.com/watch?v=HyVEHC983yc&feature=relatedhttp://www.youtube.com/watch?v=1nghBJj-qyA&feature=relatedhttp://www.youtube.com/watch?v=1nghBJj-qyA&feature=relatedhttp://www.youtube.com/watch?v=1nghBJj-qyA&feature=relatedhttp://www.youtube.com/watch?v=1nghBJj-qyA&feature=relatedhttp://www.youtube.com/watch?v=T0SLS3IbmVw&list=5E6FB3B37548D3E1http://www.youtube.com/watch?v=T0SLS3IbmVw&list=5E6FB3B37548D3E1http://www.youtube.com/watch?v=T0SLS3IbmVw&list=5E6FB3B37548D3E1http://www.youtube.com/watch?v=wFaYms5GWnQ&list=PL5E6FB3B37548D3E1&index=7http://www.youtube.com/watch?v=p_4m3MyOqb8&list=PL5E6FB3B37548D3E1&index=42http://www.youtube.com/watch?v=9wCinU_ymeUhttp://www.youtube.com/watch?v=9w77oOQjMbo&list=PL5E6FB3B37548D3E1&index=39http://www.youtube.com/watch?v=3_LkxdUYA_8&list=PL5E6FB3B37548D3E1&index=418/10/2019 xtase, Poesia e Dana Em Rumi e Hafiz
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Os elementos coreogrficos compartilhados por essas danas tm sua
significao nas imagens de referncia mitopotica e ritual: o fogo, que significa a
chama da sabedoria divina; o cipreste, imagem da conexo espiritual do homem com o
deus celeste Ahura Mazda;41 a gua, imagem do curso e fonte da vida. A rosa, que
significa a paixo e a revificao da existncia na primavera e permutvel com a
imagem do fogo e do pavo, sendo este ltimo signo da realeza e do olho que v alm
da aparncia; o vinho, signo do sacrifcio e da embriaguez da conexo com a divindade;
o sol, fonte da vida e da sabedoria tanto no mitrasmo como no zoroastrismo, imagem
sufi do corao de Deus, cuja contrapartida no homem o seu prprio corao;42 a
espiral, que engloba todas e designa tanto a infinitude como a conexo espiritual.43
Em termos de espacialidade segue-se o principio medieval e antigo que atribui
ao quadrado a estrutura primeva do mundo e ao crculo a expresso do plano divino. O
eixo vertical simboliza o uno e imutvel, enquanto o eixo horizontal refere-se ao
mltiplo e mutvel.44O deslocamento em redor de um eixo central constri uma rosa
dos ventos em que s quatro direes principais correspondem os respectivos
41 Ver JACKSON, 1899 e artigo on line : The Cypress of Kashmar and Zoroaster. Acessado em15/11/2011: http://www.cais-soas.com/CAIS/Religions/iranian/Zarathushtrian/cypress_zoroaster.htm
42
Para visualizar os elementos coreogrficos ver imagens da seo Anexo.43Cada uma dessas imagens se realiza por meio de diferentes combinaes de signos coreogrficos: o
cipreste representado pela postura reta com os ps em meia-ponta, indicando a sua direo ascendente.A rosa, o fogo e a pena de pavo se realizam pela juno dos dedos polegar e mdio, que partem emalternncia da regio articular do externo. A gua se representa pela movimentao ondulada edescendente de mos e braos, frontal ou lateral. A espiral se realiza pela diagonal ou oposio no eixosagital (frente/trs) de braos e mos, com uma das palmas voltada para cima e outra para baixo, emsentido horrio e/ou anti-horrio.
44Ver MACHADO, pg 82 -100. Christian Poch tambm verificou que a dana mstica se define pelo usodo espao circular, do eixo vertical e do fator peso. Ver HENNI-CHABRA e POCH, pp. 38-40.
http://www.cais-soas.com/CAIS/Religions/iranian/Zarathushtrian/cypress_zoroaster.htmhttp://www.cais-soas.com/CAIS/Religions/iranian/Zarathushtrian/cypress_zoroaster.htm8/10/2019 xtase, Poesia e Dana Em Rumi e Hafiz
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elementos: terra, gua, fogo e ar, estaes e signos cardinais do zodaco.45Os elementos
coreogrficos da rosa/fogo so alternados com o da gua, por contraste, e utiliza-se o
giro da espiral como figura de fechamento ou transio entre as frases meldicas ou
entre os pontos cardeais na formao circular. O uso repetido desses elementos, no
entanto, apresentado por meio de variaes sutis que exprimem as diferentes intenes
coreograficas surgidas na interpretao da musicalidade.
Anthony Shay, que no estudo Choreophobia: Solo Improvised Dance in the
Iranian World evidenciou a inter-relao das danas persas com outros elementos
daquela cultura,46verificou que essas danas, assim como a caligrafia e as artes visuais,
esto fortemente submetidas aos fatores da geometria, como proporo e formas, e a
outros fatores de ordem visual de provvel influncia islmica. Por outro lado, as danas
tambm se vinculam s artes orais, ao teatro cmico, contao de histrias, literatura
e, sobretudo, msica por meio do improviso,47que caracterstico da tradio. Nesse
procedimento a audio preponderante e a dana segue as regras e princpios da
msica persa.
45O signos cardinais so aqueles que iniciam as estaes: ries, Cancer, Libra e Capricrnio, sendo que otermo cardinal tambm se relaciona com a qualidade e classificao elemental, no caso, respectivamente,fogo, gua, ar e terra. As outras duas condies so fixa, para os signos centrais, e mutvel, para os finais.
46 Ver SHAY, 1999. O autor segue o pressuposto antropolgico de Cliford Geertz, de que todos oselementos dentro de uma dada cultura esto em inter-relao. Ver GEERTZ, 1999, p. 142-154
47Ver SHAY, 1999, pp. 48-50.
