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Ttulo: Fbulas
Autor: Curvo Semedo
Edio: Agrupamento de Escolas
de Rio de Mouro
Coleo: Clssicos Infantojuvenis
Seleo, paginao e projeto
grfico: Carlos Pinheiro
1. edio: outubro de 2013
ISBN: 978-989-8671-07-3
Edio segundo as regras do Acordo
Ortogrfico da Lngua Portuguesa
de 1990.
3/389
ndiceA guia, a Porca e a GataA guia e o EscaravelhoA Ave Ferida de Uma FlechaA Cotovia e os Seus FilhosA Doninha na DespensaA Formiga e a CigarraA Galinha Que Punha os Ovos de OuroA Gralha entre os PavesA Lebre e a TartarugaA Lebre e as RsA Mulher Teimosa AfogadaA Perdiz e a LebreA Pomba e a FormigaA R e o BoiA Raposa, a Cabra e a FilhaA Raposa e a CegonhaA Raposa e o LoboA Raposa, o Macaco e Outros AnimaisA Serpente e a LimaA Tainha e o PescadorA Vista de Quem DonoAs Duas PanelasAviso de ScratesO Burro e o DogueO Burro e os DonosO Burro Vestido com Pele de LeoO Co Vendo a Sua Imagem na guaO Carreteiro Atolado
O Cavalo e o BurroO Cavalo e o LoboO Homem e a GataO Homem e a SerpenteO Homem e o dolo de PauO Homem, o Co e a GalinhaO Lavrador e Seus FilhosO Leo e o MosquitoO LenhadorO Leo DoenteO Lobo, a Mulher e o FilhoO Lobo e a CegonhaO Lobo e o CordeiroO Lobo Feito PastorO Macho e o BurrinhoO Passarinho, o Milhano e a CotoviaO Raposo e o GaloO Raposo e o BodeO Rato e a RO Velho e os Seus FilhosO Velho, o Rapaz e o BurroO Ratinho e a MeO Veado e os CesOs Dois Burros CarregadosOs Dois MachosOs Dois Touros e a ROs MdicosOs Rafeiros e o Gozo
5/389
A guia, aPorca e a Gata
Veloz guia num sobreiro
Tenros filhos aninhava;
E em baixo no cho tambm
Uma porca os seus criava.
Em meio de ambas no tronco,
Onde funda toca havia,
Com seus filhos igualmente
Esperta gata vivia.
Gozavam as trs famlias
Ali da unio mais grata:
Mas turvou esta harmonia,
Com mexericos a gata.
Onde a guia vivia entrou
7/389
Dizendo: Senhora minha,
Venho contar-lhe a insolncia
Da porca nossa vizinha.
Junto ao p deste sobreiro
De dia e noite a fossar,
Vai-lhe roendo as razes
At por terra o lanar;
Ento nossos tenros filhos,
8/389
E ns mesmas, sem piedade,
Diz que seremos objeto
Da sua voracidade.
Vs estais melhor do que eu,
Quem vendo o tronco abalar,
Podeis nas garras, voando,
Os vossos filhos salvar.
Mas eu, triste... Ah!, desgraada!
9/389
Nisto, com mil caramunhas,
Despediu-se e foi descendo
Segurando-se nas unhas.
Entra no covil da porca
E diz-lhe em voz de mansinha:
Mal sabe, amiga, o que vai
Com esta nossa vizinha!
Mas antes queu diga tudo,
10/389
Jure guardar-me segredo,
Queu daquela atraioada
Vivo tremendo com medo!
Diz que em vendo que voc
A tratar da vida sai,
Logo dentro do covil
A matar-lhe os filhos vai.
Quando a porca tal ouviu,
11/389
Ficou pior do que as frias,
E contra a inocncia dguia
Vociferou mil injrias.
Tendo entre as duas famlias
A gata o horror semeado,
Sobe, mete-se na toca,
Esperando o resultado.
A veloz guia os filhinhos
12/389
Cobre, e jura no deix-los,
Para que tombando o tronco
Possa do insulto salv-los;
Nem questalasse de fome
Por temor nunca saa
E no seu covil fechada
A porca o mesmo fazia.
Sendo o estearmos a vida
13/389
Sempre o primeiro dever,
Deixaram-se ambas de fome
Com seus filhinhos morrer;
Teve a gata com seus filhos
Uma grande fartadela,
At que um lobo chegando
Jantar fez deles e dela.
Dinsanos mexeriqueiros
14/389
Quem tem casa tenha medo;
Que as desgraas das famlias
Vm a fazer tarde ou cedo.
Com ps de l se introduzem,
Trazem, levam, contam, mentem,
E os qus intrigas do peso,
No fim de tudo que o sentem.
15/389
A guia e oEscaravelho
De veloz guia fugindo
Novo pequeno coelho,
Encontra na fuga a toca
Dum grado escaravelho.
Posto que tnue este abrigo
Buscando salvar a pele,
Julgar-se pode se o triste
Faria por entrar nele.
Comovido o escaravelho
Do mal daquele infeliz,
A feroz guia intercede,
E cortesmente lhe diz:
Ave real, neste pobre
17/389
Meu compadre e meu vizinho
Tuas garras no empregues,
Tem d dele, coitadinho!
Sei que para ti no obsta
O asilo da minha casa.
Ela nisto um safano
Lhe d com o coto dasa.
A vtima infausta empolga
18/389
Do abrigo tendo zombado,
Deixando o bom protetor
De frio susto embaado;
No qual esta horrvel cena
Faz to rpida mudana,
Que toda a sua piedade
Se torna logo em vingana.
Vai ao tronco onde o seu ninho
19/389
Tinha a cruel guia feito,
Quebra-lhe os ovos e vem
Inda pouco satisfeito.
Ela vendo o fero estrago
Da sua prole querida,
Com gritos atroa os ares,
Tenta contra a prpria vida.
Tomar severa vingana
20/389
Em vo do insulto pretende,
Que a pequenez do agressor
Da sua raiva o defende.
No ano seguinte mais alto
Vem seu ninho edificar,
Mas l mesmo o vingativo
Lhe vai os ovos quebrar.
Assim do coelho a morte
21/389
Segunda vez vingada,
E a sua atroz matadora
Sente aflio duplicada.
Seis meses em vos grasnidos
Atroa montes e vales:
Faz este enojo segundo,
Que se exacerbem seus males;
Proteo pedindo a Jove
22/389
Seu templo excelso procura,
E do nmen no regao
Guarda a terceira postura.
Aquele asilo sagrado
Pe toda a sua esperana,
Que tem no abrigo do nume
Do seu ninho a segurana.
Mas de tom muda o contrrio,
23/389
Que os passos todos lhe espreita,
Pe-se dalto, e imunda escria
Sobre o manto ao nmen deita;
O sacerdote do templo
Indo-lhe logo limpar,
Os ovos do oculto ninho
Deixa cair e quebrar.
Quando a feroz guia observa
24/389
Aquela nova desgraa,
Faz desatinos de louca,
E ao mesmo Jove ameaa.
Quh de abandonar-lhe a corte
E ir viver para os desertos,
Diz ao monarca dos numes
Com outros mil desacertos.
Jove em honra sua esttua
25/389
Manda, por ordem real,
Comparecer o agressor
Perante o seu tribunal.
Ele vem, expe-lhe o facto,
Conta a sorte do coelho,
Dguia o Deus repreende a insnia
E a teima do escaravelho.
E fazendo esforos vos,
26/389
Sem que os possa acordes ver,
Assim decreta, do fado
Tendo ouvido o parecer:
De amor, guia, somente
Sentirs o impulso terno
Quando o escaravelho obtuso
Esteja em quartis dinverno.
Assim foi, e assim se cumpre,
27/389
Deixando ver ao mortal
Que s vezes do mais pequeno
Pode vir o maior mal.
28/389
A Ave Feridade Uma Flecha
Foi de uma flecha emplumada
Uma das aves ferida,
E assim ao seu matador
Falou no extremo da vida:
Contribuir deveremos
Para a nossa mpia desgraa
Dando penas que aligeirem
A seta que nos traspassa?
Das nossas asas as plumas
Arrancais, prognie atroz,
Mas, prole de Jafet,
Da nossa cruel desgraa
No zombeis, no faais mofa,
30/389
Que o mesmo entre vs se passa.
A mesma infelicidade,
Metade da gente as armas
D contra a outra metade.
31/389
A Cotovia e osSeus Filhos
Uma idosa cotovia,
Na meiga flrea estao,
Foi mais tardia quas outras
Na sua propagao.
Entre uma pingue seara,
Questava quase madura,
Tinha arranjado o seu ninho
E feito a sua postura.
J pelos ares se viam
De novas aves cardumes,
E inda os filhos da ronceira
Estavam todos implumes.
J seca a seara estava,
33/389
E o dono da sementeira,
Vindo v-la com seus filhos
Lhes falou desta maneira:
Amanh comearemos
A ceifar os nossos trigos;
Convidai para ajudar-nos
Todos os nossos amigos.
Foram-se; e pode julgar-se
34/389
Que susto no sofreriam
Os passarinhos infaustos,
Quinda voar no podiam.
Quando a me veio de fora,
Disseram-lhe entre alaridos:
No sabe, me, o que vai,
no sabe, estamos perdidos!
Foi o dono destes pes
35/389
Seus amigos convidar,
Para amanh muito cedo
A ceifa principiar.
Os seus amigos! disse ela ,
A vossa agonia v,
Sossegai, dormi tranquilos;
Que se no ceifa amanh.
Assim foi; que no outro dia
36/389
Os amigos no chegaram,
Que dando ao velho desculpas
Cortesmente se escusaram.
Voltou no dia seguinte
O dono, e tornou a dizer:
Nossos amigos faltaram,
E os trigos vo-se perder.
Para amanh comearmos,
37/389
Ide, filhos, diligentes,
Dizer que venham com foices
Todos os nossos parentes.
Novos sustos, novas nsias,
Os passarinhos tiveram,
E apenas a me chegou
Logo tudo lhe disseram:
Ele convida os parentes!
38/389
Disse a esperta cotovia,
Pois sabei quinda amanh
A ceifa no principia.
Passou-se a manh, e a tarde,
E nenhum apareceu,
Respondendo que deviam
Primeiro ceifar o seu.
Ento, no outro dia, o dono
39/389
Disse: Em ns s confiemos,
Eu, e vs, e os nossos moos,
Amanh comearemos;
Ide, filhos, comprar foices
Hoje mesmo no mercado,
Quespero quem breve tempo
Vejamos tudo ceifado.
Quando a cotovia esperta
40/389
Viu esta resoluo,
Disse: filhos, logo, e logo,
Deixai esta habitao.
Prontamente os filhos todos
Cuadas e voltas dando,
Atrs da me aos saltinhos
Se foram logo safando.
