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Faculdade Diocesana de Mossoró
Revista Acadêmica Logos
Mossoró | RN
Março 2016
Revista Logos – v.1, n.1, jan./jun., 2016.
REVISTA ACADÊMICA LOGOS
Faculdade Diocesana de Mossoró
DIRETOR GERAL
Me. Francisco Cornélio Freire Rodrigues
COORDENADOR DE EDIÇÃO:
Me. Francisco Igo Leite Soares
CONSELHO CIENTÍFICO E EDITORIAL
Dra. Aíla Luzia Pinheiro de Andrade (FDM e FCF)
Dra. Ana Maria Morais Costa (UERN)
Dr. Anderson de Alencar Menezes (UFAL)
Dr. Antônio Edson Bantim Oliveira (FDM)
Me. Charles Lamartine Sousa Freitas (FDM)
Me. Francisco Aluziê Barbosa das Chagas (FDM)
Me. Francisco Cornélio Freire Rodrigues (FDM)
Me. Francisco Igo Leite Soares (FDM e UERN)
Dr. Francisco Xavier Freire Rodrigues (UFMT)
Dr. Luís Corrêa Lima (PUC-Rio)
Dra. Maria Conceição Maciel Filgueira (FDM)
Me. Márcia Elói Rodrigues (FDM)
Dra. Sílvia Maria Costa Barbosa (UERN)
REVISORES:
Ana Maria de Carvalho e Francisco Igo Leite Soares
Divisão de Serviços Técnicos Catalogação da Publicação na Fonte.
Fundação Santa Teresinha de Mossoró Biblioteca Geral Dom Mariano Manzana
Revista Acadêmica Lógos / Faculdade Diocesana de Mossoró. – Mos-
soró, v.1, n.1, jan./jun., 2016.
Semestral
ISSN 2448-038X
1. Espiritualidade. 2. Sacramento. 3. Esperança. 4. Teologia. I. Faculdade Diocesana de Mossoró. II. Título.
CDU: 248.2
FACULDADE DIOCESANA DE MOSSORÓ
DIRETOR GERAL
Prof. Me. Pe. Charles Lamartine Sousa Freitas
VICE-DIRETOR
Prof. Me. Pe. Francisco Crisanto Borges de Araújo
DIRETOR ACADÊMICO
Prof. Me. Pe. Flávio Augusto Forte Melo
DIRETOR ADMINISTRATIVO FINANCEIRO
Pe. Demétrio de Freitas Júnior
COORDENADOR DO CURSO DE TEOLOGIA
Prof. Me. Francisco Cornélio Freire Rodrigues
COORDENADORA DE PÓS-GRADUAÇÃO, PESQUISA E
EXTENSÃO
Prof. Dra. Maria da Conceição Maciel Figueira
SECRETÁRIA ACADÊMICA
Iêda Silvana Tavares Diniz
S U M Á R I O
Apresentação .......................................................................................................... 5
Prefácio ................................................................................................................... 7
ARTIGOS
A CONTRIBUIÇÃO DA LECTIO DIVINA NA FORMAÇÃO PARA O
DISCIPULADO E A MISSÃO NA PERSPECTIVA DE APARECIDA ................... 10
Francisco Cornélio Freire de Araújo
A ESPIRITUALIDADE DO PADRE MESTRE ....................................................... 24
Francisco Crisanto Borges de Araújo
A INTERPRETAÇÃO ALEGÓRICA DO CÂNTICO DOS CÂNTICOS NAS
OBRAS “OS SACRAMENTOS” E “OS MISTÉRIOS”DE AMBRÓSIO DE
MILÃO ................................................................................................................... 34
Márcia Eloi Rodrigues
MARIA, VIRGEM APARECIDA: UM SINAL DE ESPERANÇA? ......................... 49
André Luiz Passos
O CONCEITO DE EXEGESE BÍBLICA NA TEOLOGIA DOS PADRES DA
IGREJA ................................................................................................................. 75
Charles Lamartine Sousa Freitas
O MINISTRO DO SACRAMENTO DA ORDEM, EXCLUSIVIDADE DO
BISPO ................................................................................................................... 92
Frederico Gurgel Câmara
PARA UMA ABORDAGEM ANTROPOLÓGICO-TEOLÓGICA DA MORTE ...... 111
Antonio Edson Bantin Oliveira
RAZÃO, PAIXÃO E FELICIDADE ...................................................................... 126
Alison Felipe de Moura
Revista Logos – v.1, n.1, jan./jun., 2016.
5
APRESENTAÇÃO
Um dos grandes sonhos de todos os que fazem a Faculdade
Diocesana de Mossoró, finalmente, tornou-se realidade: o lançamento da
Revista acadêmica Logos. Há mais de quatro anos em gestação, somente agora
veio à luz, dando-nos a certeza de que as expectativas criadas durante a
gestação, estão sendo alcançadas.
Foram muitos os motivos que retardaram seu nascimento. Dentre
estes, destacamos a dificuldade para a escolha e definição do nome e a
composição do conselho editorial e científico. É altamente prazeroso informar
que, em momento algum, a falta de material foi motivo para o atraso da
publicação. Desde o primeiro momento em que refletimos sobre a necessidade
de termos um periódico científico em nossa faculdade, nosso pequeno, mas
qualificado, corpo docente prontificou-se imediatamente a contribuir com a
publicação, de modo que, dos oito artigos, somente um não foi escrito por
membro da FDM.
Durante a gestação, muitos nomes foram sugeridos para o título da
nossa revista. O primeiro deles foi ‘LUZ e VIDA’. Inicialmente, foi muito
bem acolhido, sobretudo por incorporar termos importantes do vocabulário
teológico. Mas, após muita reflexão, e percebendo os horizontes que se abriam
para o crescimento da nossa faculdade e a consequente abertura para as
demais ciências humanas, optamos por uma outra sugestão: Logos.
Ao optar por Logos como título para o nosso periódico, levamos em
consideração muitos aspectos. Primeiro, por tratar-se de um termo que se
destaca significativamente na reflexão teológica. E, embora conscientes do
crescimento e da abertura da nossa instituição para outras áreas do
conhecimento, queremos preservar, até por questão de justiça, a nossa história,
a qual tem o curso de teologia como embrião. Em segundo lugar, porque o
termo Logos possui uma variedade de sentidos que transcende qualquer área
específica do conhecimento, e pode inclusive, ser sinal do diálogo entre os
diversos saberes que ambicionamos fazer. É uma palavra aberta, como quer
ser o nosso periódico.
Revista Logos – v.1, n.1, jan./jun., 2016.
6
Portanto, é com muita satisfação que apresentamos o primeiro
número da revista Logos. Este ainda está com um rosto teológico. Mas, com
os passos que a nossa faculdade está dando, com a abertura de novos cursos de
graduação e pós-graduação, certamente os próximos números virão com mais
justiça ao título.
Francisco Cornélio Freire Rodrigues,
Diretor Geral da Revista Logos
Revista Logos – v.1, n.1, jan./jun., 2016.
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PREFÁCIO
Não é repetitivo lembrar, neste momento, o provérbio latino que
proclama: “Verba volant, scripta manent.” As palavras voam, as escritas
permanecem.
Acrescente-se o pensamento de Santo Agostinho sobre o poder das
palavras: “Note que se penso no que vou dizer é porque as palavras já existem
em meu coração. Se falo com você é porque estou preocupado em fazer
presente no seu coração o que já está presente no meu. Assim, procurando um
caminho para permitir que a palavra que existe em mim, possa alcança-lo e
passe a morar em você, recorri à minha voz. O som transmite minhas palavras
e seus significados, esvanecendo-se depois. Porém, minha palavra está agora
em você sem, no entanto, nunca ter me abandonado.” (Sermão 293,3).
Desde a fundação da Faculdade Diocesana de Mossoró, criando o
curso de Teologia, foi sonho inicial dos que a fazem, publicar uma revista
como forma de presença em nossa comunidade. A ideia no presente momento
se torna realidade.
Dentro das perspectivas e das necessidades do ser humano em suas
várias conotações e, sobretudo, da nossa sede de construção de conhecimento,
a Revista Logos atende, assim o penso, a essas necessidades, como podemos
constatar pela riqueza dos artigos, como veremos a seguir, de modo bastante
sintético.
O primeiro artigo, de autoria do Me. Francisco Cornélio Freire
Rodrigues, intitulado A contribuição da Lectio Divina na formação para o
discipulado e missão na perspectiva de Aparecida, apresenta uma leitura do
Documento de Aparecida, considerando a necessidade da formação para o
discipulado e a missão no chamado continente da esperança, destacando a
ênfase da Palavra de Deus no processo, destacando a Lectio Divina como um
instrumento privilegiado.
O segundo artigo, intitulado A espiritualidade do Padre Mestre, de
autoria do Me. Francisco Crisanto Borges de Araújo, é um verdadeiro
Revista Logos – v.1, n.1, jan./jun., 2016.
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percurso na vida do Padre José Antônio de Maria Ibiapina, destacando, como
sugere o título, a sua espiritualidade. O autor mostra como Deus falou ao
Padre Mestre de maneira muito concreta, no sofrimento dos sertanejos,
desamparados por todo tipo de poder. Pela sua ação diante dessa realidade de
desolação, percebemos o viço da sua espiritualidade, a sua maturidade no
plano humano e espiritual.
O terceiro artigo, A interpretação alegórica do Cântico dos Cânticos
nas obras ‘Os Sacramentos’ e ‘Os mistérios’ de Ambrósio de Milão, de
autoria da Me. Márcia Eloi Rodrigues, é uma demonstração da riqueza da
interpretação alegórica da Sagrada Escritura como linguagem eficaz da
catequese mistagógica dos santos padres.
O quarto artigo, do Dr. André Luiz Passos, intitulado Maria, virgem
Aparecida: um sinal de esperança?, é uma reflexão sobre a esperança que os
fiéis buscam na Virgem Aparecida, a partir de dois textos do quarto
Evangelho: 2,1-12 e 19,25-27. Essa esperança está enraizada no próprio
Cristo, esperança de todo o gênero humano.
Intitulado O conceito de exegese Bíblica na teologia dos padres da
Igreja, o quarto artigo, de autoria do Me. Pe. Charles Lamartine Sousa Freitas,
ressalta a centralidade da Sagrada Escritura na teologia dos padres da Igreja e,
consequentemente, importância de se retornar à leitura dos textos patrísticos,
uma vez que pensar as Sagrada Escritura à luz da reflexão patrística é admitir
que suas reflexões se fazem luz, como fonte perene na promoção da
atualização teológica, o que não implica no conteúdo da fé, mas sim numa
releitura que ajuda ao homem de cada tempo a comunica-la de modo mais
eficaz.
No quinto artigo, intitulado O ministro do sacramento Ordem:
exclusividade do bispo, do Me. Frederico Gurgel Câmara é uma reflexão sobre
a plenitude do sacerdócio, apresentando a figura do bispo como ministro
ordinário e administrador da graça do supremo sacerdócio, à luz do magistério
da Igreja.
O sexto artigo, de autoria do Dr. Antônio Edson Bantin Oliveira, tem
como título: Para uma abordagem antropológico-teológica da morte. Trata-se
de uma reflexão sobre a morte, a partir de três aspectos principais: o seu
caráter de realidade antropológica fundamental, os desafios emergentes de
Revista Logos – v.1, n.1, jan./jun., 2016.
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uma má compreensão ou de uma imaturidade humana em relação a esse
fenômeno e, por fim, a sua dimensão teológica, acompanhada de elementos de
indicação moral acerca do comportamento a ser cultivado, no cuidado para
com pessoas em situação de morte iminente.
O sétimo artigo, intitulado Razão, paixão e felicidade, de autoria do
Me. Alison Felipe de Moura, apresenta uma análise da relação entre razão,
paixão e felicidade, a partir da obra: As paixões da alma de Descartes,
procurando refletir o que o autor entende acerca da felicidade e ainda em que
sentido essa felicidade é determinada somente pela razão, dado a influência do
corpo no processo de construção da mesma.
Também realçamos, pela qualificação dos articulistas, o nível do
corpo docente de nossa instituição. As diversas abordagens enfocadas e a
pertinência dos temas refletidos, garantem-nos isso.
Considero o lançamento deste órgão institucional, uma verdadeira
Pastoral para os que desejam aprofundar os alicerces existenciais de suas
vidas.
É louvável o apoio do Exmo. Rvmo. Sr. Bispo Diocesano Dom
Mariano Manzana a esse empreendimento, animando os que constituem essa
faculdade, mantenedora da Revista Logos, palavra que produz realidade.
Pe. Sátiro Cavalcanti Dantas, primeiro Diretor da FDM.
Revista Logos – v.1, n.1, jan./jun., 2016.
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A CONTRIBUIÇÃO DA LECTIO DIVINA NA FORMAÇÃO PARA O
DISCIPULADO E A MISSÃO NA PERSPECTIVA DE APARECIDA
Francisco Cornelio Freire Rodrigues1
RESUMO
O presente artigo apresenta uma leitura do Documento conclusivo da V Conferência
do Episcopado da América Latina e Caribe, considerando a necessidade da formação
de novos discípulos e missionários para o continente da esperança, como objetivo
principal da conferência. Nesse processo formativo, a Palavra de Deus é
indispensável, uma vez que nela, é o próprio Cristo que fala, e para seguir os seus
passos é necessário antes conhecê-Lo, criar intimidade com Ele, a ponto de tornar-se
parecido. A Sagrada Escritura proporciona tudo isso e, na diversidade de métodos
através dos quais podemos nos aproximar dela, destacamos a Lectio Divina. O
Documento de Aparecida considera este, um método privilegiado de encontro. Assim,
entendemos que a Lectio Divina pode ser um instrumento importante na formação de
novos discípulos e missionários, uma vez que proporciona um encontro verdadeiro
com o Senhor através da sua Palavra.
Palavras-chave: Aparecida. Missão. Discipulado. CELAM.
ABSTRACT
This article discribs a reading about the V Latin American Episcopal Conference and
the Caribbean, considering the necessity of formation of the new disciples and
missionaries for the continent of the hope, as the main objective of the conference. In
this formative process, the Word of God is indispensable because Christ himself who
speaks, and to follow his life is necessary before to know who is he, create intimacy
with him until to became look like Jesus. Holy Scripture provides all this, and the
diversity of methods by which we can get closer to him, we emphasize the Lectio
Divina. The Document of Aparecida considers this a privileged method of meeting.
So, we understand that the Lectio Divina can be an important toll to the formation of
new disciples and missionaries because it offers a real relationship with the Lord
through his Word.
keywords: Aparecida. Mission. Discipleship. CELAM.
1 Mestre em Teologia Bíblica pela Pontifícia Universidade Santo Tomás de Aquino em Roma;
Coordenador do curso de Teologia da Faculdade Diocesana de Mossoró – FDM; Professor de
Sagrada Escritura na FDM e no Seminário Diocesano São José (Crato-CE).
Revista Logos – v.1, n.1, jan./jun., 2016.
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1 - FORMAR DISCÍPULOS E MISSIONÁRIOS PARA A AMÉRICA
LATINA E O CARIBE
A V Conferência Geral do Episcopado latino-americano e caribenho,
realizada no Santuário Nacional de Aparecida, Brasil, no ano de 2007, propôs-se a ser
mais um passo importante no caminho da Igreja, em sintonia com o Concílio
Ecumênico Vaticano II e as quatro conferências anteriores: Rio de Janeiro (1955),
Medellín (1968), Puebla (1979) e Santo Domingo (1992).
O tema da V Conferência Discípulos e missionários de Jesus Cristo, para
que n’Ele nossos povos tenham vida, já deixa claro um de seus objetivos principais:
formar, na America Latina e no Caribe, novos discípulos e missionários para
preservar, defender e difundir a fé cristã católica no Continente da esperança, que não
está alheio às influências das tendências secularizantes que permeiam o mundo
contemporâneo. Assim, discípulos e missionários são as duas palavras-chave, não
apenas do tema, mas, sobretudo, do Documento conclusivo.
Conforme consta em O referencial teológico do Documento de Aparecida,
Não basta ser discípulo de Jesus Cristo nesta hora do Continente, mas é
necessário ser missionário. A Igreja da América Latina e do Caribe
necessita de seguidores de Jesus Cristo que sejam verdadeiros
missionários, pois a realidade eclesial aponta para a necessidade de
evangelizadores, a fim que a fé trazida pelos primeiros missionários, não
desapareça, mas cresça e se multiplique2.
A Igreja demonstra o seu cuidado com a preservação da fé cristã e esforça-se
com ardor, para que o Continente latino-americano jamais perca suas características
principais que nasceram enraizadas no sinal da cruz e na devoção mariana, elementos
que deram o grande diferencial a este Continente: a esperança, por causa da fé viva de
seu povo. Certamente é um território autenticamente cristão. Daí surge a necessidade
de um projeto formativo consistente que proteja a fé e, ao mesmo tempo, a difunda em
todos os espaços, tarefa esta que só pode ser realmente assumida por autênticos
discípulos e missionários, que dêem um testemunho vivo e verdadeiro de Jesus Cristo,
Caminho, Verdade e Vida.
1.1 Quem são esses discípulos missionários?
O chamado ao discipulado e, consequentemente, à missão é inclusivo e
universal, portanto, dirigido a todos os batizados e batizadas. Ninguém está isento de
2 (HACKAMANN, 2007, p. 332).
Revista Logos – v.1, n.1, jan./jun., 2016.
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anunciar a Boa Nova. Todos são chamados a assumir a condição de discípulo e
missionário na situação e no lugar em que se encontra, uma vez que tal condição é
selada com o batismo.
Já no discurso inaugural da V Conferência, o Papa Bento XVI afirmou:
A Igreja tem a grande tarefa de custodiar e alimentar a fé do Povo de
Deus, e recordar também aos fiéis deste Continente que, em virtude de
seu batismo, são chamados a ser discípulos e missionários de Jesus
Cristo. Isso leva a segui-lo, viver em intimidade com Ele, seguir seu
exemplo e dar testemunho. Todo batizado recebe de Cristo, como os
apóstolos, o mandato da missão: “ide por todo o mundo e proclamai a
Boa Nova a toda a criatura. Quem crer e for batizado será salvo” (Mc
16, 15)3.
Como se vê, discípulo e missionário são termos inseparáveis e dizem respeito
a todos os batizados. Porém, cada um é chamado a viver de modo específico a sua
missão, sendo única a fonte: a pessoa de Jesus Cristo, e único também o momento
originante do discipulado e da missão: o batismo.
A condição do discípulo brota de Jesus Cristo como de sua fonte, pela fé
e pelo batismo, e cresce na Igreja, comunidade onde todos os seus
membros adquirem igual dignidade e participa de diversos ministérios e
carismas. Desse modo, realiza-se na Igreja a forma própria e específica
de viver a santidade batismal a serviço do Reino de Deus (184)4.
Sem distinção nem exclusão, todos os batizados são chamados ao discipulado
e à missionariedade na Igreja, e isso consiste exatamente no cumprimento do mandato
de Cristo aos apóstolos: “ide a todos os povos e fazei-os meus discípulos, batizando-os
em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo” (cf. Mt 28,19). Assim, compreendemos
que o batismo nos faz discípulos e missionários.
1.2 Caminho formativo dos discípulos missionários
Sabendo que pelo batismo todos se tornam discípulos e missionários de Jesus
Cristo, compreendemos a necessidade de um caminho formativo para que cada um,
segundo sua condição, cumpra com fidelidade a sua missão. Nesses termos, o
Documento de Aparecida responde a essa necessidade. Antes de tudo é necessário um
3 (Cf. CELAM, 2007, p. 253). 4 (CELAM, 2007, p. 93).
Revista Logos – v.1, n.1, jan./jun., 2016.
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encontro autêntico com o Mestre, que gere um encantamento e uma consequente
configuração com Ele.
E o convite ao encontro é feito pelo próprio Jesus Cristo que, “convida a nos
encontrar com Ele e a que nos vinculemos estreitamente a Ele, porque é a fonte da
vida e só Ele tem palavras de vida eterna”5. Mas esses são apenas os primeiros passos
de um caminho que nos leva à configuração com Ele, e configurar-se significa
identificar-se extremamente, vivendo e agindo conforme a sua vontade:
Para ficar verdadeiramente parecido com Mestre, é necessário assumir a
centralidade do Mandamento do Amor que Ele quis chamar seu e novo:
“Amai-vos uns aos outros, assim como eu vos amei” (Jo 15,12). Este
amor, com a medida de Jesus, com dom total de si, além de ser o
diferencial de cada cristão, não pode deixar de ser a característica de sua
Igreja, comunidade discípula de Cristo, cujo testemunho de caridade
fraterna será o primeiro e principal anúncio: “Nisso conhecerão todos
que sois meus discípulos” (Jo 13,35)6.
Ao configurar-se ao Mestre, ou seja, ao tornar-se parecido com Ele, a
primeira exigência é a vivência do mandamento do amor, sendo este o distintivo maior
do cristão e, portanto, do discípulo e missionário. Para amar segundo o amor de Jesus
é necessário antes aprender com Ele, ou seja, encontrar-se com Aquele que é
Caminho, Verdade e Vida (cf. Jo 14,6), pois somente Ele tem palavras de vida eterna
(cf. Jo 6,68).
E o percurso formativo, que no Documento vem expresso por caminho, é
todo cheio de “encontros”, assim, como o encontro com Jesus Cristo é essencial para
formar os discípulos missionários, logo, as etapas e os lugares da formação são
“encontros”.
O primeiro aspecto da formação é a espiritualidade trinitária, que deve ser
cultivada na vida do cristão, pois “uma autêntica proposta de encontro com Jesus
Cristo deve estabelecer-se sobre o sólido fundamento da Trindade-Amor”7. Tal
proposta se concretiza já no batismo, uma vez que “a experiência batismal é o ponto
de início de toda a espiritualidade cristã que se funda na Trindade”8.
Da experiência trinitária nasce um novo sujeito, um homem novo parecido
com Cristo, quer dizer, configurado a Ele. Eis, portanto, o discípulo: o sujeito
configurado a Cristo. Partindo da experiência dos primeiros discípulos temos até hoje
5 (CELAM, 2007, p. 72). 6 (CELAM, 2007, p. 74). 7 (CELAM, 2007, p. 113). 8 (CELAM, 2007, p. 113).
Revista Logos – v.1, n.1, jan./jun., 2016.
14
o método básico do discipulado: da curiosidade e encantamento à provocação
interrogante: “que procurais?” (cf. Jo 1,38), e sendo Ele próprio a resposta, lança o
convite: “Vinde e vede” (cf. Jo 1, 39).
Ligeiramente apresentamos a dinâmica do caminho de formação do discípulo
que propõe o Documento de Aparecida. São apresentadas cinco etapas distintas, mas
que se complementam entre si. A primeira é, como já vimos, O Encontro com Jesus
Cristo, e as demais etapas só serão cumpridas realmente se nessa primeira a
experiência for realmente autêntica e verdadeira. A segunda vem intitulada A
conversão, pois após o encontro, a pessoa vai aos poucos mudando seu jeito de ser,
procurando a cada dia parecer-se mais com o Cristo. A terceira é O Discipulado, que é
fruto da maturidade que o sujeito vai adquirindo, a partir da conversão constante e do
crescimento do amor ao Mestre. A Comunhão é a quarta etapa, e é imprescindível para
um novo discípulo que deve viver “o amor de Cristo na vida fraterna solidária” 9. E,
como conclusão do caminho formativo, temos A Missão na quinta etapa. Esta se
constitui como o momento de partilhar com os outros o aprendizado adquirido da
experiência feita com o Senhor, desde o encontro inicial. Por isso, com razão, diz o
Documento que a missão é inseparável do discipulado (cf. DA n. 278, p. 130).
Após apresentarmos sinteticamente os passos do caminho formativo dos
discípulos e missionários propostos pela Conferência de Aparecida, poderíamos, a
priori, já deduzir quais são as características de tais discípulos, considerando o nexo
entre os diversos momentos formativos e seus objetivos. Mas queremos mostrar tais
características com as palavras do próprio Documento:
Como características do discípulo, indicadas pela iniciação cristã,
destacamos: que ele tenha como centro a pessoa de Jesus Cristo, nosso
Salvador e plenitude de nossa humanidade, fonte de toda maturidade
humana e cristã; que tenha espírito de oração, seja amante da Palavra,
pratique a confissão freqüente e participe da Eucaristia; que se insira na
comunidade eclesial e social, seja solidário no amor e fervoroso
missionário10.
Interessante percebermos que, nas características apresentadas acima, está
justamente o efeito das etapas formativas vistas anteriormente. A característica
principal do discípulo missionário é ser parecido com Cristo, e isso só é possível se o
próprio Cristo for o centro de sua vida. Assim, o discípulo missionário é o batizado
que assume de verdade a sua fé e põe-se à disposição do Senhor.
9 (CELAM, 2007, p. 130). 10 (CELAM, 2007, p. 136).
Revista Logos – v.1, n.1, jan./jun., 2016.
15
Como exemplos de “grandes” discípulos (a) e missionários (a) podemos citar:
Maria, a serva humilde e fiel, capaz de dizer “Eu sou a serva do Senhor, faça-se em
mim segundo a tua Palavra!” (cf. Lc 1,38); e o Apóstolo Paulo, incansável discípulo e
missionário, e dizer como ele: “eu vivo, mas já não sou eu que vive, é Cristo que vive
em mim” (cf. Gl 2,20). De fato, a Virgem Maria e Paulo são modelos perenes para
qualquer projeto formativo cristã, pois a disponibilidade, obediência e configuração ao
Senhor são elementos da gênese da missão e do discipulado.
2 - A LECTIO DIVINA NO DOCUMENTO DE APARECIDA
A Lectio Divina em si, ocupa muito pouco espaço no Documento Conclusivo
da Conferência de Aparecida. O termo aparece apenas uma vez, no número 249 do
texto, exatamente no capítulo sexto, intitulado O caminho de formação dos discípulos
missionários. Porém, a pouca menção da expressão no conjunto do texto não
distancia o tema do Documento, uma vez que todo ele está permeado da Palavra de
Deus.
De fato, do começo ao fim do Documento, a Palavra de Deus ocupa um
espaço privilegiado, sobretudo a partir da segunda parte, intitulada A vida de Jesus
Cristo nos discípulos missionários. Toda a redação do texto é fundamentada na
Sagrada Escritura e repleta de citações. Para ilustrar essa primeira premissa,
recordamos o número 101 do documento, no qual aparecem seis citações bíblicas em
apenas um parágrafo:
Neste momento, com incertezas no coração, perguntamos com Tomé:
“Como vamos saber o caminho?” (Jo 14, 15). Jesus nos responde com
uma proposta provocadora: “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida” (Jo
14,6). Ele é o verdadeiro caminho para o Pai, que tanto amou ao mundo
que lhe deu o seu Filho único, para que todo aquele que nele crer tenha a
vida eterna (cf. Jo 3,16). Esta é a vida eterna: “que te conheçam a ti, o
único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo teu enviado” (Jo 17,3). A fé em
Jesus Cristo como o Filho do Pai é a porta de entrada para a vida. Como
discípulos de Jesus, confessamos nossa fé com as palavras de Pedro:
“Tuas palavras dão vida eterna” (Jo 6,68). “Tu és o Messias, o Filho do
Deus vivo” (Mt 16,16)11.
Esse simples dado serve para indicar o “teor bíblico” de todo o texto. Como
se vê, são citações das mais importantes, com alto conteúdo vocacional, confessional e
11 (CELAM, 2007, p. 61).
Revista Logos – v.1, n.1, jan./jun., 2016.
16
missionário, características muito importantes para a formação de um autêntico
discipulado.
É, portanto, no “oceano bíblico” do texto conclusivo de Aparecida que
encontramos a referência à Lectio Divina, e é daí que guiaremos o nosso trabalho,
sendo necessário, antes de tudo, apresentarmos pelo menos uma noção do que ela é
realmente, para em seguida a tratarmos no contexto específico do Documento do
Celam (2007).
2.1 O que é a Lectio Divina?
Não se pretende aqui fazer um detalhado estudo da Lectio Divina, mas apenas
apresentar um conceito básico, o qual dá norte ao prosseguimento de todo o restante
do presente trabalho. E, começamos com a definição da Pontifícia Comissão Bíblica:
“A Lectio Divina é uma leitura, individual ou comunitária, de uma passagem mais ou
menos longa da Escritura acolhida como Palavra de Deus e que se desenvolve sob a
moção do Espírito em meditação, oração e contemplação”12.
Portanto, não se trata de uma simples leitura, mas de uma leitura guiada sob o
impulso do Espírito Santo, de modo que o leitor “crie um amor efetivo e constante à
Sagrada Escritura, fonte de vida interior e de fecundidade apostólica”13. Dessa forma,
começamos a encontrar terreno para a nossa reflexão e nos aproximamos do objetivo
principal do trabalho e, assim, encontramos uma definição ainda mais em sintonia
com o que constatamos no Documento de Aparecida:
É um encontro por meio da Escritura. Encontro com Deus, com a
Palavra viva de Deus que é Jesus Cristo. Um encontro interpessoal do tu
do leitor com o Tu de Deus; um contato coração a coração do homem
com Deus. Um encontro no qual se adquire não tanto ciência, quanto
sabedoria, ou seja, compreensão divina do mistério de Deus, do homem
e do mundo14.
De fato, a definição de Izquierdo (2009) responde de modo mais claro e
contribui com nossa argumentação, que visa apresentar a Lectio Divina como um
instrumento importante na formação dos novos discípulos e missionários, segundo a
perspectiva do Documento conclusivo de Aparecida. Quanto ao modo em que se
desenvolve e se pratica a Lectio Divina, apenas citamos as etapas ou momentos:
12 (PCB, 1995, p. 55). 13 (PCB, 1995, p. 55). 14 (IZQUIERDO, 2009, p. 22). Para todas as citações desse autor, a tradução é nossa; o original
é em espanhol.
Revista Logos – v.1, n.1, jan./jun., 2016.
17
leitura, meditação, oração e contemplação, pois como queremos aqui apenas extrair o
conceito, não faremos considerações a respeito dessas etapas e nem tampouco nos
deteremos à história da Lectio Divina, pois não é o objeto de nossa reflexão.
Desse modo, sendo a Lectio Divina um encontro com Deus por meio da
Escritura, ela se torna extremamente necessária para a formação dos discípulos e
missionários, pois um elemento essencial para tal formação é justamente o encontro
com a pessoa de Jesus Cristo. Só quem faz um encontro autêntico com Cristo pode
tornar-se discípulo e missionário, e a Lectio Divina, nessa perspectiva, facilita esse
encontro, logo, é importante para a formação.
2.2 A Lectio Divina no documento de Aparecida
Como já acenamos no início, a Lectio Divina não é muito citada no
Documento de Aparecida, apenas uma vez, mas sabendo que em todo o Documento
ecoa a Palavra de Deus, também não chega a ser um tema marginal. A expressão é
citada no número 249, no capitulo intitulado O caminho de formação dos discípulos
missionários. Logo, se trata de elemento formativo importante para o discipulado e a
missão:
Entre as formas de se aproximar da Sagrada Escritura existe uma
privilegiada à qual todos somos convidados: a Lectio Divina ou
exercício de leitura orante da Sagrada Escritura. Essa leitura orante, bem
praticada, conduz ao encontro com Jesus-Mestre, ao conhecimento do
mistério de Jesus-Messias, à comunhão com Jesus-Filho e ao
testemunho de Jesus-Senhor do universo15.
Como se vê, a Lectio Divina está presente no Documento de Aparecida e de
um modo privilegiado: como um meio eficaz para o encontro com Jesus Cristo, por
meio da Sagrada Escritura. Como sabemos, existem muitos modos para nos
aproximarmos da Sagrada Escritura, que a cada dia torna-se mais acessível, com a
multiplicidade das traduções, graças ao impulso do Concílio Vaticano II. Porém,
sabendo que existe uma forma que é privilegiada, devemos aproveitá-la e difundi-la.
E isso já vem sendo feito com entusiasmo no Continente latino-americano, sobretudo
após a recomendação da Conferência de Aparecida, as conferências episcopais estão
incentivando e propondo o uso da Lectio Divina no caminho preparativo à grande
missão continental.
15 (CELAM, 2007, p. 116).
Revista Logos – v.1, n.1, jan./jun., 2016.
18
Citamos como exemplo do “efeito Aparecida”, o documento O Brasil na
Missão Continental, da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, o qual recomenda
que no caminho formativo,
A Bíblia esteja sempre presente como Palavra de Deus e como
expressão da Missão Continental entre nós, incentivando o povo à
“Lectio Divina”, ou ao exercício da leitura orante da Sagrada Escritura.
Esta prática muito salutar de abordagem da Palavra de Deus, com seus
quatro momentos (leitura, meditação, oração e contemplação), favorece
o encontro pessoal com Jesus Cristo16.
Com isso, vemos ainda mais o quanto é significativa a referência à Lectio
Divina no texto conclusivo da Conferência de Aparecida, pois dentre tantas
recomendações propostas no conjunto do Documento, o uso dessa leitura orante como
meio eficaz na formação do discipulado, tendo em vista a missão continental, tem sido
uma das mais valorizadas. A CNBB propõe, inclusive, a criação de subsídios para
estudos em torno da Lectio Divina e do Querigma para grupos de reflexão e Círculos
Bíblicos17.
Portanto, mesmo sendo citada em apenas um parágrafo do Documento, a
Lectio Divina, sendo uma forma privilegiada de encontro com a Sagrada Escritura,
está se tornando um elemento chave na pastoral do Continente no pós-conferência e,
por isso mesmo, é importante analisá-la e reconhecer bem o seu valor para o objetivo
principal da Conferência, que é formar discípulos e missionários na América Latina e
Caribe e, assim, dar continuidade ao ardor missionário e profético dos primeiros
evangelizadores do continente da esperança.
3 - A IMPORTÂNCIA DA LECTIO DIVINA NA FORMAÇÃO DOS
DISCÍPULOS E MISSIONÁRIOS
Após refletirmos um pouco sobre o processo de formação de novos discípulos e
missionários para o Continente latino-americano e caribenho e sobre a Lectio Divina, sempre
com base no Documento de Aparecida, tentaremos agora aplicar a Lectio Divina à formação dos
discípulos missionários e apresentá-la como um elemento eficaz e essencial no caminho
formativo, uma vez que ela é “uma forma privilegiada para o encontro com Cristo por meio da
Escritura”18.
16 (CNBB, 2008, p. 24). 17 (CNBB, 2008, p. 24). 18 (CELAM, 2007, p. 249).
Revista Logos – v.1, n.1, jan./jun., 2016.
19
3.1 O valor da Sagrada Escritura no caminho formativo
Como já acenamos anteriormente, aqui recordamos que a Sagrada Escritura ocupa um
espaço privilegiado no conjunto do Documento conclusivo da Conferência de Aparecida, sendo
um dos principais referenciais que fundamenta quase todo o texto, incluindo o discurso
inaugural de Bento XVI, que não se cansa de inspirar-se na Bíblia Sagrada para instruir,
governar e santificar o povo de Deus, a ele confiado.