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Msica
Os princpios fundamentais da msica persa so a circularidade e a ascenso
tonal rapsdica, que devem ocorrer pelo trnsito sutil entre famlias de tons atravs de
notas interligadas por contiguidade ou semelhana sonora.48Essas famlias de tons so
ambientes sonoros formados pela sobreposio das microescalas do sistema microtonal
oriental, em persa chamado dastgh, em rabe maqm, em mongol muam, em turco
makam, em hindu ragas etc. Cada modo ou tom predominante possui associaes
extramusicais com as cores, os elementos, as estaes, as plantas, os metais, os astros,
os signos e as imagens poticas, que evocam variados estados de nimo no ouvinte. 49
Para o msico Mortez Vrzi, a associao da msica clssica persa ao
misticismo persa, especialmente por sua similiaridade em forma e propsito ao sam,
deriva, sobretudo, da sua relao com a poesia, uma vez que:
A poesia considerada como o principal veculo para converter conceitos do
misticismo persa. A msica vista como um meio de iluminar e extrair o significado e
a emoo latentes dentro dessa poesia. As formas poticas principais para essa msica
so os clssicosazal, masnav e ruba; particularmente os poemas de Hfi, Sad e
Rm. Eles contm smbolos msticos que retratam o desejo de reunio, descrevendo
os estados para se alcanar a intoxicao.50
48Ver DIB, 2009, CATON, 1988, FARHAT, 1990.
49 Trata-se de um sistema microtonal meldico e sem polifonia, polirritmias ou harmnicos, com umtemperamento natural de tons, muito diferente da msica ocidental moderna. Diz-se que uma escalacromtica, por possuir microtons, e diatnica, porque ainda assim possui notas tnicas principais. Como aafinao natural dos instrumentos tradicionais permite que cada uma tenha acento tonal especifico, algunsestudiosos chegam a afirmar que existem mais de 2.400 escalas no mundo oriental. Ver artigo deKAROMAT, acessado em 20/12/12:http://web.mac.com/wvdm/JIMS/Issue_36-37_files/6_karomat.pdf
50 Poetry is considered ad the major vehicle for conveying the concepts of Persian mysticism. Music isseen as a means of heightening and bringing out the meaning and emotion latent within this poetry. The
primary poetic forms for this music are the classical azal, masnavand rubi; particulary the poems of
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Segundo Margareth Caton, a msica persa construda diretamente a partir do
padro prosdico dos versos, que imitado pela melodia.51O contraste entre o tom e o
ritmo indica tpicos e motivos, sendo que o azal, uma forma de poesia lrica, a
principal forma potica utilizada no corpo da vocalizao (avz) do dastgh. Ele unifica
a msica temtica e ritmicamente.52
O etnomusiclogo Steve Blum informa que, nas combinaes do ritmo com a
melodia, as transies temticas so enfatizadas do seguinte modo:
Ao preparar uma performance, os cantores escolhem linhas de um nmero de poemasem diferentes mtricas poticas. Eles devem em seguida estabelecer uma sequncia de
formas musicais, acordes e ritmos, para dramatizar a transio de um poema a outro.
Intrigantes conexes assim como contrastes relevantes entre tpicos e imagens dos
poemas emergem enquanto os msicos passam de uma combinao de melodia e de
ritmo outra. (...) O impulso rtmico das batidas previsveis em tanf e arbi
realizadas pelo cantor solicita que ns escutemos mais claramente cada slaba de um
novo poema quando ele inicia uma seo nova do sz e do vz. Nestes momentos
mais introspectivos ns reconhecemos que o cantor e o instrumentista esto
improvisando em resposta um ao outro, at que a intimidade do sz e do vz leve
mais uma vez sociabilidade mais extrovertida de um tanfou de um arbi.53
Hfi, Sadi, and Rm. They contain mystical symbols that portray the desirability of reunion, describingthe state one attains as intoxication, VRZI apud CATON, 1986, p. 16.
51
Exemplifico com uma verso musicada de Parvaneh ode Rm, que ser analisado no captulo IV: http://www.youtube.com/watch?v=F8JXTtNZkBE
52 The azal, a form of lyric poetry, is the main poetic form used in the body of vocal performance(vz) of the dastgh. It unifies the music thematically and rhythmicallyque . CATON, 1986. pp. 15-23.
53Tasnifsignifica cano. o modo correspondente baladalirica-medieval europeia, executado emandamento lento. Ozarbisignifica composio ritmica e indica a passagem de um tema a outro no radf(sute). Sze avzso, respectivamente, improviso instrumental e vocal. FARHAT, 1990.
As they prepare a performance, singers choose lines from a number of poems in different poetic meters.They must next establish a compelling sequence of musical forms, tunes and rhythms, in order todramatize shifts from one poem to the next. Intriguing connections as well as striking contrasts in the
topics and images of the poems emerge as the musicians pass from one combination of melody and
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Assim, enquanto a interpretao musical d vida e explicita os significados
poticos latentes na composio, o improviso serve para afinar os msicos ao estado
anmico da audincia, visto que o lleva o msico a improvisar da mesma maneira que
o improviso leva a audincia ao l. Assim, o l ocorre quando os msicos
estabelecem entre si um dialogo focado no sentido potico e o compartilham com a
audincia.54
Acredita-se que Rm tenha adotado metros poticos simples e repetio de
figuras rtmicas curtas para gerar a dana cerimonial tipo momentum, durante a
execuo da qual pode ter criado alguns de seus poemas lricos.55 O ritmo simples
serviria para propiciar a sensao de extino do tempo e traduzir a experincia da
unidade no Ser, em contraste com as variaes tonais que expressariam a
multiplicidade. Mas, segundo Caton, no caso da msica persa, isto no se d por meio
de repetio rtmica ou corporal, mas primariamente por meio da tenso dinmica entre
os acentos e as tonalidades de referncia.56Ou seja, o foco no est na repetio, mas
justamente na variao meldica, que conduz o nimo da audincia.