41/389
Em menos de trs semanas,
At sem muita canseira,
Estava j debulhado
O trigo dentro da eira.
O velho ento conheceu,
Vencendo a sua demanda,
A fora deste ditado:
Quem quer vai, quem no quer
manda.
42/389
A Doninha naDespensa
Esguia, e longa de corpo,
Entrou Madame Doninha
Por um estreito buraco
Que certa despensa tinha.
Ali foi gente a esfaimada;
Sobre o toucinho saltou,
Roeu paios e presuntos,
E em tudo a sopa molhou.
Passados nove ou dez dias,
J ndia, gorda e pesada,
Vindo um criado despensa
Por um triz no foi pilhada.
Vendo o seu risco iminente,
44/389
Quis ento salvar a pele,
Foi-se ao buraco da entrada,
Porm no coube por ele.
No ser o mesmo supondo
Por onde ali tinha entrado,
Deu mil voltas, no viu outro,
E creu o caldo entornado.
Neste buraco ento clama ,
45/389
H dez dias, sem mentir,
Que para entrar coube, e agora
No caibo para sair.
Ou eu perdi todo o tino,
Ou o buraco estreitou.
Mas nisto um rato j velho
Desta sorte lhe falou:
Magra e faminta vieste,
46/389
Gorda e farta agora ests,
Torna a ser magra e faminta,
Logo sair poders.
Se algum contigo aqui der,
Faz-te os ossos em aorda;
Reflete se mais te agrada
Viver magra ou morrer gorda?
A doninha no fez caso,
47/389
E a mesma vida seguiu
At que deram com ela,
E dura morte sentiu.
A vrios sucede o mesmo
Em qualquer ocupao;
Que o muito quengordar querem
Faz a sua perdio!
48/389
A Formiga e aCigarra
Tendo a cigarra cantado
Todo o vero sem governo,
Em nada tinha cuidado,
E era o princpio do inverno.
Achava-se desprovida
Do sustento para a vida;
Triste futuro augurava
Na coliso em que estava;
Lembrou-lhe certa vizinha
Dona Formiga de tal,
Qum farto celeiro tinha,
Posto que era voz geral
Ser mui pouco liberal.
50/389
Foi a sua casa ento
E estendeu-lhe este panal:
Vizinha do corao
A seus ps hoje aqui venho
Fazer-lhe uma petio,
Caem-me as faces no cho
Pela vergonha que tenho.
o negcio: eu queria
51/389
Que me emprestasse algum gro
Do que Vossa Senhoria
Nos seus celeiros encerra,
Pois que esta mesquinha terra
Me tem sido to fatal!
Quando vier julho ardente
Serei muito pontual
Em pagar-lhe exatamente,
52/389
No s o seu principal,
Mas aquilo em que assentarmos
Nos ajustes que tratarmos.
Esteve-lhe ouvindo tudo
Mui seriamente a formiga.
E torna-lhe em tom sisudo:
Que fez, no vero, amiga!
Que fiz?, amada senhora,
53/389
Diz a cigarra: Cantei.
Era o mesmo queu pensei,
Pois pode bailar agora ,
A formiga respondeu;
Fizesse como fiz eu,
Que trabalhei no vero
Para no inverno ter po.
Quem s nos divertimentos,
54/389
Sem cuidar na subsistncia,
Ocupa os seus pensamentos,
Quando cair na indigncia
Conte quo mesmo h de ouvir
queles a quem pedir.
55/389
A Galinha QuePunha os Ovos
de Ouro
Um homem tinha
Uma galinha,
Que Juno bela
Por desenfado
Tinha fadado.
Vivia ela
Dentro dum covo,
E punha um ovo
Douro luzente
Em cada dia,
Que valeria
Seguramente
57/389
Dobro e meio;
Mas o patro,
Um dia, cheio
Dmpia ambio,
Foi-se galinha
E degolou-a.
Examinou-a
Porque supunha
58/389
Quem si continha
Rico tesouro,
Visto que punha
Os ovos de ouro.
Mas nada achou!
E por avaro
Se despojou
Do rico amparo
59/389
Que nela tinha.
Outra galinha
Jamais topou
Com tal condo;
E assim pagou
Sua ambio.
60/389
A Gralha entreos Paves
Pavo quandava na muda,
Sua plumagem largou,
E uma gralha presunosa
Com ela o corpo adornou.
Entre um rancho de paves
Atrevida se meteu,
At quum dos camaradas
A impostora conheceu.
Passou palra aos companheiros,
Quem cima dela saltaram,
E no s o adorno alheio,
Mas o prprio lhe tiraram.
Voltou para as companheiras,
62/389
Que do sucesso informadas
A baniram do seu rancho
Ao som de mil apupadas.
O que sucedeu gralha
Aos homens pode convir;
Aquele quo alheio veste
O vem na praa a despir.
Este caso, alm do exposto,
63/389
Serve tambm de lio
A todos os que procuram
Parecer mais do que so.
64/389
A Lebre e aTartaruga
Apostemos disse lebre
A tartaruga matreira,
Queu chego primeiro ao alvo
Do que tu, qus to ligeira.
Cala a boca, toleirona
Lhe disse a lebre mofando
Ou tens perdida a cabea,
Ou comigo ests zombando.
Respondeu-lhe a tartaruga:
Nisso me ests a entender
Que receias apostar
Porque no queres perder.
Pois tu, v, qus uma lesma,
66/389
Queres competir coa a lebre?
Isso doena, ests vria,
Provm do efeito da febre;
Eu, que por uma charneca
Corro dos galgos em frente,
Quos canso, sem que me possa
No lombo ferrar o dente,
Havia temer a quem
67/389
Gasta umhora em dar um passo?
Retrucou-lhe a tartaruga
Com todo o desembarao:
Leva, amiga, de bazfias,
Desculpas no valem nada;
Se tem medo, no aposte;
Porm, d-se por cangada.
Ando no mar e na terra;
68/389
Sei muito bem o qu mundo;
Propus-me apostar contigo
Porque sei no que me fundo.
Pois v feito diz a lebre;
E aquele velho sobreiro
seja a meta, e leve o prmio
A que chegar l primeiro;
De juiz no precisamos;
69/389
Porqueu na meta vou pr
As apostas, que sero
Da primeira que l for.
Eis vai cumprir o quajusta,
E volta num breve prazo;
No digo o que foi aposta,
Porque isso no vem ao caso.
Dado o sinal da partida,
70/389
Estando as duas a par,
A tartaruga comea
Lentamente a caminhar;
A lebre, tendo vergonha
De correr diante dela,
Tratando uma tal vitria
De peta, ou de bagatela,
Julga, cheia de vaidade,
71/389
Quinda tempo lhe sobeja
Se entrar a correr j quando
Perto do sobreiro a veja.
Deita-se, dorme o seu pouco;
Ergue-se e pe-se a observar
De que parte corre o vento,
E depois entra a pastar;
Eis deita uma vista dolhos
72/389
Sobre a caminhante sorna;
Inda a v longe da meta,
E a pastar de novo torna.
Olha; e depois qua v perto
Comea a sua carreira;
Mas ento apressa os passos
A tartaruga matreira.
meta chega primeiro,
73/389
Apanha o prmio apressada,
Pregando lebre vencida
Uma grande surriada.
No basta s haver posses
Para obter o quintentamos;
preciso pr-lhe os meios,
Quando no atrs ficamos:
O contendor no desprezes
74/389
Por fraco, se te investir;
Por quum ano acordado
Mata um gigante a dormir.
75/389
A Lebre e asRs
Uma lebre em sua toca
Suponha-se o que faria,
Temerosa, estava alerta
A ver se passos sentia.
Melanclica por gnio,
Ralava-se de temor,
E sentia um sobressalto
Ao mais pequeno rumor.
Quanto infausta sou dizia
no centro destes desertos,
Onde o susto me constrange
A dormir dolhos abertos!
Talvez que muitos me digam:
77/389
Dalma esse medo sacode;
Mas se ele de natureza,
Quem que mud-lo pode?
Talvez tambm os mais passem
Em sustos os dias seus:
Porm os males dos outros
No remedeiam os meus.
Sempre inquieta e duvidosa,
78/389
Assim razoava a lebre,
Um vento, uma sombra, um nada,
Lhe dava um susto, uma febre.
Era tempo de ir ao pasto
E de largar o seu ninho,
Qu ditado: frio e fome
Metem a lebre a caminho.
Sai; porm, logo escutando
79/389
Um tiro, que ao longe soa,
Mete pernas a esconder-se
Nos juncos duma lagoa.
Ao v-la as rs dimproviso
Saltam ngua temerosas,
E vo no fundo esconder-se
Das suas lapas limosas.
Que vejo? O Cus! clama a
lebre.
80/389
Medo estas rs de mim tm!
O mesmo que os mais me fazem
A elas fao eu tambm!
Ponho em susto um povo inteiro
E sou qual raio da guerra!
Quem me faz to forte, quando
Tudo me assusta e me aterra?
Inda o que for mais medroso
81/389
H de outro medroso ver,
A quem uma voz ao menos
De susto faa tremer.
Igualmente o desditoso
No deve desesperar,
Quoutro mais infeliz quele
Pode no mundo encontrar.
82/389
A MulherTeimosaAfogada
Um homem quera casado
Com mulher nscia, e teimosa,
Que tinha um gnio danado,
Foi um dia
Fazer certa romaria
Distante do povoado,
Eis que um rio caudaloso,
No fim da estrada encontraram,
Que passar era foroso.
O marido
Sonda o vau e, prevenido,
Teme entrar no pego undoso.
84/389
A mulher, teimosa e m,
Lhe diz: Entra ngua, fona,
Que perigo nenhum h.
H perigo ,
Torna-lhe ele E no prossigo.
E ela diz: Pois eu vou l.
Nisto mete-se imprudente
A levada impetuosa
85/389
Feita pela grossa enchente.
Ento cai,
E indo ao fundo aos urros vai
Envolvida na corrente.
Aterrado, o pobre esposo,
Vendo aquela atroz desgraa,
Inda quer salv-la ansioso;
Que a lastima,
86/389
E vai pelo rio acima
Procurando-a cuidadoso.
Os que viram abism-la,
Vendo-o ir contra a corrente,
Dizem: Valha-te uma bala,
borracho,
Se foi pelo rio abaixo
L em cima quhs de ach-la?
87/389
Torna-lhe ele: Este drago
Sempre com todos viveu
Em fera contradio,
E por m,
Juro que subindo ir,
Se as guas descendo esto.
s avessas da outra gente
Andou toda a sua vida;
88/389
Mas j teimosa imprudente
No ser,
Quo gnio que o bero d
Tira-o a tumba somente.
89/389
A Perdiz e aLebre
Uma perdiz e uma lebre
No mesmo campo habitavam,
E em vindo a perdiz ao cho
Ambas muito conversavam.