Porém, o nosso objetivo aqui não é coletar citações bíblicas no Documento, mas sim,
compreender a centralidade da Palavra de Deus no caminho formativo dos discípulos
missionários. Assim nos diz Bento XVI:
Ao iniciar a nova etapa que a Igreja missionária da América Latina e do
Caribe se dispõe a empreender, a partir desta V Conferência Geral em
Aparecida, é condição indispensável o conhecimento profundo da
Palavra de Deus. Por isso, é preciso educar o povo na leitura e
meditação da Palavra de Deus: que ela se converta em seu alimento para
que, por própria experiência, vejam que as palavras de Jesus são espírito
e vida (cf. Jo 6, 63)19.
Como se vê, é forte o apelo e o convite feito pelo Papa, para que a Palavra de Deus
ocupe realmente seu verdadeiro espaço, no processo de formação dos discípulos e missionários.
A Palavra de Deus deve ser alimento no processo formativo, e isto significa que ela é
um elemento essencial. Porém, isso não quer dizer que não se usava a Palavra de Deus antes,
mas reforça a sua centralidade, uma vez que é necessário conhecer a pessoa de Jesus Cristo e
fazer com Ele uma experiência de vida, criar uma intimidade para poder segui-lo. E, “Cristo se
dá a conhecer a nós por meio da Palavra de Deus”20, logo, “desconhecer a Escritura é
desconhecer Jesus Cristo e renunciar a anunciá-lo”21.
Portanto, a Palavra de Deus tem uma predominância dentre os elementos formativos
porque ela facilita o encontro com a pessoa de Jesus Cristo, por isso vem elencada no
Documento como o primeiro entre os lugares de encontro.
Faz-se necessário propor aos fiéis a Palavra de Deus como dom do Pai
para o encontro com Jesus Cristo vivo [...]. Essa proposta será mediação
de encontro se for apresentada a Palavra revelada, contida na Escritura,
como fonte de evangelização. [...]. Por isso a necessidade de uma
“pastoral bíblica”, entendida como animação bíblica da pastoral, que
seja escola de interpretação ou conhecimento da Palavra, de comunhão
com Jesus ou oração com a Palavra, e de evangelização inculturada ou
de proclamação da Palavra22.
19 (cf. CELAM, 2007, p. 253). 20 (CELAM, 2007, p. 255). 21 (Idem, p. 115). 22 (CELAM, 2007, p. 116).
Revista Logos – v.1, n.1, jan./jun., 2016.
20
Entende-se, pois, que é necessário e até urgente fazer um revestimento na pastoral em
geral, da Palavra de Deus. Vale lembrar que ao propor uma “pastoral bíblica”, a Conferência
não propõe a criação de uma nova pastoral entre as demais, mas sim que todas as pastorais
sejam fundamentadas e guiadas pela Palavra de Deus, pois nela encontramos Jesus Cristo em
pessoa, vivo entre nós.
3.2 A importância da Lectio Divina
Não temos dúvidas acerca da importância da Palavra de Deus no caminho formativo
para o discipulado e a missão e sabemos que são muitas as formas que proporcionam o contato
com a Palavra de Deus, mas aqui destacamos uma que é privilegiada: a Lectio Divina.
Aqui recordamos a definição de Izquierdo (2009a, p. 22), que apresenta a Lectio
Divina como um “encontro com Deus, com a Palavra viva de Deus que é Jesus Cristo. Um
encontro interpessoal do tu do leitor com o Tu de Deus”. Ora, esta definição é central para a
nossa reflexão, pois, recordando também que o primeiro passo no caminho formativo dos
discípulos e missionários é exatamente o encontro e, uma vez que na Palavra de Deus
encontramos Jesus Cristo, logo a forma privilegiada de aproximação com a Sagrada Escritura é
de fundamental importância para a formação dos discípulos e missionários que a V Conferência
geral do CELAM nos propõe.
Uma vez que em todo o Documento há apenas um parágrafo dedicado à Lectio
Divina, o transcrevemos aqui, mesmo já tendo transcrito anteriormente a primeira parte:
Entre as muitas formas de se aproximar da Sagrada Escritura existe uma
privilegiada à qual todos somos convidados: a Lectio Divina ou
exercício da leitura orante da Sagrada Escritura. Essa leitura orante, bem
praticada, conduz ao encontro com Jesus-Mestre, ao conhecimento do
mistério de Jesus-Messias, à comunhão com Jesus-Filho de Deus e ao
testemunho de Jesus-Senhor do universo. Com seus quatro momentos
(leitura, meditação, oração, contemplação), a leitura orante favorece o
encontro pessoal com Jesus Cristo semelhante ao modo de tantos
personagens do Evangelho: Nicodemos e sua ânsia de vida eterna (cf. Jo
3,1-21), a Samaritana e seu desejo de culto verdadeiro (cf. Jo 4,1; 42), o
cego de nascimento e seu desejo de luz interior (cf. Jo 9), Zaqueu e sua
vontade de ser diferente (cf. Lc 19,1-10) [...] Todos eles, graças a esse
encontro, foram iluminados e recriados porque se abriram à experiência
da misericórdia do Pai que se oferece por sua Palavra de verdade e vida.
Não abriram o coração para algo do Messias, mas ao próprio Messias,
caminho de crescimento na “maturidade” conforme a sua plenitude” (Ef
4, 13), processo de discipulado, de comunhão com os irmãos e de
compromisso com a sociedade23.
23 (CELAM, 2007, p. 114).
Revista Logos – v.1, n.1, jan./jun., 2016.
21
Mais uma vez, recordamos que se trata de uma entre tantas outras formas de
contato com a Sagrada Escritura, mas o fato de ser uma forma privilegiada, garante à
Lectio Divina uma atenção especial. Nesses termos, vemos a confirmação da Lectio
Divina como “encontro”, conceito este visto também em Antonio Izquierdo24, que faz
em um artigo, uma análise completa do parágrafo anteriormente transcrito, no qual
nos apoiaremos para concluirmos a nossa reflexão.
Acreditamos, pois, que o Documento de Aparecida considera a Lectio Divina
um meio privilegiado, porque mais que um método de leitura, é uma experiência de
encontro com o Senhor, capaz de dar “frutos abundantíssimos de piedade, de
santidade e de apostolado”25, e isso é fundamental para a vida de um discípulo e
missionário.
Privilegiada também, certamente, pela acessibilidade: todos são convidados a
fazer a experiência da Lectio Divina, seja a nível individual ou comunitário26.
Portanto, é aberta a todos, pois mais que ciência, o discípulo adquire compreensão do
mistério de Deus27, o que reforça a sua a eficácia.
Por ser uma leitura orante da Sagrada Escritura, ela ajuda a criar e aprofundar
a intimidade do discípulo e missionário com a Pessoa de Cristo que começa no
encontro com Jesus-Mestre e vai até o testemunho de Jesus-Senhor do universo, que é
exatamente o ponto de chegada do processo formador, pois testemunhar é anunciar,
com palavras e atos, a Boa Nova de Jesus Cristo. É fazer missão.
Pelos personagens bíblicos citados, concluímos também que a Lectio
transforma, pois entre Nicodemos, a Samaritana, o cego de nascença e Zaqueu,
nenhum destes continuou do mesmo jeito depois do encontro com Jesus. Portanto,
mais uma prova do aspecto transformador da Lectio Divina, que releva ainda mais a
sua importância para a formação do discipulado missionário do Continente latino-
americano e caribenho.
CONCLUSÃO
Procuramos, portanto, no presente artigo, fazer uma observação no
Documento Conclusivo da V Conferência geral do Episcopado Latino-americano e
Caribenho, e sentir quais seus apelos mais fortes para a ação evangelizadora da Igreja
24 Aqui fazemos referência ainda ao conceito de Izquierdo, em Lectio Divina. Introdución y
método, 2009a. 25 (IZQUIERDO, 2009b, p. 546). 26 (PCB, 1995, p. 55). 27 (IZQUIERDO, 2009a).
Revista Logos – v.1, n.1, jan./jun., 2016.
22
no continente da esperança nos dias atuais. Vimos que as palavras que predominam no
vocabulário da ‘nova evangelização’, são ‘discípulos e missionários’, termos que não
são novos, mas que causam impacto pela forma como são aplicados.
Ser discípulo e missionário já não pode mais ser visto como característica
apenas dos pastores, mas sim de todos os batizados e batizadas. É o batismo a fonte do
discipulado e este, por sua vez, leva à missão. São palavras inseparáveis no cotidiano
eclesial da América Latina e do Caribe, segundo o que colhemos do Documento de
Aparecida.
Como a Conferência apresentou o discipulado e a missão numa perspectiva
inovadora, percebemos a necessidade de se conduzir um projeto formativo que
responda à essa nova realidade. E, o Documento dá um papel relevante à Palavra de
Deus no caminho formativo, como vimos até aqui.
E, como sugere o próprio Documento, procuramos indicar que, dentre as
diversas formas de aproximação da Palavra de Deus, é salutar, viável e prático, o uso
da Lectio Divina nesse percurso formativo, uma vez que se trata de uma forma
privilegiada de contato com a Sagrada Escritura, proporcionando um encontro
autêntico e verdadeiro entre o leitor e o Senhor que fala através do texto sagrado.
E, é exatamente nessa perscpetiva que colhemos nossas conclusões. Ora, para
ser verdadeiro discípulo e missionário de Jesus Cristo, é necessário encontrar-se com
Ele, criar intimidade e tornar-se parecido com Ele ou configurado. E, para tal, a
Palavra de Deus é essencial. Assim, na diversidade de métodos para acessar à Palavra,
priorizamos aquele que é privilegiado, a Lectio Divina. Assim nos recomenda o
Documento de Aparecida.
Constatamos, pois, que tal empreitada tem dado um ânimo novo à pastoral no
continente e, não faltam iniciativas de aproximação do povo com a Lectio Divina.
Assim, percebemos que um único parágrafo, num texto grande e complexo, pode ser
decisivo para dar um rosto novo ao jeito de ser Igreja na América Latina.
Foi nosso intuito, portanto, mostrar como a Lectio Divina pode ser útil para a
nova evangelização da América Latina e Caribe, por proporcionar um encontro com o
Senhor através da Sagrada Escritura, qualidade que a faz uma forma privilegiada de
contato com a Palavra de Deus nas diversas comunidades de nosso continente, para
que sejam formados mais ‘discípulos e missionários de Jesus Cristo, para que n’Ele,
nossos povos tenham vida.’
Revista Logos – v.1, n.1, jan./jun., 2016.
23
REFERÊNCIAS
BÍBLIA de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2003.
CONSELHO EPISCOPAL LATINO AMERICANO – CELAM. Documento de
Aparecida: Texto conclusivo da V Conferência Geral do Episcopado Latino-
Americano e do Caribe. Brasília: Edições CNBB; São Paulo: Paulinas/Paulus, 2007.
CONFERÊNCIA EPISCOPAL DOS BISPOS DO BRASIL O Brasil na Missão
Continental, Brasília: Edições CNBB, 2008.
PONTIFÍCIA COMISSÃO BÍBLICA - (PCB), A interpretação da Bíblia na Igreja.
São Paulo: Paulinas, 1995.
HACKMANN, Geraldo Luiz Borges. O referencial teológico do Documento de
Aparecida. In: Revista Teocomunicação, Porto Alegre, v. 37, n. 157, p. 319-336, set.
2007.
IZQUIERDO, Antonio. Lectio Divina. Introdución y metodo. Lima-Peru: Paulinas,
2009a.
______. La Lectio Divina en el Documento Conclusivo de la Quinta Asamblea
General del CELAM. In: Ecclesia – Revista de cultura católica, APRA, Roma-Itália,
n. 4, p. 537-552, 2009.
Revista Logos – v.1, n.1, jan./jun., 2016.
24
A ESPIRITUALIDADE DO PADRE MESTRE
Francisco Crisanto Borges de Araújo28
RESUMO
O padre José Antonio de Maria Ibiapina, comumente chamado de Pe. Ibiapina ou
Padre Mestre, foi um dos maiores evangelizadores do século XIX, nos sertões
nordestinos dos estados de Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará e Piauí,
num momento muito difícil do ponto de vista sócio, político e econômico e
emblemático do ponto de vista eclesial, uma vez que se vivia o processo de
romanização e a hierarquia não apoiava a religiosidade popular e a figura dos beatos e
beatas. Nesse contexto, o Padre Ibiapina decide-se colocar ao lado dos sertanejos
pobres, vítimas da seca, das doenças e de toda espécie de injustiça, utilizando o
método das missões populares e da criação das Casas de Caridade, para alívio e
socorro de todos os necessitados, sobretudo das órfãs, expostas a tantos perigos.
Palavras–chave: Espiritualidade. Missão. Compaixão. Serviço.
ABSTRACT
Father José Antonio de Maria Ibiapina, commonly called Father Ibiapina or Master
Father, was one of the most important evangelists of the nineteenth century, in the
region northeastern of the States of Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará
and Piauí. In that time, the reality of the point of view social, politic and economic
was very hard. The church's reality was not easy because it lived a romanization
process and a hierarchy did not support the popular religiosity and the figure of new
blesseds. In this context, Father Ibiapina decides to put alongside the poor people,
victims of drought and disease and all kind of injustice, using the method of the
popular missions and the creation of Charity homes for relief and rescue all needy,
especially the orphans, exposed to many dangers.
Keywords: Spirituality. Mission. Compassion. Service.
28 Mestre em Teologia Moral pelo Ateneu Pontifício Regina Apostolorum (Roma); Reitor do
Seminário Santa Teresinha de Mossoró; Vice diretor e professor de Teologia Moral e de
Espiritualidade na Faculdade Diocesana de Mossoró – FDM.
Revista Logos – v.1, n.1, jan./jun., 2016.
25
INTRODUÇÃO
O presente artigo se propõe apresentar alguns aspectos da vida, da ação
pastoral e da espiritualidade do Pe. Ibiapina, com o objetivo de resgatar uma grande
personalidade do século XIX e perceber como a sua ação missionária pode iluminar a
nossa prática pastoral nos dias atuais, numa integração entre fé e vida, matando a fome
de Deus e a fome de pão.
Todos aqueles que tomam conhecimento da vida e obra do Padre José
Antonio de Maria Ibiapina, não hesitam em declará-lo como o maior missionário do
interior do Nordeste no século XIX. Padre Ibiapina viveu há mais de cem anos antes
da Conferência de Aparecida, mas viveu de maneira antecipada àquilo que os bispos
latino-americanos e caribenhos incentivaram: passar “de uma pastoral de mera
conservação para uma pastoral decididamente missionária”29.
A PREPARAÇÃO
O padre Ibiapina foi ordenado presbítero somente aos 47 anos. Antes tinha
frequentado o seminário de Olinda e o Convento da Madre de Deus, dirigido pelos
padres oratorianos, deixando por motivos ignorados. Nesse ínterim, morrem o pai e o
irmão que faziam parte do movimento revolucionário republicano que era contra o
Império, chamado de Confederação do Equador e ele tem que voltar ao Ceará para
cuidar da família. Logo em seguida morre a genitora, numa data ignorada30.
Em seguida, o jovem José Antonio encontra-se novamente em Recife,
juntamente com os seus irmãos e tem a oportunidade de matricular-se na primeira
faculdade de Direito do Brasil, sendo ajudado por pessoas ignoradas. O fato é que se
tornou bacharel no final de 1832. E por 18 anos, vai exercer atividades ligadas ao
direito no Ceará, no Rio de Janeiro e em Recife31.
Porém, após algumas decepções decide abandonar a carreira de advogado e
começa a viver como um monge no período de 1850 a 1853, até que um amigo que
sempre o visitava, o Dr. Américo Magalhães, à queima-roupa lhe pergunta por que
não se torna padre. Ao que ele logo respondeu que era o seu maior desejo. Contudo,
29 CONSELHO EPISCOPAL LATINO-AMERICANO. Documento de Aparecida. Texto
conclusivo da V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe, Brasília:
Edições CNBB; São Paulo: Paulinas/ Paulus, n. 370. 30 Cf. COMBLIN, José. Padre Ibiapina. São Paulo: Paulus, 2011. (Coleção BIOGRAFIAS), p.
19. 31 Cf. Ibid., p. 19-22.
Revista Logos – v.1, n.1, jan./jun., 2016.
26
coloca a condição de não ter que passar pela formação no Seminário, pois àquela
altura já se sentia com bastante experiência. Tudo é combinado com o bispo de Olinda
Dom João Perdigão, que a princípio não queria aceitar, mas acabou reconhecendo o
bem que uma pessoa como ele podia fazer e aceitou a idéia. A conversa com o Dr.
Américo ocorreu no dia 12 de julho e José Antonio foi ordenado no dia 26 do mesmo
mês32.
Não se sabe muito sobre as atividades do padre Ibiapina até 1860, ano em que
começa a sua faina missionária. Apenas se tem conhecimento de que ele foi nomeado
vigário-geral e professor de eloquência sagrada, no seminário de Olinda, o que não o
agradava muito, uma vez que, após três anos, consegue a permissão do bispo para
trabalhos missionários nos sertões, como uma espécie de noviciado em preparação
para o grande trabalho missionário de 1860 a 1876. Também acerca desses três anos
não se sabe nada, apenas que foi o suficiente para tomar conhecimento da realidade de
pobreza e sofrimento em que vivia o povo sertanejo.
O NÔMADE DE DEUS
O período em que Padre Ibiapina exerceu o seu ministério presbiteral foi o
período de romanização da Igreja33. Mas ele não se preocupou em colocar em prática
este grande projeto da Igreja de então. Não que ignorasse a importância desse
processo para a época ou que simplesmente quisesse ser um subversivo, mas é que a
realidade com a qual ele se deparou, fez com que fizesse uma opção clara e decidida
pelos pobres. Ele escolheu a vida itinerante, optando pela diocese de Olinda que
compreendia as províncias de Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Alagoas,
além do Ceará e do Piauí, um território de mais ou menos 600.000 km², andando a pé
ou a cavalo34.
É nessas andanças que ele vai contemplando o rosto sofrido de tantas pessoas
flageladas pela seca, de doentes de cólera, de órfãos em consequência dessa epidemia
que ceifou tantas vidas nesse período. Sensibilizado com essa dura realidade,
32 Cf. Ibid., p. 24-25. 33 A centralização romana torna-se um poderoso instrumento na arregimentação de todas as
forças eclesiásticas, colocando-as rigorosamente em uma linha de combate aos “perversos
avanços da modernidade”. Expressão eloquente desse fenômeno é a Encíclica “Quanta Cura”
(1864), acompanhada do Sílabo, ou seja, o catálogo de 80 condenações do mundo moderno. A
declaração da “Infalibilidade Papal” no Concílio Vaticano I (1870) reforça e completa a
centralização em curso dando-lhe um respaldo dogmático. MATOS, Henrique Cristiano José.
Nossa História: 500 anos de presença da Igreja Católica no Brasil. São Paulo: Paulinas, 2002
(Coleção Igreja na História), p. 73-74. 34 Cf. COMBLIM, José. Padre Ibiapina, 2011, p. 29.
Revista Logos – v.1, n.1, jan./jun., 2016.
27
sobretudo da mulher desamparada, talvez porque ele mesmo recordou o sofrimento de
suas irmãs órfãs, é que decide fazer algo em prol das meninas nessa condição. E para
responder a essa necessidade cria várias Casas de Caridade:
Nas Casas de Caridade, era ensinado tudo o que se podia não somente
para preparar as jovens para o futuro, mas também para providenciar o
sustento da casa [...] As meninas aprendiam a cozinhar, a tecer, a fiar,
costurar, plantar sementes, fazer chapéu de palha, pintura em tecido de
algodão, pintar flores, fazer crochê, labirinto e renda.
As Casas de Caridade tornaram-se frequentemente o centro de diversas
atividades. Ao lado da casa, podia haver um hospital para acolher os
doentes pobres, casas de hóspedes, casa para as irmãs, horta, estábulo,
roçados, casas para os trabalhadores agrícolas que prestavam serviço,
inclusive casas para os beatos que assistiam o Padre Mestre35.
Para dirigir as Casas de Caridade, o Padre Ibiapina instituiu as “Beatas”,
mulheres simples do povo que não pertenciam a nenhuma congregação religiosa.
Talvez após a morte do Padre Ibiapina, se algum padre diocesano tivesse se
interessado para que essas casas de caridade se tornassem um instituto religioso, quem
sabe, teriam continuado a existir. O que é certo é que as dirigentes dessas casas eram
mulheres profundamente sensíveis ao sofrimento dos pobres e abandonados, quase
todas elas caídas no esquecimento, não se sabe o nome de muitas delas, ignora-se
quase por completo a biografia das mesmas.
De um lado, se vê a valorização que o Padre Ibiapina dava aos leigos,
sobretudo as mulheres. Torna-se patente que um trabalho desse tipo era conveniente
que fosse desenvolvido por pessoas do sexo feminino. Porém, o que se deseja destacar
é a capacidade que o Padre Mestre tinha de envolver as pessoas, de sensibilizá-las
diante do sofrimento e o espírito de abnegação e serviço dessas mulheres as quais se
esqueceram de si mesmas para se dedicarem a essa causa, chegando a ficar esquecidas
na história, vivendo uma vida escondida com Cristo em Deus (Cf. Cl 3,3), sofrendo
incompreensões e preconceitos por parte da hierarquia e, que não obstante, essas
dificuldades mantiveram as Casas de Caridade por quase cem anos36.
35 Ibid., p. 43. 36 Desde o início, Dom Luís, bispo de Fortaleza, desconfiou delas e pretendeu que cortassem
relações com Padre Ibiapina. Dom Adauto, o primeiro bispo da Paraíba, não gostou delas. Dom
Moisés, bispo de Cajazeiras e depois da Paraíba, retirou todo o apoio. Poucos foram os padres
que as apoiaram. Ibid., p. 46.
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28
O MÉTODO MISSIONÁRIO
O Pe. Ibiapina não desconhecia que antes dele os missionários capuchinhos
italianos já se embrenhavam pelos sertões adentro, levando a palavra de Deus e os
demais socorros da religião àquele povo tão sofrido e que muitas vezes ignorava as
principais verdades da fé, por não ter quem lhes apresentasse. O estilo de pregações
desses missionários era de caráter apocalíptico, concentrando-se na chamada de
atenção para tudo o que pudesse fazer com que se perdesse a vida eterna37.
O Pe. Ibiapina, em suas pregações, também combatia os vícios e conclamava
todos a uma mudança profunda de vida38. Porém, o seu método missionário
diferenciava-se do método dos capuchinhos porque além da pregação, da catequese e
das orações, compreendia também a construção de Igrejas, açudes e cemitérios. Coisa
incomum no estilo de missões pregadas à época, como se conta que numa missão em
Bananeiras, na Paraíba, em 1863, ele convocou o povo a se fazer uma nova igreja,
uma vez que a antiga tinha desmoronado e o povo se dispersou porque pensava que a
missão fosse somente de pregações. Foi quando o Padre Mestre, de maneira firme,
declarou que se os fiéis voltassem para suas casas, ele iria interromper a missão, e
“esta ameaça” surtiu efeito, uma vez que aquelas pessoas desejavam ouvir a Palavra
de Deus, tendo como fruto a construção de uma das Igrejas mais bonitas da Paraíba39.
É interessante a leitura que Comblin, faz do “sucesso” que o Padre Ibiapina
obteve à diferença do estilo dos missionários capuchinhos italianos:
[...] Padre Ibiapina apelava para outro aspecto da herança indígena, o
sentimento comunitário, a colaboração, o mutirão. Ele alcançou
rapidamente tal prestígio pessoal, que, ao seu apelo, milhares de pessoas se
precipitavam, caminhando muitas léguas para se colocarem à disposição
das obras da missão. Produziu-se tal identificação entre Padre Ibiapina e
esse povo mestiço, que ele podia pedir-lhes tudo, e tudo lhe davam. Sem
essa identificação quase mística, nunca teria podido realizar tais obras e
tantas construções. As missões eram verdadeiras mobilizações populares
livres e espontâneas40.
Esse estilo missionário escolhido pelo Pe. Ibiapina nem sempre foi muito
aceito por alguns membros da hierarquia, porque, conforme foi acenado
anteriormente, vivia-se o período de romanização. Por exemplo, “Dom Luís, primeiro
37 Ibid., p. 34-35. 38 Ibid., p. 37. 39 Ibid., p. 36 40 Ibid., p. 35.
Revista Logos – v.1, n.1, jan./jun., 2016.
29
bispo do Ceará, queria que a diocese toda se estruturasse de acordo com as normas e
costumes da Itália. Queria que tudo dependesse dos vigários. Não queria nem missões,
nem missionários. Em 1863, expulsou Padre Ibiapina de Sobral e da região do Norte
do Ceará”41.
A ESPIRITUALIDADE DO PADRE IBIAPINA
Quando se fala em espiritualidade quase sempre se vem à mente o quanto
uma pessoa reza muito, quiçá até se pensa em alguém que teve revelações místicas ou
outros dons extraordinários, bem como algo reservado àquelas pessoas pertencentes
ao clero ou a alguma congregação religiosa. Não é este o caso do Padre Ibiapina –
muito embora ele fosse um presbítero - e nem tampouco o que se propõe a
espiritualidade cristã. Pois esta, segundo uma analogia muito profunda que Segundo
Galilea diz ter escutado de um operário, é como a umidade e a água que mantém a
relva molhada e que não são vistas; o que se vê é a beleza do gramado, o seu verde, o
que seria impossível sem elas duas42.
Esta imagem usada para compreender a espiritualidade cristã, aplica-se
perfeitamente à espiritualidade do Padre Mestre. O padre Ibiapina não deixou escritos
sobre ascese e mística cristãs, não deixou um manual de orações para as beatas, nem
teve arroubos místicos ou revelações especiais. Deus falou a ele de maneira muito
concreta, se revelou a ele no sofrimento dos sertanejos, desamparados por todo tipo de
poder. Pela sua ação diante dessa realidade de desolação, percebemos o viço da sua
espiritualidade, a sua maturidade no plano humano e espiritual, uma vez que:
O cristão maduro é, basicamente, a mulher ou o homem qualificado pela
maturidade psicológica. Sua fé, em lugar de se limitar a concepções e
práticas religiosas infantis ou supersticiosas, procura estar em sintonia com
seu saber, o que o qualifica para agir no mundo em que vive. Não deixa
em suspenso sua fé, mas empenha todos os seus recursos psicológicos,
intelectuais e culturais em testemunhar a esperança, como está escrito na
Primeira Carta de Pedro (cf. 3, 15).
[...] como seres humanos e como cristãos, somos chamados ao convívio
maduro com nosso próximo, compartilhando a vida e procurando vivê-la
no Espírito, pois este é o caminho para que colaboremos dignamente com
Deus, que quer salvar todos os humanos e cujo Verbo assumiu a nossa
41 Ibid., p. 30. 42 Cf. GALILEA, Segundo. O caminho da espiritualidade. São Paulo: Paulinas 1983. (Coleção
Tempo de Libertação), p. 14-14.
Revista Logos – v.1, n.1, jan./jun., 2016.
30
vida, até mesmo nas piores condições, na morte, transformando-as em
caminhos para a salvação e santificação de todos os humanos43.
A espiritualidade do Padre Ibiapina insere-se na religiosidade popular que foi
e ainda é o fulcro da espiritualidade do sertanejo, que como se sabe, não foi bem
acolhida e devidamente interpretada pelos membros da hierarquia de então, conforme
já se mencionou anteriormente. Mas que hoje, a partir de Puebla44 e, sobretudo, com
Aparecida, os Pastores da Igreja defendem-na e recomendam-na porque veem nela um
tesouro da Igreja Católica na America Latina, por ser um meio precioso de encontro
com Jesus Cristo45. Ele, que à sua época, soube entender a fé simples do seu povo,
sem rotulá-la de supersticiosa como a da mulher hemorrágica que acreditava que se
tocasse ao menos em suas vestes ficaria curada (cf. Mc 5, 25- 34).
INSPIRAÇÃO PARA OS PRESBÍTEROS DO TERCEIRO MILÊNIO
Dom Valfredo Tepe, numa de suas obras voltadas para os presbíteros, acena
que o Santo Cura d’Ars, padroeiro de todos os padres, talvez não corresponda ao
modelo de padre para a Igreja do Brasil, onde os padres - diferentemente de São João
Maria Vianney que foi pároco de uma aldeia de 200 pessoas46 - para atender as
necessidades espirituais das comunidades, devem tornar-se homens da estrada47. E
aqui, talvez o Padre Ibiapina seja um referencial maior, no que diz respeito à prática
pastoral, ao estilo itinerante do qual devem estar imbuídos todos os presbíteros, e
ainda mais aqueles diocesanos, em virtude do próprio estilo de vida que escolheram,
diferentemente daqueles que optaram pela vida religiosa, em que o acento é a vivência
comunitária em conventos; não significando, porém, que não possam vir a ter um
carisma missionário aos moldes do Padre Mestre, como a história tem demonstrado
em muitas prelazias e dioceses carentes, onde alguns religiosos desenvolveram
projetos e iniciativas semelhantes as do Padre Ibiapina, tendo até um êxito maior, no
sentido da continuidade porque após a morte destes, as congregações assumiram e não
deixaram morrer obras que custaram muito suor aos seus idealizadores, coisa que no
43 CATÃO, Francisco. Espiritualidade cristã. São Paulo: Paulinas; Valência, ESP: Siquem,
2009. (Coleção livros básicos de teologia; 14), p. 184-185. 44 Cf. COMBLIN, José. Ibid., p. 60. 45 Cf. CELAM. Documento de Aparecida, n. 258- 265. 46 Cf. TEPE, Valfredo. Presbítero hoje. Petrópolis: Vozes, 1995, n. 3. ed. 46. 47 Cf. BIBOLLET, Bruno. Padres diocesanos. Elementos de espiritualidade. São Paulo:
Paulinas, 2000 (Coleção: Sopro do Espírito), n. 14.
Revista Logos – v.1, n.1, jan./jun., 2016.
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caso do Padre Ibiapina, por ser diocesano, não houve quem levasse à frente as suas
obras48.
O Padre Ibiapina, inspira os presbíteros do terceiro milênio, sobretudo
naqueles aspectos ressaltados com tanta lucidez e quase como urgências pela
Conferência de Aparecida, uma vez que:
O povo de Deus sente a necessidade de presbíteros-discípulos: que
tenham profunda experiência de Deus, configurados com o coração do
Bom Pastor, dóceis às orientações do Espírito, que se nutram da Palavra
de Deus, da Eucaristia e da oração; de presbíteros-missionários: movidos
pela caridade pastoral que os leve a cuidar do rebanho a eles confiado e
a procurar os mais distantes, pregando a Palavra de Deus, sempre em
profunda comunhão com seu Bispo, com os presbíteros, diáconos,
religiosos, religiosas e leigos; de presbíteros-servidores da vida: que
estejam atentos às necessidades dos mais pobres, comprometidos na
defesa dos direitos dos mais fracos, e promotores da cultura da
solidariedade. Também de presbíteros cheios de misericórdia,
disponíveis para administrar o sacramento da reconciliação49.
Diante de tudo isso, pode-se perceber como o Padre Ibiapina viveu
plenamente estas características, como filho do seu tempo, respondendo aos apelos e
necessidades de então, num espírito de entrega, de doação da própria vida, a exemplo
do Divino Mestre que veio para servir e não para ser servido (cf. Mc 10, 45) e que por
isso, se constitui em um referencial, como alguém quem inspira a nossa prática
pastoral. Prática essa que leva a Igreja como um todo a procurar responder às
necessidades atuais, sem copiar modelos do passado, apenas inspirando-se neles para
encontrar caminhos que respondam aos desafios atuais, numa fidelidade criativa aos
apelos do Espírito Santo.
À GUISA DE CONCLUSÃO
O Padre Ibiapina foi alguém que permitiu que os fatos, as pessoas e a
realidade que o envolviam o afetassem profundamente, percebendo a vontade de Deus
que se lhe apresentava, diante da qual ele tinha que dar uma resposta concreta. Por
isso, aventurou-se pelos adustos sertões nordestinos, levando a Palavra de Deus que é
sempre fonte de vida e de esperança, sobretudo para os deserdados da sorte e,
juntamente com ela, propostas de soluções para os graves problemas.
48 Cf. COMBLIN, José. Ibid., p. 9. 49 CELAM. Documento de Aparecida, n. 198-199.
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O Padre Ibiapina nos ensina uma ética e uma espiritualidade do cuidado,
semelhante às atitudes do bom samaritano (cf. Lc 10, 29-37), de alguém que se
aproxima daquele que está caído à margem da sociedade, que se comove, que faz os
primeiros socorros, que conduz para um lugar mais apropriado para a recuperação.
Podemos assim dizer que as Casas de Caridade, criadas pelo Padre Mestre, foram
como aquela hospedaria para a qual o Samaritano conduziu aquele pobre homem a
fim de ser cuidado.
A espiritualidade do Padre Ibiapina foi uma espiritualidade concreta, de uma
pessoa que não está preocupada com a sua própria salvação ou, apenas, com a
salvação espiritual do seu rebanho, mas de alguém que entende o ser humano de
maneira integral: corpo, alma e espírito, sem cair em reducionismos ou dualismos
platônicos e/ neoplatônicos, que tantos prejuízos causaram à teologia, à espiritualidade
e à prática pastoral ao longo da história. E que aqui no Brasil e na América Latina
podem ser traduzidos pelo divórcio entre fé e vida.
A espiritualidade do Padre Ibiapina é uma espiritualidade do nômade, do
andarilho. Ele sentiu que tinha que sair, não podia fincar raízes num determinado
lugar; ele percorreu milhares e milhares de quilômetros, como vimos anteriormente,
mas o êxodo maior que ele teve que fazer foi de sair de si mesmo, dos seus gostos, das
suas manias, de tudo aquilo que poderia trazer status e ascensão eclesial e
acomodação, para ir ao encontro do outro, sobretudo do abandonado, do excluído, de
quem é objeto de exploração pelos sistemas de poder deste mundo. É este mesmo
êxodo que nós cristãos do terceiro milênio, filhos do progresso, do bem-estar, de uma
cultura do consumismo precisamos fazer: sair de tudo que nos fecha em nós mesmos
para ir ao encontro do outro, quem quer que ele seja, porque é o doar-se ao outro que
nos leva a descobrir e a viver com alegria a nossa existência.
REFERÊNCIAS
BIBOLLET, Bruno. Padres diocesanos. Elementos de espiritualidade. São Paulo:
Paulinas, 2000 (Coleção Sopro do Espírito).
CATÃO, Francisco. Espiritualidade cristã. São Paulo: Paulinas; Valência, ESP:
Siquem, 2009. (Coleção Livros básicos de Teologia, n. 14).
CONSELHO EPISCOPAL LATINO AMERICANO – CELAM. Documento de
Aparecida: Texto conclusivo da V Conferência Geral do Episcopado Latino-
Americano e do Caribe. Brasília: Edições CNBB; São Paulo: Paulinas/Paulus, 2007.
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COMBLIN, José. Padre Ibiapina. São Paulo: Paulus, 2011. (Coleção Biografias).
GALILEA, Segundo. O caminho da espiritualidade. São Paulo: Paulinas, 1983.
(Coleção Tempo de libertação).
MATOS, Henrique Cristiano José. Nossa história: 500 anos de presença da Igreja
Católica no Brasil. São Paulo: Paulinas, 2002. (Coleção Igreja na História, Tomo 2).
TEPE, Valfredo. Presbítero hoje. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1995.