Para Vrzi, desse modo que se purifica corpo e alma, uma vez que :
rhythm to another. () The rhythmic momentum of the predictable beats in tanfand arbiyields to thesingers request that we listen more closely to each syllable of a new poem as she begins a new section ofsz and vz. In these more introspective moments we recognize that singer and instrumentalist areimprovising in response to one another, until the intimacy of szand vzonce again gives way to themore extroverted sociability of a tanf or arbi. BLUM, s/d. Acessado em 03/11/2011:http://www.muslimvoicesfestival.org/resources/world-persian-music-and-poetry
54 VARZI, 1886, p. 2.
55 Ver BLUM, s/d. Acessado em 03/11/2011: http://www.muslimvoicesfestival.org/resources/world-persian-music-and-poetry
56 In the case of Persian classical music, it is not done by means of repetitive rhythm or bodymovements, but primarly by means of the dynamic tension between stress and reference pitchesCATON, 1986, p. 18.
http://www.muslimvoicesfestival.org/resources/world-persian-music-and-poetryhttp://www.muslimvoicesfestival.org/resources/world-persian-music-and-poetryhttp://www.muslimvoicesfestival.org/resources/world-persian-music-and-poetryhttp://www.muslimvoicesfestival.org/resources/world-persian-music-and-poetryhttp://www.muslimvoicesfestival.org/resources/world-persian-music-and-poetryhttp://www.muslimvoicesfestival.org/resources/world-persian-music-and-poetry8/10/2019 xtase, Poesia e Dana Em Rumi e Hafiz
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A msica pode modificar o ouvinte e tir-lo de si mesmo, e num sentido mstico, lev-
lo ao encontro com Deus. l o estado em que algum est fora de si. (...) Depois da
msica os ouvintes sentem que retiraram um grande peso de seus ombros. Ela purifica
o ouvinte ao retirar a alma do corpo e deixar a msica fazer o trabalho no corpo.57
Tal como teorizaram os msicos rabes e persas medievais, a proeza da magia
musical ordem alqumica: o corpo se precipita retido pela audio, enquanto a alma
passeia pelos diferentes estados que a msica evoca. O lsepara e une corpo e alma,
instaurando, como define o poeta e crtico contemporneo Adonis, as duas dimenses
fundamentais da experincia potica: a externa e a interna. Diz ele:
O externo (hir) e o interno (bin), ou, digamos, o visvel e o invisvel, so duas
palavras chaves para compreender a experincia potica moderna e suas dimenses da
representao formal. Para esta experincia, que sufi no fundamental, todas as coisas
e fenmenos tm duas qualidades, uma externa e outra interna. O modelo principal de
ambas em uma mesma coisa e num mesmo fenmeno o corpo. Cada um de ns vive
seu corpo internamente (subjetividade, fantasias, sentimentos, sensaes etc) e
externamente (o vemos e o tocamos como uma coisa a parte).58
O xtase, portanto, consiste em percurso e estgio final do trnsito anmico
atravs de variaes meldicas, rtmicas e imagticas que ocorre na interface entre as
dimenses interna e externa da experiencia esttica. Para Adonis, essa interface est no
corpo; mas na concepo dos msticos islmicos medievais ela ocupa uma dimenso
mais sutil e abstrata, que eles designam como sendo a do corao.
57 Music can change the listener, and take him out of himself, and in a mystical sense, join him withGod. Hl is the state where one is taken away from oneself () After the music the listener feels a greatweight lifted from his shouders. It purifies the listener by taking the soul out of the body, and lets themusic do the work on the body. VARZI, 1986, p.3-4.
58 Lo externo (zhir) y lo interno (batin), o digamos lo visible y lo invisible, son dos palabras clave paracomprender la experiencia potica moderna y sus dimensiones de representacin formal. Para estaexperiencia, que es sufi en lo fundamental, todas las cosas y todos los fenmenos tienen dos cualidades,una externa y otra interna. El patrn principal de ambas en una misma cosa y en un mismo fenmeno, esel cuerpo. Cada uno de nosotros vive su cuerpo internamente (subjetividad, fantasas, sentimientos,sensaciones, etc) y externamente (lo vemos y lo tocamos como una cosa ms). ADONIS, p. 258.
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CAPTULO II: Dana e jogo exttico
Tem um reino de metamorfose para experincia:seu corpo o seu prprio jogo
e sua eternidade ldica.CECLIA MEIRELES59
A descrio que os artistas contemporneos da msica e da dana persas
fazem do xtase deriva da concepo elaborada pelos msticos medievais. Para estes
ltimos, o corao o campo de autoconhecimento e da experincia do encontro com
Deus.60 Nele, as dimenses externa e interna se interligam pela atuao conjunta de
faculdades da alma na atividade imaginativa.
Para Alazl, o corao se situa numa dimenso intermediria entre a
realidade sensvel e a realidade invisvel.61 Alm da dimenso fsica (qalb), possui
outras trs dimenses que se manifestam como esprito (rh), alma (nafs) e intelecto(aql) e compartilham entre si uma tnue substncia sutil que a essncia espiritual do
homem.
O esprito como um vapor produzido pelo calor do corpo que circula e dota
de vida todas as suas partes, como um lampio iluminando as paredes ao percorrer uma
casa. Essa dimenso do esprito responsvel pelo movimento, a vida e o calor de todo
59MEIRELES, 2001, p. 42.
60 Henry George Farmer apresenta definies de diversos msticos sobre a natureza da msica e suarelao com o corpo, Deus e o universo, especialmente dos irmos Ijwan al-Safa, Abu talik Al-Makki, AlJunayd, Al-Shibli, Abu-Yazid Al-Bustami, entre outros. SHARIF, s/d. Acessado em 20/01/2012:http://www.muslimphilosophy.com/hmp/LVII-Fifty-seven.pdf
61WENSINCK, A. J., 1940. p. 83.
http://www.muslimphilosophy.com/hmp/LVII-Fifty-seven.pdfhttp://www.muslimphilosophy.com/hmp/LVII-Fifty-seven.pdf8/10/2019 xtase, Poesia e Dana Em Rumi e Hafiz
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o corpo. A alma consiste no prprio ntimo do homem que conhece a Deus e todas as
coisas conhecveis. Passvel de movimento e transmutao, modifica-se e adquire a
forma dos diversos estados pelos quais passa, sendo seu estado ideal o de repouso. Sua
natureza como a da gua que espelha perfeitamente o que reflete quando em repouso
absoluto, mas que ao ser agitada tudo distorce e desfigura. E por fim, o intelecto, que se
define em trs sentidos: 1) capacidade de conhecimento da real natureza das coisas, 2)
autoconhecimento e 3) inteligncia suprema de Deus, que no pode ser concebida como
acidente, sendo o prprio princpio do conhecimento. Esta a faculdade no homem que
decide e dirige a ao interna ou externa.
