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Segunda, 17 de março de 2008 1. Fábricas recuperadas pelos trabalhadores e a Economia Solidária na América Latina. Entrevista especial com Henrique Tahan Novaes “Os anos 1990 foram extremamente difíceis para os trabalhadores na América Latina, com perda do emprego, crescimento do subemprego, entrega da nação pela elite, dilaceramento social etc. Neste contexto, as fábricas recuperadas cumpriram um papel primordial ao permitir a uma parcela de trabalhadores a sua sobrevivência neste contexto de avanço da barbárie social”, afirma o professor Henrique Tahan Novaes. Nesta entrevista, concedida por e-mail à IHU On-Line, Novaes faz uma interessante análise sobre o estado das fábricas recuperadas tanto brasileiras quanto de alguns países vizinhos e sobre a economia solidária (Veja todas as edições da Revista IHU On-Line sobre o texto na seção Leia Mais desta entrevista) e sobre o cooperativismo latinoamericano. “O Brasil é mais complexo, muito mais difícil de entender. Tudo aqui é muito lento, demorado. Deste ponto de vista, podemos dizer que as fábricas recuperadas caminham, mas a passos lentos”, criticou. Henrique Tahan Novaes é economista, pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP). É, também, mestre e doutor em Política Científica e Tecnológica, pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), onde é professor. É autor de Fetiche da Tecnologia: a experiência das fábricas recuperadas (São Paulo: Expressão Popular, 2007). Confira a entrevista. IHU On-Line – Que tipo de enfoque tecnológico as organizações ligadas à Economia Solidária tanto necessitam hoje? Henrique Tahan Novaes – Um enfoque tecnológico que derrube o senso comum sobre a tecnologia e dê às forças produtivas o verdadeiro papel que ela merece na Economia Solidária. Nos congressos de que participei no campo daEconomia Solidária, há inúmeros debates sobre diversos temas. No entanto, o “acesso à tecnologia” e a “assistência técnica” parecem ser os pontos que causam pouca polêmica. Não se questiona a tecnologia capitalista e raramente o tipo de assistência técnica necessária para o desenvolvimento do cooperativismo. Para mim, há um falso consenso que devemos averiguar as suas origens. Como sempre nos lembra o professor Renato Dagnino (1), o tema da tecnologia permanece blindado. A tecnologia é sempre a solução e nunca um problema que mereceria uma política científica e tecnológica alternativa. Eu diria que o enfoque tecnológico que a Economia Solidária necessita deve ter três pilares que podem ser esquematicamente elaborados através das seguintes perguntas: o que produzir, como produzir e para quem produzir. Os arquitetos

Fábricas Recuperadas Pelos Trabalhadores e a Economia Solidária Na América Latina. Entrevista Espacial Com Henrique Tahan Novaes

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Segunda, 17 de maro de 20081. Fbricas recuperadas pelos trabalhadores e a Economia Solidria na Amrica Latina. Entrevista especial com Henrique Tahan NovaesOs anos 1990 foram extremamente difceis para os trabalhadores na Amrica Latina, com perda do emprego, crescimento do subemprego, entrega da nao pela elite, dilaceramento social etc. Neste contexto, asfbricas recuperadascumpriram um papel primordial ao permitir a uma parcela de trabalhadores a sua sobrevivncia neste contexto de avano da barbrie social, afirma o professorHenrique Tahan Novaes. Nesta entrevista, concedida por e-mail IHU On-Line,Novaesfaz uma interessante anlise sobre o estado dasfbricas recuperadastanto brasileiras quanto de alguns pases vizinhos e sobre a economia solidria (Veja todas as edies daRevista