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A INTERPRETAÇÃO ALEGÓRICA DO CÂNTICO DOS CÂNTICOS
NAS OBRAS “OS SACRAMENTOS” E “OS MISTÉRIOS”DE
AMBRÓSIO DE MILÃO
Márcia Eloi Rodrigues 50
RESUMO
O presente artigo aborda a interpretação alegórica do Cântico dos cânticos feita por
Ambrósio de Milão em sua catequese mistagógica, particularmente nas duas obras
“Os Sacramentos” e “Os Mistérios”. Primeiramente considera os trechos em
perspectiva exegético-teológica atual e, depois, na perspectiva alegórica. Com isso, se
quer evidenciar a riqueza teológica da interpretação alegórica da Sagrada Escritura
como linguagem eficaz da catequese mistagógica dos santos padres, os quais tinham
por objetivo levar o catecúmeno a uma verdadeira experiência com o mistério de
Cristo presente nos Sacramentos de Iniciação Cristã.
Palavras-chave: Ambrósio de Milão. Cântico dos Cânticos. Catequese mistagógica.
Interpretação alegórica.
ABSTRACT
This article approaches the allegorical interpretation in the St. Ambrose's
mystagogical catechesis on the book “Song of Songs”, specifically in his works “On
the Sacraments” and “On the Mysteries”. Firstly considering the texts in perspective
exegetical and theological current, and then, in the allegorical perspective. Thus, we
intend to emphasize the theological importance of allegorical interpretation of Holy
Scriptures as effective speech of the Fathers' catechesis, which had the goal to target
the catechumen to a real experience with the mystery of Christ present in the
Sacraments of Christian Initiation.
Keywords: Ambrose. Song of Songs. Mystagogical catechesis. Allegorical
interpretation.
50 Mestra e doutoranda em Teologia pela Faculdade Jesuíta e Filosofia e Teologia – FAJE, Belo
Horizonte-MG. Professora de Sagrada Escritura da Faculdade Diocesana de Mossoró.
Revista Logos – v.1, n.1, jan./jun., 2016.
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INTRODUÇÃO
A interpretação alegórica dos textos bíblicos realizada pelos padres da Igreja
apresenta-se como uma riqueza teológica e espiritual de imenso valor para a fé cristã.
Tal interpretação não deve ser ignorada nos dias de hoje em razão de uma leitura
crítica e científica da Bíblia que, dissociada de uma reflexão teológica, tenderia a
esvaziar-se de seu sentido para a fé. Ambrósio de Milão, em sua catequese
mistagógica, emprega os textos do Antigo e Novo Testamento de forma alegórica,
extraindo deles o sentido espiritual em função de sua mistagogia. No presente
trabalho, pretende-se fazer uma leitura dos textos do Cântico dos Cânticos que
Ambrósio cita nas obras “Os Sacramentos” e “Os Mistérios”.
Inicialmente será apresentada uma breve introdução ao livro do Cântico dos
Cânticos, apontando as possíveis interpretações, gênero literário e mensagem
atualmente enfocados pelos exegetas. Em seguida, serão comentados os textos desse
livro citados por Ambrósio na sua catequese, evidenciando o sentido que estes têm no
contexto bíblico. E, por fim, os mesmos textos serão comentados no contexto da
catequese ambrosiana, procurando evidenciar sua interpretação alegórica.
1 - INTRODUÇÃO AO CÂNTICO DOS CÂNTICOS
O Cântico dos Cânticos é um livro de apenas oito capítulos, de grande beleza
poética. A temática que percorre o livro é o amor de dois jovens no seu desabrochar,
que se buscam e se evitam, fonte para eles de alegria ilimitada e de intensa dor. O
amor cantado nos textos está carregado de um tom bastante erótico, cujo teor
apresenta-se como problema para a interpretação do livro51. Esse aspecto do livro foi
motivo de controvérsia sobre sua entrada no Cânon. Segundo alguns exegetas, o Rabbi
Aqibá52 teria retocado os textos mais sensuais, amenizando a linguagem erotizada, a
fim de que o livro fosse aceito pelos rabinos mais piedosos e inserido no Cânon53.
1.1 Interpretação
A mais antiga interpretação alegórica do Cântico é aquela atestada por muitos
exegetas, por alguns manuscritos de Qumran, pelo Talmud e pelo Targum, e pelos
judeus e cristãos através dos séculos. A exegese cristã seguiu o método interpretativo
51 Introdução da Bíblia TEB. 52 O Rabino Akibá (aproximadamente 50-135 dC) foi um dos maiores estudiosos da Misná, a
forma mais antiga de escrita da Torá Oral. 53 TILLESSE, Caetano M. Cântico. Revista Bíblica Brasileira, v. 14, n. 1-3, p. 184.
Revista Logos – v.1, n.1, jan./jun., 2016.
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hebraico, relendo, porém, em sentido novo, segundo as exigências e as condições do
NT. No entanto, o pensamento exegético hebraico atual não continua mais na linha
tradicional, porque interpreta o Cântico como uma coletânea de cantos de amor
natural entre um casal hebreu54.
Após o séc. XVIII surgiram várias tentativas de interpretação do Cântico,
buscando o significado literal do texto: 1) Interpretação litúrgica, cultual ou
mitológica – hinos em honra aos deuses da fecundidade; 2) Interpretação natural ou
naturalista – celebração do amor humano; 3) Interpretação típica – amor entre um
homem e uma mulher e o amor entre Yahweh e Israel; 4) Interpretação alegórica –
amor de Deus a Israel, expresso em palavras metafóricas e figurativas; 5) Releitura
profético-sapiencial – amor de Deus a Israel como fonte de consolo à comunidade e
amor humano entre um homem e uma mulher como fonte de instrução aos hebreus.
Esta última interpretação será a adotada no presente trabalho.
Esses textos que cantam o amor humano foram compilados por um autor-
redator pós-exílico, o qual impôs uma ordem literária e uma concepção teológica, que
transparece no título proposto pelo livro: “Cântico dos Cânticos, que é de Salomão”.
Salomão era tido como o sábio por excelência. Assim, com este artifício literário, o
autor-redator introduziu os cantos de amor dentro de um contexto teológico sapiencial,
evidente também pelo lugar que o livro ocupa na mais antiga versão da Bíblia, a
Setenta55. Segundo esta interpretação, o Cântico será lido em dupla perspectiva:
quando o homem ou a mulher canta o seu amor de criaturas humanas, circundados
pelo esplendor da natureza, das flores, dos perfumes deste mundo, Deus sugere, por
meio do Redator, a realidade de um amor transcendente, do seu amor mesmo56.
1.2 Gênero
O gênero literário seria uma antologia de cantos de amor, destinados para uma
celebração ritual das núpcias em Israel ou somente cânticos de amor entre um jovem e
uma mulher, prescindido de sua próxima ou futura união matrimonial.
1.3 Mensagem
Imerso na corrente sapiencial pós-exílica, os antigos cânticos de amor
adquirem dois sentidos: 1) esplêndida realização das profecias de consolo de Oséias,
54 COLOMBO, Dalmazio. Cantico dei Cantici. Roma: Paoline, 1970. p. 21. 55 Ibid., p. 27. 56 Ibid., p. 28.
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Jeremias, Ezequiel e do Terceiro-Isaías a propósito de um renovado amor de Yahweh
por seu povo e de um futuro otimismo, bastante oportuno em tempos de reconstrução;
2) indicam ao jovem hebreu da nova Comunidade reconstruída uma justa experiência
de vida a respeito da questão do amor.
Partindo de uma leitura profético-sapiencial, pode-se propor algumas
mensagens: 1) O amor de Yahweh por seu povo, expresso nas metáforas: união
nupcial, Dileto, esposa, amiga, rei, pastor, vinha, jardim etc.; 2) Esperança da
restauração pós-exílica, expressa na viva expectativa da união idílica entre Deus e
Israel. Assim, as incertezas, os transtornos e as buscas incessantes do amor da esposa
pelo esposo (2,6-7; 3,5; 5,4-6 etc), demonstram que o livro pensa um ideal a alcançar
e não uma realidade já existente; 3) Valorização da vida humana, através de seus
elementos: o amor humano, a dignidade e a grandeza da mulher, a beleza do corpo
humano, o encanto da natureza, a alegria do viver, a celebração de festas e de
banquetes etc.
Essas mensagens veiculadas pelo Cântico expressam o alto valor humano e
religioso e o lugar específico que o livro ocupa na História da Salvação. E, colocados
no contexto da restauração pós-exílica, dão aos destinatários a certeza do imutável
amor de Yahweh por seu povo e a consciência de ser sempre o povo Eleito. O Redator
pretendeu apresentar no Cântico uma aliança de tipo nupcial, temática precedida por
Jeremias (31,31-34) e que será revelada por Jesus no seu discurso de adeus na última
Ceia (Jo 13-16). Essa aliança nupcial é retomada na tradição cristã através dos
Sacramentos da Iniciação.
2 - COMENTÁRIO A ALGUNS TRECHOS DO CÂNTICO DOS CÂNTICOS
2.1 Cântico 1,2-5
Esses versículos constituem um prólogo ao livro no qual apresentam o tema
geral dos poemas que se seguem e o tom apaixonado que dominará toda a coleção. A
mulher apaixonada expressa seu amor de forma ardente. Compara o amor do Dileto ao
vinho, símbolo do prazer da vida. O amor do Dileto supera a doçura e a potência do
vinho. O nome do amado, que significa a própria pessoa, é perfume que inebria. O
amor extraordinário do Dileto acentuado pelo Redator significa também o
extraordinário amor de Yahweh por todos os povos, representados nas “donzelas”
amigas da mulher amada. O amor da mulher pelo amado é tão intenso que ela deseja
ser levada por ele. O rei simboliza o esposo, nomenclatura comum nos cantos nupciais
siríacos. Mas na releitura teológica desse antigo costume nupcial feita pelo Redator do
Cântico, o rei é Yahweh, verdadeiro Rei de Israel que, como tal, conduz toda a
Revista Logos – v.1, n.1, jan./jun., 2016.
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história do povo eleito. O aposento pode tanto significar a câmara nupcial onde a
mulher deseja consumar o amor com seu Dileto, como pode significar uma clara
referência ao Templo da reconstrução em Jerusalém, no qual a esposa – Israel – deseja
manifestar novamente seu amor ao seu Deus e consumá-lo.
Com o v. 5 inicia-se o primeiro poema, que exalta a beleza da amada. Beleza
diferente, que não se encontra nas outras mulheres da cidade, habituadas à vida
retirada em casa. O colorido da pele morena contrasta ao comum ideal de beleza.
Exalta-se a capacidade de amar e de ser amada da mulher morena por outras riquezas
que não a beleza física.
2.2 Cântico 4,1-3.7-8.10-12.16
Estes trechos do poema exaltam os encantos e os dotes da amada.
Nos vv. 1-3 a exaltação da beleza física da mulher é narrada através de
metáforas tomadas da natureza, física, animal, vegetal, que traduzem, por meio da
vista e do olfato, os sentidos de admiração, de alegria e de prazer que a presença do
ser amado desperta.
Os vv. 7-8 são o início do segundo elogio à mulher amada, que tem como tema
o fascínio que ela desperta, que emana dos seus dotes característicos mais espirituais
que físicos. A amada não tem defeito moral ou físico. O amado invoca ardentemente
sua amada, que está longe do seu amor.
Nos vv. 11-12 continua o elogio à mulher amada, expressa na beleza do amor,
na superioridade ao vinho e no aroma do seu perfume. O amado sente-se arrebatado
pelo gosto dos seus beijos, pelo perfume de suas vestes. Também Oséias 14,7 emprega
a imagem do perfume para expressar o amor de Yahweh a Israel. Outra manifestação
dos encantos da amada está na imagem do jardim que, fechado, simboliza que a
amada vai ainda abri-lo ao amado depois das bodas e revelará todos os seus encantos.
No v. 16 o elogio à mulher amada é encerrado com um convite do amado aos
ventos mais fortes da Palestina, para que irrompam no seu jardim e no seu destino
todos os perfumes, para que ele se delicie neles. O fechamento final (5,1a) é da
mulher, que convida o seu Dileto a entrar no seu jardim e a colher os frutos mais
excelentes que simbolizam a posse definitiva do amor.
2.3 Cântico 5,1
Final do terceiro poema, este trecho do canto de amor, no qual o esposo,
provavelmente no mesmo dia das núpcias, aceita solenemente o convite da sua mulher
para entrar no seu jardim e saborear todos os aromas e todas as doçuras. Leite e
Revista Logos – v.1, n.1, jan./jun., 2016.
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mel simbolizam tudo o que há de mais doce e excelente. À luz de Is 55,1, pode
também simbolizar, segundo a meditação sapiencial, a sabedoria necessária para uma
vida moral. O trecho termina com um convite do esposo aos amigos para festejarem as
alegrias das suas núpcias.
2.4 Cântico 7,7-8
Faz parte do quinto poema. Neste trecho, o esposo louva a beleza da esposa, da
qual aspira à posse com o suavíssimo beijo, supremo desejo dos amantes. Beleza que
alegra os olhos, como uma bela paisagem ou uma pessoa de aspecto grandioso e
fascinante. A palmeira é graciosa imagem que sublinha a figura ardorosa e elegante da
mulher. Os cachos (de uva) fazem referência ao vinho, símbolo do amor ardente e
apaixonado. Essa imagem quer ressaltar a beleza da mulher e o encanto do amor que
ela suscita no amante.
2.5 Cântico 8,1-2.5-6
Os vv. 1-2 exibem o canto de uma jovem mulher, que deseja ardentemente
conduzir à sua casa seu amado e fazê-lo seu esposo legítimo, para revelar-lhe
totalmente o amor que lhe incendeia o coração. Ela gostaria que ele fosse seu irmão,
para poder expressar seu amor em público.
Os vv. 5-6 são trechos constituídos essencialmente por doces palavras de amor
de uma jovem mulher e do seu Dileto, por ocasião do retorno de um encontro de amor.
Esse encanto admirável é expresso pelo estupor e êxtase diante da aparição da amada.
Esse deserto poderia significar o lugar onde o casal poderia ficar a sós. A amada
aguardou na casa da mãe por seu amado. Agora sua espera chegou ao fim com a
chegada do seu amado.
O selo é substituto da pessoa e sinal de sua autoridade. A comparação com o
selo tem dois aspectos: ela repousa sobre ele, sobre seu coração; assim sendo, ela lhe
pertence como o que ele tem de mais pessoal e leva sempre consigo; mas também a
imagem do selo quer indicar que ela põe nele a sua marca. Agora que a mulher
pertence ao Dileto, seu amor deve superar a morte e a separação, porque se faz eterno.
3 - O CÂNTICO DOS CÂNTICOS NA CATEQUESE DE AMBRÓSIO
Os textos bíblicos comentados acima foram citados por Ambrósio nas suas
obras “Os Sacramentos” e “Os Mistérios”, para fundamentar sua catequese com a
riqueza simbólica que esses textos trazem.
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3.1 Os Sacramentos
Ambrósio cita Ct 1,1-4 no 5º livro, distribuindo-os em parágrafos diferentes,
nos números 2,5-11, onde versa sobre a Eucaristia, realçando a união do fiel com
Cristo neste sacramento.
a) Sacr. 5-7
Chegaste ao altar. O Senhor Jesus te chama, ou chama tua alma ou ainda a Igreja e diz: Que me beije com os beijos de sua boca. Queres aplicar
isto a Cristo? Nada de mais grato. Queres aplicá-lo à tua alma? Nada de
mais agradável. 6 Que me beije. Vê Ele que estás puro de todo o pecado, porque as faltas foram lavadas. Por isso te julga digno dos sacramentos
celestes e te convida ao banquete celeste: Que me beije com beijos de
sua boca. 7 No entanto, por causa do que segue, tua alma ou a humanidade, ou a Igreja, vendo-se purificada de todos os pecados e
digna de aproximar-se do altar de Cristo — pois o que é o altar de
Cristo, senão a imagem do corpo de Cristo? — descobre os sacramentos admiráveis e acrescenta: Que me beije com beijos de sua boca, quer
dizer, que o Cristo me penetre com seu ósculo.
Ambrósio cita Ct 1,2 para significar o acesso do fiel ao altar, ou seja, ao
banquete celeste, permitido então pelo batismo, que o lavou do pecado. Expressa
também a resposta do fiel mediante a dignidade de aproximar-se do altar de Cristo
neste sacramento tão admirável.
b) Sacr. 8 Por quê? Porque os teus seios valem mais que o vinho, quer dizer, teus
pensamentos, teus sacramentos valem mais que o vinho. Mais do que o vinho: embora este contenha suavidade, alegria, sabor, no entanto, nele a
alegria é mundana, enquanto em ti o agrado é também espiritual. Já
então, pois, Salomão representa as núpcias ou de Cristo e da Igreja, ou do espírito e da carne, ou do espírito e da alma.
“Teus seios”57 significam os pensamentos, os sacramentos de Cristo. Esse
trecho expressa o porquê de o fiel desejar ser penetrado pelo ósculo de Cristo: a
superioridade dos seus sacramentos. O vinho simboliza a alegria mundana, que não se
compara à alegria de Cristo, porque é espiritual.
c) Sacr. 9
57 A maioria das traduções brasileiras da Bíblia traz a expressão “teus amores”, “tuas carícias”,
e não, “teus seios”. Contudo, o texto hebraico traz o termo “Pîhû” (= seio), o grego emprega o
termo “mastós” (= seio) e o latim usa “uber” (= seio). Na versão latina da catequese de
Ambrósio, a expressão usada é “ubera” (= seios). Provavelmente Ambrósio leu o texto grego e
o citou na sua catequese. Por isso, a opção por conservar a tradução utilizada por ele aqui no
artigo.
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E acrescentou: Teu nome é um perfume derramado e é por isso que as
jovens te amaram. Quem são essas jovens, senão as almas todas que
depuseram a velhice deste corpo, rejuvenescidas que foram pelo Espírito
Santo?
O inebriar-se do perfume do esposo expressa o inebriar-se do fiel no odor de
Cristo. A designação “jovens” é interpretada por Ambrósio no sentido de “eterna
juventude” de quem foi renovado pelo Espírito Santo.
d) Sacr. 10
Atrai-nos, para que corramos atrás do odor de teus perfumes. Vê o que
se diz: Não podes seguir a Cristo, a não ser que Ele próprio te atraia.
Para que, afinal, te convenças, diz Ele, quando eu for elevado, atrairei
tudo a mim.
O texto expressa aqui o desejo de seguir o amado. E esse desejo é manifestação
da graça de Cristo, que impele o fiel a segui-lo. Manifesta-se assim a prioridade da
graça, relacionando esse trecho do Cântico com Jo 12,32: “Quando eu for elevado,
atrairei tudo a mim”.
e) Sacr. 11
O rei me introduziu em seu aposento. O texto grego diz em sua adega ou
em seu celeiro. Lá onde existem boas bebidas, bons perfumes, mel doce,
frutas à escolha, iguarias variadas, para que tua comida seja
condimentada com os mais numerosos pratos.
O rei é Jesus, que introduziu o fiel na sua “adega”, lugar onde encontrará todo
tipo de iguaria. Ambrósio aponta para o sentido do Sacramento da Eucaristia, alimento
sem igual que sacia a fome daquele que o recebe.
3.2 Os Mistérios
Em “Mistérios”, Ambrósio utiliza outros textos do Cântico dos Cânticos. Cita-
os em diversas ocasiões durante sua catequese mistagógica. Veremos cada uma delas
separadamente.
3.2.1 Mistério, n. 29
Ambrósio insere um trecho do livro do Cântico no discurso sobre a Unção.
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Após isto, como estás lembrado, subiste para junto do Bispo. Reflete no
que então aconteceu. Não foi aquilo que descreveu Davi: Como perfume
na cabeça, que desce por sobre a barba que é barba de Aarão? É este o
perfume de que também fala Salomão: Teu nome é perfume
esparramado, por isso as adolescentes te amaram e por ti sentiram
enleio. Quantas almas, hoje renovadas, não te amaram, Senhor Jesus,
dizendo: Atrai-nos após ti, corremos atrás do odor de tuas vestes, para
sentirem o odor da Ressurreição!
Ambrósio emprega Ct 1,2-3 no contexto da unção, cujo sentido difere daquele
empregado em “Os Sacramentos”. O nome, que é perfume derramado, simboliza a
graça de Cristo que, na unção pós-batismal do catecúmeno, é derramado na cabeça. Os
odores pelos quais as almas correm é o odor da Ressurreição. É o próprio Cristo quem
atrai essas almas para si.
3.2.2 Mistérios, n. 35-41
Nestes números a Igreja é vista como esposa de Cristo. Ambrósio
discursa sobre o recebimento das vestes brancas após o batismo, sinal da purificação
recebida pelo Sacramento (n. 35). A Igreja regenerada pelo batismo é exaltada por sua
beleza (n. 37-39).
a) Mist. 35
Após assumir estas vestes pelo banho da regeneração a Igreja diz no
Cântico dos Cânticos: Sou negra e bela, filhas de Jerusalém. Negra, pela
fragilidade da natureza humana; bela, pela graça; negra, porque
composta de pecadores; bela, pelo sacramento da fé. Vendo tais
vestimentas, as filhas de Jerusalém exclamam estupefatas: Quem é
aquela que sobe toda branca? Ela era negra; como acontece que agora,
de repente, seja branca?
Em Ct 1,5 é exaltada a beleza da mulher amada que, embora diferente das
outras moças, não é menos digna de amor. No texto de Ambrósio, a comparação
contrasta a fragilidade humana (negra) e a graça divina (bela) operada pelo
sacramento da fé. A exclamação das filhas de Jerusalém (Ct 8,5) expressa o
acontecimento admirável da regeneração batismal, na qual a Igreja foi despida do
pecado e revestida da graça de Cristo.
Revista Logos – v.1, n.1, jan./jun., 2016.
43
b) Mist. 37
Cristo, porém, vendo sua Igreja revestida de branco — em favor da qual
Ele próprio, como podes ler no livro do Profeta Zacarias, se revestira de
trajes sórdidos — ou vendo a alma pura e lavada pelo banho da
regeneração, exclama: Como és formosa, minha amiga, como és
formosa. Teus olhos são como os da pomba, sob a aparência da qual o
Espírito Santo desceu do céu. São belos os teus olhos, como dissemos
acima, porque desceu em forma de pomba.
Ambrósio combina um trecho do profeta Zacarias (3,3-4) com Ct 4,1 para
expressar os benefícios que a Igreja recebeu mediante Sacramento do Batismo. Ele
mostra que o próprio Cristo se emprenhou para purificá-la, pois o mesmo vestiu-se de
vestes da iniquidade para revestir sua Igreja com vestes novas. Despida das vestes do
pecado e revestida das vestes da regeneração, a Igreja aparece em toda a sua
formosura, purificada pelo Espírito Santo que nela desceu, como descera em forma de
pomba no batismo de Jesus.
c) Mist. 38
E mais além: Teus dentes são como os rebanhos das ovelhas tosquiadas,
ao subir do lavatório, todas com dois cordeirinhos gêmeos, e nenhuma
há estéril entre elas. Os teus lábios são como uma fita de escarlate. Não
é pequeno este louvor. Primeiro, por causa da graciosa comparação das
ovelhas tosquiadas. Sabemos, efetivamente, que as ovelhas pastam sem
temor nas altas montanhas e que buscam tranqüilamente o alimento por
entre os rochedos escarpados. Mais. Ao serem tosquiadas, se
desembaraçam do supérfluo. É ao rebanho delas que se compara a
Igreja, que possui em seu seio muitas virtudes das almas que depõem os
pecados supérfluos pelo banho e que oferecem ao Cristo o mistério da fé
e a graça da conduta, e que ainda falam da Cruz do Senhor Jesus.
Ambrósio ressalta a metáfora das ovelhas tosquiadas para significar a Igreja,
qual um rebanho que se desembaraçou do supérfluo, é possuidora de muitas almas
virtuosas, uma vez que eliminou os pecados (= o supérfluo) pelo banho da
regeneração. Agora essas almas vivem para Cristo, por sua fé e conduta de vida.
d) Mist. 39
Nelas é que a Igreja se apresenta formosa. É por isso que o Verbo de
Deus lhe fala: Tu és toda formosa, minha amiga, e não existe defeito em
ti, porque a culpa desapareceu. Vens do Líbano, esposa minha, vens do
Líbano, passarás e tornarás a passar desde o princípio da fé.
Revista Logos – v.1, n.1, jan./jun., 2016.
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De fato, renunciando ao mundo, atravessou ela o século e chegou até
Cristo. Novamente o Verbo de Deus lhe diz: Quão formosa e
encantadora és, ó caríssima entre as delícias! Tua estatura é semelhante
à da palmeira e os teus seios a de dois cachos de uvas.
A formosura da Igreja encontra-se nas virtudes. Ela não tem defeito porque
foi lavada pela água do batismo, desaparecendo sua culpa. A Igreja, pela fé e renúncia
ao mundo, atravessa o século até chegar ao Cristo. Parece aludir à renúncia às paixões
mundanas para se conservar virtuosa. Nesse intento, a fé torna-se o motor dessa busca.
Por essa fidelidade da Igreja, o Cristo se encanta novamente com a beleza de sua
Igreja. Com este trecho do Cântico (Ct 7,6-7), Ambrósio reforça o que foi dito antes a
respeito das virtudes da Igreja.
e) Mist. 40
A Igreja lhe responde: Quem me dera fosses meu irmão, amamentado
aos seios de minha mãe? Encontrando-te fora, eu poderia beijar-te e
não me desprezariam. Tomar-te-ia e te levaria à casa de minha mãe, e
no aposento daquela que me concebeu tu me instruirias. Vês como,
encantada pelo dom das graças, deseja penetrar até os mistérios secretos
e consagrar ao Cristo todos os seus sentimentos? Ela ainda insiste, ainda
suscita amor, e exige que seja despertada pelas filhas de Jerusalém, com
o auxílio das quais, isto é, das almas dos fiéis, deseja que o Esposo seja
atraído para um amor maior a ela.
Ambrósio introduz esse poema (Ct 8,1-2) como resposta da Igreja diante da
exclamação do seu Esposo. Expressa seu desejo de que Cristo seja atraído para um
amor maior a ela. A Igreja quer consagrar-lhe todos os seus sentimentos, penetrando
nos mistérios do Cristo. Para isso, conta com o auxílio dos seus fiéis para despertá-la
para esse amor.
f) Mist. 41
A partir disso, o Senhor Jesus, também Ele convidado pelo desejo de tão
grande amor, pela beleza de seu enfeite e de sua graça, uma vez que não
existem faltas que manchem os que já foram lavados, diz à Igreja: Põe-
me como um selo sobre o teu coração, como um selo sobre o teu braço.
Isto significa: Tu es bela, minha amiga, tu és toda formosa, nada te
falta. Coloca-me como um selo sobre o teu coração, para que tua fé
resplandeça na plenitude do sacramento. Que tuas obras também brilhem
e apresentem a imagem de Deus, à imagem do qual foste feita. Que teu
amor não diminua por nenhuma perseguição, teu amor que as grandes
águas não podem extinguir, nem os rios terão forças para submergir.
Revista Logos – v.1, n.1, jan./jun., 2016.
45
A imagem do “selo” no livro do Cântico denota a pertença mútua dos amantes,
marca do amor devotado que sentem um pelo outro. Em Ambrósio significa que a
Igreja deve pôr Cristo como um selo, sinal de sua pertença a ele. Dessa pertença é que
resplandecerá a fé na plenitude do sacramento, as obras brilharão, refletindo a imagem
de Deus na qual a Igreja foi feita. O amor que nasce dessa pertença não deve ser
diminuído por nenhuma perseguição.
3.2.3 Mistérios, n. 55-58
Os números 55-58 versam sobre a eficácia do Sacramento do Corpo e do
Sangue de Cristo.
a) Mist. 55
Por estes sacramentos é que o Cristo nutre sua Igreja; por eles, sustenta-
se a substância da alma, e, vendo o seu progresso efetivo na graça, lhe
diz: Como os teus seios são belos, minha irmã, minha esposa! Como
encantam mais que o vinho e como o perfume de tuas vestes ultrapassa
todos os aromas! Os teus lábios, ó esposa, são como um favo que destila
o mel; o mel e o leite estão debaixo de tua língua, e o perfume dos teus
vestidos é como o odor do Líbano. Jardim fechado és, irmã, minha
esposa, jardim fechado, fonte selada. Por estas palavras, quer ele
indicar-te que o mistério deve permanecer selado em ti, a fim de que não
seja violado pelas obras de uma vida má, nem pela perda da castidade, a
fim de que não seja divulgado junto àqueles a quem isso não convém, a
fim de que não seja espalhado por entre os incréus, através de uma
loquacidade tola. Deves guardar bem a tua fé, para que se conservem
íntegros a tua vida e o teu silêncio.
Ambrósio ensina que a Igreja é nutrida pelos sacramentos que recebe,
proporcionando às almas progredir na graça de Cristo. Por esse motivo, Cristo exalta a
beleza e o perfume das vestes de sua Igreja, ou seja, a vida regenerada dos fiéis é
como um perfume que ultrapassa todos os aromas do mundo.
Também é ressaltada que tão imenso mistério sacramental deve permanecer
selado e inviolado por condutas más, para que não seja divulgado junto àqueles que
não podem entendê-lo, porque não participam do Mistério (Disciplina do Arcano)58.
58 A palavra “arcano” significa sigilo, segredo. Na Igreja Antiga, a Disciplina do Arcano era
indispensável para a sobrevivência do cristianismo, pois a Eucaristia era vista como Mistério
Pascal central, que não deveria ser exposto aos olhos dos estanhos (dos não batizados). Daí a
importância das catequeses mistagógicas que introduziam o catecúmeno no Mistério.
Revista Logos – v.1, n.1, jan./jun., 2016.
46
b) Mist. 56
É por isso também que a Igreja, guardando a profundeza dos mistérios
celestes, repele para longe de si as mais violentas tempestades de vento e
atrai a doçura da graça primaveril. Sabendo que seu horto não pode
desagradar ao Cristo, chama pelo mesmo Esposo, dizendo: Levanta-te,
Aquilão, e vem, vento do meio dia, assopra de todos os lados no meu
jardim e espalhem-se os meus aromas. Vem, ó meu irmão, para o teu
jardim e come o fruto de suas macieiras. De fato, possui ele boas
árvores frutíferas, que mergulharam suas raízes na corrente da sagrada
fonte e que desabrocharam violentamente, com uma fecundidade nunca
vista, produzindo bons frutos, para não serem cortadas pelo machado
profético, mas para se desenvolverem em fecundidade evangélica.
Continua o discurso anterior, indicando os frutos colhidos dessa postura de
guardar os mistérios celestes. A Igreja, simbolizada pelo jardim, pede que Cristo sopre
sobre ela para que seus aromas se espalhem. Seus frutos não podem desagradar,
porque suas raízes estão mergulhadas no batismo, pois as sagradas fontes tornaram a
Igreja fecunda. Por essa fecundidade evangélica ela não sofrerá o juízo divino
simbolizado pelo machado profética.
c) Mist. 57
Afinal, o Senhor, agradando-se de sua fertilidade, também responde: Eu
vim para o meu jardim, irmã, minha esposa; colhi a minha mirra com os
meus perfumes, comi o alimento com meu mel, bebi minha porção junto
com meu leite. Por que tenho eu falado de comida e bebida?
Compreende-o tu, que tens fé. Não há, porém, dúvida que é em nós que
ele come e bebe, assim como tu leste que ele se diz também prisioneiro
em nós.
Essa fertilidade evangélica agrada muito ao Senhor, que faz da Igreja lugar de
seu alimento, pois aqueles que são alimentados por ela representam o próprio Cristo
(cf. Mt 25,35), que também se fez pão na Eucaristia, tornando-se prisioneiro em nós.
d) Mist. 58
É por isso também que a Igreja, presenciando tamanha graça, exorta os
seus filhos, exorta os seus amigos a correrem juntos aos sacramentos,
dizendo ela: Comei, meus amigos, bebei e inebriai-vos, meus irmãos. O
que tenhamos a comer, o que tenhamos a beber, exprimiu-o o Espírito
Santo para ti em outra passagem profética, dizendo: Saboreai e vede
quão suave é o Senhor. Feliz o homem que nele confia. [...]
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Ambrósio cita Ct 5,1 na perspectiva de exortar aos fiéis a buscar tão sublime
sacramento. De fato, Cristo está presente neste sacramento, seu corpo e seu sangue,
alimento espiritual que dá estabilidade e alegria ao coração humano.
CONCLUSÃO
A leitura alegórica do Cântico dos Cânticos não é uma novidade trazida pela
exegese patrística. A mesma apresenta-se como uma tradição bem antiga que remonta
aos judeus pós-exílicos. Estes leram os poemas numa perspectiva alegórica, buscando
apreender o sentido espiritual desses textos como forma de expressão de sua fé e
esperança para a comunidade em momento de crise.
A mesma concepção tiveram os cristãos, que buscaram ler esse livro sagrado
na perspectiva da Nova Aliança selada por Jesus Cristo. Aliança que é descrita em
linguagem metafórica porque o extraordinário amor que Deus dedica à humanidade
escapa à linguagem humana, embora se saiba que não pode ser compreensível fora
dela. Esse amor adquire linguagem simbólica no discurso da Igreja ao longo de sua
história, principalmente no âmbito da catequese mistagógica. Como iniciação ao
mistério, o discurso de Ambrósio aos neófitos vem carregado de tipologias e
alegorismos bíblicos, que tendem a evocar o caráter simbólico em toda a sua riqueza
de sentido.
Na alegoria, busca-se o sentido espiritual, fruto da interpretação da Escritura
que leva em consideração uma passagem do primeiro Testamento ao segundo, como
interiorização da Escritura.
Ambrósio tem muita liberdade na maneira de citar os textos do Cântico dos
Cânticos nos diversos parágrafos que compõem sua obra catequética. Essa liberdade é
fruto de uma vida espiritual que busca na Escritura seu alimento. Por isso, Ambrósio
parece não se preocupar com o sentido literal do texto bíblico que usa, mas busca
apresentar sua catequese intimamente fundada na Palavra de Deus, norma última da fé
cristã.
Ignorar o método exegético alegórico dos Padres e, especialmente de
Ambrósio, seria negar todo o esforço que os mesmos tiveram em refletir sua fé nas
Escrituras, baseado nos instrumentos que tinham em suas mãos. Valer-se hoje da
exegese histórico-crítica para desacreditar a exegese patrística, no mínimo seria um
desrespeito aos pais da fé que no seu tempo alimentaram a fé de muitos. Apontar os
erros da exegese alegórica não significa alterar sua beleza, nem tampouco a riqueza de
sentido que os mesmos buscaram extrair das Escrituras a fim de alimentar a fé dos
cristãos. Daí se percebe que a fé cristã será sempre um caminho a percorrer e não algo
pronto, já dado. E, nesse caminho, corre sempre o risco de enveredar-se por
Revista Logos – v.1, n.1, jan./jun., 2016.
48
estradas desconhecidas. A teologia dos Padres nos aponta caminhos para uma
interiorização das Escrituras, como alimento e não como fonte de análise.
A catequese atual ganharia muito se buscasse no seu discurso uma reflexão
mais alegorizante das Escrituras, que busca nelas seu sentido espiritual, fruto da
interpretação da Escritura que leva em consideração a unidade dos dois Testamentos.
O sentido espiritual da Escritura é fruto de uma vida espiritual e tende a alimentá-la.