Assim, o esprito conhece, experimenta e percebe o corpo, a alma conhece,
percebe e experimenta todos os estmulos do plano sensvel e estados internos e o
intelecto conhece, percebe e experimenta a si mesmo na forma do princpio
autoexistente, do livre-arbtrio e da autoconscincia. Assentados no corao fsico, as
dimenses do esprito, corpo, alma e intelecto se interligam por meio de uma tnue
substncia sutil de natureza etrea.
Para Ibn Arab, o corao a porta de acesso realidade superior onde o ser
humano conhece a Deus por meio da unio dos opostos.O ser humano, feito imagem e
semelhana do Criador, possui a estrutura essencial do cosmos e experimenta
integralmente a existncia atravs de seu corao, que integra em si os polos opostos da
Multiplicidade na existncia sensvel e da Unidade no Ser: exterior (sensvel) e interior
(oculto), feminino e masculino, matria e esprito, experincia e conhecimento,
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manifesto e imanifesto, respectivamente. Assim, a potncia divina criadora se realiza no
ser humano enquanto sntese da unio entre o cosmos e o impulso criativo divino.62
J para o filsofo Ibn Sn, que no considerado mstico, a alma a dimenso
e substncia do corao que se relaciona tanto com a parte corporal e sensvel do
homem como com a parte inteligvel, e suas faculdades correspondem s funes dos
planos vegetal, animal e humano. Para interligar os sentidos externos e internos, o
homem utiliza as faculdades intermedirias da alma: a faculdade imaginativa, que torna
as ideias inteligveis ao apresent-las em formas sensveis; a faculdade estimativa, capaz
de obter ideias abstratas a partir de experincias concretas, apreendidas por sua vez pela
faculdade perceptiva. Ambas as faculdades, a imaginativa e a estimativa, se relacionam,
por um lado com a faculdade prtica, que rege corpo, paixes, emoes e capacidade
artstica, e por outro com a faculdade intelectiva, que puramente especulativa e recebe
de maneira autnoma e passiva o conhecimento divino.63
Para Ibn Arab, a imaginaocriativa (ayl) uma faculdade intermediria
que se relaciona tanto com as formas sensveis como com as verdades inteligveis.
Campo da criatividade, nela ocorre a locuo teoptica, por meio da qual a divindade
fala ao homem atravs de smbolos e imagens. A locuo teoptica o acontecimento
(wqia) que se produz por meio da locuo (ib) ou do smbolo (mil),64que a
forma imaginativa da ideia original, inicialmente oculta ou absorvida na sombra
62Ver IBN AL-ARABI, 1980, pp. 145-158.
63Ver ATTIE FILHO, 1999, pp. 50-52.
64Lo que llega al corazn proveniente del mundo superior es llamado por Ibn Arab el acontecimiento(al-waqia) y se produce por medio de la alocucin (jitab) o el smbolo (mizal) IBN ARAB apudADONIS, p. 102.
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divina. Tal smbolo consiste numa forma sensvel que, por semelhana imagtica, d
inteligibilidade ideia abstrata e espiritual.
Atravs de projees oriundas da sombra divina,
a essncia latente dos seres
contingentes se revela nas imagens sensveis geradas pela ao inventiva e criativa de
Deus,que as projeta em sua imaginao separada:
a [imaginao] separada a presena intermediria universal e unificadora, a presena
em que se estabelece a semelhana e a mistura imaginativas. Nessa presena se
manifesta a Verdade em imagens, aparecem os espritos angelicais, tambm em
imagens, e as ideias sob formas e moldes sensveis65.
A mistura imaginativa composta da imaginao separada com a
imaginao unida. A imaginao unida a contraparte criativa no ser humano que
experimenta o processo imaginativo de modo passivo, como criao divina, e de modo
ativo, atravs da sua prpria ao criativa. Assim, a imaginao para Ibn Arab uma
potncia criativa abrangente que integra as faculdades, imaginativa, estimativa, prtica e
intelectiva,postuladas por Ibn Sn.
Com sua imaginao unida o ser humano acessa a imaginao separada
por meio de vises durante a viglia ou em sonhos atravs dos quais ascende ao universo
das Realidades Espirituais. por meio dela que o sinal divino chega ao corao do ser
humano, tal como a revelao no corao dos profetas, em linguagem simblica:
65La separada es la presencia intermediaria universal y unificadora, la presencia em que se establece lasemejanza y la mezcla imaginativas. En esta presencia se manifiesta la Verdad en imgenes, aparecen losespritus anglicos, tambin en imgenes, y las ideas bajan a formas y moldes sensibles ADONIS, 1990,p. 99.
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O simbolismo se desenha sempre numa forma, que no fixa, mas que uma casa
visvel para um habitante invisvel. A forma um corpo: o corpo do significado. Entre
a forma e o significado existe uma unidade imagem.66
A imaginao, portanto, consiste em criar imagens mentais que so como
reflexos da essncia divina dos seres. A imagem que aparece na imaginao no
somente similar imagem produzida na sombra divina, mas tambm veicula a verdade
que lhe intrnseca. Ela uma forma sensvel e inteligvel, condutora de uma revelao
divina destinada a ser conhecida pelo homem. Ela ao mesmo tempo determina e
determinada pela comunicao que ocorre no corao do homem, entre ele e Deus.