A lebre s nuvens erguia
De seus ps a ligeireza;
Louvava das asas suas
A perdiz a fortaleza.
Mas ao campo veio um dia
Matilha de ces de caa,
E a lebre foi esconder-se,
Temendo alguma desgraa.
O Esperto e o Fusco, podengos,
91/389
De olfato muito subtil,
Pela pista farejando
Deram prontos no covil.
Era terreno arenoso;
E logo tanto raparam,
Que arrombando a frgil toca
A pobre lebre apanharam.
A perdiz, tudo observando,
92/389
Qual as amigas modernas,
Disse: bem feito, pacvia,
De que te serviu ter pernas?
Tantas vezes celebraste
Tua grande ligeireza,
E sem que um s pulo desses
No covil ficaste presa.
Enquanto a perdiz mofava
93/389
Do qua msera passou,
Parado, c'os olhos nela,
Um perdigueiro observou.
J de sustos perturbada,
Batendo as asas fugiu;
Mas o co, destro correndo,
Bem que de longe a seguiu:
Cansada, pousou num monte,
94/389
E ele sobr'ela correu;
Tornou-se a erguer, perseguiu-a,
Cansou-a, e morte lhe deu.
Se enquanto em pilhar a lebre
A matilha se empregava
Tivesse a louca fugido,
Decerto morte escapava.
Zombarmos do mal alheio
95/389
Foi sempre loucura atroz;
Que nos pode vir por casa,
E ento zombarem de ns.
96/389
A Pomba e aFormiga
Enquanto a sede uma pomba
Em clara fonte mitiga,
V por um triste desastre
Cair ngua uma formiga.
Naquele vasto oceano
A pobre luta e braceja,
E vir margem da fonte
Inutilmente deseja.
A pomba, por ter d dela,
Ngua uma ervinha lhe lana;
Neste vasto promontrio
A triste salvar-se alcana.
Na terra a pe uma aragem;
98/389
E livre do precipcio,
Acha logo ocasio
De pagar o benefcio.
Que v atrs de um vaiado,
J fazendo pomba festa,
Um descalo caador,
Que dura farpa lhe assesta.
Supondo-a j na panela,
99/389
Diz: Hei de te hoje cear ;
Mas nisto a formiga astuta
Lhe morde num calcanhar.
Sucumbe dor, torce o corpo,
Erra o tiro, a pomba foge;
Diz-lhe a formiga: Coitado!
Foi-se embora a ceia de hoje.
De boca aberta ficando,
100/389
Conhece o pobre gluto
Que s devemos contar
Com o que temos na mo.
E posto enfim que haja ingratos,
Notar devemos tambm
Que as mais das vezes no mundo
No se perde o fazer bem.
101/389
A R e o Boi
Num prado uma r
Um boi contemplou,
E ser maior que ele
Vaidosa intentou.
A pele enrugada
Inchando alargou.
E s leves irms
Assim perguntou:
Maior quo boi,
manas, j sou?
No s lhe disseram,
E a r lhes tornou:
E agora inda no?
Mais inda inchou.
103/389
Eis logo de todas
Um no escutou.
Inchar-se invejosa
De novo buscou,
Mas dando um estouro
A vida acabou.
Tambm, se em grandeza
Vencer procurou
104/389
O pobre ao potente,
Por fora estourou.
105/389
A Raposa, aCabra e a Filha
Contra a raposa sabida,
Uma cabra prevenida
A pastar sair querendo,
O fecho da porta erguendo,
sua prole querida
Assim disse, o mal prevendo:
Agora, filha sincera,
Que tenho quir ao pascigo,
Toma conta no que digo:
Sabers quh uma fera,
Que raposa tem por nome,
A qual rouba, mata e come,
Pelos embustes que trama,
107/389
Tenras cabrinhas de mama;
E assim, filha, muito importa
Quenquanto a casa eu no venha
A ningum abras a porta
Sem que te d esta senha:
"Mau fim a raposa tenha
Mais a sua gerao."
Por ali passava ento
108/389
Uma raposa perversa,
Quouvindo toda a conversa
De cor a senha aprendeu,
E vendo a cabra sair,
Chegou-se porta e bateu.
Entrou a voz a fingir,
Dizendo: Podes abrir,
Cara filha, que sou eu.
109/389
E nisto a senha lhe deu.
A cabrinha temerosa
Da voz estranhando o tom,
Lhe respondeu cautelosa:
Amiga, seria bom,
Antes queu a porta abrisse,
Quuma das tuas mos visse;
E portanto o brao entorta,
110/389
E v se o podes meter
Aqui por baixo da porta,
A fim de queu possa ver
Se garra ou unha o que tens;
Doutra sorte, errada vens.
Do quouviu tonta a matreira
Replicou muito lampeira:
Porque raposas tm unha?
111/389
Era o mesmo queu supunha.
A cabrinha ento clamou,
E no fecho carregou.
A raposa presumida,
Tonta, pasmada, aturdida
De ver em to pouca idade
Tamanha sagacidade,
Partiu a tratar da vida;
112/389
E a cabrinha acautelada
Escapou de ser tragada.
Quase sempre a segurana
Serve aos mortais de guarida,
E a sbia desconfiana
Mil vezes nos poupa a vida.
113/389
A Raposa e aCegonha
Quis a raposa matreira,
Que excede todos na ronha,
L por piques de outro tempo,
Pregar um pio cegonha.
Topando-a, lhe diz: Comadre,
Tenho amanh belas migas,
E eu nada como com gosto
Sem convidar as amigas.
De l ir jantar comigo
Quero que tenha a bondade;
V em jejum, porque pode
Tirar-lhe o almoo a vontade.
Agradeceu-lhe a cegonha
115/389
Uma oferenda to singela,
E contava que teria
Uma grande fartadela.
Ao stio aprazado foi,
Era meio-dia em ponto,
E com efeito a raposa
J tinha o banquete pronto.
Espalhadas num lajedo
116/389
Ps as migas do jantar,
E cegonha diz: Comadre,
Aqui as tenho a esfriar.
Creio que so muito boas
Sans faon vamos a elas.
Eis logo chupa metade
Nas primeiras lambidelas.
No longo bico a cegonha
117/389
Nada podia apanhar;
E a raposa, em ar de mofa,
Mamou inteiro o jantar.
Ficando morta de fome
No disse nada a cegonha;
Mas logo jurou vingar-se
Daquela pouca-vergonha.
E, fingindo ser-lhe grata,
118/389
Disse: Comadre, eu a instigo
A dar-me o gosto amanh
De ir tambm jantar comigo.
A raposa lambisqueira
Na cegonha se fiou,
E ao convite, s horas dadas,
No outro dia no faltou.
Uma botija com papas
119/389
Pronta a cegonha lhe tinha;
E diz-lhe: Sem cerimnia,
A elas, comadre minha.
J pelo estreito gargalo
Comendo, o bico metia,
E a esperta s lambiscava
O que cegonha caa.
Ela, depois de estar farta,
120/389
Lhe disse: Prezada amiga,
Dmos mil graas ao Cu
Por nos encher a barriga.
A raposa, conhecendo
A vingana da cegonha,
Safou-se de orelha baixa,
Com mais fome que vergonha.
121/389
Enganadores nocivos,
Aprendei esta lio:
Tramas com tramas se pagam,
Que pena de Talio.
Se quase sempre os que iludem
Sem que os iludam no passam,
Nunca ningum faa aos outros
O que no quer que lhe faam.
122/389
A Raposa e oLobo
Compadre (contam que ao
lobo
Disse a raposa uma vez) ,
Pari dois filhos, e agora
No mos comas, por quem s.
No, comadre, est segura
(Logo o lobo lhe tornou) ,
Que nunca em dano de amigos
O meu dente se embotou.
Lembra-me ainda aquele inverno,
Em que to doente andei,
Que dos teus roubos e traas,
Comadre, me sustentei.
124/389
Mas preciso que deles
Me ds agora os sinais,
Para isent-los da morte
Quando for comer os mais.
De gosto de tal promessa
A raposa regougou;
E catando-lhe uma orelha,
Desta sorte lhe falou:
125/389
De todos os raposinhos,
Que hs de, compadre encontrar,
Os mais ndios, mais formosos,
So os meus, no tens que errar.
Com estes sinais somente
O lobo se despediu;
E logo em busca de presa
s vastas brenhas partiu.
126/389
Em uma hedionda furna
Aonde a fome o levou,
Mui feios, sujos e auguados
Dois raposinhos achou.
No so os da minha amiga,
Pelos sinais que me deu
Disse, e lanando-lhes a garras
Ambos matou, e comeu.
127/389
Eis entra a raposa, e clama,
Vendo o sucesso: Ai de mim!
Ai de mim! negro compadre,
Que aos filhos meus deste fim.
To incessante rogar-to,
Ai, triste! no me valeu.
Mas nisto o prudente lobo
Severo lhe respondeu:
128/389
Pelos sinais que me deste
Os teus filhos no comi;
E se estes eram teus filhos
Ento queixa-te de ti.
O muito que tudo nosso
Com excesso nos apraz,
Quase sempre que no mundo
129/389
Mil prejuzos nos faz.
130/389
A Raposa, oMacaco e
OutrosAnimais
Havendo a tirana parca
Tirado a vida ao leo,
Das vastas selvas monarca,
Numa oculta solido,
Os animais se ajuntaram;
Do cofre a croa tiraram;
De quera guarda um drago,
A pleno voto assentaram,
Qua fronte em quela servisse
Desde logo a possusse.
Mil animais se aprontaram
132/389
E a croa fronte levaram;
Porm, a nenhum servia,
Um por ter a testa esguia,
Outro por ser cabeudo;
Notando o macaco tudo,
Bem quinda fraco se visse,
Duma grande macacoa
Tomou entre as mos a croa,
133/389
E com muita macaquice,
Posto que mal lhe servisse,
Na cabea a colocou.
Tanto ao congresso agradou
Sua aparente viveza,
Gestos, esgares; destreza,
Que por seu rei o aclamou.
Festas houve, e mascaradas,
134/389
Touros, danas, cavalhadas,
Luminrias pelos campos,
Postas pelos pirilampos;
Tudo em prazer se inundou!
S a raposa prudente,
Ficou assaz descontente,
Mas seu enojo ocultou
E ao rei novo a mo beijou.
135/389
De trs meses no decurso
Nada o mono feito havia;
A cavalo sobre um urso,
Com gaifonas todo o dia,
Do governo se esquecia.
Eis a raposa matreira,
Observando, sorrateira,
Tal porte, desordem tal,
136/389
Quis pr termo a tanto mal:
Certo dia, muito cedo,
Foi ao palcio real
E disse ao rei, em segredo,
Qum tesouro oculto havia,
De que s ela sabia,
E qua Sua Majestade
Por direito pertencia.