Essa é, em última análise, a proposta da Sagrada Escritura na vida da Igreja. Nesse
sentido, uma abordagem puramente científica da Escritura esvazia o seu sentido mais
primigênio: alimento para a vida do povo de Deus a caminho. Esse alimento é
oferecido por Ambrósio de Milão aos catecúmenos durante sua entrada no mistério.
REFERÊNCIAS
AMBRÓSIO, Santo. Os sacramentos e os mistérios. Petrópolis: Vozes, 1972.
BÍBLIA - Tradução ecumênica. Versão integral.
COLOMBO, Dalmazio. Cantico dei Cantici. Roma: Paoline, 1970.
LUBAC, Henri de. A Escritura na Tradição. São Paulo: Paulinas, 1970.
ORIGENE. Omelie sul Cantico dei Cantici. 2. ed. Roma: Città Nuova Editrice, 1995.
TILLESSE, Caetano M. de. Cântico. Revista Bíblica Brasileira, Fortaleza, v. 14, n. 1-
3, p. 183-188, 1997.
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MARIA, VIRGEM APARECIDA: UM SINAL DE ESPERANÇA?
André Luiz Passos59
RESUMO
O texto apresenta uma reflexão sobre a esperança que cada cristão encontra na pessoa
da Virgem Maria. Esperança que encontra suas raízes em Cristo, esperança de todo
gênero humano. A partir do texto bíblico da solenidade de Nossa Senhora Aparecida,
João 2, 1-12, ligado ao texto de João 19, 25-27, em chave mariológica, desenvolve-se
uma reflexão positiva sobre a esperança que os fiéis buscam na Virgem Aparecida.
Palavras-chave: Aparecida. Esperança. Mãe.
ABSTRACT
This article presents an analyze about the hope that every christian person finds in the
Virgin Mary. Hope is rooted in Christ, hope of the christ humanity. From the biblical
text of the Solemnity of Our Lady of Aparecida, John 2,1-12, together with John
19,25-27, in mariology key, develops a positive reflection on the hope that the faithful
seek the Virgin Aparecida.
Keywords: Aparecida. Hope. Mather.
59 Doutor em Mariologia pela Universidade Antonianum (Roma).
Revista Logos – v.1, n.1, jan./jun., 2016.
50
INTRODUÇÃO
Diante de um mundo que passa por enormes transformações, por perdas de
valores inestimáveis, por um período desorientado, o homem de fé é chamado a
“esperar contra toda esperança”60, porque a sua esperança vem do Senhor. Sendo
assim, ele tem direito de esperar, especialmente se está no momento de provação61.
A história da salvação testemunha abundantemente quanto é gratificante e
santo esperar, sabendo que não seremos desiludidos62. Uma esperança plena que brota
e se consolida para o advento, na “plenitude dos tempos”63, daquele que proclama a
esperança em um futuro absoluto que coincide com Deus. Um Deus que,
manifestando o seu interesse por nós, mostra-o num paradoxo carregado de kenosis e
de pena do Filho Jesus, no Domingo da esperança eterna64.
O futuro que a promessa do Deus da Ressurreição abre diante da fé é um
dado da criação junto com a fé, e da fé junto à criação. A criação é um
caminho, e o homo viator65 está empenhado junto com a realidade em
uma história aberta rumo ao futuro. Ele não permanece no ar entre Deus
e o mundo, mas entra junto com o mundo no processo que é aberto à
promessa escatológica de Cristo66.
A Igreja é intrinsecamente um povo a caminho, uma comunidade de
esperança, povo que cumpre, na esperança, uma peregrinação em direção à
escatológica Terra Prometida, isto é, em direção à comunhão total com Deus: um só
corpo e um só espírito, como uma só é a esperança à qual fomos chamados67.
A Igreja dos nossos dias, renovada e motivada pelo ensinamento do
Evangelho e do Concílio Vaticano II, anunciando Cristo, luz, alegria e esperança das
60 Rm 4,18. 61 Jó 19,25-26. Cf. IOANNES PAULUS PP.II, Epistula apostolica Salvifici doloris ad totius
catholicae Ecclesiae episcopos, sacerdotes, religiosas familias et fideles de christiana doloris
humani significatione, 11 februarii 1984: AAS 76 (1984), p. 201-250. 62 Cf. Gn 17,23; 1Sm 30,6; Jó 6,9-10; Sal 42,6; 1Ts 1,3; Hb 3,1-6; 1Pd 3,15; 2Pd 3,1-7. 63 Gl 4,4. 64 Cf. Perrella (2007, p. 356). 65 Não podemos deixar de indicar o maravilhoso trabalho de Frei Freyer que contempla o
homem à luz da história da salvação, na sua integridade antropológica e espiritual. Cf.
J.B.FREYER, Homo Viator, L’uomo alla luce della storia della salvezza. Un’antropologia
teológica. In.: Prospettiva francescana. Bologna: EDB, 2008. 66 J. MOLTMANN, Teologia della speranza. Ricerche sui fondamenti e sulle implicazioni di
una escatologia cristiana. Brescia: Queriniana, 1970. 67 Cf. Ef 4,4.
Revista Logos – v.1, n.1, jan./jun., 2016.
51
nações68, sempre mais se empenha em fazer suas as alegrias e esperanças antigas e
novas do homem69.
Essa opção que marca uma mudança e indica uma metodologia evangélico-
pastoral evita o inútil e precário equilíbrio entre uma linha encarnacionista, que coloca
a esperança no presente da história, e uma linha marcantemente escatológica, que a
projeta num futuro que deve ser esperado como providência e como fuga mundi70.
1 - CRISTO, NOSSA ESPERANÇA
Jesus de Nazaré, homem-Deus, é a chave hermenêutica necessária para uma
compreensão plena, na fé, das razões de Deus e do homem71. No evento da
Encarnação, na Cruz e na Ressurreição, são recapitulados sejam as dores do homem e
o gemido da criação72, seja a esperança para cada homem e mulher que, sobre esta
terra, participa do mistério da alegria e, assim, da esperança. E o Filho de Deus e da
Virgem Maria, “esperança da glória”73, certamente não decepciona. No presente e na
dor, Cristo ressuscitado é a certeza do futuro de glória eterna. O fiel, viajante de um
futuro que não decepciona, nem se corrompe, pois sabe que o caminho escatológico é
paradoxal: a sua meta está no seu ponto de partida, Jesus ressuscitado; e o seu futuro,
num evento passado; nós nos projetamos em direção àquilo que deve ainda acontecer
para retornarmos às fontes74.
O Papa João Paulo II, mesmo diante da crua realidade dos primeiros anos do
terceiro Milênio, quase um “tempo infiel”, incentivou os fiéis, os homens e as
mulheres de boa vontade a se libertarem de uma iníqua e improdutiva ética de
resignação75 tão difundida em nossos tempos, para confiarem no Deus de Jesus Cristo.
A esperança é dom e virtude provenientes do mistério trinitário de Deus: e é realmente
fundada em Deus e em Cristo, o qual é a nossa esperança76. Cristo é, ao mesmo tempo,
68 Cf. Lumem gentium 1. 69 Cf. Gaudium et spes, 1. 70 Fuga do Mundo, cf. C. MOLARI, Modelli di speranza cristiana. In: Credere Oggi 6 (1984),
p. 24. Cf. O.F.PIAZZA, La speranza. Logica dell’impossibile, Milano, Paoline, 1998, p. 20. 71 Cf. M. BORDONI – N.CIOLA, Gesù nostra speranza. Saggio di escatologia, EDB, Bologna,
1988; cf. B.FORTE, Confessio theologi, Cronopio, Napoli, 1995; cfr. E.MAZZARELLA,
Filosofia e teologia di fronte a Cristo, Cronopio, Napoli, 1996. 72 Rm 8,22-23. 73 Col 1,27. 74 F.X.DURRWELL, La résurrection de Jésus. Mystère de salut, Cerf, Paris, 1976, p. 205. 75 Cf. BENEDETTO XVI, Spes Salvi, LEV, Città del Vaticano, 2007, nº. 16, p. 35. 76 Tm 1,1; Cfr.BENEDETTO XVI, Spes Salvi, nº. 24, p. 48.
Revista Logos – v.1, n.1, jan./jun., 2016.
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fundamento e objetivo da nossa esperança: ontem, hoje e sempre77. Em Cristo o futuro
já tem um rosto pessoal, e o reino de Deus, um nome78.
A mensagem cristã foi compreendida desde o início como uma oferta de
salvação que dá uma resposta ao desejo e à esperança de felicidade do homem79. No
anúncio cristão, os dois termos, esperança e salvação, se envolvem reciprocamente: o
homem encontra a verdadeira felicidade na medida em que, acolhendo Cristo e a sua
palavra, aceita ser salvo. E tal esperança se realiza somente e plenamente em um
futuro escatológico, quando Deus será tudo em todos. Entretanto, a existência cristã
permite ao homem experimentar já, agora, antecipadamente, a realidade de uma vida
feliz, na medida em que se torna disponível à ação transformadora do Espírito Santo.
2 - MARIA, ESPERANÇA DO GÊNERO HUMANO
O fio de ouro da “esperança que não decepciona80”, do qual a Mãe do Senhor
Crucificado e Ressuscitado é sinal radioso, está ancorado na fidelidade de Deus
segundo as suas promessas – aquelas doadas pela graça aos progenitores caídos no
pecado e atuadas em Cristo, que tem na sua Mãe a solícita e humilde colaboradora – e
é um fio que percorre a história das gerações, dos séculos, das culturas e dos milênios.
Um fio de luz e de vida, nunca quebrado por nenhuma ação nociva das criaturas, que
infunde coragem e ousadia em construir, com sempre maior empenho, a cidade
terrena, sabendo caminhar na direção de uma cidade, não construída por mãos de
homens, no céu.
2.1 Uma esperança enraizada em Cristo
Maria, em toda a sua existência, deixou-se guiar pelo Espírito. Sendo
indicada, contemplada e imitada como mulher dócil à voz do Espírito, mulher do
silêncio e da escuta, mulher da esperança, soube acolher, como Abraão, a vontade de
Deus, esperando contra toda esperança81.
77 Sobre o tema: Cristo nossa esperança, cf.. G.HELEWA, Cristo in voi, speranza della gloria
(Col 1,27), Teresianum, Roma, 1994, p. 33-48. 78 Cf. M. BORDONI – N.CIOLA, Gesù nostra speranza, p. 20. 79 L.ÉVELY, Il Vangelo della gioia, Cittadella, Assisi, 1972. 80 Rm 5,5. 81 Cf. IOANNES PAULUS PP. II, Epistula apostolica Tertio milennio adveniente, Episopis,
clero, fidelibus anni MM Iubilaeum ad parandum, 10 novembris 1994, AAS 87 (1995), p. 5-41,
nº. 1802.
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Em mérito a essas incisivas considerações de João Paulo II, fundadas nas
interpretações teológicas feitas pelos evangelistas, queremos revelar a congruência da
expressão “Maria, Mãe da Esperança”. Essa expressão que, segundo aquilo que vemos
em Aparecida, corresponde claramente à manifestação da Mãe do Senhor, invocada
com o título de Aparecida. Atraídos pela Mãe do Senhor, o povo simples e oprimido
recorre à Senhora da Conceição Aparecida, desejoso de esperança e conforto para a
caminhada. Esperança que se realiza concretamente na vida de cada fiel peregrino que
espera na sua intercessão materna e amorosa.
A congruência teológica de Maria, mulher da esperança, vem acolhida da
designação eclesial do Catecismo da Igreja Católica:
A esperança é a virtude teologal com a qual desejamos o Reino de Deus
e a vida eterna como nossa felicidade, colocando a nossa confiança nas
promessas de Cristo e apoiando-nos não sobre nossas forças, mas sobre
a ajuda da graça do Espírito Santo82.
Voltando um pouco na narração evangélica, encontramos os testemunhos
mais verdadeiros e convincentes de como a Mãe de Jesus foi, na fé, na caridade e no
serviço à pessoa de Cristo, uma mulher forte e cheia de esperança83.
De fato, Maria, penetrada constantemente pelo Espírito Santo, demonstra,
desde o início da sua vida, saber acolher Deus no seu explicar-se dialógico e salvífico,
graças à sua profunda e genuína espiritualidade teologal, própria dos anawin do
Reino84, pronunciando o seu livre e consciente sim85, o seu Magnificat86, valorizado
pela sua tenaz vontade de reforçar a sua diaconia ao Deus Salvador87.
Evangelizada pelas palavras, pessoas e eventos, que servem de corolário no
momento do mistério da encarnação do Filho de Deus, a fé permeia a esperança,
inflama a caridade, incita a inteligência e reforça a vontade de seguir em frente nos
momentos difíceis88 da vida da “cheia de graça”.
Dos Evangelhos aflora a mulher hebreia que é Maria, quando se concentra,
total e plenamente, com a mente e o coração, no perscrutar e servir o Mistério89.
82 Catecismo da Igreja Católica, nº. 1802. 83 Lumen Gentium, 61. 84 Lumen gentium 55. 85 Lc 1,38. 86 Lc 1,46-55. 87 Lc 1,38-48. 88 Mc 3,31; Lc 2,50. 89 Lc 2,19.51.
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Uma parenta, também essa cheia do Espírito Santo90, reconhece e elogia
Maria pela sua fé e obediência91 atuada no abandono à verdade e à potência da
Palavra, à imperscrutabilidade e à inacessibilidade do desígnio de Deus92.
A dimensão teologal na pessoa da Mãe de Cristo não é uma mera e estática
aquisição garantida pelo dom da “cheia de graça”, mas é uma dinâmica no Espírito
Santo e é força na vontade de discipulado que forja têmpera, nutre e encontra sentido
no mistério da contradição de Cristo93.
Seguir o Mestre supõe, também e sobretudo para a Mãe, assumir um
itinerário de purificação da esperança: essa esperança, de justa inspiração humana,
deve tornar-se, mediante a assunção do modelo cristológico da humilhação, virtude
teologal ordenada ao Reino94.
O ponto alto de tal purificação, de profunda e real enculturação cristológica
ou caminho de conformação a Cristo95, Maria experimenta no drama da Cruz onde,
não sem um desígnio divino, permaneceu em pé96. Sofreu profundamente com o seu
Filho unigênito e se associou com ânimo materno ao seu sacrifício, amorosamente
consciente da imolação da vítima gerada por ela97.
À luz seja da tradição eclesial, doutrinal e litúrgica, seja do ensinamento de
João Paulo II, podemos dizer que não existe um aspecto da pessoa de Maria e da sua
missão que não suscite no coração dos discípulos um sentimento de grande esperança:
a concepção imaculada, a maternidade messiânica, a presença em Caná da Galileia,
junto à cruz, no Cenáculo com os Apóstolos esperando o Espírito Santo, a assunção
gloriosa ao céu e a mediação materna no céu, onde exerce o seu papel de Mãe dos
viventes98.
Contemplando os mistérios salvíficos de Cristo e observando a sua
repercussão sobre Maria, os cristãos entenderam que Deus colocou à disposição do
homo viator, além da absoluta realidade de “Cristo esperança”, o dom relativo e a ele
subordinado de “Maria, nossa esperança99”.
90 Lc 1,41. 91 Lc 1,42.45. 92 Rm 11,33. 93 A.SERRA, Maria de Nazaret. Una fede in cammino, Paoline,Milano, 1993, p. 31-48. 94 Catecismo da Igreja Católica, nº. 1818. 95 Gl 2,20. 96 Jo 19,25. 97 Lumen gentium 58. 98 Cf. I.M.CALABUIG, Maria, nostra sicura speranza nell’atuale liturgia romana, Centro di
Cultura Mariana “Madre della Chiesa”, Roma, 2001, p. 240-260. 99 A.M.TRIACCA, Maria, spes nostra salve! Considerazioni teologico-liturgiche in margine ad
un’antologia medioevale di preghiera mariane. In: Rivista Liturgica n. 81, 1994, p. 363.
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2.2 A contribuição de João Paulo II
Na sua Encíclica sobre a Eucaristia, o Papa João Paulo II diz:
[...] Maria fez sua, com toda a sua vida junto a Cristo e não somente
junto ao Calvário, a dimensão sacrifical da Eucaristia. Quando levou
o pequeno menino Jesus ao templo de Jerusalém para oferecê-lo ao
Senhor100, escutou o anúncio da boca de Simeão que o menino seria
sinal de contradição e que uma espada de dor iria transpassar
também o seu coração de mãe101. Foi preanunciado assim o drama
do Filho crucificado e de algum modo prefigurado o “stabat Mater”
da Virgem ao pé da Cruz102.
A trágica sorte do Filho e o grito lancinante de angústia dirigido ao Pai103 não destroem
na Mãe a esperança, a esse ponto plenamente purificada e dedicada à edificação do
Reino: aquilo que a maldade e incrédula mundana esperança do homem matou104,
aquilo que, pela crônica, miseravelmente faliu, na noite da Páscoa se transformará em
história de salvação, alegria e esperança para a Mãe do Ressuscitado105.
Por isso, João Paulo II observa o exemplo da Mãe de Jesus para a Igreja, na
Carta Apostólica sobre o Rosário:
O fiel deve ir além da escuridão da Paixão, para fixar o olhar sobre a
glória de Cristo na Ressurreição e na Ascensão. Contemplando o
Ressuscitado, o cristão redescobre a razão da própria fé106, e revive a
alegria não somente daqueles aos quais Cristo se manifestou – aos
Apóstolos, a Madalena, aos discípulos de Emaús – mas também a alegria
100 Lc 2,22. 101 Lc 2,34-35. 102 IOANNES PAULUS P. P. II, Litterae Encyclicae Ecclesia de Eucharistia, 17 aprilis 2003:
AAS 95 (2003), 433-475, nº. 310-311. A espada, observa A. Serra, é figura do papel que
associa Maria ao Filho; faz certamente parte de tal economia salvífica também a dor que Maria
deverá experimentar no caso da sua vocação e missão junto ao seu Filho e Senhor. Seria,
entretanto, indevido restringir somente a essa dimensão o vasto horizonte aberto pelo santo
profeta do templo. O mesmo Evangelho de Lucas coloca à luz os efeitos que a palavra de Deus
produz na pessoa de Maria: alegria, louvor, perturbação, maravilha, dor, escuridão, memória,
escura, fé perseverante. Cf. A.SERRA, Una spada trafiggerà la tua vita. Quale spada? Bibbia e
tradizione giudaico-cristiana a confronto, Servitium-Marianum, Bergamo-Roma, 2003, p. 306. 103 Cf. Mt 27,46; Sl 22,2. 104 Cf. Mt 9, 2-3; Mc 2,7; Jo 10,33. 105 Cf. S.M.PERRELLA, Ecco tua Madre, p. 365. 106 Cf. 1Cor 15,14.
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de Maria, que devia fazer uma intensa experiência da nova existência do
Filho glorificado107.
Nos dias da Páscoa oblativa e gloriosa de Cristo, a sua comunidade, dispersa
e cheia de medo pela aridez e fragilidade da esperança messiânica e pelo equívoco
existente entre a dureza da caridade e a passageira afetividade na fé – comunidade de
apóstolos e discípulos, não totalmente exemplar, mas verdadeiro ícone de tantas
contradições humanas – será reunida, reconciliada e confortada pelo Ressuscitado,
pelo seu Espírito, pela Mulher que soube “esperar contra toda esperança”108 pela
Mulher, Mãe e Serva do Messias, que soube, no Espírito do Pai e do Filho, crer que o
Senhor é fiel e esperar nas suas promessas109.
Por esse exemplo de sabedoria e de fortaleza teologal, Maria é justamente
considerada “mãe de muitos povos”110, ícone da esperança cristã. Maria, a “bendita
entre todas as mulheres”111, é a Mãe daquele que é a “bênção espiritual” de Deus112.
Tendo como base e referência a fé de Abraão, que constitui o início da antiga
aliança, a fé de Maria, Serva do Senhor, marca o início da nova aliança no fiat do
Verbo113: os dois são cheios das promessas de Deus. A obediência da fé atravessa toda
a existência de Maria que se torna Mãe dos fiéis em paralelo a Abraão, que não
vacilou na fé e, acreditando contra toda evidência, torna-se “pai da nossa fé”, “pai de
todos os não circuncisos”, “pai de todos os cristãos”114.
A atenção a essa singular e materna função universal de Maria se torna ainda
mais substancial no episódio do Calvário115, fato que pode ser ligado ao sacrifício de
Isaac116sobre o Monte Moriá.
Sobre o Monte Calvário, o monte da epifania do mistério da contradição, que
é a estrada escolhida pelo soberano pensamento e pela ação do Deus-Cristo, a fé e a
esperança da Mulher-Mãe de todos os viventes117 atingem o seu ápice de escuridão e
107 IOANNES PAULUS PP. II, Litterae Apostolicae Rosarium Virginis Mariae, 16 octobris
2002: AAS 95 (2003), 5-36, nº. 1209. 108 Cf. Rm 4,18. 109 Cf. Is 40,8; Sl 33,4; Sl 119,90; Nm 23,19 e Hb 10,23. 110 Cf. Jo 19,27; Rm 4,18. 111 Cf. Lc 1,42. 112 Cf. Ef 1,3. Cf. S.M.PERRELLA, Ecco tua Madre, p. 367. 113 Cf. Redemptoris mater 14. 114 Cf. Rm 4,11-18. Cf. A.BOUD, Abramo. In: e. A. Dizionario Enciclopedico della Biblia,
Borla-Città Nuova, Roma, 1995, p. 58. 115 Cf. Jo 19,25-27. 116 Cf. Gn 22,1-18. 117 Cf. Gn 3,20.
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de luz. Daquela “noite de fé”118, semelhante àquela de Abraão sobre o Monte Moriá,
nasce e brilha a glória de Maria, peregrina na fé119. Essa glória descreve, para todas as
gerações cristãs, Maria como mulher da esperança que não termina jamais120.
De um ponto de vista histórico-teológico-litúrgico, escreve Calabuig sobre a
doutrina eclesial, referindo-se a Maria como nossa Esperança. A expressão Maria
nossa Esperança
[...] appare esplicitata nella seconda metà del secolo V. Sorge in ambito
liturgico e si sviluppa nei generi letterari dell’iconografia, dell’eucologia
e dell’omiletica. In Occidente il vescovo poeta Venanzio Fortunato121
sembra il primo a stabilire una doppia connessione tra Maria e la
speranza: la Vergine è portatrice di speranza (Cristo) ed è speranza di
perdono. Non esiste aspetto della persona di Maria e della sua missione
che non susciti nel cuore dei discepoli di Cristo un sentimento di
genuina speranza. In particolare, il mistero dell’assunzione, nella
complessità del suo contenuto – icona della nostra condizione gloriosa,
promessa e luogo dell’esercizio della mediazione materna di Maria – è
per i cristiani un segno manifesto di speranza. In virtù dell’associazione
di Maria a Cristo Redentore, Mediatore e Fonte di Vita – e quindi
“nostra speranza” – la Vergine diviene pure lei, in Cristo e per Cristo,
“nostra speranza”. Capiamo ora il cammino percorso dalla Chiesa per
giungere a invocare la Madre di Gesù con tale titolo. Contemplando i
misteri salvifici di Cristo e vedendo la loro ripercussione su Maria, la
Chiesa ha compreso che Dio ha disposto a favore dell’uomo viator, oltre
all’assoluta realtà di “Cristo speranza”, il dono relativo e subordinato di
“Maria speranza”122.
Como sempre afirmou João Paulo II, temos que retornar sempre a Cristo,
fundamento e fonte de toda esperança. E um caminho seguro para chegar a ele é sua
Mãe, que também é nossa Mãe.
Com Maria temos que retornar às fontes, à origem, descobrir que o
Evangelho não está contra nós, mas a nosso favor. E Jesus é a esperança sólida e
duradoura a que devemos aspirar. O Evangelho da esperança não decepciona123.
Mas seguindo ainda a linha de participação de Maria no mistério messiânico
de Cristo, devemos contemplar um não banal epsódio mariano, que é a contemplação
118 Cf. Redemptoris mater 17. 119 Cf. Lumen gentium 57. 120 Cf. I.M.CALABUIG, Maria e la speranza cristiana. Prospettiva liturgica, Monfortane,
Roma, 1998, p. 293. 121 Morto, aproximadamente, no ano 601 d.C. 122 I.M.CALABUIG, Maria e la speranza cristiana. p. 327. 123 Cf. B.CROCE, Perché non possiamo non dirci “cristiani”, La Locusta, Vicenza, 1986, p. 5.
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e a consagração à Mulher vestida de sol que, junto ao Cordeiro, nos ajuda a vencer o
mal124, e que o mesmo Vencedor messiânico e escatológico doou à Igreja e aos seus
discípulos125. Devemos continuamente contemplar a Mulher do céu presente na Igreja
e na história de cada fiel, como testemunham os muitos santuários em todas as nações
e a devoção viva e difundida126.
Nessa contemplação, animada por um genuíno amor, Maria nos aparece
como figura da Igreja que, nutrida de esperança, reconhece a ação salvífica e
misericordiosa de Deus. É Maria que nos ajuda a interpretar, também hoje, as nossas
vivências em referência ao seu Filho.
Com Maria, os fiéis aprendem a ser operadores de esperança cristã e
empenham-se a ser agentes responsáveis da maturação das “sementes do Verbo” na
nossa história127.
A Mãe do Senhor é um sinal de esperança, esperança que constitui uma
eminente virtude da condição humana. A esperança é a expressão da
situação existente na Igreja a caminho, é uma situação de risco, de
instabilidade, de passagem. Essa postura de quem é chamado a viver na
esperança deveria ser o “próprio” do cristão que não vive como aqueles
que não têm esperança128.
Sendo assim, Maria é a Mãe da Esperança porque, em cada situação de
desespero e provação, apresenta-nos seu Filho, fundamento de toda esperança, como
meta de superação e crescimento humano e espiritual. Ele é o único que não nos
decepciona; é o único que torna possível, na nossa vida de peregrinos na fé, uma real e
potente transformação operada pelo Espírito Santo.
Mãe da Esperança, porque em sua vida terrena, como mulher e Mãe, livre e
responsável nas suas escolhas, dócil e silenciosa, capaz de escutar, vivendo as mesmas
coisas que vivemos nós, as dores e as angústias da vida presente, sempre se manteve
fiel às promessas do Senhor, sempre acreditou, sempre obedeceu. E agora vive,
assunta e gloriosa, ao lado do seu Filho Primogênito. Se ela viveu como nós, se, como
nós, também percorreu o itinerário de fé e completou a sua peregrinação terrena,
vencendo na força do Espírito todo tipo de obstáculo, também nós, seguindo seu
124 Cf. Ap 1,1-11. 125 Cf. Jo 19,25-26. 126 Cf. S.M.PERRELA, Ecco tua Madre, p. 373. 127 Cf. GIOVANNI PAOLO II, in Insegnamenti di Giovanni Paolo II , vol XXIII/2, p. 564. 128 G.CARDAROPOLI, Maria, segno di speranza. Testimonianze neotestamentarie,
Antonianum, Roma, 1884, p. 235.
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exemplo e suplicando a sua intercessão, conseguiremos chegar ao mesmo lugar e
abraçar o mesmo prêmio: a vida eterna.
Maria é uma garantia para nós. Seu coração humano e sensível pulsa no céu,
ao lado do trono da graça, de onde observa e socorre imediatamente seus filhos. Ela
divide conosco a sua fé permeada de contínua e inflamada esperança e caridade.
Incita-nos a continuar nossa caminhada, ajuda-nos a desejar seguir em frente nos
momentos difíceis e dolorosos – momentos que purificam a nossa esperança, como
purificaram a sua – fortalecendo nossa vontade com o seu exemplo. Mesmo diante da
Cruz, Maria não perdeu a sua esperança. E no seu silêncio, diante das nossas cruzes,
espera e acompanha-nos para que vivamos a mesma coisa.
3 - MULHER, EIS OS TEUS FILHOS
Colocando toda a nossa confiança na misericórdia e na graça de Deus,
caminhamos vigilantes também rumo ao dia da vinda do Senhor. Sendo assim, é justo
que coloquemos toda a nossa vida nas mãos da Mãe do Senhor, para vivermos, a
exemplo de João Paulo II, nossa total consagração a essa Mulher, Virgem Imaculada,
que nos foi dada como Mãe, e possamos dizer juntos: Totus tuus, Maria!129
Acompanhados por ela, devemos tomar consciência da utilidade teológica e
escatológica do dom pascal de Jesus, que, para esse fim, doou Maria, sua Mãe, a cada
discípulo, considerando-a “Mãe dos seus”130. Vontade que foi deixada como
testamento pelo Senhor e inúmeras vezes mediada e apresentada pelo Papa João Paulo
II no seu Totus Tuus.
3.1 O Evangelho de João: a Mulher das Bodas de Caná
Sabemos que no Evangelho de João, duas vezes o evangelista fala de Maria
denominando-a “Mãe de Jesus”, o que é muito compreensível. É menos
compreensível quando o próprio Filho a chama de “mulher”131. E isso merece um certo
esclarecimento.
Os dois textos de João que falam de Maria, e que queremos analisar, falam
das Bodas de Caná132 e de Maria ao pé da Cruz133.
129 Cf. GIOVANNI PAOLO II, Testamento spirituale, LEV, Città del Vaticano, 2005, p. 9. 130 Cf. Jo 19,25-27. 131 Cf. Jo 2,4;19,26. 132 Cf. Jo 2,1-12. 133 Cf. Jo 19, 25-27; Cfr. A. SERRA, Maria a Cana e presso la Croce, p. 277.
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O termo “mulher” tem em si uma certa nobreza enquanto deriva do latim
domina, ou seja, senhora, que vive junto ao dominus, o senhor, na domus, ou seja, na
casa. Mas esse apelativo nos lábios de Jesus soa, num primeiro momento, como um
querer manter a distância, quase sublinhando uma estranheza que não deveria existir
entre Maria e Jesus. No texto bíblico de João, temos a palavra grega gyné, que
significa tanto “fêmea da espécie humana” como “esposa”, mulher. João não usa o
termo “mulher” superficialmente, mas com uma precisa intenção teológica134.
Quando se comenta o texto das Bodas de Caná, não se pode deixar de notar a
dificuldade de interpretar o quarto versículo : “E Jesus respondeu: que queres de mim,
mulher? Minha hora ainda não chegou135.”
Alguns estudiosos dizem que é necessário fazer uma pequena digressão para
esclarecer que a tradução deveria ser corrigida.
Começando pela primeira frase: “que queres de mim, mulher?”, devemos
reconhecer que essa expressão, na literatura antiga, era muito usada, seja com
significado hostil136, como para exprimir um mal-entendido137.
A situação entre Jesus e Maria seria certamente entendida como um mal-
entendido e não uma expressão de hostilidade, que nasce da constatação expressa pela
Mãe de Jesus: “Eles não têm mais vinho”138. Por isso o versículo quatro deveria ser
entendido como: “O que significa o vinho para mim e para ti?” De fato, é típico de
João criar esses mal-entendidos entre os seus personagens: Jesus fala de “nascer de
novo”, fala de “água viva”, e no episódio da Samaritana, ela entende “água material”;
Jesus fala de vinho como sinal da sua missão messiânica, e Maria parece entender o
vinho material139.
Também a segunda frase, “minha hora ainda não chegou”140, pode não ser
entendida no seu real significado, porque, logo em seguida, realiza o sinal. E no
versículo onze do segundo capítulo, João diz: “Esse princípio dos sinais Jesus o fez
em Caná da Galileia e manifestou a sua glória e os seus discípulos creram nele”141.
134 Cf. I. DE LA POTTERIE, Maria nel mistero dell’alleanza, Marietti, Genova, 1988, p. 202 . 135 Jo 2,4. 136 Com o significado de: “o que existe entre nós dois?”, como na resposta dos demônios a
Jesus, em Lucas 4,34. 137 Cf. O.BATTAGLIA, La Madre del mio Signore. Maria nei vangeli di Luca e Giovanni,
Cittadella, Assisi, 1994, p. 276. 138 Jo 2,3. 139 Cf. O.BATTAGLIA, La Madre del mio Signore, p. 278. 140 Jo 2,4. 141 Jo 2,11.
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Na realidade, a segunda frase é uma outra interrogação. Por isso Jesus afirma que a
hora de começar a manifestar-se como Esposo messiânico finalmente chegou142.
Nesse contexto, no qual Jesus pensa no vinho de modo simbólico e em si
mesmo como o Revelador, também a Mãe não pode ser por ele entendida de maneira
simbólica. De fato, ela permanece sempre sua Mãe. Mas Jesus descobre nela uma
nova identidade que ele deverá assumir em relação à sua própria identidade.
Jesus realiza o primeiro dos sinais do Reino durante uma festa de casamento,
mas dos esposos não se diz nada. Eles desaparecem, e surge Jesus como Esposo que
oferece o “vinho novo”, dando aos convidados o melhor, isto é, o seu Evangelho, a
nova Aliança, no lugar do vinho menos bom, que era a Lei. Já o Antigo Testamento
nos habituou a considerar a Aliança entre Deus e o seu povo como um verdadeiro e
real matrimônio143, e Jesus-Esposo se confronta, em Caná, com o seu povo-Esposa,
simbolizado em Maria e nos seus discípulos144.
Assim, já que delineamos a nova identidade de Maria, no seu novo nome de
“Mulher”, ela é a Esposa de Cristo-Esposo e se prepara para tornar-se a Mãe dos
discípulos, como mais explicitamente se dirá ao pé da Cruz, epifania da kenosis e do
amor do Filho do Pai misericordioso.
3.1.1 A misericórdia de Maria
É nosso dever também observar, no texto das Bodas de Caná, a presença de
Maria como mediadora e misericordiosa.
A Mãe de Jesus percebe que o sucesso da festa está em perigo. Faltou vinho!
Imediatamente recorre ao filho, intercede, suplica, indica aquilo que deve ser feito145.
Sabemos que, mesmo parecendo rejeitar o pedido de Maria, Jesus vem ao
encontro da sua preocupação de forma inesperada e surpresa. Maria, a cheia de graça,
a Imaculada, cheia do Espírito Santo, indica ao seu filho que é hora de manifestar-se.
Por ser a cheia de graça, tem autoridade suficiente para dizer: “É esta a sua hora.”
Mas Jesus reivindica uma soberana autoridade no ato de realizar o milagre,
mesmo reconhecendo, certamente, válida e pertinente a indicação de Maria. É ele que
escolhe o tempo e o modo para que cresça a fé dos que o invocam. Com isso quer
educar, purificar a fé dos orantes. Não se deixa condicionar por nenhum cálculo
humano. Também ao realizar os sinais, somente ao Pai obedece. Como no sinal
142 Cf. O.BATTAGLIA, La Madre del mio Signore, p. 278. 143 Podemos conferir esse tema em Os 2,16-25, e também em Ez 16. 144 Cf. S.M.PERRELtLA, Ecco tua Madre, p. 481. 145 Cf. A.SERRA, Le nozze di Cana. Incidenze cristologico-mariane del primo “segno” di Gesù,
Messaggero di Sant’Antonio, Padova, 2009, p. 221.
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“arquétipo” de Caná, a função prioritária do seu agir é “a manifestação da sua glória”
que gera a fé dos discípulos146.
Mas não podemos negligenciar um fato surpreendente. Também com Maria,
sua Mãe, Jesus usa essa metodologia de aprofundamento da fé. No Evangelho de João,
Maria é a primeira pessoa a qual Jesus comunica a sua pedagogia em forma de oração.