Portanto as concepes de corao, alma e imaginao em Alazl, Ibn Arab
e Ibn Sn, embora diversas entre si, se autorreferenciam e se complementam. Tanto o
conceito de corao de Alazl como o de imaginao de Ibn Arab supem um
campo intermedirio para a comunicao teoptica. A alma de Ibn Sn, por sua vez, a
substncia e dimenso intermediria do corao que, no sendo individual nem
particular, permite interagir e participar da experincia externa e interna ao receber
estmulos ou assumir determinado estado. Apenas a concepo de Alazl destoaaqui,
por considerar a presena de uma substncia espiritual que ativa, dirige e integra o
corao. Mas, em todos esses autores, durante a experincia contemplativa o corpo
dirigido pela atividade do corao.
Assim, para Alazl, durante o xtase a substncia etrea afina todas as
dimenses do corao para que o corpo apenas exteriorize o que ocorre interiormente.67
66 La imaginacin es una potencia inventiva de formas e imgenes, y solo a travs de esta potenciarenovadora se revela lo oculto en toda su magnitud, ADONIS, 1990, p. 264. La forma es una casavisible para un habitante invisible. La forma es un cuerpo para el significado. Entre la forma y elsignficado hay una forma imagen'. ADONIS, 1990, p. 265.
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J segundo Ibn Sn, o uso pleno da imaginao e do corpo na dana que propicia a
intuio, liberando o campo para o recebimento da verdade emanada do Intelecto
Agente. De modo similiar pensa Ibn Arab, para quem a dana enquanto meditao
ativa facilita a funo da imaginao criativa. Ademais, da perspectiva desse ltimo
autor, podemos considerar que a dana meditativa integra a ao do esprito
corporalidade e estabelece (ou reestabelece) o elo entre a existncia sensvel, exterior,
fugaz e transitria e a realidade intangvel, oculta, perene e atemporal, tornando visvel
e corpreo o que invisvel e incorpreo: ideias, imagens, emoes. De certo modo, ao
simular o vir-a-ser das coisas e sua passagem do inexistente para o existente por meio
da dana, o homem, feito imagem e semelhana do Criador, mimetiza o prprio
processo da Criao.
***
Segundo alguns tericos contemporneos, a dana uma linguagem cintica
deliberada e a combinao dos signos coreogrficos pode compor smbolos de
significao cultural pr-fixada.68 Porm, a significao em dana permanente e
dinmica e mesmo que os seus elementos coreogrficos baseiem-se em elementos
extracinticos de significao cultural fixa, nem por isso seu sentido unvoco, fixo eimutvel e pode ser, inclusive, alterado e at mesmo invertido atravs da manipulao
de diversas variantes do movimento.
67Traduo de Walter James Skelie. Ver o captulo 4 em ALAZL, 1938.
68Ver WILLIAMS, 2004, p. 168.
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Transpostas do mito e da poesia para a dana, as imagens so os fatores
extracinticos mais frequentes na significao dos elementos coreogrficos tradicionais,
por constiturem o fundamento da atividade imaginativa e terem dupla penetrao no
campo cognitivo e afetivo.
Segundo a pesquisadora Proca-Ciortea, a dana uma linguagem cintica
deliberada em oposio linguagem cintica espontnea que envolve a expresso
corporal humana como um todo. Numa perspectiva semiolgica, a autora prope que a
linguagem da dana se compara linguagem verbal, sendo que a lngua e a palavra
correspondem, no plano do movimento corporal, linguagem coreogrfica e dana.
Danas populares e de carter tradicional teriam seu sistema de comunicao
restrito a uma coletividade, pois:
A distino entre os signos produzidos pelas alavancas e articulaes do corpo no
reside na estrutura do corpo que evidentemente, idntica para todos mas namaneira de formular os comandos, que s vezes contradizem at mesmo as leis
biomecnicas do movimento do corpo humano. Esto condicionadas por seu turno por
mltiplos fatores, como por exemplo: as caractersticas psicofsicas, o horizonte
ideolgico e artstico de uma dada coletividade. [...] Sendo um meio de comunicao
artstica, os signos coreogrficos da dana popular no tm uma individualidade
prpria no processo da comunicao. Esto agrupados sobre estruturas e formas (com
funcionalidade interna bem precisa) conforme certos modelos estabelecidos pela
tradio e determinados pela lgica do pensamento coreogrfico, constituindo destamaneira os elementos expressivos capazes de transmitir uma mensagem.69
69 La distinction entre les signes produits par les lviers et les articulations du corps ne rsident pas dansla estructure du corps qui, videmment, est partout identique, - mais dans la manre de formuler lescommandes que parfois contreviennent mme aux lois biomcaniques du mouvement du corps humain.Elles sont conditiones leur tour par des facteurs multiples, comme par exemple: les caracterespsychophysiques, lhorizon idatique et artistique dune colletivit done. () tant un moyen de
communication artistique, les signes choreographiques de la danse populaire nont pas une individualit
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Para essa autora, a linguagem coreogrfica se estrutura em trs planos
fundamentais: plano rtmico, eixos espaciais e signos coreogrficos. Sobre eles se
estruturam os gestos, passos e figuras de deslocamento, que podem ou no se referir a
algum elemento extracintico. Assim, por exemplo, em danas com deslocamentos
circulares, o crculo pode ter uma conotao cosmolgica e organizar espacialmente os
signos coreogrficos a partir desse elemento extracintico que lhe d significao.70
Diferentemente da ao motora, um fator extracintico no pode ser descrito
em termos puramente cinticos. Se o corpo dana uma estrela do mar, sua descrio
cintica pode ser assim: corpo em irradiao central, conexo cabea-cauda (cccix)-
membros superiores e inferiores. Corpo em respirao celular: centro-periferia, umbigo-
extremidades.71 Essa descrio do movimento puramente cintica e no revela o
aspecto extracintico da imagem de estrela do mar, cujo significado est oculto na
inteno do danarino. Imagens poticas, narrativas, padres geomtricos, sistemas
cosmolgicos, objetos, ideias e outros fatores estticos ou culturais que estejam no
horizonte mental ou real do danarino e da audincia so fatores extracinticos que
funcionam como referentes do elemento coreogrfico.
propre dans le processus de la communication. Ils sont groups dans des structures et des formes (fonctionalit interne bien prcise) suivant certains modeles tablis par la tradition et dtermins par lalogique de la pense chorographique, constituant de cette manire les lments expressifs capables detransmettre un message. PROCA-CIORTEA, 1968, pp. 87-93.