137/389
Desta feliz novidade
O rei ficou to contente,
Que se dignou ternamente
A dar-lhe um fervido abrao;
E da esperta em companhia
Mesmo a p saiu do pao.
Numa floresta sombria
Entraram em breve espao;
138/389
E disse a raposa quera
Onde o tesouro existia:
Omono, sem mais espera,
Num covil quela apontou
Foi logo meter o brao.
Mal enredado ficou.
Assim que preso no lao
A cavilosa o pilhou.
139/389
A conselho os animais
quele stio chamou
E o rei preso lhes mostrou,
Dizendo-lhes: Vede ali
Do vosso engano os sinais,
Caiu no lao qurdi
Por ser nscio, e refleti
Que reger no pode os mais
140/389
Quem to mal se rege a si.
O congresso, quatli
Ocultava o seu desgosto,
Vendo fausta ocasio,
Exclamou: Seja deposto.
E deposto foi ento.
Porm, como se temia
A desgraa danarquia,
141/389
Elevou-se outro leo
Noutro clima produzido
Para rei daquele povo;
Que bem quera leo novo,
Para rei tinha nascido:
A notcia da eleio
A raposa lhe levou
Primeiro do que ningum:
142/389
Agradeceu-lha o leo;
Veio a p sem nenhum trem,
Tomou posse e reinou bem.
Aparncias de juzo,
Ser alegre, ter bom ar,
No s qu preciso
Para reger, ou reinar:
Cumpre quhaja tolerncia,
143/389
Retido, discernimento,
Inteireza, vigilncia,
Cultivado entendimento,
As lisonjas vs ser mouco,
Ouvir muito e crer em pouco.
O que tais dons ajuntar
Pode o mundo governar.
144/389
A Serpente e aLima
Conta-se quma serpente
Dum serralheiros vizinha,
Esfomeada e mesquinha,
Na loja noite lhe entrou.
Correu tudo, e, no achando
Em que da fome se exima,
Ps-se a roer numa lima
Quali primeiro encontrou.
Esta, sem que se agastasse,
Lhe disse: Ri-me, serpente,
Vers depois quo teu dente
H de sentir quem eu sou.
Assim foi! Rombos ficaram
146/389
Os dentes serpe dura,
Que desde aquela aventura
Sempre a roer lhe custou.
Convosco falo, vos zoilos,
Vos de talento, e de estudo,
Mas que ousais morder em tudo.
So ouro as obras do sbio,
147/389
Se as roeis, roeis vmente;
No se imprime o vosso dente
No que a fama eternizou.
148/389
A Tainha e oPescador
Uma pequena tainha,
Quinda no era fataa,
Na margem duma ribeira
Caiu em dolosa nassa.
O pescador, quando a viu,
Lhe disse: s pequena assaz,
Mas fazes nmero; noite,
De ceia me servirs.
Tem d de mim clamou ela ,
Num tom de voz muito agudo,
Queste caso foi no tempo
Em que inda falava tudo.
Tem d de mim prosseguiu ,
150/389
Torna-me ngua a lanar,
E quando eu for mais crescida,
Podes-me ento apanhar.
De que te sirvo eu agora
Nesta minha pequenez?
Sou um mesquinho bocado,
Que se engole duma vez;
Por alto preo me podes
151/389
Quando eu for grande vender;
Ou ter em mim trs jantares
Se me quiseres comer.
O pescador lhe tornou:
Falas verdade, bem sei;
Mas antes um toma l,
Do que dois eu te darei.
Tu, e algumas irms tuas,
152/389
Quinda hoje espero pescar,
Ho de servir-me esta noite,
Quas hei de fritas cear;
Talvez que mais te no visse
Se te soltasse piedoso;
tolo quem deixa o certo
Pelo que est duvidoso.
153/389
A Vista deQuem Dono
Um tmido veado
Por mpios ces instado,
Foi num curral de bois
Buscar piedoso abrigo
E escudo ao seu perigo.
Um boi disse: O vizinho,
Vai, segue o teu caminho,
Melhor asilo busca.
Tornou-lhe o cervo assim:
Irmo, tem d de mim!
L fora anda um cachorro,
Que se me apanha eu morro!
Aqui ficar me deixa,
155/389
Quem prmio um bom pascigo
Te indicarei, amigo.
Calou-se o boi, e no entanto
O cervo ps-se a um canto;
Trouxeram erva os moos,
Entraram e saram,
E o hspede no viram.
J livre se julgava
156/389
Do susto quencarava;
Ps-se a comer no feno,
E junto manjedoura
Foi rede varredoura!
Um boi lhe disse ento:
Em risco ests, irmo!
Quesse homem de cem olhos
No veio indhoje aqui!
157/389
E a vir, pobre de ti!
O tmido veado
Foi pr-se alapardado
Entre uma carga derva;
E entrou nela a comer
Por tempo no perder.
Chegou pouco depois
O dono a ver os bois,
158/389
Dos moos precedido;
E um tanto carrancudo
Ps-se a ralhar por tudo:
Levanta esse aguilho,
A canga est no cho,
Feno ao mourisco deita;
Parece esterva pouca,
Aqui h outra boca!
159/389
Deitando ao lado os olhos,
Viu entre os verdes molhos
Um galho darmadura
Do tmido veado,
Questava acaapado.
Ento lhe disse: Ol!
Voc tambm por c!
Comendo o pasto aos bois!
160/389
Espere , e cum forcado
Deu morte ao malfadado!
Tem mais vista, ou melhor,
Os olhos dum senhor
Do quos dos seus criados;
Porquo prprio interesse
As vistas esclarece.
161/389
As DuasPanelas
Prenderam duas panelas
Atrs na argola dum carro,
Era a primeira de cobre
E a segunda de barro.
Logo ao primeiro balano;
Que ao mover-se o carro deu;
Porque estavam to unidas
Uma na outra bateu;
Disse a de cobre de barro:
Sentido no me provoque,
Conhea melhor quem ,
E nem por brinco me toque.
163/389
Veja que eu sou de metal
De que se faz o dinheiro,
E voc de humilde barro,
Que sempre acaba em caqueiro.
Ol, Senhora Fidalga:
Lhe torna a outra panela,
No v, que o meu interesse
fugir de tocar nela;
164/389
Se tornarmos a bater,
Qual a prejudicada,
Fica a Senhora sem mancha;
E eu pelo menos quebrada.
imagem do egosta
Esta panela de cobre;
Que somente em si cuidando,
No lhe importa o que mais
pobre;
165/389
sombra de um prejuzo,
Que muito ao longe imagina
Mais o aflige do que ver
Dos mais a total ruina.
166/389
Aviso deScrates
Scrates fez umas casas
De Atenas em certa rua,
Para nelas habitar
Coa pouca famlia sua.
Queram baixas uns diziam,
E outros bastante elevadas,
E em suma convinham todos
Em queram muito apertadas.
So apertadas, certo
Disse o sbio , mas eu no sei
Que de amigos verdadeiros
Cheias jamais as verei.
168/389
mais raro do que a Fnix
Um amigo verdadeiro:
No h nome to sagrado
Que seja mais corriqueiro.
169/389
O Burro e oDogue
Era uma vez um jumento
Que certa casa servia,
Na qual tambm muito ndio
Um dogue formoso havia.
No silncio dalta noite
O orelhudo comparava
A sua penosa vida
Com a que o dogue levava.
Uma vez, triste e zangado,
Entrou a dizer assim:
Trabalho mais do queu posso,
e ningum tem d de mim!
171/389
Esse dogue, esse cachorro,
Passa vida regalada,
Corre, pula, brinca e dorme.
Come, bebe, e no faz nada.
Mas creio quele desfruta
Uma estimao to alta,
Porquassim quo patro chega
Faz-lhe festa, gane e salta.
172/389
E a mim, talvez me odeiem,
Porquum tanto sou casmurro
E trago impressa na frente
Sempre tristeza de burro.
De vida se mude; o instinto
Quimite o dogue me diz,
Que fazendo o quele faz
Posso tambm ser feliz.
173/389
Constante neste projeto,
Quebrando o cabresto um dia,
Ps-se espera, dolho alerta,
A ver se o patro saa.
Zurrando apenas o viu,
Nele aos pinotes saltou,
Ps-lhe as patas sobre o peito
E na calada o lanou.
174/389
Depois entrou a lamb-lo,
Tal como o dogue fazia;
Dava-lhe em defensa o dono
Murro e coice que fervia.
Depois que se pde erguer,
Lanando mo de um cajado,
Deu-lhe a deix-lo por morto,
Julgando-o louco, ou danado.
175/389
Assim pagou a imprudncia
Da sua louca inveno;
Cada qual tem seus instintos;
Ser burro no ser co.
Deveremos conhecer-nos;
Qualm de arrojo leveza
Buscar transpor os limites
176/389
Que nos ps a Natureza.
177/389
O Burro e osDonos
O burro de um hortelo
sorte se lamentava,
Dizendo que madrugava,
Fosse qual fosse a estao,
Primeiro quos resplendores
Do Sol trouxessem o dia.
Os galos madrugadores
(O nscio burro dizia)
mais cedo no abrem olho,
E porqu? Por ir praa
Cuma carga de repolho,
Um feixe daipo, ou labaa,
Alguns nabos e bringelas;
179/389
E por estas bagatelas
Me fazem perder o sono.
A sorte ouviu seu clamor
E deu-lhe em breve outro dono,
Quera um rico surrador.
Eis de couros carregado,
Sofrendo um cruel fedor,
J carpia ter deixado
180/389
O seu antigo senhor.
Naquele tempo dourado
Dizia , andava eu contente,
Cada vez que ia ao mercado
Botava cangalha o dente,
L vinha a couve, a nabia,
A chivarola, o folhado,
E outras castas de hortalia;
181/389
Mas se hoje, fraco do peito,
O meu dente carga deito,
Em vez da viosa rama
Da celga, do grelo, ou nabo,
S acho dura courama,
Que fede mais quo Diabo!
Prestando s queixas do burro
A sorte alguma ateno,
182/389
Lhe deu por novo patro
Um carvoeiro casmurro.
Entrou em nova aflio
O desgostoso jumento.
Vendo faltar-lhe o sustento
E em negro p de carvo
Andando sempre afogado,
Tornou a carpir seu fado.
183/389
Que tal! diz a sorte em fria
Este maldito sendeiro
Com sua eterna lamria
Mais me cansa, mais me aflige,
Quum avaro aventureiro
Quando fortunas me exige;
Pensa acaso este imprudente
Que s ele desgraado?
184/389
Por esse mundo espalhado
No v tanto descontente?
J me cansa este marmanjo!
Quer queu me ocupe somente
Em cuidar do seu arranjo?