E Maria se coloca inteiramente à sua vontade, e transmite aos servos do banquete o
seu abandono confiante: “Fazei tudo o que ele vos disser”147. De Mãe se transforma
em discípula. Jesus educa a sua fé, e ela se deixa educar pelo Filho148.
Nesse sentido, não podemos deixar de citar o vigésimo parágrafo da
Encíclica Redemptoris Mater. Escreve o Papa João Paulo II:
Se Maria, mediante a fé, se tornou a genetriz do Filho que lhe foi dado
pelo Pai com o poder do Espírito Santo, conservando íntegra a sua
virgindade, com a mesma fé ela descobriu e acolheu a outra dimensão da
maternidade, revelada por Jesus no decorrer da sua missão messiânica.
Pode-se dizer que esta dimensão da maternidade era possuída por Maria
desde o início, isto é, desde o momento da concepção e do nascimento
do Filho. Desde então ela foi "aquela que acreditou". Mas, à medida que
se ia esclarecendo aos seus olhos e no seu espírito a missão do Filho, ela
própria, como Mãe, ia-se abrindo cada vez mais para aquela "novidade"
da maternidade, que devia constituir a sua "parte" ao lado do Filho. Não
declarara ela, desde o princípio: "Eis a serva do Senhor! Faça-se em
mim segundo a tua palavra"?149 Maria continuava, pois, mediante a fé, a
ouvir e a meditar aquela palavra, na qual se tornava cada vez mais
transparente, de um modo "que excede todo conhecimento"150, a auto-
revelação de Deus vivo. E assim, Maria Mãe tornava-se, em certo
sentido, a primeira "discípula" do seu Filho, a primeira a quem ele
parecia dizer: "Segue-me", mesmo antes de dirigir este chamamento aos
Apóstolos ou a quaisquer outros151.
A voz de Maria em Caná, “Eles não têm mais vinho”152, também é uma
epifania do seu amor misericordioso que percebe a situação de quem se encontra em
necessidade153.
146 Cf. A.SERRA, Le nozze di Cana, p. 223. 147 Jo 2,5. 148 Cf. A.VALENTINI, Maria secondo le Scriture, p. 280. 149 Lc 1,38. 150 Ef 3,19. 151 Cf. Jo 1,43. Redemptoris mater nº. 20. 152 Jo 2,3. 153 Cf. I. MANICARDI, Maria icona di misericordia e il vino della nuova alleanza a Cana. In:
A. G. BIAGGI - G. FRANCILIA, La misericordia di Dio Trinità nello Sguardo materno di
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Recordemos que o oitavo capítulo da Lumen gentium154 observa que a Mãe de
Jesus, nas Bodas de Caná, movida pela sua compaixão e misericórdia, consegue, com
a sua intercessão, que Jesus desse início aos seus milagres155.
Desse modo, Maria revela-se filha de Israel, seu povo, o povo que Deus
educou incessantemente para a misericórdia. Maria herdou da sua gente não somente a
carne e o sangue, mas, sobretudo, um estilo de fé. Aqui vale o princípio: a carne de
Jesus é a carne de Maria, e a carne de Maria é a carne de Israel. Assim temos: Israel-
Maria-Cristo, Cristo-Maria-Israel156.
Do ensinamento das Escrituras, aprendemos ainda que a “misericórdia” é
declinada no feminino. De fato, tem sede nas “entranhas”; sobe das regiões mais
íntimas dos sentimentos de uma pessoa. E é uma virtude com nuances femininas,
maternas, cheia de ternura, bondade, paciência e compreensão. Na verdade, une dois
vocábulos hebraicos do Antigo Testamento que servem para definir a misericórdia de
Deus e que, juntos, significam “seio materno”157.
Em Caná, como a festa poderia tornar-se uma sutil vergonha para os esposos,
a Mãe de Jesus, em espírito de “serviço”158, torna-se atenta à situação desagradável em
que estavam. Dizendo a Jesus, “Eles não têm mais vinho”159, e aos servos, “Fazei tudo
o que ele vos disser”160: ela mesma indica o caminho para se encontrar, em plenitude, a
alegria de viver161.
Maria, Atti del VI Colloquio internazionale di mariologia, Rimini 5-7 Maggio 2000, Biblioteca
di Theotokos, nº. 6, Edizioni Monfortane, Roma, 2002, p. 29-53. 154 Lumen gentium 58. 155 Cf. E.M. TONIOLO, La Beata Maria Vergine nel Concilio Vaticano II. Cronistoria del
Capitolo VIII della Costituzione dogmatica «Lumen gentium» e sinossi di tutte le redazioni,
Centro di Cultura Mariana “Madre della Chiesa”, Roma, 2004; cf. G.M. BESUTTI, Note di
cronaca sul Concilio Vaticano II e lo Schema De B.Maria Virgine, In: Marianum n. 26, 1964, p.
1-42. 156 Cf. A.SERRA, Le nozze di Cana, p. 263; cf. A. SERRA, Maria a Cana e presso la Croce, p.
82-118; cf. A SERRA, Dimensioni mariane del mistero pasquale, Milano: Paoline, 1995, p. 16-
37. 157 Cf. L.BOFF, Il volto materno di Dio. Saggio interdisciplinare sul femminile e le sue forme
religiose, Brescia: Queriniana, 1981, p. 92; cf. R.LAURENTIN, Tutte le genti me diranno
beata. Due millenni di riflessioni cristiane. Bologna: EDB, 1986, p. 299. 158 Nas Bodas de Caná, a Mãe de Jesus é figura da dedicação desinteressada e atenta
ao serviço dos outros, imitando o serviço humilde de Jesus num outro banquete, o
último, quando ele lava os pés dos seus discípulos. Cf. G.SEGALA, La Madre degli
inizi nel Vangelo di Giovanni, in: Teotokos 8, 2000, p. 769-785. 159 Jo 2,3. 160 Jo 2,5. 161 A Mãe do Senhor tem o olhar fixo sobre a situação e compreende o que de
essencial está sucedendo e o que de essencial está faltando. Esse é o espírito
Revista Logos – v.1, n.1, jan./jun., 2016.
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Vemos aqui as duas faces da única misericórdia da Santa Virgem Maria. É
sensível à carência dos bens materiais e espirituais – falta de fé, de saúde, trabalho,
moradia, liberdade, honestidade etc. – e convida a colocar em prática a Palavra de
Cristo. Oração e ação em estreita simbiose. Melhor ainda, oração entendida como a
primeira e mais eficaz ação162. Da descrição do evento de Caná, delineia-se que
concretamente se manifesta não somente uma nova maternidade, segundo o Espírito.
Que entendimento profundo terá ocorrido entre Jesus e a sua Mãe?
Como se poderá explorar o mistério da sua íntima união espiritual? De
qualquer modo, o fato é eloquente. Naquele evento é bem certo que já se
delineia bastante claramente a nova dimensão, o sentido novo da
maternidade de Maria. Esta tem um significado que não está encerrado
exclusivamente nas palavras de Jesus e nos diversos episódios referidos
pelos Sinópticos163. Nestes textos Jesus tem o intuito, sobretudo, de
contrapor a maternidade que resulta do próprio fato do nascimento,
àquilo que esta "maternidade" (assim como a "fraternidade") deve ser na
dimensão do Reino de Deus, na irradiação salvífica da paternidade do
mesmo Deus. No texto de São João, ao contrário, a partir da descrição
dos fatos de Caná, esboça-se aquilo em que se manifesta concretamente
esta maternidade nova, segundo o espírito e não somente segundo a
carne, ou seja, a solicitude de Maria pelos homens, o seu ir ao encontro
deles, na vasta gama das suas carências e necessidades. Em Caná da
Galileia torna-se patente só um aspecto concreto da indigência humana,
pequeno aparentemente e de pouca importância ("Não têm mais vinho").
Mas é algo que tem um valor simbólico: aquele ir ao encontro das
necessidades do homem significa, ao mesmo tempo, introduzi-las no
âmbito da missão messiânica e do poder salvífico de Cristo. Dá-se,
portanto, uma mediação: Maria põe-se de permeio entre o seu Filho e os
homens na realidade das suas privações, das suas indigências e dos seus
sofrimentos. Põe-se de "permeio", isto é, faz-se de mediadora, não como
uma estranha, mas na sua posição de mãe, consciente de que como tal
pode - ou antes, "tem o direito de" - fazer presente ao Filho as
necessidades dos homens. A sua mediação, portanto, tem um caráter de
intercessão: Maria "intercede" pelos homens. E não é tudo: como Mãe
deseja também que se manifeste o poder messiânico do Filho, ou seja, o
seu poder salvífico que se destina a socorrer as desventuras humanas, a
libertar o homem do mal que, sob diversas formas e em diversas
proporções, faz sentir o peso na sua vida. Precisamente como o profeta
Isaías tinha predito acerca do Messias, no famoso texto a que Jesus se
contemplativo de Maria, o seu dom de síntese, a capacidade de esperar as coisas
particulares. Cf. M. MARTINI, La donna nel suo popolo, Ancona, 1984, p. 32; cf. S.
M. PERRELLA, Ecco tua Madre, p. 499. 162 Cf. MANICARDI, Maria icona di misericordia, p. 53. 163 Lc 11,27-28 e Lc 8,19-21; Mt 12,46-50; Mc 3,31-35.
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refere na presença dos seus conterrâneos de Nazaré: “Para anunciar aos
pobres a boa-nova me enviou, para proclamar aos prisioneiros a
libertação e aos cegos a vista”164.
3.1.2 A mediação de Maria
Do modo como João apresenta o comportamento de Maria em Caná, é lícito
deduzir, com razões fundadas no texto, que Maria exercite realmente o papel de
“mediadora”. De fato, escreve João: “Então a mãe de Jesus lhe disse”; e depois: “Sua
mãe disse aos serventes”165.
Se temos presente que a cristofania de Caná evoca a teofania do Sinai, é
possível vislumbrar uma relação significativa entre Maria e Moisés. No Sinai, na
verdade, Moisés estava entre o Senhor e a assembléia dos seus irmãos166; em Caná,
Maria se coloca entre Jesus e os servos. Ela aparece em vestes de mediadora167.
Entretanto, não em posição neutra. Sabemos que o mediador no Antigo Testamento
não é um personagem neutro. Ele, antes de mais nada e antes dos outros, adere à
vontade de Deus. Igualmente, é presumível que, nas Bodas de Caná, Maria, antes de
todos, dispusesse o seu ânimo a aceitar a vontade do Filho e comunicasse aos servos o
seu abandono total em Jesus168. A frase “Fazei tudo o que ele vos disser”169 significa,
então: “Façamos tudo o que ele nos disser”.
Além disso, parece um dever não deixar em silêncio uma tradição consistente
do pensamento judaico antigo. Segundo vozes significativas nesta área literária, o
poço de Beer170 foi doado aos Israelitas pelo marido de Miryam, irmã de Moisés.
Também em Caná, as seis ânforas cheias de água até à borda são como uma síntese do
poço ou de todos os poços que acompanhavam o itinerário do povo de Deus. A água,
símbolo da Lei do Senhor que sempre nutria o povo de Israel, transforma-se agora no
vinho novo do Evangelho de Cristo. E ainda em Caná, uma outra Miryam é presente e
ativa na divina metamorfose que ali ocorreu no terceiro dia. Em mérito da antiga
164 Cf. Lc 4, 18. Redemptoris mater nº. 21. 165 Jo 2,3b.5a. 166 Cf. Dt 5,5. 167 Maria é aquela que faz a mediação da revelação e a correspondente fé dos discípulos em
Jesus, cf. G.SEGALA, La Madre degli inizi nel Vangelo di Giovanni, p. 778. 168 Cf. A.SERRA, Le nozze di Cana, p. 223. 169 Jo 2,5b. 170 O poço de Beer é o núcleo agregante de todos os outros poços e fontes de água do Antigo
Testamento, cf. Nm 21,16-20.
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Miryam, irmã do primeiro libertador, Moisés, reflete-se agora o mérito da nova
Miryam, a Mãe de Jesus, Messias Filho de Deus171.
A função mediadora de Maria em Caná é reafirmada por João Paulo II com
as seguintes palavras:
Dá-se, portanto, uma mediação: Maria põe-se de permeio entre o seu
Filho e os homens na realidade das suas privações, das suas indigências
e dos seus sofrimentos. Põe-se de "permeio", isto é, faz-se de mediadora,
não como uma estranha, mas na sua posição de mãe, consciente de que
como tal pode - ou antes, "tem o direito de" - fazer presente ao Filho as
necessidades dos homens. A sua mediação, portanto, tem um caráter de
intercessão: Maria "intercede" pelos homens172.
E, mais à frente, confirma:
Podemos dizer, por conseguinte, que nesta página do Evangelho de São
João encontramos como que um primeiro assomo da verdade acerca da
solicitude maternal de Maria. Esta verdade teve a sua expressão também
no magistério do recente Concílio. É importante notar que a função
maternal de Maria é por ele ilustrada na sua relação com a mediação de
Cristo. Com efeito, podemos aí ler: "A função maternal de Maria para
com os homens, de modo algum obscurece ou diminui esta única
mediação de Cristo; manifesta antes a sua eficácia", porque "um só é o
mediador entre Deus e os homens, o homem Cristo Jesus"173. Esta
função maternal de Maria promana, segundo o beneplácito de Deus, "da
superabundância dos méritos de Cristo, funda-se na sua mediação e dela
depende inteiramente, haurindo aí toda a sua eficácia". É precisamente
neste sentido que o evento de Caná da Galileia nos oferece como que um
preanúncio da mediação de Maria, toda ela orientada para Cristo e
propendente para a revelação do seu poder salvífico. Do texto joanino
transparece que se trata de uma mediação materna. Como proclama o
Concílio: Maria "foi para nós mãe na ordem da graça". Esta maternidade
na ordem da graça resultou da sua própria maternidade divina: porque
sendo ela, por disposição da divina Providência, mãe-nutriz do
Redentor, foi associada à sua obra, de maneira única, como "amiga
generosa" e humilde "serva do Senhor", que "cooperou ... na obra do
Salvador com a obediência e com a sua fé, esperança e caridade ardente,
para restaurar nas almas a vida sobrenatural". "E esta maternidade de
Maria na economia da graça perdura sem interrupção... até à
consumação perpétua de todos os eleitos"174.
171 Cf. A.SERRA, Le nozze di Cana, p. 224; cf. Jo 20,31. 172 Redemptoris mater nº. 21. 173 1 Tm 2,5. 174 Redemptoris mater nº. 22.
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No Santuário de Aparecida, diante da pequenina Imagem, o povo brasileiro
sente forte e intui a presença de Maria, Virgem Imaculada, mulher e Senhora, que diz
ao seu Filho: “Eles não têm mais pão; falta-lhes fé, liberdade, moradia, saúde,
honestidade, governo, amor e esperança”. Com sua autoridade de “cheia de graça”, de
Virgem Mãe Imaculada, Assunta e glorificada, pede ao Filho pelo povo que passa
incansavelmente diante de sua Imagem Miraculosa.
Ali os filhos se apresentam, choram, sussurram, muitos não dizem nada,
apenas olham; para muitos é a última chance, a última oportunidade, a última e única
esperança, pois ninguém mais pode fazer nada por eles. Mas o povo acredita que ela
intercede, intui através do sensus fidelium que ela é a Mãe da Misericórdia,
mediadora. Sabe que ela é sensível, atenta às necessidades dos seus devotos. E ela
intercede, suplica, insiste junto ao seu Filho. Ele, na sua soberana autoridade de
Senhor e Deus, segundo a sua vontade, atende à Senhora Aparecida.
Não podemos também deixar de notar que, em Caná, Maria entra no
movimento pedagógico de Jesus, aprende com o seu filho a ser discípula, amadurece
sua fé e sua esperança. Com sua presença deseja, fazendo-se presente na vida dos fiéis
como dom, ensinar aos seus filhos que devem servir e obedecer inteiramente ao seu
Filho. É ela que no Santuário, depois da acolhida, depois de servir à mesa, de saciar os
famintos de amor, de trocar as vestes rasgadas e sujas por vestes de dignidade, diz:
“Façamos tudo aquilo que ele nos disser”.
3.2 A Mãe e o discípulo ao pé da cruz175
O versículo vinte e cinco do capítulo dezenove do quarto Evangelho nos
informa que, ao pé da cruz de Jesus, encontram-se somente três, ou quem sabe quatro
mulheres, entre as quais a Mãe, e um dos discípulos, aquele definido como “o
predileto”. Esta cena segue àquela em que os soldados176, segundo o uso, haviam
dividido as suas vestes e sorteado a túnica sem costura, tecida como um único pedaço
de cima a baixo177.
Depois disso, Jesus, sabendo que tudo estava terminado, entregou ao mundo,
à humanidade, o grande dom pascal do seu Pneuma, do seu Espírito178.
Estamos, porém, num momento no qual Cristo, evidentemente sofrendo,
recolhe as suas últimas forças para revelar à Mãe e ao discípulo, que se encontra junto
dela, alguma coisa que diz respeito aos dois, que os inclui. Estamos diante de um
175 Jo 19,25-27. 176 Jo 19,23-24. 177 Jo 19,23. 178 Jo 19,28-30.
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esquema de revelação. E, segundo esse esquema de revelação, Jesus vê as duas
pessoas de quem quer revelar a identidade. Depois se dirige à primeira, isto é, a Maria,
iniciando a frase com a palavra grega Idoú179. O sentido dessa cena aparece, então,
claro: Jesus revela à Mãe, que ela, enquanto “mulher”, com significado messiânico e
escatológico180, é também Mãe do discípulo, o qual, por sua vez, representa todos os
discípulos presentes e futuros de Jesus.
Maria personifica, ao pé da cruz do Messias, a Mãe de Sião, junto a qual se
reúnem os filhos do Novo Israel, como anunciava Isaías181.
Não podemos deixar passar despercebido que as palavras de Jesus à Mãe e ao
discípulo estão no coração da cena da cruz, onde tudo está concentrado na figura de
Jesus e sobre as suas palavras. Antes que ele fale, o evangelista se preocupa em
enquadrar ainda mais a cena. No fundo permanecem as mulheres182, entre elas estava
presente, na primeira fila, Maria, a Mãe de Jesus, e depois os outros personagens
principais da perícope: em primeiro lugar, em posição dominante, Jesus, colocado
enfaticamente no início da frase como sujeito dos verbos ver e dizer. Antes ainda de
falar, o olhar de Jesus, fixo sobre a Mãe e sobre o discípulo que estava perto dela,
associa as duas figuras. Duas pessoas concretas e, ao mesmo tempo, simbólicas. É
pela Mãe que Jesus dirige, em primeiro lugar, o seu interesse183.
Maria foi predestinada, preparada e acompanhada pelo Deus Uno e Trino a
fim de que a sua vocação de Mulher-Mãe do Libertador pascal e do novo povo, ao pé
da Cruz, viesse confirmada e reforçada. A “Mãe de Jesus”, enquanto pessoa
individualmente entendida é ainda “Mãe” de Jesus. Mas essa sua maternidade corporal
vem estendida espiritualmente a nós todos e, consequentemente, à Igreja dos
discípulos184.
179 Esta palavra, literalmente, quer dizer: “olha”. Assim temos em Jo 19,26b: “Mulher, olha teu
filho”. E depois em Jo 19,27, diz ao discípulo: “Olha tua Mãe”. 180 Relativo à Igreja, comunidade dos crentes e dos discípulos. 181 Os profetas caminharão na tua luz, e os reis, no clarão do teu sol nascente. Ergue os olhos e
vê: todos eles se reúnem e vêm a ti. Teus filhos vêm de longe, tuas filhas são carregadas sobre
as ancas. 182 Jo 19,25. 183 A atenção de João à figura da Mulher não se inicia nesta cena, mas vem de longe: é presente,
como já vimos, no início da narrativa de João, numa cena programática para todo o Evangelho.
Nas bodas inaugurais do quarto Evangelho, Maria havia recebido de Jesus o título de “mulher” na perspectiva da “hora”. Ao pé da cruz, no cumprimento da hora, ela recebe de Jesus o mesmo
título de mulher e de mãe do discípulo. A figura de Maria, junto ao crucificado, adquire a
máxima expansão e revela todo o seu peso simbólico. Cf. A.VALENTINI, Maria secondo le
Scritture, p. 318-321. 184 Cf.. O.BATTAGLIA, La Madre del mio Signore, p. 272.
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João Paulo II, na encíclica Veritatis splendor, insiste que Maria é a Mãe da
misericórdia porque Jesus confiou a ela a sua Igreja e toda a humanidade.
Maria é Mãe de misericórdia também, porque a ela Jesus confia a sua
Igreja e a humanidade inteira. Aos pés da Cruz, quando aceita João
como filho, quando pede ao Pai, juntamente com Cristo, o perdão para
aqueles que não sabem o que fazem185, Maria, em perfeita docilidade ao
Espírito, experimenta a riqueza e a universalidade do amor de Deus, que
lhe dilata o coração e a torna capaz de abraçar todo o gênero humano.
Deste modo, é feita Mãe de todos e cada um de nós, Mãe que nos
alcança a misericórdia divina186.
Maria e o discípulo personificam a Igreja, se bem que em modalidades
diferentes: Maria, que é a Mãe de Jesus, é imagem, ícone da Igreja no seu serviço
materno; o discípulo, que acolhe, na sua vida de fé e na sua experiência espiritual, a
Mãe do Senhor, simboliza todos os crentes que desejam ser autenticamente filhos de
Deus mediante o seguimento do Filho187.
3.3 E o discípulo a acolheu em sua casa
Recentes estudos sobre o versículo de João, “E a partir dessa hora, o
discípulo a recebeu em sua casa”188, ajudam-nos a observar que o texto original grego
do quarto Evangelho não diz que o discípulo acolheu Maria “na sua casa”, mas “nas
suas coisas pessoais”189. Agora, “as coisas pessoais”, entre as quais o discípulo acolheu
a Mãe de Jesus, têm um duplo significado: um material e outro espiritual.
a) Significado material: esse se percebe evidentemente. Naquelas “coisas
pessoais” devemos ver, antes de mais nada, a casa verdadeira e própria onde vivia o
discípulo João. Entre as paredes de uma habitação, mesmo que modesta, ele introduz a
Mãe do Senhor, já viúva de José de Nazaré e, agora, também sem o único filho. João,
segundo o desejo de Jesus, ofereceu a Maria asilo, amor e conforto filial190.
185 Cf. Lc 23, 34. 186 IOANNES PAULUS II, Litterae encyclicae Veritatis splendor, 120, de quibusdam
quaestionibus fundamentalibus doctrinae moralis Ecclesiae, 6 augusti 1993: AAS 85, 1993, p.
1133-1228, n. 2827. 187 E.M.TONIOLO, La “Madre della misericordia” nell’enciclica del papa – Dio, ricco di
misericordia. Commenti originali, Logos, Roma, 1980, p. 53-69. 188 Jo 19,27. 189 O palavra grega usa é “eis tà ídia”. Sobre esse argumento cf. A.VALENTINI, Maria
secondo le Scritture, p. 320-324; cfr. A. SERRA, Maria a Cana e presso la Croce, p. 85-91. 190 Como base para essa posição material, encontramos a opinião de outros autores no quarto
parágrafo de cf. A.VALENTINI, Maria secondo le Scritture, p. 321.
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b) Significado espiritual: esse é o mais profundo. As “coisas pessoais” do
discípulo seriam “os dons” inúmeros que ele recebeu do amor do Senhor Jesus, e que
se tornam, portanto, “suas coisas pessoais”, isto é, “sua propriedade espiritual”. Entre
esses “dons” está também Maria de Nazaré, Mãe, testemunha e serva do Senhor191.
Sendo assim, também Maria é um “dom” que nasce do amor de Cristo pelos
“seus”. Prestes a morrer, de passar deste mundo ao Pai, Jesus quer demonstrar a
medida plena do seu amor, despojando-se de tudo e doando o único bem que ainda lhe
restava, sua Mãe192.
A acolhida da mãe é uma das notas que caracterizam, agora e para
sempre, o verdadeiro discípulo de Cristo. A hora de tal acolhida – que
não é tanto uma indicação cronológica, mas momento teológico –
coincide com o cumprimento da hora de Jesus. A expressão “depois”,
com a qual inicia o versículo seguinte193, não parece uma simples
fórmula de transição, mas pretende sublinhar uma estreita ligação entre
aquilo que antecede e aquilo que segue: somente então “tudo estava
consumado”194. Estamos em um contexto extremamente solene e
decisivo, João 19, 25-27 se encontra no ápice da hora estabelecida pelo
Pai e como selo da missão salvífica de Jesus. Com o dom-revelação de
Maria, como mãe do discípulo amado, e com a sua acolhida se cumpre a
obra de Cristo195.
Quando um fiel passa diante da Imagem da Senhora Aparecida exposta no
Santuário, mesmo muitas vezes não tendo consciência, assume em sua vida o olhar do
Senhor. O olhar de Jesus, que estava na Cruz, recai fixo sobre Maria, que ao seu lado
tinha João, que simboliza cada um de nós. Se no Santuário, diante da sua Imagem,
temos a certeza de estar junto da Mãe, sabemos que o olhar de Jesus também recai
sobre nós. Junto da Mãe ele nos observa, contempla-nos, ama-nos. Somos os
discípulos predestinados, escolhidos, convidados, como João, a participar do projeto
salvífico da humanidade.
Sem dúvida alguma, voltando para casa, saindo do Santuário, DOMUS
MARIAE, cada fiel brasileiro leva consigo Maria no coração. Mas a leva também,
materialmente falando, representada na sua Imagem, que encontramos praticamente
191 Existem outros autores que defendem essa posição como R.SCHNACKENBURG, Il
Vangelo di Giovanni, Queriniana, Brescia, 1981 p. 452; cf. A.VALENTINI, Maria secondo le
Scritture, p. 321. 192 Cf. S.M.PERRELLA, Ecco tua Madre, p. 486. 193 Cf. Jo 19,28. 194 Jo 19,28. 195 A.VALENTINI, Maria secondo le Scritture, p. 323-324.
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em quase todos os lares católicos brasileiros. Através de sua Imagem, literalmente, o
fiel acolhe Maria, como fez João, entre os seus pertences pessoais.
Dessa forma, o culto a Nossa Senhora da Conceição Aparecida, que no início
se desenvolveu na casa dos pescadores, e que cresceu a ponto de ser necessária a
construção de um imenso Santuário, propaga-se e retorna às casas dos milhares de
devotos em meio ao povo brasileiro.
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O CONCEITO DE EXEGESE BÍBLICA NA TEOLOGIA
DOS PADRES DA IGREJA
Charles Lamartine Sousa Freitas 196
RESUMO
Inegavelmente, as Sagradas Escrituras constituem o fundamento da vida cristã e, por
isso, foram a base primeira da teologia dos Padres da Igreja. Esta centralidade bíblica,
todavia, não é uma novidade do cristianismo, na verdade é uma herança do
monoteísmo judaico, que já buscava uniformizar a doutrina bíblica com disciplina da
vida e com a liturgia. O que distingue o cristianismo do judaísmo é o modo de
interpretar a Escritura. Para os Santos Padres, a Escritura é sempre palavra de Deus e
essa deve ser compreendida na unidade, pois um único é o seu autor. O Antigo é
protótipo, preparação para o Novo, que em Cristo encontra o seu pleno cumprimento.
Sendo assim, em meio à apresentação da atual linha de estudo que divide o Cristo da
fé e o Cristo da história, faz-se necessário promover uma renovação na exegese,
através de uma leitura não só histórico-crítica, mas também canônico-espiritual da
Bíblia. Daí a importância de se retornar à leitura dos escritos patrísticos, uma vez que,
sem dúvida, seus autores souberam interpretar autenticamente o depósito da fé,
fecundando e fomentando uma reflexão sempre viva, capaz de nutrir a Igreja em todos
os tempos, no pensar a Cristo e a si mesma. Pensar as Sagradas Escrituras à luz da
reflexão patrística é admitir que as suas reflexões se fazem luz, como fonte perene na
promoção da atualização teológica, o que não implica no conteúdo da fé, mas sim
numa releitura, que ajuda ao homem de cada tempo a comunicá-la de modo mais
eficaz.
Palavras-chave: Sagradas Escrituras. Patrística. Exegese. Atualização Teológica.
ABSTRACT
The Holy Scriptures are, undeniably, the foundation of christian life, and so it was the
first basis of the theology of the Church Fathers. This biblical centrality, however, is
not a newness of christianity, it is actually a legacy of Jewish monotheism, which has
196 Mestre em Teologia Dogmática pela Pontifícia Universidade Gregoriana (Roma); Professor
de Cristologia e Diretor Geral da Faculdade Diocesana de Mossoró – FDM.
Revista Logos – v.1, n.1, jan./jun., 2016.
76
sought to unify the biblical doctrine with discipline of life and the liturgy. What
differentiates Christianity from Judaism is the way to interpret Scripture. For the Holy
Fathers, Scripture is always word of God and this must be understood in the unit as a
unique is its author. The Antigo is prototype, preparation for the new, that in Christ
finds its completion. Thus, through the presentation of the current line of study that
divides the Christ of faith and Christ of history, it is necessary to promote a renewal in
exegesis through a reading not only historical-critical, but also canonical-Spiritual
Bible. Hence the importance of returning the reading of the patristic writings, as
undoubtedly, its authors knew authentically interpreting the deposit of faith, fertilizing
and fomenting an ever living reflection, able to nourish the Church in every time. To
think Holy Scripture in light of the reflection patristic is to admit that their reflections
are made light, as perennial source in promoting theological upgrade, which does not
imply the content of faith, but instead a reinterpretation, which helps the man of every
time to communicate it more effectively.
Keywords: Holy Scriptures. Patristic. Exegesis. Theological update.
INTRODUÇÃO
É fundamentalmente sobre as bases da Sagrada Escritura que o cristianismo
recebe forma e corpo. Essa assume, portanto, uma verdadeira centralidade na
orientação e constituição do depósito da fé. A Bíblia é concebida pelo cristão em sua
unidade, na qual os livros antigo-testamentários constituem uma profecia que já
encontrou o seu pleno cumprimento na Pessoa de Jesus Cristo, o Verbo de Deus, que
consolidou a religião da Palavra, expressa não somente em escritos fixos, mas pela
Verdade sempre viva, que dEle mesmo emana.
De tal modo, sendo a Palavra o fundamento da vida cristã, é sobre o
procedimento da interpretação escriturística que se desenvolve a reflexão da sagrada
teologia, nos primeiros séculos do cristianismo. Os antigos autores cristãos, também
chamados Padres da Igreja, desempenharam um papel importantíssimo para que a
religião cristã chegasse a sua plena maturidade, sem deixar de lado as suas raízes.
Esses escritores patrísticos vendo em Cristo o Verbo encarnado, o ápice de toda
história, foram os maiores responsáveis por uma justa propagação da fé na sua
Pessoa197.
197 DE LUBAC, H. La Sacra Scrittura nella Tradizione. Brescia:Morcelliana, 1989, p.
13-15.
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Hoje, em meio à apresentação da atual linha de estudo entre o Cristo da fé e o
Cristo da história, o Papa Bento XVI retoma a centralidade da Sagrada Escritura, como
fundamentação a todo referimento dos eventos históricos concretos, nos quais se narra
o ingresso de Deus na história real por meio de Jesus. Ele, seguindo o espírito do
Vaticano II, aponta, com base na Dei Verbum 12, a necessidade de uma renovação na
exegese, através de uma leitura não só histórico-crítica, mas também canônico-
espiritual da Bíblia. Viu, portanto, nos Santos Padres, uma grande autoridade neste
campo, os quais souberam de um modo exemplar “ler os textos sagrados com o
mesmo Espírito com os quais foram escritos”, desenvolvendo uma verdadeira e
própria teologia198.
Neste estudo, que agora desenvolvemos, buscaremos seguir esta inspiração,
que nos conduz a um retornar às fontes patrísticas, como meio de fomentar uma
hermenêutica não só literal, mas também alegórica da Escritura. Ajudaram-nos de
guia, alguns autores contemporâneos que se dedicaram ao estudo da Sagrada Escritura
na Patrologia, mas de modo particular, nos serviremos de escritos dos próprios Padres
da Igreja199, buscando responder, a partir deles, em que consiste a Exegese Patrística.
Após delimitarmos o conceito, buscaremos aplicá-lo a uma perícope do ÊXODO 11:
1-10; 12: 21-34, evidenciando, assim, de modo preciso, aquilo que foi constatado.
1 - A EXEGESE PATRÍSTICA E O SEU CONCEITO
Como já acenamos sucintamente na introdução deste trabalho, o conceito de
exegese bíblica não apresenta uma distinção objetiva daquele de teologia na literatura
dos Padres da Igreja; ao contrário, estão intimamente relacionados, uma vez que estes
realizavam a sua teologia, fundamentalmente, a partir da leitura interpretativa da
Sagrada Escritura, sendo esta, portanto, o centro de toda sua argumentação teológica.
Para Henri de Lubac, a exegese dos Santos Padres correspondia a uma
necessidade própria do cristianismo nascente, em que a interpretação mística da
Escritura constitui um dos fenômenos mais notáveis da Igreja Primitiva. Importante,
não só para a formação do Dogma Cristão, mas para fixação permanente das bases do
seu pensamento. A exegese espiritual patrística não assume um nível suplementar, é
ela que ajuda a fundar a fé, ou ao menos traduzi-la, em modo não de adicionar um
198 RATZINGER, J. BENTO XVI.“Premessa” In: Gesù di Nazaret. Milano: Rizzoli, 2007, p.
14. 199As citações que utilizamos a partir de escritos (obras em italiano) dos próprios Padres da
Igreja foram traduzidas de forma livre, ou seja, de nossa responsabilidade.
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“mais” a esse depósito, mas de contribuir fundamentalmente na sua plena
constituição200.
É importante, nesse sentido, salientar que os primeiros Padres ou autores
cristãos se ocuparam da interpretação escriturística por finalidades polêmicas e
catequéticas e não exegéticas em sentido estreito, realizando a sua leitura da Bíblia na
própria ação pastoral e litúrgica. As controvérsias interpretativas da Escritura, nos
primeiros séculos, caracterizaram-se, sobretudo, no combate às fontes gnósticas,
judaicas e mitológicas. Somente a partir da segunda metade do século II e início do III
que começou uma tratativa exegética de modo mais concreto, com a ilustração
sistemática de várias partes dos textos sagrados. Sobretudo com a polêmica gnóstica, a
exegese cristã da Bíblia expande a sua ação e começa a definir normas mais
precisas201.
1.1 A Escola de Alexandria e Antioquia
O estudo bíblico patrístico não é caracterizado por um único procedimento
hermenêutico. A leitura escriturística dos Padres permite a observação de diferentes
tipos de interpretação, o que posteriormente será chamado de diversos métodos
exegéticos, que se identificarão, especificamente, com dois grandes centros teológicos
da antiguidade, conhecidos como escola de Alexandria e escola de Antioquia.
O método exegético alexandrino é assinalado essencialmente pelo apelo à
alegoria, à inteligência espiritual, ao valor simbólico dos números, animais e plantas,
por uma leitura espiritual e pelo influxo da filosofia platônica. Não podemos falar
dessa escola sem destacar a importância de Orígenes, o qual lhe deu uma maior
riqueza de interesse e o rendeu um método de estudo mais rigoroso. Apreçando,
sobretudo, uma hermenêutica alegórico-espiritual, mas não desprezando também a
literal, distingue três níveis de interpretação para cada passo da Escritura: literal,
espiritual (tipológico) e moral (psicológico). Vê-se aqui, o Antigo Testamento como
typos do Novo Testamento e este, por sua vez, como typos do Evangelho eterno.