70Nesse caso, uma aproximao com a teoria semitica de Charles Sanders Peirce mais frutfera do quecom a da escola de Greims, pois a proposta trptica do primeiro considera signo, referente e interpretantesempre presentes no processo de significao. Ver PACHECO, 2003.
71Ver FERNANDES, 2002, p. 57. Essa autora explora o corpo-texto em movimento do corpo poticopara a criao em artes cnicas, inspirada nos estudos de Janet Ashead-Lansdale sobre intertextualidade einterpretao entre dana e literatura. Ver ADSHEAD, 1999.
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Segundo Judith Lynne Hanna, a dana, por consistir numa transformao
simblica da experincia humana atravs do movimento corporal, deve ser estudada a
partir da cinesiologia, ou seja, em termos fisiolgicos, musculares e neurais. 72Sendo
composta de propsito, intencionalidade rtmica e sequncias de movimentos corporais
no verbais de valor esttico, ela completa seu processo na comunicao cintica, onde
os aspectos motores, afetivos e cognitivos so encadeados. O aspecto afetivo costuma
preponderar j que as funes cognitivas e afetivas so consideravelmente
intercambiveis, pois:
A dana tende a ser o testamento de valores, crenas, atitudes e emoes. Como Mills
pontuou, os modos cognitivos e qualitativos so margens de um fluxo de
experincia. Mesmo se a dana executada mecanicamente e deixa o observador e o
bailarino insatisfeitos ou enfastiados, tais reaes so respostas afetivas.73
Ora, quando os signos coreogrficos so operados somente a partir da funo
motora ou cognitiva, como no exemplo acima, no esto evocando o elemento
coreogrfico na sua totalidade, que no se restringe ao encadeamento linear de signos no
eixo rtmico ou espacial e cuja significao depende tambm da energia afetiva, que se
relaciona ao modo como se incorpora o elemento extracintico na mensagem. Isso
determinado pela ao imaginativa do danarino, que lhe permite expressar diferentes
ideias e intenes por meio de variadas qualidades do movimento.
72Ver HANNA, 1979, p. 19.
73 Dance tends to be a testament of values, beliefs, attitudes, and emotions. As Mills points out, thecognitive and qualitative modes are banks of one stream of experience (1971:85). Even if dance ismechanically performed and leaves the performer and observer unsatisfied or bored, these reactions areaffective responses. HANNA, 1979, p. 28.
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A significao dos elementos extracinticos tambm atualizada pela
interpretao subjetiva dos fenmenos da memria coletiva. O historiador da dana
Curt Sachs, no seu trabalhoclssicoEine Weltgeschichte des tanzes, mostra a forma
como se processa e atualiza o uso das imagens na ao concomitante da imaginao
e da memria, por um lado, e da representao corporal, por outro:
A memria introvertida. necessariamente uma funo do lado imaginativo do
homem, no do perceptivo. Logo a temtica retrospectiva ir por si mesma revelar-se
primeiro em danas imagticas. Isto ocorre inclusive quando uma memria no muito
remota adere ao passado imediato quase ao presente mas mede-se por coisas
anteriores, quando a lembrana de antigas migraes e de fenmenos naturais
preservada e quando a conscincia da progresso histrica toma forma em assombrada
venerao aos ancestrais. (...) A representao, entretanto, solicita a faculdade
perceptiva: o homem imaginativo forado a responder ao homem sensorial, quando
ele deseja dar forma concreta memria, e o homem sensorial recompensado pela
ideia do drama alimentado na conscincia do passado.74
A partir de uma relao ao mesmo tempo contemplativa e imitativa, ou passiva
e ativa, que o danarino estabelece o vnculo com seus ancestrais, criando uma
atmosfera atemporal e ideal para o encontro com a Divindade:
O ancestral se torna o portador de todas as foras da natureza; ele o demnio da
fertilidade ou o esprito da vitria, o deus da lua ou o deus do sol. O danarino,
entretanto, possudo pelo ancestral etreo e deificado e compelido a mover-se como se
ele tivesse sido transformado naquele esprito, agora submerso dentro do crculo
74 Memory is introversive. It is necessarily the function of the imag inative side of man, not theperceptive. Hence the thematic retrospection will reveal itself first in imageless dances. This will be soeven when memory no longer clings to the immediate past almost to the present but seizes uponthings lie far back, when the remembrance of ancient migrations and natural phenomena is preserved, andwhen the consciousness of historical progress takes shape in the awed veneration of ancestors. ()Representation, however, calls for the perceptive faculty: the imaginative man is forced to ask aid of thesensory man, when he wishes to give concrete form to memory, and the sensory man is rewarded by theidea of the drama nurtured on the consciousness of the past. SACHS, 1937, p. 226.
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daquelas pantomimas que tornam manifesta a operao da fertilidade, a vitria, o
curso das estrelas.75
Assim, a passagem da experincia interior da dana para a exteriorizao
dramtica define o seu carter mgico: representao de fenmenos e espritos pela
imitao (pantomima) de sua ao ou atributo, numa forma exteriorizada que tem como
objetivo tornar manifesto e efetivo o seu poder. A incorporao, por si s, contm a
ideia de que o corpo humano mais do que um veculo ou instrumento deste poder
mgico, visto que deve manifestar foras invisveis, ilimitadas ou infinitas numa forma
visvel, finita e limitada. Movendo-se como se estivesse transformado naquele
esprito, o danarino torna-se sua representao viva.
importante notar que a funo da dana est primordialmente relacionada
simbolizao de processos temporais e produo de um elo entre passado e presente.
A representao do passado uma presentificao constante de algo significativo,
impresso na memria coletiva e traduzvel em imagens e gestos. A funo de separar
presente e passado est ligada ideia de que a dana marca um ciclo. Ela ritualiza a
morte do antigo e o nascimento do novo, marcando a passagem, a mudana, a
transformao. Alm disso, ela tem o papel de preservar as tradies (podemos pensar
em identidade e cultura) e assegurar o elo constante com a ancestralidade.