IHU On-Linesobre o texto na seo Leia Maisdesta entrevista) e sobre ocooperativismolatinoamericano. O Brasil mais complexo, muito mais difcil de entender. Tudo aqui muito lento, demorado. Deste ponto de vista, podemos dizer que as fbricas recuperadas caminham, mas a passos lentos, criticou.Henrique Tahan Novaes economista, pela Universidade Estadual Paulista Jlio de Mesquita Filho (UNESP). , tambm, mestre e doutor em Poltica Cientfica e Tecnolgica, pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), onde professor. autor deFetiche da Tecnologia: a experincia das fbricas recuperadas(So Paulo: Expresso Popular, 2007).Confira a entrevista.IHU On-Line Que tipo de enfoque tecnolgico as organizaes ligadas Economia Solidria tanto necessitam hoje?Henrique Tahan Novaes Um enfoque tecnolgico que derrube o senso comum sobre a tecnologia e d s foras produtivas o verdadeiro papel que ela merece naEconomia Solidria. Nos congressos de que participei no campo daEconomia Solidria, h inmeros debates sobre diversos temas. No entanto, o acesso tecnologia e a assistncia tcnica parecem ser os pontos que causam pouca polmica. No se questiona a tecnologia capitalista e raramente o tipo de assistncia tcnica necessria para o desenvolvimento do cooperativismo. Para mim, h um falso consenso que devemos averiguar as suas origens. Como sempre nos lembra o professorRenato Dagnino(1), o tema da tecnologia permanece blindado. A tecnologia sempre a soluo e nunca um problema que mereceria uma poltica cientfica e tecnolgica alternativa.Eu diria que o enfoque tecnolgico que aEconomia Solidrianecessita deve ter trs pilares que podem ser esquematicamente elaborados atravs das seguintes perguntas: o que produzir, como produzir e para quem produzir. Os arquitetos revolucionrios parecem estar frente nesse debate, pois fazem uma crtica radical a tecnologia capitalista. Primeiro, ao questionar a diviso do trabalho entre operrios, engenheiros e arquitetos no canteiro de obras. Mais do que isso, reconhecem o conhecimento operrio acumulado nas mos dos pedreiros. Segundo, questionam o tipo de material que deve ser usado na construo de casas etc.Terceiro: questionam se devemos construir arranha-cus que tenham como propsito a acumulao de capital e a especulao imobiliria ou resolver os grandes problemas nacionais em termos de habitao e obras pblicas. Quarto: questionam qual deve ser o papel do arquiteto formado em universidades pblicas: ser um explorado numa corporao ou ser um intelectual compromissado com os interesses dos trabalhadores. Para resumir, o enfoque tecnolgico que aEconomia Solidrianecessita deve questionar a organizao do processo de trabalho, a tecnologiahardware, a produo de bens socialmente teis e o papel da universidade, isso para no ir mais longe.IHU On-Line Como o senhor analisa a histria das fbricas recuperadas na Amrica Latina?Henrique Tahan Novaes , antes de tudo, a histria de muita resistncia operria num contexto de crise avassaladora. Os anos 1990 foram extremamente difceis para ostrabalhadores na Amrica Latina, com a perda do emprego, crescimento do subemprego, entrega da nao pela elite, dilaceramento social etc. Neste contexto, as fbricas recuperadas cumpriram um papel primordial ao permitir a uma parcela de trabalhadores a sua sobrevivncia neste contexto de avano da barbrie social. Num patamar superior, h diversas fbricas que questionaram a diviso de salrios da antiga empresa, passaram a decidir democraticamente os rumos da empresa e tentaram humanizar o espao de trabalho. As fbricas mais esquerda, extremamente politizadas, tentaram atrelar suas lutas a outras reivindicaes dos movimentos sociais. Aqui temos poucas.