Já o método antioqueno é marcado por uma leitura literal, histórica,
gramática, filológica e teórica da Escritura. Destacam-se aqui as figuras de Teodoro
Mopsuestia e Diodoro, os quais nutriam os interesses históricos e, declaradamente,
polêmicos no confronto com o alegorismo alexandrino e seus princípios
200DE LUBAC, H. La Sacra Scrittura nella Tradizione. Brescia: Morcelliana, 1989, p. 14. 201SIMONETTI, M.“Esegesi Patristica”. In: Dizionario Patristico e d’Antichità Cristiana. vol.
I. Milano: Marietti, 2006, p. 1212.
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hermenêuticos. Enquanto a primeira escola via o Antigo e Novo Testamento em
coligamento, Teodoro vê nas duas muito mais uma ruptura que uma continuidade202.
1.2 A relação entre o Antigo e Novo Testamento
Para a maioria dos Padres da Igreja, os dois Testamentos são irmãos,
existindo entre eles uma contínua conexão e relação. Estes constituem dois ícones, que
dão origem a dois povos estabelecidos por Deus. O Antigo Testamento é uma
“preparatio evangelica” ao Novo, o qual recebe esse nome, não só por ser o segundo
na ordem do tempo, mas porque ele jamais pode envelhecer. É o último, é a Nova
Aliança que não se repete e foi concluída para sempre.
Na encarnação de Cristo, a Escritura encontra a sua plena unidade. Assim,
quando o judeu renega a fé em Jesus, ele permanece limitado à Lei que se desfaz,
enquanto o cristão possui toda a unidade no seu princípio. Na tradição patrística, o
Verbo feito carne é o “Verbum abreviatum”, o qual contém todas as maravilhas
anunciadas pelos profetas. A palavra do Novo Testamento (Evangélica) é a Palavra
abreviada e perfeita, a qual tudo contém, pois se identifica com o próprio Jesus203.
Na leitura dos escritos patrísticos, é possível observar que é
predominantemente nítida essa visão entre os Padres. Como por exemplo, São Justino,
que em seu Diálogo com Trifão, destaca a profunda ligação entre as duas Alianças,
fazendo uma verdadeira releitura da Antiga à luz de Cristo. Santo Irineu, seguindo a
mesma direção, interpreta o Antigo Testamento em uma visão cristológica e trinitária,
afirmando que o verdadeiro Anúncio Apostólico é aquele que se fundamenta na
Verdade, que é o próprio Cristo, o qual cumpre em si tudo aquilo que anunciaram os
profetas204.
1.3 O sentido histórico-literal e alegórico-espiritual da Escritura
Os antigos autores cristãos desenvolvem a sua interpretação da Sagrada
Escritura, compreendendo-a em dois sentidos, literal e espiritual, correspondendo
estes, respectivamente, ao Antigo e Novo Testamento, os quais vivem entre si uma
contínua relação. Para se chegar à inteligência espiritual (sentido teológico-
dogmático) da Palavra de Deus, é necessário partir da letra, porém se deve ir além
dela, realizando uma verdadeira “expositio spiritualis”, chegando, portanto, a um
202Ibidem., 2006, p. 1213-1222. 203DE LUBAC, H. La Sacra Scrittura nella Tradizione. Brescia: Morcelliana, 1989, p. 178-179. 204IRENEO. Esposizione della Predicazione Apostolica. Com.1.
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sentido mais profundo e nobre de uma inteligência interior, jamais compreendido
plenamente.
Para alguns Padres, tais como Orígenes, uma das grandes dificuldades
interpretativas da Escritura, seja dos judeus, seja dos heréticos, se dá pelo limite de
não conseguir fazer uma leitura espiritual da Bíblia, a qual vem escutada somente em
um sentido literal. Para ele, existem alguns passos da Bíblia que é impossível
compreender em um sentido exclusivamente literal. Como por exemplo, a narração da
criação, da qual ninguém pode duvidar de que apresenta símbolos que indicam um
mistério por meios de fatos aparentes, mas que em realidade não aconteceram. Por
isso, os judeus não acreditam que a Escritura não declara algo mais do que o sentido
literal, observam a lei pela lei e não a lei pelo espírito205.
Também em seu comentário ao Cântico dos Cânticos, Orígenes expõe de
modo intenso a leitura em sentido alegórico e literal dos textos sagrados. Ele entende
que a interpretação literal adere à realidade material do texto sagrado. Já o método
alegórico busca descobrir o significado mais verdadeiro da Escritura: o sentido
pontualmente espiritual, daquele que o significado literal é imagem e símbolo. Quem
se limita ao sentido literal não pode jamais progredir no entendimento inteiro do texto.
Por outro lado, fica claro que somente partindo da letra se pode chegar ao espírito da
Escritura206.
É interessante o fato de que os Padres, mesmo utilizando muito o método
alegórico, não negam o sentido literal do texto Bíblico, ao contrário, valorizam-no.
Santo Agostinho, mestre da alegoria, nos mostra, por exemplo, em sua Homilia 49207(a
qual nos fala sobre a ressurreição de Lázaro, morto há quatro dias), que é possível
fazer uma interpretação alegórica sem negar o sentido histórico-literal do texto. Para
ele, esta quantidade de dias tem um sentido em si mesmo, mas pode também significar
tantas outras coisas. Esta ideia ele também apresenta em A Doutrina Cristã, quando
nos diz:
Cada disciplina tem por objeto ou coisas ou sinais, mas é através dos
sinais que se apreende as coisas. Estreitamente falando, eu dei o nome
de coisa a tudo aquilo que não vem usado para significar algo diverso de
si [...]. Por sinal, entendemos todas as coisas que se usam para significar
uma outra. Quanto aos sinais, existem alguns que não servem outra
coisa, se não para significarem: tais são as palavras. Portanto, todo sinal
é também alguma coisa, pois aquilo que não é uma coisa é nada. Não,
205Cf. ORIGENE. I Principi. Livro IV.§2, 9. 206 ORIGENE.“Prologo” in: Commento al Cantico dei Cantico. Roma: Città Nuova Editrice,
1976, p. 26. 207 Cf. AGOSTINO. Omelia 49 In: Commento al Vangelo di San Giovanni.§ 49, 12.
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porém, todas as coisas são sinais. Ninguém usa, de fato as palavras, se
não para significar alguma coisa208.
Percebemos que é característico da exegese escriturística patrística essa
relação entre letra e espírito, história e alegoria. O espírito não vem separado da
história literal, mas parte dela, vê o que nela está escondido. Esta age como serva, para
que a inteligência espiritual tire o seu véu. Na Escritura, tudo é espiritual e inteligível,
devendo, portanto, ser interpretada, contemplada analogamente. Tudo que nos fala a
Bíblia, realmente aconteceu, mas não é o fim em si mesmo, precisamos ver mediante
o uso das alegorias o que ainda está por acontecer209.
1.4 A Exegese Canônica e a Tipologia
Os Padres da Igreja reconhecem que na própria Escritura existe já uma
releitura de si mesma, na qual, por exemplo, Orígenes210 diz que no Deuteronômio
vem promulgado uma legislação mais clara dos textos precedentes e esta, por sua vez,
anuncia a promulgação do Evangelho, a segunda lei, autêntica e definitiva. Este ler a
escritura com a própria Escritura é o que é considerada a Exegese Canônica, tão
apreciada pelos antigos autores.
Esse método não é uma novidade patrística. Certamente, foram esses autores
que o difundiram amplamente. Mas o próprio Jesus utiliza passagens do Antigo
Testamento para o seu anúncio. Também Paulo e os seus seguidores reinterpretam
muitas passagens da Escritura em chave cristológica, onde em uma análise espiritual,
vê os episódios do antigo-testamentários como typos, modelo de antecipação de Cristo
e da sua Igreja.
Os escritores patrísticos conseguem ver uma profunda ligação entre os dois
Testamentos, não se limitando somente ao Evangelho, mas destacando a função
primária do Antigo Testamento na reflexão do cristianismo sobre si mesmo. Essa é
uma visão unitária, uma continuidade que faz possível a Exegese Canônica. A Palavra
de Deus é sempre viva e eficaz, obtendo o seu real cumprimento e pleno significado,
somente mediante a transformação que opera em quem a recebe.
Irineu de Lião, em sua Exposição da Pregação Apostólica, faz uma análise
claramente tipológica. Seguindo a cristologia paulina, o Santo vê em Cristo o novo
Adão e em Maria a nova Eva. Ele entende que Jesus é aquele que vem redimir o
mundo destruído pelo pecado de Adão. É o novo Adão. E se por meio do antigo, o
208 Cf. AGOSTINO. A Doutrina Cristã. Livro I. §1, 2. 209 DE LUBAC, H. La Sacra Scrittura nella Tradizione. Brescia: Morcelliana, 1989, p. 97. 210 Cf. ORIGENE.I Principi. Livro I. §1, 4.
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mundo conheceu a morte, por meio do Verbo Eterno, conhece a plena vida em Deus
(cristológia paulina), assim como Maria, que sendo da estirpe de Davi e Abraão, é a
nova Eva, na qual vem dissolvida e destruída a desobediência virginal pela obra da
virginal obediência211.
1.5 O caráter divino das escrituras e o princípio de não contradição
Outra preocupação dos Padres consistia em defender o princípio da
inspiração divina da Sagrada Escritura. Orígenes, em sua obra Os Princípios, tem
como primeira preocupação defender essa verdade. Já no primeiro livro do escrito, ele
nos coloca os motivos que nos impulsionam a dizer que a Escritura é toda inspirada
por Deus, sendo Ele o único autor. Na sua compreensão, são nas próprias palavras
bíblicas que encontramos a exposição de tais argumentos. Segundo ele, Jesus é a
maior certeza e garantia da autoridade divina da Bíblia, pois as palavras ali contidas
anunciam a sua vinda com potência e majestade.
Demonstrando brevemente a divindade de Cristo e acenando as
profecias sobre Ele, nós juntamente demonstramos que são inspiradas
por Deus as Escrituras que profetizam Ele. As palavras que anunciam a
sua vinda e o seu ensinamento, pronunciadas com potência e autoridade
e que por isto, conquistaram a flor das flores dos povos. É necessário,
porém, reconhecer que o caráter divino dos escritos proféticos e o
significado espiritual da lei de Moisés são revelados com a vinda de
Cristo. De fato, antes dessa, não era possível ter argumentos evidentes
sobre a inspiração do velho testamento. Com a vinda de Cristo, se
excluem as dúvidas do caráter divino da lei e dos profetas como escritos
da graça celeste [...] A luz contida na lei de Moisés, coberta com um
véu, resplandece em Cristo, pois se tira o véu, e se pode súbito ter
consciência dos bens de qual a expressão literal a mantinha sobre e com
a vinda do Verbo chega a sua perfeição212.
Também Santo Irineu, em Contra as heresias, atesta que a Sagrada Escritura,
de modo particular as parábolas de Cristo, demonstram que um só Deus é o autor dos
dois Testamentos. Ele interpreta a parábola dos “vinhateiros homicidas” (Mt 21, 33-
43), mostrando que existe um só patrão de casa, ou seja, um só Deus, que fez todas as
coisas, mas existem diversos tipos de colonos, alguns bons, outros arrogantes e
homicidas. Deus plantou a vinha da humanidade, primeiro por meio da plasmação de
Adão e da eleição dos padres, depois a entregou aos colonos por meio da legislação
211Cf. IRENEO. Esposizione della Predicazione Apostolica. Com. 38. 212Cf. ORIGENE.I Principi. Livro IV. §1, 6.
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mosaica para ser cultivada, vos construiu uma torre, ou seja, escolheu Jerusalém.
Constituiu os profetas como anunciadores do reino da justiça. Mas, mesmo assim,
existiam aqueles que não acreditaram e, por isso, mandou o seu Filho Jesus Cristo,
que os maus colonos mataram, mas Ele venceu a morte e por ação do Espírito Santo
impulsionou a Igreja que é esplendente sobre a antiga torre213.
Sendo, pois, a Escritura obra de Deus, não pode existir nela contradições. Ele
é perfeito e perfeitas também são as suas obras. Aprendemos da Escritura que Deus
tem o primado sobre todas as coisas, não podemos, portanto, limitá-lo às nossas
próprias opiniões, mas devemos em obediência de fé acolher aquilo que nos foi
comunicado. A nossa inteligência mesmo sendo espiritual é limitada e é somente pela
graça de Deus, a nós dada, que podemos conhecer a sua revelação.
1.6 O limite humano na compreensão da Escritura
Em Contra as heresias, Irineu nos coloca, ainda, que o homem, mesmo
havendo a capacidade inteligível, não pode compreender todos os mistérios de Deus
que é transcendente, divino, assim como não pode compreender e nem exprimir tudo,
pois a língua sendo algo material, apresenta as suas dificuldades e limites. Alguns
soberbos de modo irracional, dizem de conhecer o mistério infalível de Deus, quando
o Senhor, o Filho mesmo de Deus, admitiu que somente o Pai conhece o dia e a hora
do seu juízo. Se nem mesmo o Filho se envergonhou em afirmar que somente o Pai
conhece aquele dia, nem mesmo nós devemos nos envergonhar de reservar a Deus as
questões que estão acima da nossa capacidade214.
Para Santo Agostinho, muitos dos que leem os textos sagrados, encontram
muitas vezes obscuridade e ambiguidade em muitas passagens, e tomam às vezes uma
coisa pela outra. Talvez tudo isso acontece por disposição divina, para que fosse
domada a soberba humana. Aqueles que querem se dedicar ao estudo da Bíblia,
devem passar por um processo de dupla conversão: primeiro, mediante o temor a
Deus, conhecendo a sua vontade; depois, devem se tornar humildes e respeitosos e
jamais contradizer a divina Escritura, seja que compreendamos ou não, devemos ter
em consideração que tudo que ali está escrito é superior e mais verdadeiro, mesmo
que escondido. Para compreensão da Escritura é fundamental o auxílio do Espírito
Santo, que após nos ajudar a superar o apego às forças humanas, nos doa os seus dons
213Cf. IRENEO.Contro Le eresie. Livro III, §36, 1-3. 214Cf. IRENEO.Contro Le eresie. Livro II. §28, 1-6.
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e nos faz aderir ao gosto pelas coisas eternas, aproximando-nos da compreensão da
Palavra em uma inteligente simplicidade215.
1.7 A Escritura e a Edificação da Caridade
Santo Agostinho entende que a finalidade da Sagrada Escritura é a edificação
da caridade. Segundo ele, para uma justa exposição da Palavra, é necessário fé,
esperança e caridade, sendo que o preceito é a caridade originada do coração bom, da
consciência boa e da fé segura. É necessário colocar-se com espírito humilde, para
buscar compreender a essência do amor cristão presente em cada parte da Escritura,
que se revela na experiência do amor a Deus e pelo Próximo. Eis, portanto, o coração
da Santa Bíblia. Amando a Deus, devemos ser capazes de amar o nosso próximo e
amando aos nossos semelhantes, estaremos em grau de amar verdadeiramente a nós
mesmos216.
1.8 Os livros canônicos
Para Agostinho, aquele que lê a Bíblia na qualidade de investigador, deve
estar atento a quais são as escrituras canônicas, que se elencam de modo particular
sobre as seguintes condições de autoridade: primeiro, deve-se preferir os livros aceitos
por todas as Igrejas Católicas, àqueles que não são; entre aqueles que não são aceitos
por todos, deve-se preferir os das Igrejas mais numerosas e de maior autoridade em
relação às menores. Agostinho escreve o cânone bíblico completo aceito por ele217.
1.9 A importância do grego e do hebraico no estudo da Bíblia
Possuidor de um espírito filológico de sensibilidade elevada, Agostinho
ressalta que o bom entendimento pode levar em um espírito de humildade a uma boa
comunicação da verdade bíblica. Um ponto importante para o exegeta é o
conhecimento de outras línguas além do latim (língua comum àquele tempo),
particularmente, o grego e o hebraico. Assim, pode-se recorrer aos textos anteriores,
caso a qualidade da tradução latina, rica em variantes, apresente dúvidas, rompendo os
erros no confronto entre o grego-latim. Muitas expressões e até mesmo frases inteiras,
podem perder o seu sentido real, caso não seja bem traduzida. Reforça-se, portanto, a
215Cf. AGOSTINO. A Doutrina Cristã. Livro II. §6, 7. 216 Ibidem. Livro I.§30, 33. 217 Ibidem. Livro II.§8,12-13.
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necessidade de conhecer as línguas originais. Entre as antigas traduções, o Bispo de
Hipona destaca a Septuaginta como uma grande autoridade. Para ele, aqueles
tradutores, das Igrejas mais competentes, traduziram a Escritura, em virtude tal e tanta
presença do Espírito Santo que uma foi a voz daqueles homens, mesmo sendo
numerosos218.
1.10 Cristo e a Igreja na Escritura
Para a maioria dos autores patrísticos é, sobretudo, Cristo e a Igreja que vêm
significados em tantas passagens da Sagrada Escritura. De um modo particular, eles
veem, no Antigo Testamento, muitas figuras, imagens, typos, que representam ou
prefiguram estes. Segundo Agostinho, numerosos são os textos obscuros que se
encontram na Bíblia e falam da pessoa do Verbo, o Filho encarnado de Deus.
Por quanto temos podido recavar as sagradas páginas, Cristo é
designado segundo três modalidades quando se fala dele na Lei e nos
Profetas, nas cartas dos Apóstolos e nas narrações históricas que
conhecemos dos Evangelhos. Em um primeiro modo quando se fala dele
como Deus, ou seja, segundo a divindade co-eterna e igual a do Pai
antes da encarnação. Em um segundo modo, se fala dele como Verbo
encarnado, verdadeiro Deus e verdadeiro Homem, mediador e capo da
Igreja. E em terceiro jeito, o designa como o Christus Totus in
plenitudine Ecclesiae, ou seja, Cabeça e Corpo em profunda unidade,
configurado sobre o modelo de um homem perfeito, de qual homem
perfeito, nos somos os membros219.
Agostinho apresenta, particularmente, o terceiro modo como Cristo vem
referido nos livros sagrados, quando se fala do Cristo Total considerado também a
Igreja, ou seja, quando se fala da Cabeça e Corpo. Estes, de fato, formam um único
Cristo – o que não quer dizer que Cristo sem o Corpo seja uma pessoa incompleta,
mas que Ele se designou em ser uma realidade completa também junto conosco; Ele
que mesmo sem nós é completo desde a eternidade. É importante, porém, salientar que
quando a Bíblia faz referimento aos sofrimentos faz em relação ao seu Corpo e não a
Ele que está no céu. Tantas passagens da Escritura nos ensinam essa doutrina do
Cristo Total, como quando Paulo expõe lucidamente as palavras do Gênesis, em
relação ao marido e à mulher: os dois serão uma só carne220, e entende isto como um
Grande Mistério, fazendo referimento a Cristo e à Igreja. Assim, a ideia de Cabeça e
218 Ibidem., Livro II. §11, 16. 219Cf. AGOSTINO.Discorsi Nuovi 22. Livro II. §1. 220 1 Cor 6,16.
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Corpo pode ser entendida em uma relação de íntima união da qual Cristo é o Esposo e
a Igreja é a sua Esposa. Devemos, portanto, ser um Corpo digno dEle, uma esposa
digna dEle221.
2 APLICAÇÃO DA EXEGESE PATRÍSTICA AO TEXTO ÊXODO 11: 1-10;
12: 21-34
Tomando como fundamentação os pontos que caracterizam a exegese
patrística, os quais elencamos no capítulo anterior, buscaremos neste segundo
momento aplicá-los a uma perícope do livro do Êxodo. Esta faz referimento,
particularmente, à décima praga que Javé faz cair sobre o povo do Egito, por causa da
dureza do coração do faraó, que insistia em manter o povo hebraico prisioneiro na
escravidão. Para facilitar a nossa leitura, vejamos o que diz o próprio texto bíblico:
1 E o Senhor disse a Moisés: Ainda uma praga trarei sobre Faraó e sobre
o Egito; depois vos deixará ir daqui; e, quando vos deixar ir totalmente,
a toda a pressa vos lançará daqui.2 Fala agora aos ouvidos do povo, que
cada homem peça ao seu vizinho, e cada mulher à sua vizinha, jóias de
prata e jóias de ouro.3 E o Senhor deu ao povo graça aos olhos dos
egípcios; também o homem Moisés era mui grande na terra do Egito,
aos olhos dos servos de Faraó e aos olhos do povo.4 Disse mais Moisés:
Assim o Senhor tem dito: Å meia noite eu sairei pelo meio do Egito;5 E
todo o primogênito na terra do Egito morrerá, desde o primogênito de
Faraó, que haveria de assentar-se sobre o seu trono, até ao primogênito
da serva que está detrás da mó, e todo o primogênito dos animais.6 E
haverá grande clamor em toda a terra do Egito, como nunca houve
semelhante e nunca haverá;7 Mas entre todos os filhos de Israel nem
mesmo um cão moverá a sua língua, desde os homens até aos animais,
para que saibais que o Senhor fez diferença entre os egípcios e os
israelitas.8 Então todos estes teus servos descerão a mim, e se inclinarão
diante de mim, dizendo: Sai tu e todo o povo que te segue as pisadas; e
depois eu sairei. E saiu da presença de Faraó ardendo em ira.9 O Senhor
dissera a Moisés: Faraó não vos ouvirá, para que as minhas maravilhas
se multipliquem na terra do Egito.10 E Moisés e Arão fizeram todas estas
maravilhas diante de Faraó; mas o Senhor endureceu o coração de Faraó,
que não deixou ir os filhos de Israel da sua terra [...]21 Chamou pois
Moisés a todos os anciãos de Israel e disse-lhes: Escolhei e tomai vós
cordeiros para vossas famílias e sacrificai a páscoa.22 Então tomai um
molho de hissopo e molhai-o no sangue que estiver na bacia, e passai-o
na verga da porta e em ambas as ombreiras, do sangue que estiver na
bacia; porém nenhum de vós saia da porta da sua casa até à manhã.23
221Cf. AGOSTINO. Discorsi Nuovi 22. Livro XX. §12.
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Porque o Senhor passará para ferir aos egípcios, porém quando vir o
sangue na verga da porta, e em ambas as ombreiras, o Senhor passará
aquela porta e não deixará o destruidor entrar em vossas casas, para vos
ferir.24 Portanto guardai isto por estatuto para vós e para vossos filhos
para sempre.25 E acontecerá que, quando entrardes na terra que o
SENHOR vos dará, como tem dito, guardareis este culto.26 E acontecerá
que, quando vossos filhos vos disserem: Que culto é este?27 Então direis:
Este é o sacrifício da páscoa ao Senhor, que passou as casas dos filhos
de Israel no Egito, quando feriu aos egípcios, e livrou as nossas casas.
Então o povo inclinou-se, e adorou.28 E foram os filhos de Israel, e
fizeram isso como o Senhor ordenara a Moisés e a Arão, assim
fizeram.29 E aconteceu, à meia noite, que o Senhor feriu a todos os
primogênitos na terra do Egito, desde o primogênito de Faraó, que se
sentava em seu trono, até ao primogênito do cativo que estava no cárcere
e todos os primogênitos dos animais.30 E Faraó levantou-se de noite, ele
e todos os seus servos e todos os egípcios; e havia grande clamor no
Egito, porque não havia casa em que não houvesse um morto.31 Então
chamou a Moisés e a Arão de noite, e disse: Levantai-vos, saí do meio
do meu povo, tanto vós como os filhos de Israel; e ide, servi ao Senhor,
como tendes dito.32 Levai também convosco vossas ovelhas e vossas
vacas, como tendes dito; e ide, e abençoai-me também a mim.33 E os
egípcios apertavam ao povo, apressando-se para lançá-los da terra;
porque diziam: Todos seremos mortos.34 E o povo tomou a sua massa,
antes que levedasse, e as suas amassadeiras atadas em suas roupas sobre
seus ombros222.
Dentre os Padres da Igreja que fazem uma leitura interpretativa desse texto,
Santo Agostinho é aquele que apresenta o mais amplo comentário. No Discurso 8, o
hiponense faz uma comparação entre os dez mandamentos e as dez pragas do Egito. Já
ao início de seu sermão, ele parte do sentido literal do texto, dizendo que as pragas
materialmente aconteceram, foram reais como lemos. Porém, segundo seu
entendimento, deve-se ir além da letra, para se chegar ao sentido espiritual destes
acontecimentos, pois estas coisas são sombras daquelas que deveriam acontecer. Igual
pensamento, o Santo tem em relação aos dez mandamentos, que para ele, aqueles que
os despreza e não os observa, sofrem espiritualmente aquilo que os egipicianos
sofreram fisicamente. É nítido aqui, um dos princípios da exegese patrística, a
valorização do sentido literal do texto, ao mesmo tempo em que chama a atenção para
a busca do sentido alegórico-espiritual do mesmo. Percebe-se também, que em sua
didática interpretativa, o autor usa a Escritura para explicar a própria Escritura, vemos,
portanto, fortes sinais de uma exegese canônica223.
222 ÊXODO 11: 1-10; 12: 21-34. 223Cf. AGOSTINO. Discorso 8. §1, 2.
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Em Locuções do Êxodo224, Agostinho busca evitar errôneas compreensões do
texto, quando, por exemplo, pensa a ordem que dá Deus ao povo de espoliar o povo
egípcio, pedindo prata, ouro e vestidos. Segundo o Santo, ninguém deve tomar isto
como exemplo para espoliar o próximo desta maneira. Os israelitas não cometeram
um furto, mas prestaram um serviço a Deus, obedecendo ao seu designo. O ouro são
os seus sábios, a prata os seus oradores, as vestes a variedades de suas línguas
(interpretação alegórica). Gregório Nacianzo vê neste versículo um sentido mais
espiritual. Para ele, ao cumprir a ordem de Deus, os israelitas estavam abandonando os
falsos deuses, para observar o que dizia Moises como enviado de Deus. O ouro e as
outras coisas representavam as coisas boas, os tesouros espirituais e os bons
conselhos.
Orígenes, em seu Comentário ao Evangelho de Mateus, relaciona o versículo
3 (que fala da grandeza de Moisés) com o contexto evangélico, onde os discípulos
queriam saber de Jesus, quem era o maior no reino dos céus e o mestre busca explicar.
Para o comentador, muitos foram grandes na Escritura, mas ninguém seguramente é
maior do que Cristo Salvador. Dentre as figuras do Antigo Testamento, Moisés é um
dos mais invocados como prefiguração de Cristo. Vemos no comentário de Orígenes,
além da alegoria, a relação entre Antigo e Novo Testamento, assim como, a leitura da
Bíblia com a Bíblia, o Êxodo à luz do Evangelho de Mateus225.
No versículo 5 (que fala da morte de todos os primogênitos), muitos
erroneamente veem a maldade de Deus. Para Agostinho, o primogênito tem em nós a
imagem da graça de Deus: o novo nascido é o primeiro nascido. Entre todos os
nascidos do nosso coração, a primogenidade é da fé. Todas as obras boas são filhos
espirituais, mas por primeiro nasce a fé226. Isidoro de Servilha vê, na morte dos
primogênitos, a destruição da tirania e do erro, como também dos fundadores das
falsas religiões. Cristo é aquele que revela a verdade única e definitiva, apagando
todos os erros.
João Crisóstomo vê em Ex 12, 21-22, uma prefiguração explícita do
sacrifício do Cristo. Ele é o cordeiro imolado e é o seu sangue que nos salva. No
versículo 22, quando fala de molhar o hissopo no sangue, Ambrósio interpreta como a
prefiguração do batismo, que purifica e nos unge com o Espírito Santo. Aquele que se
batiza, resta limpo segundo a Lei e o Evangelho. A lei porque Moisés sinalava o
sangue do cordeiro com hissopo e segundo o Evangelho, porque os vestidos de Cristo
eram límpidos como a neve quando se mostrou na glória da ressurreição. Para
224Cf. AGOSTINO. Locuzione e questione sull’ ettateuco.§14, 1. 225Cf. ORIGENE.Commento al Vangelo di Matteo/2.Livro. XIII. §15, 16. 226Cf. AGOSTINO.Discorso 8.§13.
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Agostinho, a erva de hissopo usada na celebração daquele tempo é imagem em sobra.
Esta erva é suave e penetrante, pois é raiz da profundidade revelada na cruz de nosso
Senhor Jesus. O Batismo é o sacramento que nos faz filhos no Filho, é a nossa porta
de entrada para Igreja. Para muitos padres é de Cristo e da Igreja que falam em muitas
passagens da Bíblia, às vezes, de modo escondido.
CONCLUSÃO
A leitura dos escritos patrísticos representa, sem dúvida, um retorno aos
arcanos da doutrina cristã. Seus autores souberam interpretar autenticamente o
depósito da fé, fecundando e fomentando uma reflexão sempre viva, capaz de nutrir a
Igreja em todos os tempos, no pensar a Cristo e a si mesma. Como vimos em todo este
trabalho, a teologia dos Santos Padres é essencialmente escriturística; eles foram
capazes de ler os textos Sagrados com o mesmo Espírito que foram inspirados,
expondo uma doutrina cristã que se confunde caracteristicamente com a hermenêutica
Bíblica.
Esta centralidade Bíblica, na vida religiosa, não se constitui em uma novidade
do cristianismo, na verdade é uma herança do monoteísmo judaico, que já buscava
uniformizar a doutrina bíblica com disciplina da vida e com a liturgia. O que
distingue, porém, o cristianismo do judaísmo é o modo de interpretar a Escritura,
particularmente, no que diz respeito ao Antigo Testamento. O judeu vê nele a espera,
o messias. Já o cristão, encontra na encarnação de Cristo o seu pleno cumprimento.
Surgem, assim, as primeiras polêmicas interpretativas, praticamente, desde o início do
cristianismo. Já em São Paulo e seus seguidores encontramos essa reinterpretação dos
textos sagrados em chave cristológica, que, em uma análise espiritual, vê os episódios
antigo-testamentários como uma antecipação e símbolo de Cristo e da Igreja227.
Para os Santos Padres, a Escritura é sempre palavra de Deus e essa deve ser
compreendida na unidade, pois um único é o seu autor. Os dois testamentos
constituem dois ícones, que fundam e orientam dois povos, regulamento a relação de
Deus com os homens. Estes se apresentam em uma profunda conexão, tendo o
segundo origem no primeiro, sem renegá-lo, nem contradizê-lo. O Antigo é modelo,
protótipo, preparação para o Novo, que em Cristo encontra o seu pleno cumprimento,
o que representa para os Padres o Kaíros228 único e definitivo. Nessa mesma direção se
dá a compreensão da Bíblia em dois sentidos, literal (o sentido real do texto) e o
227SIMONETTI, M.“Esegesi Patristica” In: Dizionario Patristico e d’Antichità Cristiana.Vol.
I.Milano: Marietti, 2006, p. 1214. 228Kaíros = Tempo de graça.
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espiritual (sentido mais profundo e nobre da inteligência interior do texto), os quais
correspondem, respectivamente, ao Antigo e Novo Testamento.
Diante de tudo que vimos, percebemos que o contato com os textos
patrísticos, em uma época, na qual a busca do conhecimento se fundamenta cada vez
em métodos humanos e técnicas científicas na verificação dos dados, nos conduz, sem
dúvida, a um novo olhar sobre a Sagrada Escritura. Os Santos Padres, seguramente,
não dispunham dos artifícios metodológicos que temos hoje, mas deixaram-se mover,
sem dúvida, pelo Espírito vivificador, tornando-se reais intérpretes do conteúdo
verdadeiro da fé, ajudando o cristianismo a chegar a sua plena maturidade.
As suas reflexões se fazem luz, como fonte perene na promoção da
atualização teológica, o que não implica no conteúdo da fé, mas sim numa releitura,
que ajuda ao homem de cada tempo a comunicá-la de modo mais eficaz. O retorno aos
Padres significa abraçá-los, conhecê-los, entendê-los, mas não exagerar
excessivamente, esquecendo as ricas reflexões posteriores, que certamente também os
tiveram por base. A eternidade se desenvolve no tempo, no qual a revelação vai
sempre enriquecendo cada cultura, sem jamais necessitar de ser enriquecida.
REFERÊNCIAS
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______. Discorso Dolbeau 22 in Discorsi Nuovi XXXV/2. Roma:Città Nuova Editrice,
2002.
______. Discorso 8 in Opere di Santo Agostino. Roma: Città Nuova Editrice, 1991.
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DE LUBAC, H. La Sacra Scrittura nella Tradizione. Brescia: Morcelliana, 1989.
IRENEO. Contro Le eresie e gli altri scritti. A cura di BELLINI, E. Milano: Jaca
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RATZINGER, J. BENTO XVI. “Premessa”. In: Gesù di Nazaret. Milano: Rizzoli,
2007.
SIMONETTI, M. “Esegesi Patristica”. In.: Dizionario Patristico e d’Antichità
Cristiana. Vol. I. Milano: Marietti, 2006.
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______. I Principi. Milano: Jaca Book, 1979.
______. “Prologo”. In.: Commento al Cantico dei Cantico. Roma: Città Nuova
Editrice, 1976.
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O MINISTRO DO SACRAMENTO DA ORDEM, EXCLUSIVIDADE
DO BISPO
Frederico Gurgel Câmara229
RESUMO
É objetivo principal deste trabalho a exposição de fatos, conceitos chaves e definições
magisteriais que possam afiançar a resposta eclesiástica às nossas perguntas iniciais: porque
apenas o bispo pode ordenar presbíteros e diáconos? Pode o presbítero ser um ministro
extraordinário do sacramento da Ordem? Fixar-no-ei, todavia, na busca de argumentos para
responder a primeira questão. Desenvolverei este a partir de três âmbitos: primeiro, uma breve
exposição do que constitui o sacerdócio no grau do episcopado e, em especial, a temática do
sacerdócio pleno. Posteriormente, apresento alguns aspectos dos documentos do magistério que
rezam sobre a plenitude do sacerdócio e, por fim, delinearei a figura do bispo como
administrador da graça do supremo sacerdócio e ministro ordinário do sacramento da Ordem.
Através desses três pontos, busco, de maneira breve, expor as ideias e respostas do magistério
católico sobre a pergunta anteriormente exposta.
Palavras-chave: Sacramento. Ordem. Episcopado. Sacerdócio.
ABSTRACT
As the objective of this study, the exposure of facts, key concepts and magisterial definitions
that may secure the ecclesiastical answer to our initial questions: why only the bishop can
ordain priests and deacons? The priest can be an extraordinary minister of the sacrament of
Orders? He will focus, however, in finding arguments to answer the first question. He will
develop this from three areas: first, a brief exposure of what constitutes the priesthood in the
degree of episcopate and, in the theme of full-priesthood. Later, we will present some aspects of
the documents of the magisterium, which pray about the fullness of the priesthood and finally
delineate the image of the bishop as steward of the grace of supreme priesthood and ordinary
minister of the sacrament of holy Orders. Through these three points, he will seek to briefly,
expose the ideas and answers of catholic teaching of the questions previously exposed.
Keywords: Sacrament. Order. Episcopate. Priesthood.