Sachs tambm associou a dana esfera do mito, sobretudo em seu carter
ritualstico. Os elementos do mito formaro o corao da tradio coreogrfica, pois
75The ancestor becomes the bearer of all the forces of nature: he is the damon of fertility or the spirit ofvictory, the moon god or the sun god. The dancer, however, possessed by his etherealized and deifiedancestor and compelled to move as though he had been transformed into this spirit, is now drawn into thecircle of those pantomimes which make manifest the operation of fertility, victory, the course of thestars. SACHS, 1937, p. 227.
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deles se originam as imagens relativas ao repertrio de reverncia aos ancestrais e
mesmo que o sentido original de um elemento coreogrfico seja perdido ou modificado,
ele preservado pelo uso de recursos mnemnicos e transmitido de gerao em gerao.
O processo pelo qual as imagens so abrigadas pela memria e corporificadas
na exteriorizao dramtica geram um campo prprio experincia da imaginao na
dana, definido pelo historiador e filsofo Johan Huizinga como esfera ldica e pelo
psicoterapeuta Donald Winnicott como campo potencial e transicional. Tanto a esfera
ldica como o campo transicional se aproximam da ideia que os antigos msticos tinham
do corao.
EmJeu et realit, Winnicott afirma que a experincia da dissociao da figura
materna vivida pelo beb conduz conscincia de si em oposio a uma realidade
exterior objetiva, gerando o que o autor denominou espao potencial:
Para assinalar o espao do jogo, proponho a hiptese de um espao potencialentre o
beb e a me. Esse espao varia conforme a experincia de vida do beb em sua
relao com a me ou a figura maternal. Oponho esse espao potencial (a) ao mundo
de dentro (relacionado associao psicossomtica) e (b) realidade existente ou
exterior (que tem suas prprias dimenses e pode ser estudada objetivamente e que,
embora parea variar conforme o estado do indivduo que a observa, se mantm de
fato constante).76
O espao potencial onde o indivduo diferencia entre realidade interna e
realidade externa, atravs de uma experincia intermediria. Segundo esse autor, o
76Pour assigner une place au jeu, jai fait lhypotse dun espace potentiel entre le bb et la mere. Cetespace varie beacoup selon les experiences de vie du bb en relation avec la mere ou la figurematernelle. Joppose cet espace potential (a) au monde du dedans (reli lassociation psycosomatique[psychosomatic partnership]) et (b) la ralit existant ou du dehors (qui a ses propres dimensions et peurtre tudie objectivement et qui, bien quelle puisse paritre varier selon ltat de lindividu quilobserve, reste, en fait, constant). WINNICOTT, 1975, p. 90.
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espao potencial se ampliar na vida adulta para constituir o campo transicional da
cultura, onde a experincia infantil dar lugar a uma experincia ldica coletiva.
Segundo Huizinga, o aspecto ldico a base de toda cultura, e como resqucio
da sociedade arcaica teria sobrevivido, ao menos em grande dose, at o perodo
medieval.77 Baseia-se num processo de suspenso da referncia ao real e
estabelecimento de uma dimenso paralela que ocorre independente das regras
socialmente estabelecidas, onde sagrado e profano podem coabitar, j que na dimenso
ldica no h distino entre rito, diverso, simulao, competio, feitio, persuaso,
doutrina, encantamento, liturgia e jogo social. Poesia, canto e dana, tendo origem
comum na atividade ldica, atuariam atravs dos mesmos princpios:
Elementos como a rima e o dstico s adquirem sentido dentro das estruturas ldicas
intemporais e onipresentes de que derivam: golpe e contragolpe, ascenso e queda,
pergunta e resposta, numa palavra, ritmo. Sua origem est inseparavelmente ligada aos
princpios da cano e da dana, os quais por sua vez fazem parte da imemorial funo
do jogo. Todas as qualidades da poesia reconhecidas como prprias, como a beleza, o
carter sagrado, a magia, so desde o incio, abrangidas pela qualidade ldica
fundamental.78
O jogo consiste na combinao de certos elementos, onde preponderam as
funes do ritmo e da imaginao. Enquanto o ritmo delimita a estrutura e o tempo da
atividade ldica, a imaginao transforma o inexistente em existente e vice-versa sendo
que eles se autorregulam, j que o ritmo sem a imaginao incuo e a imaginao sem
o ritmo catica. Alm disso, seu principal trunfo o de transcender o juzo lgico:
77Ver HUIZINGA, 1996.
78Traduo de Joo Paulo Monteiro. HUIZINGA, 1971, p. 157.
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Procuremos, antes de tudo, investigar a tripla relao existente entre a poesia, o mito e
o jogo. Seja qual for a forma sob a qual chegue at ns, o mito sempre poesia.
Trabalhando com imagens e a ajuda da imaginao, o mito narra uma srie de coisas
que se supe terem sucedido em pocas muito recuadas. Pode revestir-se do mais
sagrado e profundo significado. Pode ser que consiga exprimir relaes que jamais
poderiam ser descritas mediante um processo racional. (...) Tal como tudo aquilo que
transcende os limites do juzo lgico e deliberativo, tanto o mito como a poesia se
situam dentro da esfera ldica. No quer isto dizer que seja uma esfera inferior,pois
pode muito bem suceder que o mito, sob essa forma ldica, consiga atingir uma
penetrao muito alm do alcance da razo.79
O mito aparece aqui como uma espcie de fonte da imaginao, pois seus
elementos so conhecidos previamente, subentendidos e aceitos tacitamente pelos que
participam do jogo. Isso reitera a ideia de Sachs, que considera a imaginao o principal
mecanismo para traduzir corporalmente as imagens criadas a partir do mito. O jogo da
dana consiste em dispor tais imagens de acordo com os princpios do ritmo e da
melodia e atualizar o seu significado para o presente, tanto atravs de combinaes
criativas dos elementos coreogrficos como das variaes na forma ou qualidade do
movimento que alteram o seu teor afetivo e simblico.