Foi justo da sorte o enfado,
Qu propenso do vivente
185/389
Lamentar-se do presente
E chorar pelo passado:
Que ningum vive contente,
Seja qual for o seu estado.
186/389
O BurroVestido comPele de Leo
Quebrando a peia,
Fofo sendeiro
Fugiu ao dono,
Quera moleiro;
Dentro de um bosque
O fanfarro
Achou a pele
Dalto leo;
Em toda a parte,
Dela vestido,
Por leo fero
Era temido;
188/389
Homens e brutos
O respeitavam,
Fugiam logo
Quo divisavam;
Mas das orelhas
Uma pontinha
De fora ao burro
Ficado tinha;
189/389
Foi vista acaso
Pelo moleiro,
Que julgou logo
Ser o sendeiro;
Indo-lhe ao lombo
Com um cajado,
Puniu o arrojo
Do mascarado;
190/389
Do tolo rindo,
Despiu-lhe a pele,
Ps-lhe uma albarda
E montou nele.
Tal entre os homens
Mil se conhecem,
Os quais so uns,
E outros parecem,
191/389
Despem-lhe a pele
Que os faz troantes,
Ficam sendeiros
Como eram dantes.
192/389
O Co Vendo aSua Imagem na
gua
A nado passava
Um claro ribeiro
Avaro rafeiro;
Na boca levava
De carne um tassalho
Furtado num talho.
Do rio no fundo
Notou insensato
Seu prprio retrato;
Julgou furibundo
Ser outro o que via
E carne trazia.
194/389
Tirar-lha querendo,
Largou o bocado
Que tinha furtado,
Mergulhos fazendo;
E foi providncia
Salvar a existncia.
ser ambicioso,
195/389
Alm dinexperto,
Deixar pelo certo
O qu duvidoso.
196/389
O CarreteiroAtolado
Por caminho apaulado,
Mui barrento e mal gradado,
O seu carro conduzia,
Que trazia
Derva e feno carregado,
Inexperto carreteiro.
Por incria o desgraado,
Num grandssimo atoleiro,
Enterrar deixou seu gado.
Era longe o povoado,
E no vinha caminheiro
Quo ajudasse e lhe acudisse;
De aflio desesperado Se maldisse!
198/389
E exclamou, todo inflamado:
Vem, Hrcules sagrado,
Acudir-me pressuroso,
Pois que j sobre o costado
Sustentaste o Cu formoso.
O teu brao vigoroso
Se me acode,
Este carro tirar pode
199/389
Do atoleiro.
Deste modo se carpia
O carreiro,
Quando ouviu uma voz forte
Que no longe lhe dizia
Desta sorte:
Se quiseres que te valha,
Mandrio, lida, trabalha,
200/389
Examina donde vem
Esse estorvo que te encalha
Ou detm:
Salta acima desse carro,
E tira-lhe um fueiro,
De redor lhe arreda o barro;
Bota pedras no atoleiro,
Cala as rodas, e depois
201/389
Pe-te frente e pica os bois.
Tudo fez o carreteiro
Que lhe tinham ensinado;
E ficou muito pasmado
Quando viu surdir avante
O seu carro do lameiro.
E milagre exclamou logo ,
Ouviu Hrcules prestante
202/389
O meu rogo
E evitou-me o precipcio:
Graas mil, nmen propcio.
Acabando De falar apenas ia,
Outra voz em tom mais brando Lhe
dizia:
Confiar na providncia
Para obter o quintentamos
203/389
Sem que os meios lhe ponhamos
demncia.
Nada obtm quem no procura;
Que foi sempre a diligncia
Me da slida ventura.
204/389
O Cavalo e oBurro
Ia um burro carregado,
E na sua companhia
Um cavalo tambm ia,
Sem carga, leda a saltar.
Ajuda-me disse o burro ,
A levar este carrego,
Seno vila no chego,
Que j me sinto expirar!
Da minha carga, metade
para ti bagatela;
Levando-a, brincas com ela,
E eu posso alvio encontrar.
Fazendo mofa do burro,
206/389
O cavalo, por tolice,
Deu dois pinotes e disse:
Sendeiro, vai bugiar.
Sem alento, afadigado,
Calou-se o pobre burrinho;
Eis em meio do caminho
Caiu por arrebentar!
Veio o dono, e do seu burro
207/389
Lamentou a infausta sorte;
Mas ao cavalo esta morte
No veio pouco a custar!
Que pondo-lhe toda a carga,
Por mais lhe cheirar a esturro,
Albarda e pele do burro
Foi constrangido a levar.
208/389
Quem a pequena tarefa
O corpo esquiva por manha,
s vezes vem-lhe tamanha
Que lhe custa a suportar:
Valer naflio aos outros
E dever da humanidade;
No lhe acudir maldade
Quo Cu costuma vingar.
209/389
O Cavalo e oLobo
Na linda estao das flores,
s horas do meio-dia,
Brioso, esperto cavalo,
A verde relva pascia.
Dum bosque vizinho um lobo,
Botando-lhe o lzio, diz:
Quem te comer essas carnes
por extremo feliz!
Ah!, que se foras carneiro,
Ou mesmo burro, ou vitela,
J marchando me andarias
Pelo estreito da goela;
Mas s um castelo! E assaz
211/389
Temo a tua artilharia!
Vou bloquear-te, e do engano
Fazer fogo bateria.
Ento do bosque saindo
Em passo lento, e mido,
De largo diz ao cavalo:
Camarada, eu te sado;
Respeita em mim um galeno,
212/389
Que passa a vida a curar,
Que das ervas as virtudes
Sabe aos morbos aplicar;
Aposto que tens molstias,
E porque na cura erraram,
Tomar ares para o campo,
Como uso, te mandaram;
Se quiseres que te cure,
213/389
Ficars so como um pero;
Grtis que, bem entendido,
Paga de amigos no quero.
O cavalo, conhecendo
A malcia do impostor,
Diz-lhe: O Cu lhe pague o bem
Que me faz, Senhor Doutor;
verdade queu padeo
214/389
H nove dias, ou dez,
Um tumor e uma ferida,
Tudo nas unhas dos ps.
Bem quessa doena toque
cirurgia somente
Diz o lobo , eu nesse ramo
Sou um prtico eminente!
Torna-lhe o fingido enfermo:
215/389
Pois ento, Senhor Doutor,
Chegue-se a mim, queu me volto,
Venha apalpar-me o tumor.
Pois no, filho! diz-lhe o lobo,
E a fim de o filar se chega.
Mas de repente o cavalo
Dois grandes coices lhe prega:
Acerta-lhe pela frente,
216/389
Faz-lhe o focinho num bolo;
E o lobo exclama: bem feito!
Quem me manda a mim ser tolo?
Mete pernas como pode,
Dizendo um tanto enfadado:
Com a breca as armas!
Fui Buscar l, vim tosquiado.
De carniceiro a ervanrio
217/389
Quis passar sem questudasse;
Levei da toleima o prmio;
Cada qual para o que nasce.
218/389
O Homem e aGata
Um homem tinha uma gata
Por quem morria de amor,
Beleza lhe achava, encantos,
E um no-sei-qu sedutor.
Inda mais louco que os loucos,
Por ela extremos fazia,
At julgava que amor
Quando miava dizia;
Com pranto, rogos, prestgios,
Pde obter da sorte dura
Que lha mudasse em mulher;
Que tanto pode a loucura!
Foi dela a sua metade,
220/389
Dando-lhe de esposo a mo;
Nenhuma bela ao seu noivo
Prendeu tanto o corao.
Ele fazia-lhe afagos,
Ela amoroso carinho;
Mas turbava este prazer
Qualquer ligeiro ratinho:
Porque de noite na cama
221/389
Apenas algum sentia,
Madama saltando casa,
Para apanh-lo corria.
Olho mira, ouvido alerta,
O marido sem sossego
Estava de boca aberta!
Da tranquila posse oriundo,
J o frouxo dissabor
222/389
Lhe trocava em triste enojo
A chama antiga de amor.
Enfados, costas viradas,
Tromba, e mesmo cachao,
Da esposa nunca mudava
A natural propenso.
Precaues nada faziam;
Quinda mesmo estando presa,
223/389
Saltava em sentindo ratos,
Tanto pode a Natureza!
Corrigir ningum consegue
Mulher que por gnio m,
Que somente a cova tira
Propenses que o bero d.
O apetite e novidade
224/389
So vus que cobrem defeitos,
Que avultam depois, e enfadam
Quando estamos satisfeitos.
225/389
O Homem e aSerpente
Um moo encontrou
Dormente
Serpente
Quo gelo enervou.
A casa a levou,
E logo
Do fogo
Mui perto a chegou.
A vil se animou,
Quem breve
Da neve
O efeito acabou;
A cauda anelou;
227/389
Erguendo
E torcendo
O colo, silvou:
A quem a salvou
Do corte
Da morte
Matar intentou.
O moo tomou
228/389
Pesado
Machado
E ao meio a cortou.
A ingrata acabou
Partida,
Coa vida
Seu crime expiou.
229/389
O ter caridade
da humanidade
Um sacro dever;
Porm, no a ter
Com feras ingratas
dalmas sensatas.
230/389
O Homem e odolo de Pau
Pela fama dos milagres,
Comprou um certo pago
Um dolo de madeira,
Por bom preo, num leilo.
Em casa o ps sobre um trono,
E para v-lo propcio
Lhe fazia dalvas reses
Um e outro sacrifcio:
Com mil rogos lhe implorava
Cargos, filhos, interesses;
Mas, tendo orelhas, o nume
Era surdo s suas preces.
Reiterava os sacrifcios
232/389
Com firmeza e confiana,
E bem quem vo, nunca o deus
Perdia a sua pitana.
Mas de baldar tantas preces,
Um dia, desesperado,
Fez em cavacos ao deus
A golpes dmpio machado.
Cheio de ouro o achou por dentro,
233/389
E absorto exclama: Que tal!
J vejo queste senhor
No se quer seno por mal.
Dentro em si tinha um tesouro,
E que o guardava parece
S para aquele profano
Quem pedaos o fizesse.
Era este dolo enganoso
234/389
Ao sobreiro comparado,
Que de si no larga frutos
Se no bem varejado.
Homens h, quis o tal deus,
Para os quos honram inteis,
E s rigor e violncia
Tm fora de os tornar teis.
235/389
O Homem, oCo e a Galinha
Deu um dia em casa um homem
Dois pontaps no seu co
No sei porqu; mas crvel
Que no foram sem razo.
Ganindo muito, o cachorro
Se foi meter na cozinha,
E sentou-se ao p dum covo
Onde estava uma galinha.
Ali fez imensas queixas
Da m vida que passava,
E ao seu tirano senhor
D mpio e de injusto acusava.
A galinha lambareira
237/389
Lhe disse num certo ar:
Se o caso fosse comigo,
Eu havia-me vingar.
Como? perguntou-lhe o co.