229 Mestre em Teologia Dogmática pelo Ateneo Pontifício Regina Apostolorum.
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INTRODUÇÃO
Ao nos oferecer uma descrição do que é a Igreja particular, o decreto do
Concílio Vaticano II Christus Dominus a apresenta como comunidade de fiéis
confiada ao cuidado pastoral do bispo “cum cooperatione presbyterii”230. É verdadeiro
o fato de que há entre o bispo e os presbíteros uma communio sacramentalis, em
virtude do sacerdócio ministerial ou hierárquico, que é participação do único
sacerdócio de Cristo, embora em grau diverso, e em virtude do único ministério
eclesial ordenado e da única missão apostólica. Segundo a Pastores Greges231:
Durante a solene Oração de Ordenação, o Bispo ordenante principal,
depois de ter invocado a efusão do Espírito que rege e guia, diz estas
palavras referidas jáno antigo texto da Tradição Apostólica: «Pai santo,
que conheceis os corações, dai a este vosso servo, por Vós eleito para o
Episcopado, que apascente o vosso povo santo, exerça de modo
irrepreensível diante de Vós o sumo sacerdócio»232. Deste modo,
continua a ter cumprimento a vontade do Senhor Jesus, o Pastor eterno
que enviou os Apóstolos, como Ele mesmo tinha sido enviado pelo Pai
(Cf. Jo 20, 21), e quis que os sucessores deles, os Bispos, fossem
pastores na sua Igreja até ao fim dos tempos.
Nos primórdios da cristandade, ou seja, no tempo em que foi redigido o Novo
Testamento, apenas os Apóstolos conferiam o poder da Ordem àqueles que eram
eleitos para a ordem dos diáconos (Cf. At 6,6), ordem dos presbíteros (Cf. At 14,22;
13,3) ou para a ordem episcopal (Cf. 1Tm 4,14; 2Tm 1,6).
Já no início do terceiro século, Santo Hipólito declara que um simples
sacerdote não pode constituir a outrem, como pertencentes ao estado clerical (Cf.
Traditio Apostolica –versão latina, DS 10). No mesmo período, o documento litúrgico
Didascalia Siriaca, proveniente do oriente, declarava que “um bispo deve ser
ordenado por três bispos, o presbítero e o diácono por um bispo assistido pelo clero;
porém nem o presbítero nem o diácono podem elevar um leigo ao estado clerical”233.
Santo Epifânio, no século IV, refutou os erros de Ário de Sebaste que sugeria que o
sacerdote gozasse da mesma dignidade do bispo. Usou como argumentação principal
o fato de que o bispo, apenas ele, possui o poder de conferir as ordens.
230 Cf. JOÃO PAULO II, Pastores greges, 11. 231 Cf. JOÃO PAULO II, Pastores greges, 1 232 Cf. Pontifical Romano, Rito da Ordenação do Bispo: Oração de Ordenação. 233 Cf. Didascalia et Costitutiones Apostolorum Siriaca III. In: TREVIJANO R. Patrologia: serie
Manuales de Teología. 2004, p. 149.
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Na Idade Média, o Papa Bonifácio IX, através das Bulas Sacrae religiones234
(1400) e Apostolicae Sedis235 (1403) concedeu ao Abade do mosteiro de Saint Osyth
no Essex, que não era bispo, o privilégio de conferir, sejam as ordens menores ou
maiores, aos membros da sua comunidade monástica. Como vemos, são duas bulas. A
primeira outorga ao abade o privilégio, até então desconhecido, de conferir as ordens
maiores, inclusive o presbiterato. A segunda, três anos depois, por solicitação do bispo
londrinho Roberto Braybrook, revoga este privilégio.
Em 1427, o Papa Martinho V, através da Bula Gerentes ad vos236, concede
privilégios iguais aos concedidos ao Abade de Saint Osyth, ao abade do mosteiro
cisterciense de Altzelle, na Saxônia, por cinco anos.
Papa Inocêncio VIII, pela Bula Exposcit tuae devotionis237, de 9 de abril de
1489, concede ao abade do mosteiro cisterciense de Citeaux, João de Cirey, e aos
quatro mais importantes mosteiros afiliados (La Ferté, Pontigny, Clairvaux e
Marimond) o privilégio de administrar o sacramento da Ordem quanto ao
subdiaconato e ao diaconato. Os cistercienses usufruíram desses privilégios até o fim
do século XVIII.
Em consequência dessas bulas de Bonifácio IX, põe-se a questão se o
presbítero pode ser o ministro extraordinário da ordenação presbiteral, assim como
comumente se aceita em relação ao sacramento do Crisma. A praxe romana parece
confirmar essa possibilidade através das apresentadas bulas.
Convém lembrar que durante muito tempo foi discutida a sacramentalidade
da consagração episcopal. O Concílio Vaticano II ensina que a consagração episcopal
dá a plenitude do sacramento da Ordem238; porém não enfrentou, todavia, o problema
que aqui colocamos. É de relevância o anatematismo tridentino da sessão 23, cânone
7. A autenticidade das bulas apresentadas dificilmente podem ser colocadas em
questão, já que subsiste o seu registro no Arquivo Vaticano.
Diante dos aspectos acima citados, apresentamos como objetivo principal
deste trabalho a exposição de fatos, conceitos chaves e definições magisteriais que
possam afiançar a resposta eclesiástica às nossas perguntas iniciais: porque apenas o
bispo pode ordenar presbíteros e diáconos? Pode o presbítero ser um ministro
extraordinário do sacramento da Ordem? Fixar-nos-emos, todavia, na busca de
argumentos para responder a primeira questão.
234 Cf. BONIFACIO IX, Bula Sacrae religiones, DS 1145. 235 Cf. BONIFACIO IX, Bula Apostolicae Sedis, DS 1146. 236 Cf. MARTINHO V, BulaGerentes ad vos, DS 1290. 237 Cf. INOCÊNCIO VIII, Bula Exposcit tuae devotionis, DS 1435. 238 Cf.CONCÍLIO VATICANO II, Lumen gentium, 21.
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Desenvolveremos este a partir de três âmbitos: primeiro, uma breve
exposição do que constitui o sacerdócio no grau do episcopado e, em especial, a
temática do sacerdócio pleno. Posteriormente, apresentaremos alguns aspectos dos
documentos do magistério que rezam sobre a plenitude do sacerdócio e, por fim,
delinearemos a figura do bispo como administrador da graça do supremo sacerdócio e
ministro ordinário do sacramento da Ordem.
Através desses três pontos buscaremos, de maneira breve, expor as idéias e
respostas do magistério católico sobre a pergunta anteriormente exposta.
1 - DO SACERDÓCIO MINISTERIAL
1.1 Antigo Testamento: prefiguração do Supremo Sacerdócio de Cristo no
sacerdócio Levítico e no sacerdócio de Melquisedec
Segundo Ex 19,6 e Is 61,6 o povo de Israel foi eleito para ser um “reino de
sacerdotes e uma nação santa”. Esta eleição é marcada com a Aliança entre Deus e o
povo, que resulta em uma comunhão com Deus. Dentre este povo Eleito existiam,
como sabemos, doze tribos. A Tribo dos Levitas foi a escolhida por Deus para exercer
o serviço litúrgico, fato este que, segundo a Oração Consecratória do Rito de
ordenação dos Diáconos, é tido pela Igreja como um sinal prefigurativo do ministério
diaconal.
Em Gn 14,18 “Melquisedec, Rei de Salém, trouxe pão e vinho, ele era
sacerdote do Altíssimo”. Os sinais prefigurativos do perfeito sacerdócio, ou seja, do
Sacerdócio de Cristo, são encontrados a partir da convocação de alguns homens a
exercitarem de um modo especial o sacerdócio. Na opinião de Haffner239, “o ofício
sacerdotal compreendia a oferta dos sacrifícios e o governo do povo de Deus. Os
sumos sacerdotes da antiga aliança prefiguram os bispos da nova Lei, como vem
significativamente expresso na oração consecratória da ordenação episcopal”.
Observamos na Carta aos Hebreus 7,11-14 que:
Se a perfeição fora atingida pelo sacerdócio levítico – pois é nele que se
apóia a Lei dada ao Povo – que necessidade haveria de outro sacerdote,
segundo a ordem de Melquisedec, e não “segundo a ordem de Aarão”?
Mudado o sacerdócio, necessariamente muda também a Lei. Ora, aquele
a quem o texto se refere pertencia a outra tribo, da qual membro algum
se ocupou com o serviço do altar. É bem conhecido, de fato, que Nosso
239 Cf. HAFFNER, P. El Misterio Sacramental. 2005, p. 216-217.
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Senhor surgiu de Judá, tribo a respeito da qual Moisés nada diz quando
se trata dos sacerdotes.
Diante dos aspectos apresentados, compreendemos que no Antigo
Testamento as glórias do sacerdócio de Cristo foram, entre tantos outros sinais,
prefiguradas com um penhor especial nas ofertas de Melquisedec, particularmente
pelo ato da apresentação das espécies do pão e vinho, os quais, na Nova Aliança, são
matérias principais para a celebração Eucarística. Consequentemente, encontramos a
figura do bispo (então prefigurada em Melquisedec) como ministro do sacramento da
Eucaristia, função derivante do seu munus sanctificandi.
1.2 Novo Testamento: escolha dos 12 e instituição do sacerdócio na última ceia
Em Marcos 3,14 há a seguinte afirmação: “constituiu os doze para andarem
com Ele”. Jesus chama os doze a compartilhar a sua própria vida que é, antes de tudo,
comunhão de sentimentos e desejos e a participação na própria missão. Não se pode
reduzir as funções do bispo a uma tarefa meramente organizacional. Precisamente
para evitar este risco, tanto nos documentos preparatórios do Sínodo de 2001, quanto
nas intervenções nas assembleias dos padres sinodais, foram tratados diversos
aspectos sobre a realidade do episcopado como plenitude do sacramento da Ordem
nos seus fundamentos, especialmente os teológicos e cristológicos.
É relevante mencionar o feito de que Jesus, ao convocar os doze, conferiu-
lhes tanto a plenitude do sacramento da Ordem como os poderes espirituais anexos,
porém nos deteremos apenas a explicar a concepção da potestade de conferir a outros
discípulos o poder da Ordem. Na ótica de Galot240:
Se pode perceber que os Apóstolos haviam consciência de poder, eles
mesmos, comunicaram a outros a missão que era a eles confiada. O
interesse no episódio da instituição dos “sete” mencionado em At 6,1-6,
é precisamente o fator para demonstrar como, desde o início, os
Apóstolos transmitiram aos outros uma parte do seu poder, com o rito da
imposição das mãos.
Seguindo esta mesma ótica, Haffner241 afirma:
Durante o seu ministério na terra, Jesus Cristo escolheu os doze
apóstolos, que estavam prefigurados nas doze tribos do povo da Antiga
240 Cf. GALOT J. Sacerdozio Ministeriale, 1990, p. 46. 241 Cf. HAFFNER. El Misterio Sacramental, 2005, p. 222.
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Aliança (Mc 3,13-19, Lc 6,12-16). Cristo confiou-lhes a sua mesma
missão e, de modo que o ministério apostólico fosse continuado
permanentemente na Igreja (Mt 10,1-16). Após a ressurreição, Cristo
instruiu os apóstolos para pregarem a Boa Nova da salvação a todo o
mundo (Mt 28,16-20; Mc 16, 14-18). [...] Tudo faz indicar que os
Apóstolos receberam a consagração como Sumos Sacerdotes da Nova
Aliança, por Cristo, durante a última ceia. Na sua oração sacerdotal,
ordenou seus Apóstolos com estas palavras: «Santifica-os na verdade;
tua palavra é verdade. Como tu me enviaste ao mundo, também eu vos
enviei ao mundo. E, por eles, a mim mesmo me santifico para que sejam
santificados na verdade. Não rogo somente por eles, mas pelos que, por
meio de sua palavra, crerão em mim» (Jo 17, 17-20).
Como podemos perceber, na tradição da Igreja, o sacerdócio está
constantemente compreendido como sacerdócio de Cristo comunicado aos Apóstolos
e, a partir destes, transmitido aos sacerdotes. Segundo a fé católica, o sacerdócio dos
ministros é uma especial participação no sacerdócio de Cristo, distinta por essência e
não apenas por graus de participação a tal sacerdócio que é comum a todos os
batizados. Nós, porém, nos deteremos ao ponto da origem do sacerdócio ministerial,
em especial da plenitude do sacerdócio originário diretamente do sacerdócio de Cristo,
já que, antes de tudo, o ministério é considerado como um poder que se exercita em
nome de Cristo e tem sua origem na transmissão desta potestade aos Apóstolos.
1.3 Os três graus do Sacerdócio Ministerial
A Igreja Católica Romana possui, no âmbito ministerial eclesiástico, três
ordens que são conhecidas como episcopal, presbiteral e diaconal. É reconhecido pelo
magistério e na prática constante da Igreja o fato de que dois destes graus, o
episcopado e o presbiterato, participam diretamente do supremo sacerdócio de Cristo;
estes são designados na prática atual pelo termo “sacerdos” e constituídos pelo ato
sacramental da Ordenação. A ordem dos diáconos está inserida no âmbito do serviço
eclesial e também é adjudicada pelo sacramento da Ordem.
1.3.1 O Grau do Episcopado
Entre aqueles vários ministérios, que desde os primeiros tempos são
exercidos na Igreja, conforme atesta a Tradição, o lugar principal é
ocupado pelo múnus daqueles que, constituídos no episcopado,
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conservam a semente apostólica por uma sucessão que vem ininterrupta
desde o começo242.
A doutrina do Concílio Vaticano II diz que no ato da ordenação episcopal,
para desempenhar sua missão, “os Apóstolos foram enriquecidos por Cristo com
especial efusão do Espírito Santo, que desceu sobre eles. E eles mesmos transmitiram
a seus colaboradores, mediante a imposição das mãos, este dom espiritual que chegou
até nós pela consagração episcopal”243. E o Catecismo da Igreja Católica nos leva a
conclusão da definição de Episcopado ao afirmar que: “Tudo o que acabamos de dizer
explica por que a Eucaristia celebrada pelo Bispo tem um significado todo especial
como expressão da Igreja reunida em torno do altar sob a presidência daquele que
representa visivelmente Cristo, Bom Pastor e Cabeça de sua Igreja”244.
1.3.2 O Grau do Presbiterato
O ofício dos presbíteros, por estar ligado à ordem episcopal, participa da
autoridade com que o próprio Cristo constrói, santifica e rege seu corpo.
Por isso, o sacerdócio dos presbíteros, supondo os sacramentos da
iniciação cristã, é conferido por meio daquele sacramento peculiar
mediante o qual os presbíteros, pela unção do Espírito Santo, são
assinalados com um caráter especial e assim configurados com Cristo
sacerdote, de forma a poderem agir em nome de Cristo cabeça em
pessoa245.
A ordem dos Presbíteros não possui a plenitude, ou seja, o ápice do
pontificado e, para exercitar o seu poder, dependem dos bispos, contudo estão unidos
a eles na dignidade sacerdotal. Na Constituição Dogmática Lumen gentium246, reza que
os presbíteros: “são consagrados para pregar o Evangelho, apascentar os fiéis e
celebrar o culto divino, como verdadeiros sacerdotes do Novo Testamento”. Quanto às
funções que competem ao presbítero, encontramos no Catecismo da Igreja Católica,
conforme parágrafo 1567, os seguintes termos:
Solícitos cooperadores da ordem episcopal, seu auxílio e instrumento,
chamados para servir ao povo de Deus, os sacerdotes formam com seu
Bispo um único presbitério, empenhados, porém, em diversos ofícios.
Em cada comunidade local de fiéis, torna presente de certo modo o
242 Cf. CONCÍLIO VATICANO II, Lumen gentium, 20. 243Cf. Idem, 21. 244 Cf. Catecismo da Igreja Católica, §1561. 245 Cf. CONCÍLIO VATICANO II, Presbyterorum ordinis, 2. 246 Cf. CONCÍLIO VATICANO II, Lumen gentium, 28.
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Bispo, ao qual se associam com coração confiante e generoso. Assumem
como próprias, as funções e as solicitudes do Bispo e as exercem em seu
empenho cotidiano pelos fiéis. Os presbíteros só podem exercer seu
ministério na dependência do Bispo e em comunhão com ele. A
promessa de obediência que fazem ao Bispo no momento da ordenação
e o ósculo da paz do Bispo no fim da liturgia da ordenação significam
que o Bispo os considera como seus colaboradores, filhos, irmãos e
amigos, e em troca eles lhe devem amor e obediência.
1.3.3 O Grau do Diaconato
Em um grau inferior na hierarquia do sacramento da Ordem, encontram-se os
diáconos os quais recebem a imposição das mãos para o serviço à Igreja, não para as
funções sacerdotais. Segundo Santo Hipólito247, “Para a ordenação ao diaconato, só o
Bispo impõe as mãos, significando assim que o diácono está especialmente ligado ao
Bispo nas tarefas de sua diaconia”.
Conforme atesta o Catecismo da Igreja,
Cabe aos diáconos, entre outros serviços, assistir o Bispo e os
padres na celebração dos divinos mistérios, sobretudo a
Eucaristia, distribuir a Comunhão, assistir ao Matrimônio e
abençoá-lo, proclamar o Evangelho e pregar, presidir os funerais
e consagrar-se aos diversos serviços da caridade248.
1.3.4 Em busca de uma melhor compreensão do que significa a “plenitude do
sacerdócio” do Episcopado
Ao iniciar estas breves indagações, em especial sobre a plenitude do
sacerdócio, partiremos explorando o pensamento de alguns Padres da Igreja e,
posteriormente, analisaremos, sempre de maneira breve, alguns pensamentos sobre
esta temática surgidos na Idade Média, na Modernidade e, por fim, na
contemporaneidade. Devemos, antes de tudo, ocupar-nos inicialmente do episcopado e
presbiterato em um modo conjunto, já que na visão dos primeiros autores eclesiásticos
por ambos coincidirem com a ideia de “sacerdócio”, a maioria dos documentos da
época não fazem um discernimento entre eles. São Clemente Romano, em sua
primeira carta aos Romanos, invoca a ordenação (instituição) de “epíscopos” (e
247 Cf. TREVIJANO, R. Patrologia: serie de Manuales de Teologia, 2004, p. 151. 248 Cf. Catecismo da Igreja Católica, §1570.
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diáconos) por efeito da sucessão apostólica e se refere a Jesus Cristo como origem
destes Ofícios249.
Por razão da origem deste ministério, que não vem do povo250, o ministério
apostólico compreendia uma investidura que consistia na imposição das mãos e uma
oração, como no caso de Paulo e Barnabé (cf. At 13,3). Aqueles que eram eleitos
apóstolos não faziam parte do grupo dos doze, mas partilhavam com estes um poder
episcopal e também pelo privilégio de terem visto o Cristo Ressuscitado, eram
participantes das primeiras experiências da primitiva Igreja. Como deixamos perceber
através da visão de Galot, no ponto em que tratamos sobre a escolha dos 12 e a
instituição do sacerdócio na última ceia, é tido como evidente o fato que os Apóstolos
partilhavam com os demais o sacramento da Ordem que estes possuíam na sua
plenitude. Haffner possui semelhante visão e acrescenta que:
O que não é muito claro é o modo concreto como estes transmitiram seu
poder de ordem na Igreja primitiva. Nem todos os estudiosos estão de
acordo a respeito da designação dos mesmos com o título de epíscopos,
durante a era apostólica, porém estavam verdadeiramente dotados da
plenitude do sacerdócio. Se crê comumente que ao menos Tito e
Timóteo, que São Paulo destinou às Igrejas de Éfeso e Creta, gozaram
das ordens episcopais251.
Um dos primeiros padres a desenvolver a temática do sacramento da Ordem
em uma especial visão sobre o a figura do Bispo monárquico, fonte de unidade e
responsável pela Igreja Local, ou seja, da Plenitude do Sacerdócio, aparece fortemente
delineada nas cartas de Santo Inácio de Antioquia, por volta do ano 100 d.C., quando
escreve a obra Triplo sacramento da ordem. Nesta encontramos nitidamente os três
graus hierárquicos em pleno sentido e que posteriormente foram reconhecidos como
tais pela história. Ele afirma: “Todos devem respeitar os diáconos como respeitam a
Jesus Cristo, respeitar o bispo como imagem do Pai e aos presbíteros como o senado
de Deus e como colégio apostólico. Sem estes não se tem Igreja”252. A presença de um
“Sucessor dos Apóstolos” que governa a comunidade cristã local e também o seu
presbitério, isto é, a figura do chamado “bispo monárquico” é como um centro e
garantia da unidade eclesial em torno à reta doutrina, à conservação do depósito
(depositum fidei) e à conservação da paz e concórdia fraterna. Esta figura do bispo não
é outra do que a que em nossos dias se foi construindo nas Igrejas, em especial nas
249 Cf. TREVIJANO, R. Patrología: serie de Manuales de Teologia, 2004, p. 16. 250 Porém, na época da Igreja nascente o povo elegia os ministros. 251 Cf. HAFFNER, El Misterio Sacramental, 2005, p. 226. 252 Cf. TREVIJANO, R. Patrología: Serie de Manuales de Teología, 2004, p. 39.
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missões, passando de uma visão simples do ato de governar presbíteros, até chegar ao
fator que define atualmente o ministério episcopal: a configuração plena no sacerdócio
de Cristo e a potestade própria deste fato.
Na Idade Média e durante muito tempo, como apresentamos na introdução
deste trabalho, foi discutida a sacramentalidade da consagração episcopal, porém
muitos teólogos da época entendiam que as ordens (sejam menores ou maiores253)
imprimiam caráter. O Sacerdócio era tido como uma ordem hierarquicamente
superior, e foi apresentado por Hugo de São Vitor e Pedro Lombardi como única,
dividida em duas dignidades, a presbiteral e a episcopal. Ambos não consideravam o
episcopado como ordem separada do presbiterato porque esta não conferia nenhum
poder superior no que resguarda ao sacramento da Eucaristia. Porém, São Tomás de
Aquino254 apresentou o episcopado como, em um certo sentido, fosse uma ordem
superior, pois há no bispo um poder maior no âmbito do Corpo Místico de Cristo, mas
não no que diz respeito ao Corpo Eucarístico, como pensavam Hugo e Pedro
Lombardi. Foi, então, o Beato Duns Escoto255 a ensinar claramente que o episcopado
era uma ordem distinta, já que o bispo conferia todas as ordens e, sendo assim, possuía
um valor supremo.
No século XVI, os reformadores insistiram sobre uma interpretação e
apresentação de um Cristo apenas mediador, por isso rejeitaram a existência de um
sacerdócio ministerial eclesiástico, acatando apenas o sacerdócio universal dos fiéis.
Em um contexto mais recente, teólogos do século XIX de tendências
modernistas, conduziram suas afirmações a uma tentativa de fragilizar a doutrina
sobre a instituição divina do sacramento da Ordem, propondo que os graus do
episcopado e do presbiterato fossem desenvolvidos de acordo com fatores puramente
humanos e sociais, negando o fato de que o bispo fosse o perpetuador do ministério e
missão dos Apóstolos. Tais erros foram condenados em 1907, pelo Papa Pio X. O
Concílio Ecumênico Vaticano II reabriu uma antiga discussão sobre as relações entre
o sacerdócio ministerial hierárquico e o sacerdócio dos fiéis256. Vale ressaltar que estes
dois se diferem por essência e não apenas em grau e são, todavia, um ordenado para
servir ao outro. Ambos, no entanto, em seu próprio modo, “participam ao único
sacerdócio de Cristo”257. A Igreja reafirma também, através das definições conciliares,
253 Vale lembrar que nesta época as ordens menores eram várias: acólito, exorcista, leitor e
porteiro. 254 Cf. TOMÁS DE AQUINO, Perfección de la vida espiritual, 1971, p. 167. 255 Cf. NICOLAU, M. Ministros de Cristo: Sacerdócio y sacramento del Orden, 1971, p.169. 256 Durante nossas apresentações anteriores não nos detivemos sobre este aspecto do sacerdócio
para evitar qualquer permutação do tema central. 257 Cf. CONCÍLIO VATICANO II, Lumen gentium, 10.
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que o ministério sacerdotal é originado na sucessão apostólica, reiterando que apenas
o sacerdote pode consagrar a eucaristia e este sacerdócio é conferido com a sagrada
ordenação258.
2 - MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO SOBRE O SACERDÓCIO PLENO
2.1 Constituição Apostólica “Sacramentum ordinis” de Pio XII
Pio XII reforçou, através do documento Sacramentum ordinis, seus
ensinamentos sobre o sacramento da Ordem e um desenvolvimento teológico do tema.
Nesse documento, o Santo Padre apresenta o sacerdócio como uma “ordem instituída
pelo Cristo Senhor, pelo qual se transmite o poder espiritual e se confere a graça para
exercer devidamente os múnus eclesiásticos”259. Pio XII faz ainda nesse documento
algumas afirmações, estabelecendo a matéria e forma do sacramento da Ordem,
sempre apresentando o bispo como ministro exclusivo do sacramento e a imposição
das mãos como matéria.
2.2 Sacramento da Ordem na visão do Concílio de Trento
O Concílio de Trento ensinou que os bispos são superiores aos sacerdotes,
porém não afrontou o problema se a natureza desta superioridade fosse apenas jurídica
ou também sacramental. Esse fator suscitou a abertura de questionamentos sobre o
tema, fazendo com que a maioria dos teólogos pós-tridentinos afirmassem a
sacramentalidade do episcopado, ou seja, a superioridade sacramental do bispo. A
vigésima terceira sessão do Concílio, iniciada em 15 de julho de 1563, estabelece
doutrinas e cânones sobre o sacramento da Ordem, particularmente para condenar os
erros das proposições heréticas da reforma protestante. Quanto ao Ministro do
sacramento da Ordem, os padres conciliares não fazem definições precisas, porém o
cânone sétimo260, afirma:
Se alguém disser que os bispos não são superiores aos presbíteros, ou
que não têm poder de confirmar e ordenar, ou que o que eles têm lhes é
comum com os presbíteros, ou que as ordens conferidas por eles sem o
consenso ou chamado do povo ou do poder secular são nulas, ou que os
que nem são devidamente ordenados pelo poder eclesiástico e canônico
258 Cf. CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ, Declaração Mysterium Ecclesiae, 1973, 6. 259 Cf.PIO XII, “Sacramentum ordinis”, DS 3857. 260 Cf. CONCÍLIO DE TRENTO, Doutrina e cânones sobre o sacramento da Ordem, DS 1777.
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nem mandatos, mas vêm de outra parte, são legítimos ministros da
palavra e dos sacramentos: seja anátema.
2.3 Sacramento da Ordem na visão do Concílio Vaticano II
Convocado por João XXIII, não para condenar heresias, e sim, para fazer
uma atualização da doutrina católica, o Concílio Vaticano II levou a término entre
tantos amadurecimentos, o especificar que o episcopado é, de fato, um grau superior
sacramentalmente mais alto que o presbiterato.
Nossa busca sobre a definição do porquê o bispo é o ministro do sacramento
da Ordem, encontramos dois documentos que guiam o nosso estudo: o Decreto
Christus Dominis e a Constituição Lumen gentium, porém é no número 26 da Lumen
gentium, que encontramos um verdadeiro compendium de todas as definições que já
apresentamos. A constituição dogmática, riquíssima em detalhes, apresenta a
magnitude da colegialidade episcopal no ato de governar o rebanho de Cristo. Quanto
por que cabe ao bispo a função de ordenar outros ministros, nos são circunscritas pelo
sacro Concílio as seguintes afirmações:
Os bispos, orando e trabalhando pelo povo, são, de modo multiforme e
abundante, dispensadores da plenitude da santidade de Cristo. Pelo
ministério da palavra, comunicam a força de Deus para a salvação dos
que crêem (Cf. Rm 1,16) e, por meio dos sacramentos, cuja
administração regular e frutuosa ordenam com a sua autoridade,
santificam os fiéis. São eles que regulam a administração do batismo,
pelo qual é concedida a participação no sacerdócio régio de Cristo. São
eles os ministros originários da confirmação, dispensadores das sagradas
ordens e reguladores da disciplina penitencial, e com solicitude exortam
e instruem o seu povo para que participe com fé e reverência na Liturgia,
principalmente no santo sacrifício da Missa. Finalmente, devem ajudar
aqueles aos quais presidem com o exemplo do seu próprio proceder,
purificando os seus costumes de todo o mal e mudando-os para o bem,
quanto lhes for possível, com o auxílio do Senhor, para que, com o povo
que lhe é confiado, alcancem a vida eterna.
2.4 O que diz o Catecismo da Igreja Católica
Oferece-nos também o Catecismo uma ampla e preciosa explicação sobre o
que na realidade constitui a chave principal para a resposta a nossas perguntas iniciais
apresentadas na introdução deste trabalho: o sacerdócio pleno do Bispo, por ocasião
da sucessão apostólica e consequente configuração ao supremo sacerdócio de Cristo.
Optamos por apresentar na íntegra os artigos do Catecismo, por possuírem uma
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rica importância e ser uma exposição da fé da Igreja e da doutrina católica,
testemunhados ou iluminados pela Sagrada Escritura, pela Tradição apostólica e pelo
Magistério da Igreja. Limitamo-nos a fazer breves comentários já que diante da
complexidade doutrinal, estes não são necessários. Na sequência, expomos os artigos
1557-1560 do Catecismo, que dizem respeito à temática que abordamos:
O Concílio Vaticano II “ensina, pois, que pela sagração episcopal se
confere a plenitude do sacramento da Ordem, que, tanto pelo costume
litúrgico da Igreja como pela voz dos Santos Padres, é chamada o sumo
sacerdócio, a realidade total (“summa”) do ministério sagrado”(LG
21). A sagração episcopal, juntamente com o múnus de santificar,
confere também os de ensinar e de reger [...] De fato, mediante a
imposição das mãos e as palavras da sagração, é concedida a graça do
Espírito Santo e impresso o caráter sagrado, de tal modo que os Bispos,
de maneira eminente e visível, fazem as vezes do próprio Cristo, Mestre,
Pastor e Pontífice, e agem em seu nome (“in eius persona agant”). “Os
Bispos, portanto, pelo Espírito Santo que lhes foi dado, foram
constituídos como verdadeiros e autênticos mestres da fé, pontífices e
pastores”(CD 2). “Alguém é constituído membro do corpo episcopal
pela sagração sacramental e pela hierárquica comunhão com o chefe e
os membros do Colégio” (LG 22). O caráter e a natureza colegial da
ordem episcopal se manifestam, entre outras, na antiga prática da Igreja,
que requer para a consagração de um novo Bispo a participação de
vários Bispos. Para a legítima ordenação de um Bispo, é hoje exigida
uma especial intervenção do Bispo de Roma, em razão de sua qualidade
de vínculo visível supremo da comunhão das Igrejas particulares na
única Igreja e garantia de sua liberdade. Cada Bispo, como vigário de
Cristo, tem o encargo pastoral da Igreja particular que lhe foi confiada,
mas ao mesmo tempo ele, colegialmente, com todos os seus irmãos no
episcopado, deve ter solicitude por todas as Igrejas: “Se cada Bispo só é
pastor propriamente dito da porção do rebanho que lhe foi confiada,
sua qualidade de legítimo sucessor dos apóstolos por instituição divina
o torna solidariamente responsável pela missão apostólica da Igreja”
(Pio XII, Fidei donum)261.
2.5 Exortação Pós-sinodal “Pastores gregis” de João Paulo II
Introduz o capítulo quarto que trata sobre o munus sanctificandi do ministério
episcopal a exortativa frase de São Paulo: “Santificados em Jesus Cristo, chamados à
santidade” (1Cor 1,2). O documento, elaborado após o sínodo de 2001, convoca aos
Bispos a viverem coerentemente o seu ministério em especial pelo fato de que
261 Cf. Catecismo da Igreja Católica, 1557-1560.
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no exercício do ministério de guia da comunidade cristã, o Bispo,
inspirado pela imitação da caridade do Bom Pastor, é chamado a
santificar-se e a santificar. A sua espiritualidade de receber orientações e
estímulos dos sacramentos da iniciação cristã, e, em especial, da própria
Ordenação episcopal que: “o empenha a viver, na fé, na esperança e na
caridade, o seu ministério de evangelizador, liturgista e guia da
comunidade262.
No que diz respeito as nossas perguntas, encontramos neste documento uma
ampla fundamentação do exercício ministerial do Bispo como sucessor dos apóstolos
o que os constitui ministro do sacerdócio pleno do redentor. Nesse sentido,
observamos que o bispo “pelo sacramento da Ordem recebe no seu coração a caridade
pastoral de Cristo. Esta caridade pastoral tem como finalidade criar a comunhão”263.
Enxergamos então um elo de ligação entre os colaboradores (presbíteros) e o bispo, já
que para criar a comunhão com estes, o bispo deve ser a figura paterna e irmã,
acolhendo-os, corrigindo-os e confortando-os, mantendo a cada dia mais frutífero este
approach e, consequentemente, a sucessão apostólica em perfeita ordem e a ação
ministerial da Igreja de Cristo que conduz o rebanho ao pastor supremo que é luz para
os povos. É notável o fato de que “entre os primeiros deveres de cada Bispo
diocesano, está o cuidado espiritual do seu presbitério”264, dever este que se inicia no
gesto do sacerdote, que põe as suas próprias mãos nas mãos do Bispo, no dia da
ordenação presbiteral prometendo-lhe “respeito e obediência”. Percebemos por este, a
bem definida hierarquia e a obediência que deve um colaborador ao sucessor dos
Apóstolos.
3 - O BISPO, MINISTRO ORDINÁRIO DO SACRAMENTO DA ORDEM
3.1 Administradores da graça do Supremo Sacerdócio: um ministério semelhante
ao de Cristo
Como temos visto no desenvolver deste trabalho e nas afirmações tanto da
Sagrada Escritura quanto da patrística, o Sacerdócio de Cristo baseia-se no ministério
da encarnação. Na sua mesma pessoa, Cristo une Deus e o Homem, fato este que é a
essência do ofício sacerdotal. O poder de salvar vem da sua essência divina e a
262 Cf. JOÃO PAULO II, Pastores greges, 32. 263 Cf. JOÃO PAULO II, Motu proprio Apostolos suos (21 de Maio de 1998), 12 in AAS 90 (1998),
p. 649-650. 264 Cf. JOÃO PAULO II, Pastores greges, 32.
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possibilidade de salvar o gênero humano em particular deriva da sua natureza humana.
A ação sacerdotal central de Cristo foi obtida por meio do seu único sacrifício sobre a
cruz, onde Ele “com esta única oferenda, levou à perfeição, e para sempre, os que Ele
santifica” (Hb 10,14). O propósito da ação sacerdotal de Cristo, Sacerdote, Profeta e
Rei, consiste na realização do projeto do Pai para a plenitude dos tempos.
“O ministro desta santificação, que se propaga na vida da Igreja, é o Bispo,
sobretudo por meio da Liturgia sagrada. Desta, em especial da celebração eucarística,
afirma-se que é meta e fonte da vida da Igreja”265. De certo modo, pode-se dizer o
mesmo do ministério litúrgico do Bispo, pois este apresenta-se como o momento
central na sua atividade a favor da santificação do Povo de Deus. O Bispo exerce o
ministério da santificação por meio da celebração da Eucaristia e demais sacramentos.