Vemos assim que a esfera ldica pode ser definida como campo potencial e
intermedirio que se estabelece entre real e fictcio, tal como o espao transicional.
Potencial, porque no prvio ou posterior, subjetivo nem objetivo, se cria
simultaneamente ao processo de manipulao dos elementos do ritmo e da imaginao.
Intermedirio, porque se instaura na polarizao entre passado e futuro, introverso e
extroverso, corporal e anmico e, no nvel mais complexo do jogo social, entre a
experincia subjetiva e a experincia coletiva do fenmeno cultural. Esse campo parece
79HUIZINGA, 1971, p. 144.
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corresponder, generosamente, definio de corao dos msticos e onde ocorre a
experincia compartilhada do xtase, ou a catarse na comunicao cintica.
Um jogo exttico
Diferentes modos de operar ritmo e imaginao podem determinar variados
tipos de experincia ldica. Roger Cailois ampliou a teoria de Huizinga, propondo
quatro categorias bsicas para o jogo: competio (agn), sorte (alea), mscara
(mimicry) e vertigem (ilinx). Essas categorias correspondem a impulsos primordiais de
organicidade e transcendncia, que nos acompanham da infncia at a vida adulta.
80
Assim, a competio (agn) consiste no uso mximo de potencialidades dentro
de um campo restrito e altamente regrado. Demanda esforo e aprimoramento de
aptides fsicas ou intelectuais especificas, uso de clculo e a possibilidade de vencer
pelo mrito. A sorte (alea), pelo contrrio, consiste na ausncia de esforo individual e
total entrega ao acaso, resultando da combinao aleatria de elementos ou eventos
imprevistos sob determinadas regras previamente estipuladas. A mscara (mimicry)
consiste na imitao ou inveno incessante de personagens com o objetivo de tornar-se
um outro e adquirir ou simular um poder atravs da transfigurao e da imaginao. A
vertigem (ilinx) a experincia do assombro, xtase, transe, pnico voluptuoso
momentneo, experimentado por turbilhonamento, agitao corporal, drogas ou outros
recursos que provoquem a desestruturao perceptiva e a alterao da conscincia.
80O autor encontra esses impulsos primordiais tambm entre os animais e sugere que combinaes dediferentes atitudes ldicas produzem distintas formas de civilizaes. A experincia humana se difere nopelos fenmenos em si, mas pela capacidade do ser humano em perceber o jogo como uma dimensoseparada e distinta da realidade, transitando livremente entre ambas. Ver CAILLOIS, 1967, pp. 61-64.
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A combinao em pares dessas categorias gera o que Caillois define como
atitude ldica. Assim, a juno da mscara (mimicry) com a vertigem (ilinx) produz
sociedades consideradas arcaicas, como aquelas em que um sacerdote se faz passar pela
divindade e dirige rituais coletivos de transe que alteram a percepo espao-temporal e
dissolvem a individualidade dos participantes. J a combinao da competio (agn)
com a sorte (alea), ambas orientadas por regras e pela preservao da individualidade,
produziria, segundo o autor, as civilizaes complexas onde h uma ruptura com o
sagrado, no sentido anterior. Embora em cada sociedade predominem determinadas
categorias, em todas elas subsistem atitudes secundrias, que podem inclusive produzir
efeitos sociais inoportunos ou imprevistos.81Assim, por exemplo, o culto aos atletas,
musas e polticos em nossa sociedade competitiva pode ser visto como uma combinao
das atitudes de sorte, vertigem e mscara para produzir formas indiretas, distorcidas ou
projetivas de vivenciar a vitria, a fantasia e o poder.
Caillois classifica a experincia dos dervixes rodopiantes como vertigem e
aponta o binmio ilinx-mimicrycomo sua atitude determinante, por combinar mmesise
dissoluo do ego:
Os dervixes buscam o xtase girando sobre si mesmos, atravs de um
movimento que acelerado conforme os batimentos dos tambores se
precipitam. O pnico e a hipnose da conscincia so atingidos pelo paroxismode uma rotao frentica contagiosa e compartilhada.82
81Ver CAILLOIS, 1967, p.145.
82Les derviches recherchent lextase em tournant sur eux-mmes, selon un movement quacclrent desbattements des tambour plus prcipits. La panique et la hhypnose de la conscience sont atteintes par leparoxisme dune rotation frntiques contagieuse et partage. Caillois, 1967, p. 68. Cailois retirou essadescrio de DEPONT e COPPOLANI, 1887, pp. 156-159, 329-339.
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arrebatamento e embriaguez espiritual. Por outro lado, o uso pleno das faculdades
avicennianas corresponde tambm ao uso pleno da imaginao em Ibn Arab que tem
funo teoptica. Porm Jean Michot no aborda a questo do compartilhamento do
xtase que, como sabemos, caracteriza o l na dana persa. Vejamos, ento, este
aspecto da perspectiva ldica.
As imagens, enquanto elementos extracinticos de significao cultural
preestabelecida, possibilitam que a experincia imaginativa do danarino seja
cineticamente compartilhada com a audincia, justamente por sua funo referencial ao
mito e poesia. Se a imagem produto da imaginao e da interpretao subjetiva da
memria, conforme afirmou Curt Sachs, o xtase compartilhado deve ocorrer atravs do
processo pelo qual o danarino comunica cineticamente o que ocorre em sua
imaginao unida para a audincia. Caso ele esteja em estado de comunicao
teoptica, ou seja, recebendo o sinal divino em seu processo imaginativo, precisar
comunicar esse estado de modo que toda a audincia consiga imagin-lo tambm, isto ,
senti-lo. Isso s poder ser feito atravs de um movimento corporal que veicule o
smbolo e transmita sua energia, simultaneamente.
Vimos em Judith Lyne Hanna que a comunicao cintica encadeia plenamente
os aspectos do movimento, isto , o cognitivo, o motor e o afetivo, e apresenta seus
ndices nas respostas motora e afetiva da audincia. Podemos dizer que quando todos os
aspectos esto plenamente contemplados, temos o compartilhamento imagi