E ela tornou-lhe a dizer:
Como?, inda tu mo perguntas?
Isso no tem que saber.
Quando ele vier noite,
238/389
Pe-te na escada estendido;
Porque ao subir tropeando,
Leva um tombo desmedido.
Fingindo que o desconheces,
Ento com ele embrulhado
Podes mord-lo a teu gosto,
E ficas mui bem vingado.
Tudo assim aconteceu
239/389
Qual a galinha o pintou,
O pobre patro caiu
E trs dentadas levou.
Ao som do tremendo baque,
Logo os da casa acudiram,
E em braos, como em charola,
Para a cama o conduziram.
240/389
Quiseram-no pr a caldos;
E a galinha lambareira
Do mau conselho que deu
Foi a vtima primeira.
Igualmente impune o co
No ficou do arrojo seu,
Que levou tosa tamanha,
Que no outro dia morreu.
241/389
Quase sempre um mau conselho
Fez a runa, e far
Tanto de quem o recebe
Como daquele que o d.
242/389
O Lavrador eSeus Filhos
Lavrador j vizinho da morte
A seus filhos falou desta sorte:
Filhos meus, um conselho vou
dar-vos,
De quhaveis toda a vida lembrar-
vos:
No vendais a frutfera terra
De meus pais, fausta herana
quencerra
Um tesouro, quem dote lhes coube,
Mas o stio quest nunca eu soube;
Quele existe e que o h sei decerto,
Mas por vs deve ser descoberto;
Removei o terreno, lavrai-o,
Com desvelo a mido cavai-o,
244/389
E em ditosas colheitas obtendo,
Do tesouro pores ireis vendo.
Morto o velho, os seus filhos
ficaram,
E o paterno conselho abraaram,
Os seus campos to bem
revolveram,
Que feliz sementeira tiveram:
245/389
Todo o nfase ento descobriram
Dos paternos ditames, e viram,
Recebendo feliz poro de ouro,
Qu no mundo o trabalho um
tesouro.
246/389
O Leo e oMosquito
Disse um leo por desprezo
A certo mosquito ardente:
Vai-te, escria vil da Terra,
Vai-te, nonada vivente.
Jura-lhe guerra o mosquito,
Do que ouvira um tanto azedo,
E diz-lhe: Acaso tu pensas,
Queu de lees tenho medo?!
Porques das feras monarca
Nada me ds que temer,
Maior do que s um touro,
E eu fao-o terra comer.
Disse o trombeteiro heri;
248/389
E, tomando um ar agreste,
A trombeta horrenda toca
E ao fero inimigo investe;
Entre as jubas no pescoo
Lhe ferra o duro ferro;
Como louco salta, e escuma,
Ruge e morde-se o leo.
Amedronta as outras feras
249/389
O seu furor inaudito,
Atroa os cus, sendo tudo
Obra de um tnue mosquito.
O aborto duma vil mosca
Por mil partes o molesta,
Punge-lhe o peito, o focinho,
Os olhos, o lombo, a testa;
Este invisvel contrrio
250/389
Triunfa do seu furor,
Garras, dentes, raiva, tudo
Lhe inutiliza o traidor;
Com a cauda aoita as ancas,
Sacode a increspada juba,
At que a extrema fadiga
Vencido em terra o derruba.
Do combate se retira
251/389
O inseto cheio de glria,
E a trombeta do ataque
A que apregoa a vitria.
Porm, quando mais vaidoso
Seu valor e esforo gaba,
Topa uma teia de aranha
Que a vida e glria lhe acaba.
No desprezes por pequeno
252/389
O teu contrrio tambm;
Porque dele as mais das vezes
O maior mal te provm.
Nem to-pouco em bens confies
Desta vida transitria;
Quma s teia de aranha
Murchar pode a tua glria.
253/389
O Lenhador
Um msero lenhador,
Que oitenta invernos contava,
Cum feixe de lenha s costas,
A passos lentos andava.
Pela idade enfraquecido,
Alm do sustento escasso,
Tropeou, caiu-lhe o feixe,
Fazendo um golpe num brao.
Depois, com pranto nos olhos,
Alguns alentos cobrou,
E, refletindo em seus males,
Sentado, assim declamou:
Mais do queu sou infeliz
No h no globo um vivente,
255/389
Trabalho mais do que posso
E vivo assaz indigente;
Pouco po, nenhum descanso,
Uma existncia oprimida,
Ah!, que no vejo quem tenha
To dura e penosa vida!
Filhos maus, mulher teimosa,
Ms pagas, duro credor,
256/389
Renda de casa, impostos,
No h desgraa maior!
Vem, morte, morte amvel!
Socorre a quem te apetece!
Eis que o esqueleto da morte
De repente lhe aparece
E diz: Mortal, que me queres?
Torna-lhe ele de mos postas:
257/389
Quero, amiga, que me ajudes
A pr este feixe s costas.
Na dor deseja-se a morte;
Mas quando vem faz tremer;
Qu dos viventes o instinto
Antes penar que morrer.
258/389
O Leo Doente
Um leo, vendo-se enfermo,
Passa aviso a seus vassalos
De qu vida vai pr termo
E quintenta aconselh-los
Sobre a regncia futura,
Dar-lhes beija-mo e honr-los.
Dos lees f lhe jura
Que trata bem qualquer fera
Que o visita e que o procura;
Porm, na furna as espera,
E quando alguma entrar ousa,
Logo a mata e dilacera.
Eis uma esperta raposa
Para e diz, sem quentre l:
260/389
Xau!, queu observo uma cousa!
Pegadas mil aqui h;
Mas para l todas vo,
E nenhuma para c;
Sade, Senhor Leo!
Quero-me glria
De beijar-lhe a rgia mo;
Porque jurei jamais ir
261/389
A qualquer casa, ou lugar,
Vendo s por onde entrar
E no por onde sair.
Foi reflexo mui subida
Esta que fez a raposa;
Qu loucura desmedida
Entrarmos em qualquer cousa
262/389
Sem ver se temos sada.
263/389
O Lobo, aMulher e o
Filho
Voraz lobo viu sair
Uma vez de madrugada,
Do casal dum campons,
De reses grossa manada.
Logo no dia seguinte,
Foi-lhe porta madrugar,
Na ideia de qu sada
Pudesse alguma apanhar,
Ps-se mui concho agachado
Douvido alerta esperando,
Quando ouviu dentro da casa
Uma criana chorando.
265/389
E a me a dizer-lhe enfadada:
Cale essa boca, mofino,
Inda chora? Espere, lobo,
Vem comer este menino.
Quando o lobo tal ouviu,
Cheio de alegre alvoroo,
Disse: Imenso to agradeo,
O cu te pague este almoo.
266/389
Depois, empinado porta,
Abrindo a vasta goela,
Sups que a me lhe botasse
O filho pela janela.
Mas nisto escutou dizer:
Durma j, no seja mau!
Se o lobo quiser c vir
Havemos de corr-lo a pau.
267/389
Quinconsequncia tamanha! -
Diz o gluto insofrido ,
H de cumprir-me a promessa,
Quo prometido devido.
Nisto, ao som de uivos horrendos,
Na porta a rapar entrou,
De sorte quaos guardadores
Que dormiam acordou.
268/389
Eis de fouces roadouras,
De paus e chuos armados,
Saltando-lhe logo em cima
Fizeram-no em mil bocados.
Da vila ao senhor levaram
A cabea do agressor,
Que a mandou, com esta letra,
Em meio da praa pr:
269/389
Da nmia credulidade
Vtima foi este louco,
Em ameaos de quem ama
Deve-se crer muito pouco.
270/389
O Lobo e aCegonha
Dando coas mos no focinho
Tossia um lobo engasgado.
Porque dentro das goelas
Tinha um osso atravessado.
Eis que viu uma cegonha,
E por gestos, por aes,
Que lhe acudisse rogou
Em to grandes aflies.
A mezinheira piedosa,
Logo estendendo o pescoo,
Lhe tirou dos gorgomilos
Coa maior destreza o osso.
Acabada a operao,
272/389
Pediu-lhe a paga a cegonha;
Mas o ingrato respondeu-lhe
Com esta pouca-vergonha:
Basta-te a glria de teres
Hoje a cabea metida
Dentro da boca de um lobo
E inda gozares de vida;
Devia ser outra a paga;
273/389
Mas vai-te daqui, louca,
E livra-te de me entrares
Outra vez dentro da boca.
Somente dos benefcios
Que aos malficos prestamos
O triste arrependimento
o fruto que tiramos.
274/389
O Lobo e oCordeiro
Num rio matava a sede
Tenro anafado cordeiro,
E mais acima, igualmente,
Bebia um lobo matreiro.
Podia a fera faminta
Logo saltar e ir-lhe ao pelo;
Mas sem pretexto no quis
Agadanh-lo e com-lo.
Bradou-lhe: O l, S Tratante,
Espere, queu j l vou!
Turba-me as guas que bebo,
Sem atender a quem sou?
Diz-lhe ele: Bem v, senhor,
276/389
Quest da parte eminente,
E que de l vindo as guas,
Turbar no posso a corrente.
Turbaste-a, sim , diz o lobo
Alm disso, o ano passado,
Tanto mal de mim disseste,
Quia ficando infamado!
Veja torna-lhe o cordeiro,
277/389
Senhor, quest iludido,
Porqueu este ano passado
Inda no era nascido.
Raivoso, dolhos em brasa,
Responde o lobo gluto:
Foi teu famlico irmo.
O titubeante cordeiro,
Num rio matava a sede
278/389
Tenro anafado cordeiro,
E mais acima, igualmente,
Bebia um lobo matreiro.
Podia a fera faminta
Logo saltar e ir-lhe ao pelo;
Mas sem pretexto no quis
Agadanh-lo e com-lo.
Bradou-lhe: O l, S Tratante,
279/389
Espere, queu j l vou!
Turba-me as guas que bebo,
Sem atender a quem sou?
Diz-lhe ele: Bem v, senhor,
Quest da parte eminente,
E que de l vindo as guas,
Turbar no posso a corrente.
Turbaste-a, sim , diz o lobo
280/389
Alm disso, o ano passado,
Tanto mal de mim disseste,
Quia ficando infamado!
Veja torna-lhe o cordeiro,
Senhor, quest iludido,
Porqueu este ano passado
Inda no era nascido.
Raivoso, dolhos em brasa,
281/389
Responde o lobo gluto:
Foi teu famlico irmo.
O titubeante cordeiro,
Que j em tremuras vive,
Lhe diz: Senhor, engano,
Porqu'eu irmos nunca tive.
Se ele no foi, foi teu pai,
Agora ests convencido
282/389
Disse o lobo, e num momento
Foi o cordeiro engolido!
Que para dourar seus crimes,
Sempre o sagaz prepotente
Quer ter por base a razo,
Inda que seja aparente.