IHU On-Line Como funciona a filosofia da poltica cooperativista na Venezuela de Hugo Chvez?Henrique Tahan Novaes Para entender a filosofia da poltica cooperativista na Venezuela, vale a pena falar sobre a filosofia cooperativista dogoverno Lula. Escrevi, junto com o professorPaulo Lima Filho(2), um artigo dizendo que aSenaes(Secretaria Nacional de Economia Solidria que temPaul Singer(3) sua frente) uma pedra proto-socialista num colar pro-capital, principalmente pro-capital financeiro. O cooperativismo na Venezuela parece ter outro propsito. At pouco tempo atrs, o cooperativismo era um dos pilares do desenvolvimento endgeno. Dessa proposta, surgiram os ncleos de desenvolvimento endgeno que vem no cooperativismo uma poltica de gerao de trabalho e renda fortemente conectada com o desenvolvimento local.Com o acirramento daluta de classes, o cooperativismo vem ganhando uma nova funo, ainda mais esquerda, como pilar na construo do socialismo do sculo XXI. No entanto, preciso fazer duas ponderaes. Em algumas entrevistas,Chvezparece ignorar ou subestimar a dificuldade de construo de cooperativas. No comeo, acreditavam que o mesmo surgiria num passe de mgicas, somente em funo do oferecimento de crdito. A outra que os venezuelanos ainda no definiram com preciso o papel do cooperativismo na sociedade. Para algumas vertentes social-democratas, os setores estratgicos devem ficar nas mos do Estado ou sob a forma de co-gesto. Outras vertentes prestam mais ateno no controle dos meios de produo pelos trabalhadores e no tanto na questo da propriedade. Alm disso, assim como no Brasil, h uma vertente do velho cooperativismo de classe dominante que s quer o crescimento do cooperativismo que no altera as relaes sociais de produo. E aqui os capitalistas se tornam marxistas.

IHU On-Line Voc estudou as fbricas recuperadas da Argentina e Uruguai tambm. Como compara os acontecimentos em torno dessas organizaes em outros pases da Amrica Latina e no Brasil?Henrique Tahan Novaes Depois de falar um pouco sobre as linhas comuns que atingiram de forma muito parecida a Amrica Latina (a continuidade dos grupos de poder que vinham na inrcia das ditaduras militares, abertura comercial, aprofundamento da financeirizao da economia etc.), preciso dizer que as fbricas recuperadas argentinas se inseriram num processo mais radical que no Brasil. Primeiro porque os ventos do neoliberalismo sopraram com mais fora neste pas. Em dezembro de 2001 a Argentina passou por uma convulso social que serve como marco das lutas operrias no sculo XXI. A classe mdia tambm estava ali pagando o preo do neoliberalismo. Em menor medida, isso tambm aconteceu no Uruguai, um pas com tradio de lutas operrias similar Argentina. O Brasil mais complexo, muito mais difcil de entender. Tudo aqui muito lento, demorado. Deste ponto de vista, podemos dizer que as fbricas recuperadas caminham, mas a passos lentos.Na Argentina e Uruguai, as fbricas recuperadas questionaram a antiga diviso dos salrios bem mais que no Brasil. No entanto, nesses trs pases samos de um tsunami para uma marola. Em parte porque os movimentos sociais esto perdidos, fragmentados, lutando por bandeiras difusas e pouco conectadas mas tambm porque houve um aumento da represso aos mesmos. A face repressora do Estado continua viva, freando e impedindo o florescimento e a unificao dosmovimentos sociais.IHU On-Line Para o senhor, quais so os principais desafios, neste sculo XXI, para o cooperativismo?Henrique Tahan Novaes O desafio continua sendo a retomada do projeto marxista, centrado na emancipao do trabalho. Isso significa superar o trabalho alienado, sem sentido social, desprovido de contedo. Nesse sentido, o cooperativismo cumpre uma dupla funo. Na defensiva, como cooperativismo de resistncia, uma das formas deluta operriaque questiona desde j a diviso do trabalho capitalista, a separao de concepo e de execuo, os salrios, a vida individualista etc. Num momento ofensivo, se esse movimento cooperativista