283/389
O Lobo FeitoPastor
O lobo por conhecido
Vendo fugir-lhe a ventura,
Da nova trama se lembra.
De disfarar a figura:
Toma os trajes de pastor.
Veste pelico e gibo,
Seu rabel, sua sanfonha,
E a tiracol um surro.
De um cajado se apodera,
E em seu chapu desabado,
Podendo, escrevera;
Eu sou Guilhot, pastor deste
gado.
Desta forma contrafeito,
285/389
P ante p se encaminha
Para o stio onde o rebanho
Remi a tosada ervinha.
O verdadeiro Guilhot
A sono solto dormia,
Dormia o rabel com ele,
E o mesmo o seu co fazia.
Uma parte do rebanho
286/389
Dormia sombra igualmente:
O nosso hipcrita sonso
J se baba de contente.
Para poder conduzir
Todo o gado a seu sabor,
Quer unir ao traje as vozes,
Quer fingir as do pastor.
Mas este apuro do engano
287/389
Lhe deita o caso a perder:
Que o som da voz pavoroso
Faz o campo estremecer.
Espavoridos acordam
O gado, o pastor e o co,
E ao mscara conhecendo,
Ao lombo logo lhe vo;
Que vendo-se em calas pardas
288/389
Pelos fatos impedido,
Nem fugir, nem defender-se,
Ao menos lhe permitido.
Com a vida paga o dolo;
Que anda o fingido arriscado
A ser por qualquer descuido
Conhecido e castigado.
289/389
Cansa-se em vo quem pretende
Seu natural encobrir;
Porquou mais tarde ou mais cedo,
Lhe h de a mscara cair.
290/389
O Macho e oBurrinho
Da sua nobreza
Vivia enfunado
Um macho de sela
Dum gordo prelado;
Um dia o farfante
Assim blasonava
Cum velho burrinho
Quao p lhe ficava:
Meu pai foi da raa
Do Duque de tal,
Serviu muitos anos
Na casa real;
Tambm meu av
292/389
No pao vivia,
E douro e veludo
Jaezes trazia;
Mas, sendo eu to nobre,
Estou companheiro,
Por minha desgraa,
Dum pobre sendeiro
Ol, S Fidalgo! ,
293/389
Lhe torna o burrinho,
Voc j se esquece
De qu meu sobrinho?
Que foi minha irm
A me que o pariu,
A qual numa nora
Dos peitos abriu?
Seu pai meu cunhado,
294/389
De quem nos blasona,
Morreu trabalhando
Em pobre atafona;
Pois esse ricao,
Que foi seu av,
Debaixo dalbarda
A vida acabou.
295/389
Embora um bazfio
Seu nada engrandea,
Porm nunca avilte
A quem o conhea.
296/389
O Passarinho,o Milhano e a
Cotovia
Passarinheiro sagaz
Laos num campo estendia
E com espelho falaz
Simples aves iludia,
Uma leve cotovia
Enganada ali pousou,
E um milhano que a seguia,
Baixando, a triste empolgou;
Deu voltas, preso ficou
No menos quem laos trs;
Eis ao caador clamou
Mais bravo do que corts:
298/389
Porque me prendes os ps,
Insano que mal te fez
Lhe disse ele , essa infeliz.
Entre a classe dos humanos
H muitos destes milhanos;
Que o mal quaos outros fomentam,
Quando lho fazem, lamentam.
299/389
300/389
O Raposo e oGalo
Sobre um tronco estando alerta
Velho galo astucioso:
Irmo , com voz de falsete
Lhe diz um destro raposo
Venho alvssaras pedir-te
E mil parabns te dou,
Nossas guerras se acabaram,
Porquanto a paz se assinou.
J todos somos amigos:
E quais irmos viveremos;
Desce, que abraar-te quero
Em prova da paz que temos.
Fui hoje eu mesmo incumbido
302/389
Desta dita anunciar,
Desce, vem, no te demores,
Que tenho muito que andar;
Tu e os teus podem sem susto
Por toda a parte correr,
Desce, e o beijo fraternal
Vem como Irmo receber.
Amigo lhe torna o galo,
303/389
Conhecendo-lhe a malcia,
Tu no me podias dar
Mais agradvel notcia.
Paz entre as feras e as aves!
Ah!, que morro de prazer!
Mas espera, que l vejo
Vir dois galgos a correr!
So postilhes, certamente,
304/389
Questa paz vm publicar,
Eu j deso, e todos quatro
Nos podemos abraar.
Adeus , lhe torna o raposo
No posso deter-me agora,
Outra vez nos juntaremos,
E j tarde, vou-me embora.
Mais ligeiro do que um gamo
305/389
Se ps ao fresco o manhoso,
De no pegarem as bichas
Nimiamente desgostoso.
E o nosso galo matreiro
Consigo se ps a rir,
Vendo o tratante com medo
De orelha baixa fugir.
306/389
Qu um prazer quando vemos
O enganador enganado,
Qual o que vai buscar l
E vem por fim tosquiado.
307/389
O Raposo e oBode
Um gr-capito raposo,
Dintonso e ruo bigode,
Foi passear certo dia
Com seu amigo Dom Bode.
O qual da famlia as armas
Trazia na frente audaz,
Tendo tanto de pacvio
Quanto o amigo de sagaz,
Grande sede ambos levavam,
Que lhes tinha feito o almoo.
Eis que viram meio de gua
Um velho pequeno poo.
Sem refletir em mais nada,
309/389
Dom Bode abaixo saltou,
Pouco depois o raposo
Assim que um pouco pensou.
Depois que farta beberam,
Quiseram logo ir-se embora;
Mas era a dificuldade
Poder sair para fora.
Estava a Bblia intrincada,
310/389
Mas sempre em casos de aperto
Ousa sair bem, custa
Do que tolo, o mais esperto:
Amigo, estamos perdidos! ,
Disse o bode ao companheiro.
No estamos, vers logo ,
Tornou-lhe o amigo matreiro.
Junto parede te empinas,
311/389
Onde o poo menos alto,
Queu ponho os ps nos teus chifres
As mos firmo, e fora salto.
Assim quem cima estiver,
Lano-te a garra ao pescoo,
Por ti puxo, e ficaremos
Ambos ns salvos do poo.
Por minhas barbas eu juro ,
312/389
O outro diz banhado em pranto,
Que dita achar um amigo,
Como tu de engenho tanto.
Onde o bocal mais baixo,
Eu me empino, trepa agora.
O raposo assim o fez,
E num pulo se viu fora.
Apenas se encontrou safo,
313/389
Disse: Tem pacincia, amigo,
O querer-te salvar fora
Expor-me a novo perigo;
Se te desse iguais s barbas
Talentos a Natureza,
Dentrar dentro deste poo
No terias a leveza.
Ora adeus, queu vou-me embora,
314/389
Trabalha por te safar,
Queu tenho muitos negcios,
No me posso demorar.
Pagou Dom Bode a toleima,
Que sempre tem que sentir
Quem faz coisas sem pensar
No que pode sobrevir.
315/389
O Rato e a R
Por divertir-se uma tarde,
Um rato ndio, e refeito,
Na margem duma lagoa
Passeava satisfeito.
Uma r, que dentre os juncos
To gordo o v passear,
De o comer tem apetite,
Que o julga um belo manjar.
Diz-lhe ento: Vem aos meus
lares.
Ceia, e funo te darei.
O rato, sem mais demora,
Pronto lhe torna: Eu irei.
A r, na margem saltando
Com refinada malcia,
317/389
Do seu aqutico imprio
Lhe gaba a suma delcia.
Desta jornada lhe pinta
Novas futuras viagens.
O rato, sem mais ouvir,
Entra ngua, e nadar ousa;
Porm de estorvo lhe serve
Um limo, um pau, qualquer coisa.
318/389
Pe remdio a tudo a r;
Cavilosa e de m-f,
Prende com delgado junco
A mo do rato ao seu p.
Ento por ele puxando
Qual se leva sirga um barco,
Dolosa ao stio o conduz
Onde era mais fundo o charco.
319/389
Ali descarada busca
Afund-lo sem piedade,
Contra o direito das gentes
E leis da hospitalidade.
O rato conjura os deuses,
Razes sem conto lhe alega;
Mas a r, surda a seus rogos,
S em mat-lo se emprega.
320/389
Das unhas se vale o pobre
Para defender a vida;
A r com ele mergulha,
Volta, puxa, salta e lida.
Vendo um milhano o debate,
Cai-lhe em cima de repente,
Empolga a r, indo o rato
Bem como selo pendente;
321/389
Tenho , ento disse o milhano,
Carne e peixe que cear;
Mas roendo o rato o junco
Cai ngua, e pode escapar.
A r vtima foi s
Do seu embuste inumano;
E o mal que fazer queria
Lhe fez o feroz milhano.
322/389
Quase sempre as mpias tramas
Urdem o mal do inventor;
E mil vezes a perfdia
Recai sobre o seu autor.
323/389
O Velho e osSeus Filhos
Um velho sbio, e prudente,
Vendo-se vizinho morte,
Chama trs filhos que tem
E fala-lhes desta sorte:
Eia, vede, amados filhos,
Se quebrais por fora ou jeito
Este emblema , e tira um molho
De varas de vime feito.
Ao filho mais velho o d,
Que se prope a parti-lo;
Mas, por mais foras quemprega,
Nunca pde consegui-lo.
Pega-lhe o filho segundo.
325/389
Destro e valente rapaz,
Que parti-lo no consegue
Por mais esforos que faz.
Entregam-no ao mais pequeno,
Que blasona de mui forte,
Torce, dobra-o, cora e sua,
E deixa-o da mesma sorte.
Fracos moos! diz o pai ,
326/389
Vossa fraqueza celebro!
Vede como desta idade
Essas varas todas quebro.
Depois, desatando o molho,
Pronto as varas dividindo,
Com toda a facilidade
Uma a uma as vai partindo.
E diz: Vede neste exemplo,
327/389
Filhos do meu corao,
Os desastres da discrdia
E as vantagens da unio.
Partir no podeis, moos,
As varas estando unidas;
Mas depois de separadas
So por fracas mos partidas.
Se unidos vos conservardes,
328/389
Assim, filhos, sereis,
E aos baldes mpios da sorte
Sem custo resistireis;
Mas se algum dia a desgraa
Vos chegar a desunir,
Qualquer de vs aos seus golpes
No poder resistir.
Assim o velho proclama
329/389
Esta brilhante doutrina,
E no fim de pouco tempo
Sua carreira termina.
Os filhos choram-lhe a morte
Com lamentos deplorveis!
Porm, lembram-se mui pouco
Dos seus conselhos saudveis,
Porque danoso interesse
330/389
Em partilhas os envolve,
E um credor, e outro credor
Os bens paternos dissolve.
Depois, vomitando injrias,
Uns contra os outros litigam,
E os ministros com prises
E com multas os castigam.
Pobres por fim, noite e dia
331/389
Com pranto e queixas amaras
Recordam, mas sem remdio!,
O sbio exemplo das varas.
332/389
O Velho, oRapaz e o
Burro
O mundo ralha de tudo,
Tenha ou no tenha razo,
Quero contar uma histria
Em prova desta assero.
Partia um velho campnio
Do seu monte ao povoado,
Levava um neto que tinha
O seu burrinho montado.
Encontra uns homens que dizem:
Olha aquela que tal !
Montado o rapaz, qu forte,
E o velho trpego a p.
334/389
Tapemos a boca ao mundo ,
O velho disse: Rapaz,
Desce do burro, queu monto,
E vem caminhando atrs.
Monta-se, mas dizer ouve:
Que patetice to rata!
O tamanho de burrinho,
E o pobre pequeno pata.
335/389
Eu me apeio , diz prudente
O velho de boa-f,
V o burro sem carrego,
E vamos ambos a p.
Apeiam-se, e outros lhe dizem:
Toleires, calcando lama!
De que lhes serve o burrinho?
Dormem com ele na cama?
336/389
Rapaz diz o bom do velho,
Se de irmos a p murmuram,
Ambos no burro montemos,
A ver se inda nos censuram.
Montam, mas ouvem de um lado:
Apeiem-se, almas de breu,
Querem matar o burrinho?
Aposto que no seu.
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Vamos ao cho diz o velho,
J no sei quhei de fazer
O mundo est de tal sorte,
Que se no pode entender,
E mau se monto no burro,
Se o rapaz monta, mau ,
Se ambos montamos, mau,
E mau se vamos a p:
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De tudo me tm ralhado,
Agora que mais me resta?
Peguemos no burro s costas,
Faamos inda mais esta.
Pegam no burro; o bom velho
Pelas mos o ergue do cho,
Pega-lhe o rapaz nas pernas,
E assim caminhando vo.
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Olhem dois loucos varridos! ,
Ouvem com grande sussurro,
Fazendo mundo s avessas,
Tornados burros do burro!
O velho ento para e exclama:
Do quobservo me confundo,
Por mais qua gente se mate
Nunca tapa a boca ao mundo.
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Rapaz, vamos como dantes,
Sirvam-nos estas lies;
mais tolo quem d
Ao mundo satisfaes.
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O Ratinho e aMe
Certo ratinho inda novo,
Da toca onde nasceu
A vez primeira saiu.
E quando se recolheu
Contou me quanto viu.
Disse: Apenas sa fora
Para o casal mais vizinho,
Trotando me encaminhei,
Meti-me num buraquinho.
E dali tudo espreitei:
Vi, me, dois grandes bichos,
Diferentes na figura,
Defronte de mim andar,
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Um respirava doura,
O outro fez-me trepidar!
Este dum morro vermelho
Ornava a cabea esguia,
Quas orelhas tinha em baixo;
S com dois dentes comia,
Tendo por cauda um penacho.
Andava em dois ps e tinha
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Em cada perna um ferro;
Em si cos braos bateu,
Desatou voz de trovo,
Que de horror me estremeceu!
Pelo contrrio, o primeiro
Era da nossa figura,
Com modstia passeava,
Tinha meiguice e doura
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Na mansa voz que soltava;
Era o seu rosto redondo,
Barba hirsuta, olhos luzentes,
Curta orelha e nariz chato,
Ralos e brancos os dentes,
Quase era o nosso retrato,
Tanto me encantou seu modo,
Que fora a seus braos ter,
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Se a tal fera mpia, e feroz,
Me no fizesse deter
Com susto da sua voz.
Ai! Filho , a me lhe tornou
Quanto a aparncia te engana!
Essa figura adorvel
duma fera tirana,
Nossa inimiga implacvel!
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Se lhe casses nas unhas,
Em postas serias feito!
Finge doce mansido,
Chama-se gato e no peito
Guarda um feroz corao!
diferente o segundo
Que te deu susto mortal
Tendo um aspeto feroz,
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Se nos v, no nos faz mal
E benigno para ns:
Galo se chama e nos pode
Servir de pasto alguns dias;
Olha como te enganavas!
Ao bom por susto fugias,
Ao mau: por gosto buscavas.
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Uma doura afetada
fruto da hipocrisia.
Sirva ao mundo esta lio:
Quem de aparncia se fia,
Gosta da sua iluso.
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O Veado e osCes
Numa fonte que corria,
Certo dia,
Um estlido veado
Retratado
No cristal puro se via
Em segredo.
Celebrava a celsa frente,
Adornada lindamente
Dum ramfero arvoredo.
Mas se a frente celebrava,
Lamentava
A magreza assaz mesquinha
Que nas longas pernas tinha,
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Que podiam parecer
Quatro fusos de torcer.
Eis que nisto,
Um sabujo mui previsto
Deu com ele;
O levssimo veado,
Assustado,
Por querer salvar a pele,
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Meteu pernas, to ligeiro,
Quo rafeiro
J mui longe lhe ficava
E escapava,
Se entrar numa selva escura
No quisesse o miserando
Qua cornfera armadura
Encalhando
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Entre os ramos da espessura,
O prendia,
Lugar dando ao quo seguia
Que chegasse
E no lombo lhe ferrasse.
Os seus chifres esgalhados,
To louvados,
Que lhe ornavam tanto a frente,
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Lhe impeceram totalmente
O proveito
Que seus ps lhe tinham feito;
Mal olhados
Por esguios e delgados.
Neste aperto se desdisse
Sem conforto
O veado semimorto,
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E maldisse
Darmao, que viu na testa,
A beleza sedutora,
Que lhe fora
To funesta!
Muitas vezes maldizemos
O qu til
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E o vistoso engrandecemos,
Bem que ftil,
Eis o exemplo demonstrado
No veado.
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Os Dois BurrosCarregados
Qual romano imperador,
Um pau por cetro levava,
E a dois frises orelhudos
Um burriqueiro guiava;
Um deles trazia esponjas,
E qual postilho corria;
O outro de sal carregado
Os ps apenas mexia;
Um sem custo, outro com ele,
Montes e vales andaram,
At que ao vau dum ribeiro
Ultimamente chegaram.
O que levava as esponjas
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O burriqueiro montou,
E fez ir para diante
O que de sal carregou.
Ele o vau desconhecendo
Pregou consigo no pego,
Nadou, veio acima, e viu
Aliviado o carrego:
Porque o sal, de que era a carga,
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Derreteu-se ngua entrando,
E o seu condutor j leve
Ps-se em terra, e foi trotando.
O camarada esponjeiro,
Que o viu to leve sair,
Quis sua imitao
Tambm no pego cair.
Ei-lo nas guas submerso,
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Esponjas e burriqueiro,
Todos trs bebendo larga.
Querem secar o ribeiro.
To pesados se fizeram,
Por beberem sem cessar,
Que, sucumbindo o jumento,
No pde as margens ganhar.
O homem lutava coa morte,
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T qum pastor lhe acudiu,
Mas o burro das esponjas:
Foi ao fundo e no surdiu.
Guiar por cabeas ms
No um bom portamento;
s vezes a dita de um
Faz a desgraa de um cento.
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Os DoisMachos
Encontraram-se dois machos
Em um caminho deserto,
E os moos tinham ficado
Bebendo vinho ali perto.
Um era do Estado e vinha
Carregado com dinheiro,
O outro farinha levava,
Tendo por dono um moleiro.
O que trazia a riqueza
Era mais forte e mais moo,
Tinha albarda, atafais novos
E campainha ao pescoo.
O que levava a farinha
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Ia todo num frangalho,
Rota albarda, atafais podres,
Nem sequer tinha um chocalho.
O primeiro, blasonando
Da grandeza em que se via,
Ao segundo, velho e pobre,
Mofas e injrias dizia.
Eis que de um bosque saltou
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De ladres um bando ingente,
E ao que levava a riqueza
Atacam subitamente.
Ele, fiado em ser forte,
Quer-lhes fugir, mas em vo,
Que trs facadas no peito
Pregam com ele no cho.
Por morto os ladres o deixam
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Roubando-lhe o ouro que tinha,
Ficando isento de estrago
O que levava a farinha,
O qual para trs voltando,
Vendo o amigo moribundo,
Clama: Por pobre escapei,
Vejam bem o que o mundo!
E na terra, as mais das vezes,
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Dita o viver ignorado,
Tem risco maior na queda
O quest mais levantado.
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Os Dois Tourose a R
Brigavam dois grandes touros
Duma formosa manada,
Sobre qual teria a posse
Duma novilha estrelada.
Uma r, vendo o combate,
Num tom lhes disse modesto:
Fidalgos, deixem questes,
Qum fim sempre tem funesto.
No consideram, senhores,
Que o termo destas pendncias
Vem sempre a ser o desterro
De um de Vossas Excelncias?
Porque, conforme o costume,
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O que vencido ficar
Estas campinas viosas
H de por fora deixar;
Que o vencedor logo o expulsa
Destes campos deleitosos,
E ter quir pascer limos
Em terrenos pantanosos;
Ali far que sejamos,
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Quando com seus ps nos mate,
As vtimas inocentes
Deste indiscreto combate:
Porque nos pauis metido
Com suas feras patadas
Dos charcos no fundo, bvio,
Que fiquemos esmagadas.
Tudo quanto a r predisse
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Se entrou a verificar;
Fugiu do campo o vencido
E foi pauis habitar.
Ali o povo coaxante
Negros desastres sofreu,
Que esmagado a toda a hora
A maior parte morreu!
Assim nas mtuas desordens
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Dos grandes, dos potentados,
Quase sempre os mais pequenos
Vm a ser os esmagados.
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Os Mdicos
Certo mdico chamado,
Dalcunha o Tanto Melhor,
Foi visitar um doente,
Do qual o Tanto Pior
Era mdico assistente.
O ltimo sempre funesto,
Quo doente morreria,
Altamente sustentava,
E o Tanto Melhor dizia
Quo pobre enfermo escapava.
Houve sobre o curativo
Mui grande contestao;
Um aplicava calmantes,
O outro armava uma questo
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A favor dos irritantes.
No fim de tanto debate,
O enfermo a vida perdeu,
E o Tanto Pior clamou:
Veja, qual de ns venceu.
Se o meu clculo falhou? ,
Tornou-lhe o Tanto Melhor
(Mostrando um vivo pesar),
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Pois eu sempre afirmarei
Que morreu por no tomar
Os remdios quindiquei.
Enquanto a mim, se os tomasse,
Morrer havia igualmente;
Mas desgraa maior
Cair um pobre doente
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Nas mos dum Tanto Pior.
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Os Rafeiros e oGozo
Morreu um ndio cabrito