conseguir atrelar suas lutas a de outros movimentos sociais, eles deveriam apontar para uma sociedade totalmente desmercantilizada, no produtora de mercadorias, acumuladora de capital e exploradora, e sim de uma sociedade voltada para a satisfao das necessidades humanas, materiais e imateriais. Junto a isso,Marxfalava sobre o autogoverno pelos produtores associados.IHU On-Line Qual viso dos partidrios da Economia Solidria sobre as foras produtivas?Henrique Tahan Novaes Creio que aEconomia Solidriacaminha razoavelmente bem na crtica organizao do processo de trabalho capitalista, a crtica aotaylorismo(4) e aotoyotismo(5). Eles conseguem ver que a autogesto se diferencia radicalmente tanto em natureza como em grau de participao do modelo japons e do taylorismo. Se a participao notoyotismotem como propsito extrair o conhecimento operrio e hiperexplor-lo, naautogestoo propsito da participao e da nova diviso do trabalho a construo de um espao coletivo que subverta a explorao na fbrica e num patamar superior, a participao do trabalhador na sociedade tem como propsito o controle consciente das esferas fundamentais. O problema que aEconomia Solidriano v nem a tecnologiahardwarenem a cincia capitalista como problemas. H um senso comum muito forte no marxismo que v as foras produtivas como neutras. Para esta corrente do marxismo, a tecnologia evolui, ou seja, a ltima sempre a melhor. E assim, o problema seria somente a tomada do poder e nunca o radical reprojetamento das foras produtivas. AEconomia Solidriano pensa exatamente assim, mas converge com essa viso em muitos pontos.Notas:(1)Renato Peixoto Dagnino engenheiro metalrgico, pela Universidade Federal do Rio Grande do sul (UFRGS), e em Economia, pela Universidad de Concepcin, no Chile. mestre e doutor em economia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Obteve livre docncia em 1993 pela Unicamp. Atualmente, professor da Universidade da Bahia e da Universidade de Buenos Aires. autor de inmeras obras, tais comoCincia e Tecnologia no Brasil: o processo decisrio e a comunidade de pesquisa(Campinas: Editora da Unicamp, 2007).(2)Paulo Alves de Lima Filho mestre em Economia, pela Universidade Amizade dos Povos Patrice Lumumba, na Rssia. doutor em Cincias Sociais, pela USP, e ps-doutor, pela Universidade Estadual Paulista Jlio de Mesquita Filho. Atualmente, professor da Fundao Astrogildo Pereira, em Braslia.(3)Paul Israel Singernasceu na ustria e economista. Estudou Economia na Universidade de So Paulo (USP), onde doutorou-se em Sociologia, com uma tese sobre Demografia. Ajudou a fundar o Partido dos Trabalhadores e foi o grande conciliador nos tempos do Cebrap. amigo de Fernando Henrique Cardoso, mesmo divergindo fortemente dos projetos econmicos por ele adotados. Trabalhando recentemente com o tema da Economia Solidria, o professor Paul Singer assumiu a tarefa de implementar, desde junho de 2003, a Secretaria Nacional de Economia Solidria (SENAES), constituda pelo presidente Luiz Incio Lula da Silva, no mbito do Ministrio do Trabalho e Emprego.(4)TaylorismoouAdministrao cientfica o modelo de administrao desenvolvido pelo engenheiro estadunidenseFrederick Winslow Taylor, considerado o pai da administrao cientfica. Taylor iniciou o seu estudo observando o trabalho dos operrios. Sua teoria seguiu um caminho de baixo para cima, e das partes para o todo, dando nfase tarefa. Para ele, a administrao precisava ser tratada como cincia. Desta forma, ele buscava ter um maior rendimento do servio do operariado da poca, o qual era desqualificado e tratado com desleixo pelas empresas.(5) Otoyotismo um modo de organizao da produo capitalista que se desenvolveu a partir da globalizao do capitalismo na dcada de 1950. Surgiu na fbrica da Toyota no Japo aps a II Guerra Mundial, e foi elaborado porTaiichi Ohno, mas s a partir da crise capitalista da dcada de 1970 foi caracterizado como filosofia orgnica da produo industrial (modelo japons), adquirindo uma projeo global.