Naturalmente, dentre todas as cerimônias presididas pelo Bispo, assumem relevo
particular as celebrações em que ressalta a peculiaridade do ministério episcopal como
plenitude do sacerdócio. Trata-se, especialmente, da administração do sacramento da
Confirmação, das Ordens Sacras, da solene celebração da Eucaristia em que o Bispo
está rodeado pelo seu presbitério e demais ministros. Nessas celebrações, o Bispo
apresenta-se à vista de todos como o pai e o pastor dos fiéis, “o ‘grande sacerdote’ do
seu povo (Cf. Hb 10, 21), o orante e o mestre da oração, que intercede pelos seus
irmãos e, junto com o próprio povo, implora e dá graças ao Senhor, pondo em
evidência o primado de Deus e da sua glória”266.
Sobre este assunto, continua a Pastores greges ao número 33:
Como se duma fonte se tratasse, brota a graça divina que permeia toda a
vida dos filhos de Deus ao longo da sua caminhada terrena, orientando-a
para a sua meta e plenitude na pátria beatífica. Por isso, o ministério da
santificação é um momento fundamental na promoção da esperança
cristã. O Bispo não se limita apenas a anunciar, com a pregação da
palavra, as promessas de Deus e a traçar as sendas do futuro, mas anima
o Povo de Deus na sua peregrinação terrena e, através da celebração dos
sacramentos que são o penhor da glória futura, faz-lhe saborear
antecipadamente o seu destino final em comunhão com a Virgem Maria
e os Santos, na certeza inabalável da vitória definitiva de Cristo sobre o
pecado e a morte e da sua vinda gloriosa.
265 Cf. JOÃO PAULO II, Pastores greges, 32. 266 Cf. JOÃO PAULO II, Pastores greges, 33.
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3.2 A Ordenação Episcopal: Plenitude do Sacramento da Ordem
Na ótica de McNamara267: “O rito de ordenação do Bispo põe em evidência a
relação direta que existe entre a missão de Cristo, a missão dos Apóstolos e a dos
bispos seus sucessores, e suas funções de pastor e sumo sacerdote”.
É a continuidade ministerial de Cristo Sumo Sacerdote, que através da
consagração episcopal de um novo bispo, perpetua-se na Igreja, dando a oportunidade
da existência de uma sequência ininterrupta de sucessores dos apóstolos. A imposição
das mãos do consagrante principal e, ao mesmo tempo, a imposição do Livro dos
Evangelhos sobre a cabeça do ordenando, confere a este, a mesma missão apostólica
dada por Cristo a seus Apóstolos.
Pode-se deduzir, segundo o já apresentado e a afirmação da Lumen gentium
21: “o Santo Sínodo ensina, pois, que pela consagração episcopal se confere a
plenitude do sacramento da Ordem, que, tanto pelo costume litúrgico da Igreja como
pela voz dos Santos Padres, é chamada o sumo sacerdócio, o ápice do ministério
sagrado”. Isto mostra a intenção do Concílio de afirmar, com toda a sua autoridade
pastoral, esta verdade de modo infalível, justamente para encerrar o debate no que
concerne ao valor sacramental do episcopado como ordem distinta do presbiterato. E
continua a Lumen gentium 21:
Juntamente com o múnus de santificar, a consagração episcopal confere
ainda os ofícios de ensinar e de governar, que, por sua natureza, não
podem exercer-se senão em comunhão hierárquica com a cabeça e os
membros do colégio. Na verdade, da tradição, qual aparece sobretudo
nos ritos litúrgicos e no uso da Igreja, quer oriental, quer ocidental,
consta claramente que, pela imposição das mãos e pelas palavras
consacratórias, se confere a graça do Espírito Santo e se imprime o
caráter sagrado, de tal modo que os bispos, de maneira eminente e
visível, fazem as vezes do próprio Cristo, Mestre, Pastor e Pontífice, e
agem em seu nome. Compete aos bispos admitir, no corpo episcopal,
novos eleitos, pelo sacramento da ordem.
Para concluir a demonstração das especificidades das funções episcopais, o
Concílio Vaticano II menciona o poder de consagração dos Bispos. Porem, como
vemos, não quis afirmar que apenas os Bispos possuem este poder; limita-se a dizer
que este poder pertence a eles.
267 Cf. MCNAMARA E., Jesucristo vivo y presente en la liturgia–Introdución al estudio de la
liturgia, 2004, p. 298.
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CONCLUSÃO
“Prometes respeito e obediência a mim e aos meus sucessores?”268A
pergunta que o Bispo faz em ambas ordenações é um dos grandes simbolismos da
hierarquia presente no ministério ordenado da Igreja Católica, pois através da
promessa de respeito e obediência, o neo-ordenando, tanto presbítero como diácono,
atrela-se ao Bispo assumindo, através dele, um compromisso firme com a Igreja
diocesana (no caso se for secular) ou com o Superior de congregação (caso seja
religioso).
Os presbíteros são ordenados para cumprir a missão sacerdotal como
colaboradores diretos da ordem do episcopado. Ao impor as mãos, o Bispo torna-o
participante do seu próprio sacerdócio herdado de Cristo através dos apóstolos, aos
quais são sucessores. No ato sacramental da ordenação presbiteral, o neo-presbítero
recebe das mãos do Bispo as espécies para o sacrifício da missa com a seguinte
admoestação: “Recebes a oferenda do povo cristão para apresentá-las ao Pai. Tomas
consciência do que vais fazer e pões em prática o que vais celebrar, configuras a tua
vida com o mistério da cruz do Senhor”269. O bispo transfere, com tais palavras, a sua
própria missão sacerdotal recebida através de sua ordenação episcopal, pela qual se
configurou a “Cristo, mediador único, que constituiu e sustenta indefectivelmente
sobre a terra, como organismo visível, a sua Igreja santa, comunidade de fé”270.
Quanto a Ordenação dos diáconos e o caráter de serviço que ela impõe,
tomando como pauta o Concílio Vaticano II, o Santo Padre João Paulo II desenvolveu
várias catequeses durante o seu pontificado sobre a figura do diácono e o seu
ministério na Igreja. Resumindo as razões em que fundamentos de acordo com as
proposições de teólogos, as decisões conciliares e os ensinamentos de seus
predecessores, o Papa apresenta duas grandes razões. A primeira, propõe a
conveniência de que determinados serviços de caridade, que eram levados a
cumprimento de maneira permanente por leigos desejosos de servir à missão caritativa
da Igreja, se concentraram em uma forma reconhecida por uma consagração
ministerial. A segunda, admite a possibilidade de suprir a escassez de presbíteros e de
aliviá-los de muitas tarefas que não estão ligadas diretamente ao seu ministério
sacerdotal271. Ao expormos estas razões que apresenta João Paulo II, vemos como ele
dar um passo adiante e analisa o modo como o Concílio Vaticano II compreendeu o
diaconato, e ao perceber o modo como ele compreende a Ordenação dos diáconos,
268 Cf. Pontifical Romano, Rito da Ordenação do Presbítero. 269 Cf. Pontifical Romano, Rito da Ordenação do Presbítero. 270Cf. CONCÍLIO VATICANO II, Lumen gentium, 10. 271 Cf. JOÃO PAULO II, Catequese de 6 de outubro de 1993.
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compreendemos também nós que o diácono não foi ordenado para o sacerdócio, mas
sim para o ministério do serviço ao Bispo, sucessor dos Apóstolos, fazendo-nos
deduzir cada vez mais a prioridade que possui o Bispo como ministro exclusivo do
sacramento da Ordem, e a impossibilidade dos graus inferiores ao episcopado de
conferirem as ordens, pois, como vemos, estas não possuem, de fato, a plenitude do
ministério sacerdotal de Cristo.
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111
PARA UMA ABORDAGEM ANTROPOLÓGICO-TEOLÓGICA DA
MORTE
Antonio Edson Bantin Oliveira 272
RESUMO
O intento de uma reflexão sobre a morte emerge da incidência de tal fenômeno sobre as
decisões morais individuais e coletivas, bem como da sua presença como realidade
interpeladora da consciência individual e da vida social hodierna. Nosso artigo se debruça, de
forma sintética, sobre três aspectos principais do fenômeno: o seu caráter de realidade
antropológica fundamental, os desafios emergentes de uma má compreensão ou de uma
imaturidade humana em relação ao fenômeno da morte e, por fim, a sua dimensão teológica,
acompanhada de elementos de indicação moral acerca do comportamento a ser cultivado, no
cuidado para com pessoas em situação de morte iminente.
Palavras-chave: Morte. Fé. Antropologia. Teologia.
ABSTRACT
The intent of a reflection about the death emerges in the incidence of this phenomenon on the
individual and collective moral decisions, as well as of its presence inside of the individual
conscience of the today's social life. Our article focuses, a synthetic way, on three main aspects
of the phenomenon: its character of fundamental anthropological reality, the emerging
challenges of a poor grasp or of a human immaturity in relation to the phenomenon of death and
finally his theological dimension, accompanied by moral indication elements about the behavior
to be cultivated in care toward people in imminent death situation.
Keywords: Death. Faith. Anthropology. Theology.
272 Doutor em Teologia Moral pela Academia Alfonsiana de Teologia Moral, da Pontifícia
Universidade Lateranense (Roma); Reitor e professor do Seminário Diocesano São José (Crato-
CE); Professor de Teologia Moral da Faculdade Diocesana de Mossoró – FDM.
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INTRODUÇÃO
É no mínimo insólito que alguém dedique tempo e energia para refletir sobre
algo, cuja realidade a mente procura armazenar em um ambiente o mais abscôndito
possível. Numa sociedade de luz, de cores, de muitos e intensos rumores, onde o mito
do sucesso, do bem-estar e a filosofia da imagem se tornaram hegemônicos, não existe
espaço para a reflexão sobre a morte. Esta é apenas um fato inevitável sim, mas
desesperadamente inaceitável. Mesmo quando é exigida como um direito – como é o
caso das lutas pelo direito à eutanásia - se observamos atentamente, o é por temor da
mesma, de sua imprevisibilidade. Teme-se o descontrole, a impotência diante da
morte e se pede não a morte, mas a capacidade de decidir sobre ela e libertar-se da
angústia de sua certeza e da imprecisa ciência de sua chegada.
A nossa reflexão pretende concentrar-se, sobretudo, sobre os aspectos que
tocam a bioética e o comportamento cristão diante da morte; seja em relação a quem
vive a sua iminência, seja no que concerne ao acompanhamento dos doentes terminais.
Compreendemos o fenômeno da morte como uma realidade profundamente
complexa273 e que requer, portanto, um tratamento igualmente complexo,
compreendendo uma visão transdisciplinar dos diversos aspectos que a envolvem,
desde aqueles antropológicos e existenciais àqueles práticos e relacionais.
Nessa perspectiva, o nosso contributo sobre o fenômeno da morte pretende
inserir-se na teia de outras tantas reflexões, teológicas ou não, como uma via de acesso
à mesma realidade existencial do ser humano, consciente de seu caráter complexo e
das múltiplas abordagens, às quais pode ser submetida esta questão, que toca de modo
radical os diversos âmbitos da existência humana.
1 - A MORTE COMO FENÔMENO ANTROPOLÓGICO FUNDAMENTAL
Quando, nos anos posteriores à Segunda Grande Guerra, o francês Edgar
Morin desenvolvia sua pesquisa sobre o fenômeno da morte, o mesmo percebeu que
este toca profundamente as nossas raízes identitária, talvez, tanto quanto tenha
marcado a descoberta do utensílio o processo de hominização. De fato, percebe
Morin, as cerimônias fúnebres e o culto aos mortos estão presentes nas sociedades
mais diversas e marcam as civilizações mais antigas, afirmando-se como realidade
humana, talvez até antes mesmo da descoberta do utensílio.
273 O termo complexidade não deve aqui ser confundido com o termo complicabilidade, trata-se,
sobretudo de uma realidade cuja compreensão só é possível a partir da consideração de
múltiplas realidades, excluindo quaisquer tentativas de reducionismos ou de unilateralismos.
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As ciências humanas, contudo, quase sempre transcuram o fenômeno da
morte. Ao longo da história da antropologia, por exemplo, recorreu-se, para a
caracterização da identidade humana, ao utensílio (homo faber), ao desenvolvimento
do cérebro (homo sapiens) e à aquisição e complexificação da linguagem (homo
loquens). Porém, adverte Morin, somente a espécie humana percebe a presença da
morte no curso de sua vida274. Os sepultamentos, o costume de embalsamar os corpos
dos mortos, os rituais fúnebres, os mitos e as crenças que se construíram em torno da
morte são uma prova de que, para o ser humano, o fenômeno da morte é muito mais
que o desfalecer das forças físicas ou o advento da extinção da vida física.
Desse modo, também a morte distancia os humanos dos animais porque é
vivida com um significado diverso e este é determinante para a sua autocompreensão
como humanos. É esta capacidade de dar sentido a uma realidade aparentemente
nascida no não senso, que conduz o homem a encontrar em si mesmo e na sua sede de
vida a possibilidade de inserção do fenômeno da morte em sua história. Assim, o
morrer e o viver são reconciliados no mesmo ser a partir de uma submissão da morte à
vida ou pela compreensão da morte como porta para a supremacia da vida.
Nos confins da terra de ninguém, onde se cumpriu a passagem do estado
de ‘natureza’ ao estado de total hominização, o passaporte capaz de
testemunhar o advento de uma humanidade plenamente entendida – um
documento científico, racional inexpugnável – é o utensílio: o
‘verdadeiro’ homem é o homo faber. As determinações e as idades da
humanidade são aquelas dos utensílios que esta construiu. Existe, porém,
um outro passaporte, desta vez sentimental, que não foi submetido a
nenhuma metodologia, a nenhuma classificação, a nenhuma explicação;
um passaporte, por assim dizer, sem visto, que contém, todavia, uma
comovente revelação: se trata da sepultura, testemunho da preocupação
para com os mortos e, portanto, para com a morte. [...]. Os homens de
Neanderthal não eram os selvagens que se pensava, eles davam
sepultura aos seus mortos275.
Seguindo o curso natural de sua existência, o ser humano se defronta com a
morte, primeiramente, com a partida das pessoas com as quais possui uma ligação
afetiva: seus avós, seus tios, seus pais, seus irmãos, etc. Em uma experiência
originária, sua percepção da morte se dá pela compreensão da ausência do objeto de
afeto, admiração ou mesmo da fonte de proteção e de vida. Torna-se insuportável a
perda desta força originária, a tal ponto que em algumas culturas desenvolve-se a
experiência do canibalismo como forma de retenção da vida do outro naqueles que
274 MORIN Edgar, L’Uomo e la morte, Meltemi: Roma, 2002, p. 21. 275 Idem, p. 33.
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permanecem; seja a vida dos membros das tribos como preservação da sabedoria
necessária ao clã, seja a vida dos inimigos – sobretudo dos guerreiros mais fortes –
como forma de conquista de sua força e sua bravura.
Assim, o processo de hominização se dá também pelo desenvolvimento da
capacidade de lidar com a morte. A sepultura denuncia uma compreensão espiritual da
morte. Uma visão que se estende para além da existência física, denunciando uma
esperança seja numa vida para além da existência puramente natural (sobrenatural),
bem como na possibilidade de retorno daqueles que morreram.
Do mesmo modo, os ritos fúnebres e o luto apresentam uma atitude reverente
diante da morte, seja por medo, seja por reconhecimento da grandeza deste mistério
humano. Assim, por exemplo, os sete dias de luto profundo compreende ao tempo
necessário para que o cadáver inicie o processo de decomposição. Ainda em nossos
dias, têm-se o hábito de visitar o túmulo no sétimo dia, como última despedida da
existência material daqueles que morreram. Também o luto denota o pudor diante da
morte: ao mesmo tempo em que indica o sofrimento dos parentes, as vestes escuras os
separam como se os mesmos ainda estivessem “contaminados” pela morte, devendo
conservar uma espécie de quarentena até que seja como que exorcizado o contato que
os mesmos tiveram com o morto e a dor que este contato provocou por ocasião da
morte.
Podemos, portanto, considerar que o fenômeno humano da morte é um dado
antropológico decisivo na compreensão da humanização e esta última se torna sempre
mais evidente à medida em que o ser humano é capaz de lidar de modo maduro e
respeitoso com o seu caráter de ser morrente. Ou seja, tão real quanto à identidade de
seres vivos é a condição humana de seres destinados à morte, e a capacidade de inserir
a realidade mortal no conjunto de sua história humana torna mais pleno e evidente o
seu caminho em direção à humanização.
2 - A MORTE COMO DESAFIO À EXPERIÊNCIA DE FÉ NO DEUS VIVO276
A morte se apresenta à nossa práxis de crentes como um desafio crucial. Ela
põe à prova as nossas capacidades humanas e desafia a nossa fé n’Aquele que se
apresenta para nós como o Deus da Vida, razão de toda esperança em uma existência
eterna. A nossa consciência se debate diante de sua adesão ao conteúdo da revelação e
276 Aqui não se pretende, propriamente, desenvolver uma teologia da morte, mas o nosso intento
consiste, sobretudo, em refletir sobre a forma ideal de lidar com o fenômeno da morte a partir
da condição de crentes no Deus Vivo de Jesus Cristo. A “experiência de fé” deve ser entendida
mais como práxis, ou seja, como atitude concreta de homens e mulheres de fé e não como o
conteúdo simplesmente intelectual/doutrinal da fé.
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ao indicativo moral do cuidado para com o ser humano morrente, conservando a sua
dignidade e a repulsa diante da realidade da morte que nos revela a nossa própria
impotência, anulando em nós qualquer pretensão de controle e de domínio absoluto
sobre nós mesmo.
Quando as forças escorrem pelas fendas de nosso corpo, a existência se
aproxima tristemente do declínio e a sombra da morte se estende
inexoravelmente sobre as últimas chamas de uma vida que se apaga, o
nosso comportamento em relação à pessoa é submetido à dura prova.
Enquanto o não senso parece tomar posse da nossa consciência acerca
do valor da vida, a nossa mente se debate entre o respeito quase
fetichista e vitalício da vida biológica então tênue e decadente e a
tentação de abandonar ou, até mesmo, suprimir aquele que se encontra
marcado por um destino fatal277.
O indivíduo se põe diante de uma crise de consciência: ou ele acolhe a morte
e se entende a partir do horizonte desta realidade conatural à sua existência ou a
repulsa isolando-se preventivamente da dor provocada pela ciência de sua realidade
finita. Resta, porém, o fato de que entre obstinação irracional e abandono cruel dos
nossos semelhantes em sua realidade final, emerge a nossa responsabilidade para com
a vida e o respeito para com o ser humano, e estas devem auxiliar-nos a encontrar o
modo correto de acompanhar com cuidado e reverência a pessoa no último evento de
sua aventura terrena.
A sociedade que se descortina nos últimos séculos se revela portadora de uma
cultura tragicamente tanatocratica, uma cultura de morte que justifica e legitima a
opressão dos mais fracos pelos mais fortes, a marginalização dos últimos da
sociedade, o aborto, a eutanásia, a desigualdade radical e escandalosa no tratamento
da pessoa morrente; que se empenha na legitimação do uso de drogas, da prostituição,
do amor irresponsável e da efemeridade da existência e das escolhas que conferem
sentido à vida humana. Tais realidades se revelam como um culto à morte em sua
forma mais cruel, ou seja, a destruição da perspectiva de existência viva e até mesmo
a destruição do amor à condição vivente, ao ponto de suscitar o desejo de abandono da
vida, chegando aos inúmeros casos de suicídio, sobretudo nos países onde o
desenvolvimento econômico não foi acompanhado de um desenvolvimento humano
igualmente qualificado.
Ao mesmo tempo, paradoxalmente, a cultura ocidental secularizada e
materialista, marcadamente hedonista e auto-referencial, tende a remover o
277 FAGGIONI, Maurizio Pietro. La vita nelle nostre mani – Manuale di Bioética teológica. 2.
ed., Torino: Edizioni Camilliane, 2009, p. 333.
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pensamento sobre a morte, transformando-o em um verdadeiro tabu, ao pondo de não
se considerar correto nem mesmo falar sobre a mesma, como em outro tempo se
considerava de mau gosto falar sobre sexo. A morte se apresenta na sociedade
ocidental como uma acusação de falência de seu discurso de sucesso absoluto, de uma
autonomia ou controle sobre si mesmo. De fato, como já dissemos anteriormente, a
morte destitui o ser humano de qualquer pretensão de poder e o iguala, rebaixando-o a
uma condição, literalmente, subterrânea.
Evitar a morte se torna uma obsessão moderna. O homem contemporâneo é o
homem do espetáculo, do show, da vida vivida em todo o seu esplendor. Sua intenção
primeira é aquela de consolidar o seu “espírito livre”, a hegemonia de sua
autodeterminação. Nossa cultura dispensa qualquer atitude de realismo cru, de
admissão e interiorização da dor. A miséria e a feiúra do mundo é melhor esquecê-la
no mundo dos centros comerciais, nos shoppings que se edificam como verdadeiras
cidades protegidas das condições degradantes do mundo real. Nesse sentido, tudo
aquilo que aponta para a realidade da morte é radicalmente rejeitado, excluído. Torna-
se inadmissível a consideração da morte como realidade natural que interpela o
homem acerca de seu projeto de vida. Como aponta Faggioni,
A dor e a certeza desconcertantes da morte põem em crise a pretensão
narcisista do homem moderno que deseja manter o controle sobre toda a
sua vida através da ciência e da tecnologia. A morte, de fato, extingue a
existência terrena e revela a radical fragilidade que constitui a existência
humana, colocando-nos diante de uma trágica e inelutável experiência
de falimento. O enigma e a tragicidade da morte para o homem moderno
se manifesta na paralisia relacional que se desenvolve em relação ao
morrente e aos seus familiares – uma verdadeira e própria antecipação
da morte física278.
Ao mesmo tempo, nas nossas sociedades se intensifica a reivindicação do
chamado “Direito de Morrer”, exigindo dos Estados a facilitação do chamado
“suicídio assistido”. Essas reivindicações emergem devido, sobretudo, aos inúmeros
avanços no campo da biotecnologia e da medicina, que desenvolveu a capacidade de
preservação do estado vegetativo, prologando, às vezes, de modo indeterminado.
Grande parte das mortes, especialmente nos países de grande desenvolvimento
econômico, ocorre no interior dos hospitais e, quase sempre, depois de uma
prolongada tentativa de manutenção do estado vivente. As mortes se tornam, cada vez
mais, fruto da decisão dos parentes de interromper, depois de exaustivos períodos de
sofrimento físico (para o enfermo) e emotivo (para os parentes), o tratamento de
278 Faggioni (2009, p. 334).
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manutenção da vida através de aparelhos médicos. A morte, portanto, se torna cada
vez mais uma decisão médica e é neste sentido que se discute e se exige o “direito de
morrer”.
Entendido literalmente, o direito de morrer parece denotar simplesmente
um direito ao inevitável: a certeza da morte de tudo aquilo que vive é de
fato a pedra de comparação da inelutabilidade do destino. Por que
reivindicar um direito a algo que não é só inevitável, mas em geral é tido
como um mal? A morte está, por ventura, se tornando menos inevitável?
Corremos o risco de nos tornarmos imortais? A morte está se tornando
para nós um bem a ser reivindicado e não um mal a ser evitado e
vencido?279
A morte neste contexto, não a compreendemos como o motivo da
reivindicação. Na verdade, não se deseja a morte, mas a busca por uma antecipação
desta é fruto justamente do medo do morrer. O prolongamento da vida não exclui na
mente do homem a certeza de que este se encaminha na direção do final trágico de sua
existência e, portanto, quanto mais se estende esta finalização, mais a morte se torna
uma realidade esmagadora em sua mente. O indivíduo não suporta a ideia de que a
chama de sua existência vivente se extingue e quer libertar-se da opressividade dessa
ideia. Assim como tomamos de um só gole os remédios amargos a fim de evitar o
prolongar-se de seu amargor, o morrente quer antecipar a morte para evitar a angústia
do morrer.
Tal tentativa de evitar o morrer se estende igualmente aos acompanhantes das
pessoas em situação terminal. Também elas devem se defrontar com a realidade da
morte e a impotência em relação à mesma. Nesses casos, a remoção da ideia de morte
faz com que os familiares, os amigos e até mesmo os agentes sanitários se
demonstrem sempre mais incapazes de acompanhar a pessoa convalescente para
ajudá-la a viver com dignidade o último ato de sua existência. No passado se morria
em casa, circundados das pessoas queridas, suportados pela simbologia e o conforto
da própria fé, enquanto hoje se morre no hospital, assistidos sim, mas isolados e, por
vezes, abandonados. À natural repulsão em relação à realidade da morte se acrescenta,
porém, uma particular dificuldade de aceitar a ideia da própria morte e a integrar no
próprio projeto de vida a experiência do morrer, prelúdio ao momento da morte.
Como posicionar-se a partir da experiência cristã, diante da morte? Diante da
trágica situação da morte, a fé cristã se põe como uma fonte de serenidade e de paz e,
aquilo que é humanamente sem significado e absurdo, pode adquirir sentido e valor.
279 KASS, Leon R. La sfida della bioetica – la vita, la libertà e la difesa della dignità umana.
Torino: Lindau, 2007, p. 289.
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Para aqueles que morrem na esperança pascal do Cristo morto e ressuscitado, a morte
pode se tornar a resposta à extrema vocação dada por Deus, o cumprimento e a
realização do chamado à vida plena, a última passagem, através da dor e do
sofrimento, que marcam a nossa existência terrena, em direção ao horizonte de uma
alegria sem fim. A morte se torna, numa perspectiva cristã, o fim enquanto
cumprimento e não enquanto término ou extinção da vida. Em Deus a vida ganha a
sua realidade original e originária, realizando sua vocação final, alcançando o seu
esplendor maior.
Uma abordagem teológica do fenômeno da morte requer, portanto, uma
compreensão profunda do significado da vida em referência ao mistério da revelação
de Deus em seu Filho Jesus Cristo. É nele, Evangelho da Vida, que toda realidade
humana encontra sentido, não existindo nada de verdadeiramente humano que não
encontre no Filho de Deus feito Homem, sentido e perfeita realização, como bem nos
recorda Gaudium et spes280. A realidade humana da morte é também esta assumida
pelo Filho de Deus feito homem e na sua morte toda morte encontra o seu significado.
O morrer, a partir do horizonte cristão, portanto, é uma inserção do ser humano no
Humano que é Cristo, sendo, portanto, o horizonte supremo de humanização.
O cenário ao qual somos chamados a dirigir o nosso olhar é aquele da
absoluta proximidade manifestada por Deus aos homens em Cristo, proximidade na
qual também a experiência do sofrimento e da doença encontra significado e é
resgatada das contradições e negatividade que predominantemente a caracterizam. A
este respeito, a carta encíclica de João Paulo II, Evangelium vitae, dedica especial
atenção, (sobretudo nos números 64-67), sublinhando o significado cristão do viver e
do morrer, concentrando no primeiro o horizonte de compreensão do segundo. De
fato, recorda o venerando papa: a vida do homem não se reduz a um simples bíos,
como se fosse um mero fato biológico.
Desde o seu alvorecer a vida se apresenta como experiência de dom gratuito e
vocação sublime; um acontecimento extraordinário e surpreendente que interpela a
liberdade humana individual e coletiva e suscita um espontâneo consenso. Para o
homem de fé, portanto, a vida é florescência de Deus, desabrochar de existência
gratuita, perfeita comunhão entre o Criador e sua obra, estando ancorada
definitivamente n’Aquele que a origina e que a seduz irresistivelmente. É por isso que
da vida terrena se pode dizer, contemporaneamente, que há um caráter relativo de uma
realidade que não é última, mas penúltima e que constitui uma realidade sagrada que
nos é confiada para que dela cuidemos com responsabilidade conforme o seu profundo
280 GS, 1.
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significado, levando-a à perfeição no amor e no dom de nós mesmos a Deus e aos
irmãos281.
Do respeito e responsabilidade para com a vida, Dom de Deus e vocação
sublime do homem, a Igreja haure a sua responsabilidade para com o ser humano
morrente. A morte não possui sentido em si mesma, senão em relação à Vida que
escorre do coração de Deus e se deposita no coração do ser humano, fecundando-o
para Deus. De fato, nos recorda o Senhor, “Deus é o Deus dos vivos e não dos
mortos”282.
A experiência da morte insere o ser humano no horizonte de significado da
morte do próprio Senhor. Torna-se experiência de redenção e reconciliação, quando
vivida em união profunda com a paixão e morte de Jesus Cristo. A semântica da
teologia cristã católica sobre o morrer está repleta da experiência da vida nova na qual
o Cristo de Deus insere a humanidade redimida que se faz dócil ao seu convite. Não se
pode, portanto, isolar a compreensão da morte do significado do viver cristão. Os
discípulos de Cristo vivem para Ele e n’Ele morrem para alcançar com Ele a Vida da
qual somente Ele é origem e fim.
A bioética católica, portanto, não convida a acompanhar alguém cuja vida se
apaga, mas uma pessoa humana cuja chama de vida se prepara para alcançar a
plenitude de seu resplendor. À luz perpétua da ressurreição se une a luz efêmera da
existência terrena, inserindo o ser humano naquele repouso prometido pelo Senhor aos
que lhe permanecerem fiéis, conforme nos recorda a carta aos Hebreus (4,1-7).
A realidade aparentemente fatal da morte, contudo, desafia a nossa fé e atenta
contra a nossa esperança no Deus Vivo. De fato, sobretudo diante da morte de quem
amamos emergem a incompreensão, a revolta, a dúvida, a mágoa. Talvez tais
sentimentos não sejam nem mesmo provenientes da piedade pela morte do outro,
senão por aquilo que esta provocou em nós mesmos. Sofremos muito mais pela falta,
pelo vazio que a morte do outro nos provocou do que pela cessação de sua vida, ou
seja, a dor pela morte de quem amamos é, em suma, fruto do desejo egoísta de que o
outro esteja sempre presente conosco.
3 - A REFLEXÃO DA IGREJA ACERCA DO ACOMPANHAMENTO DO
DOENTE TERMINAL
Diante da pouca compreensão deste significado profundo do morrer, a Igreja
estabeleceu, sobretudo, a partir da segunda metade do séc. XX, indicações acerca do
281 Cf. Evangelium vitae, n. 02. 282 Cf. Lc 20,38-39.
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comportamento cristão diante da pessoa humana morrente. Estas indicações
concernem à tentativa de formar uma postura concreta diante da realidade da morte,
legitimamente arraigada na revelação cristã e na esperança da Ressurreição como
realidade humana final.
Antes, contudo, de dedicarmo-nos às questões morais que emergem diante do
doente terminal, convém compreender a diferença entre doente incurável e doente
terminal. O primeiro trata-se de alguém portador de uma enfermidade cuja cura ainda
não é possível; alguém portador de uma doença crônica de qualquer gênero. O
segundo, contudo, é uma pessoa cuja doença o colocou diante da realidade da morte
iminente. É principalmente em relação a este último que o nosso comportamento deve
amadurecer no sentido de exprimir o mais possível os sinais de nossa adesão a Cristo
morto e ressuscitado.
O doente terminal deve ser ajudado a viver o último seguimento de sua
existência com dignidade. Deve ser auxiliado no processo de acolhida da realidade do
morrer. De fato, a pessoa com doença em estado terminal se encontra em condição de
inteira dependência daqueles que o assistem, ampliando ao máximo, portanto, a
responsabilidade destes últimos. Esta responsabilidade não se reduz à simples
assistência profissional do doente. Mais que de um profissional, o enfermo em estado
terminal necessita de um ser humano, de alguém que o acompanhe nos seus últimos
passos em direção à Vida à qual ele, como cada pessoa humana, é vocacionado por
causa da morte e ressurreição do Filho de Deus.
Já em 1985 o jesuíta espanhol Manuel Cuyas estabeleceu alguns direitos
considerados pelo mesmo como fundamentais para a pessoa humana em estado
terminal. São eles:
- direito a não sofrer quando a dor pode ser atenuada;
- direito às terapias ordinárias e sintomáticas;
- direito à verdade;
- direito à liberdade de consciência;
- direito à autonomia;
- direito ao diálogo confidencial;
- direito a não ser abandonado;
- direito à compreensão283.
A doutrina da Igreja, sobretudo no magistério de João Paulo II, estabeleceu
que os cuidados ordinários (hidratação, alimentação, desinfecção das feridas...), bem
283 CUYAS, Manuel. L’eutanasia dal punto di vista deontológico, In: AA. VV., Nuovi saggi di
medicina e scienze umane, Milano, 1985, p. 444-447.
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como aqueles paliativos ou sintomáticos (alívio da dor, hidratação da pele,
higienização etc.) são direitos do paciente, não podendo o médico ou qualquer agente
sanitário negar os mesmos a qualquer que seja a pessoa enferma. No que concerne a
curas paliativas, convém recordar que a Igreja compreende a dor não somente como
uma reação local do organismo a uma situação de enfermidade, o Magistério tutela
também o direito ao alívio da dor psíquica, ou seja, aquela que pode levar a pessoa
enferma a desejar a morte apenas como fuga desesperada do sofrimento, como é o
caso do apelo à Eutanásia284.
Os cuidados para com a pessoa humana em enfermidade terminal não podem
compreender a aplicação dos chamados “tratamentos agressivos” ou terapias através
de meios desproporcionais, ou seja, intervenções cirúrgicas ou aplicações de
medicamentos que não funcionam como paliativos, mas ao contrário, constituem
intervenções danosas ao doente e desrespeitosas do seu direito à morte digna. É
constituído um meio desproporcional e, portanto, tratamento agressivo, aquelas
intervenções que não modificam de modo significativo o decoroso e irreversível
desenvolvimento natural da doença, não melhorando a condição da pessoa enferma,
mas até mesmo piorando sua qualidade de vida e prolongando, sem esperança de
melhora, a existência penosa. Portanto, os elementos constitutivos de um tratamento
agressivo são: insistência irracional, a inutilidade, o agravamento. Nesse sentido, a
rejeição ao tratamento agressivo não constitui uma escolha pela eutanásia, nem
mesmo um abandono da pessoa em estado terminal, mas significa a renúncia ao
prolongamento inútil da agonia e a atos médicos que não incidem significativamente
sobre a qualidade de vida285.
A realidade que se descortina no limite entre tratamento proporcional e
desproporcional é aquela da Eutanásia. Esta constitui um fenômeno complexo e
variado, que envolve questões de caráter clínico, cultural, religioso e civil. Cresce
consideravelmente a procura pelo direito à Eutanásia como forma de supressão da dor,
justificando-a como sendo um direito do sujeito, ligado a sua liberdade e autonomia,
ao seu direito de dispor sobre a própria vida e de decidir de maneira vinculante o que
concerne à sua saúde e ao tratamento clínico que lhe seja aplicado.
Nos últimos anos, sobretudo na Europa, desenvolveu- se a prática da
Declaração antecipada de tratamento. Trata-se de uma forma de testamento em que
se decide a que forma de tratamento se deseja ser submetido em caso de doença grave
com perda da consciência. Em linha de princípio, tal documento não é ilícito, pois
284 Cf. JOÃO PAULO II, Discorso ai partecipanti al congresso Internazionale dell’Associazione
“Omnia Hominis”, 25-8-1990, In: Insegnamenti, v. 13/2, 328. 285 FAGGIONI, Maurizio Pietro. La vita nelle nostre mani – manuale di bioética teologica,
Torino, Camilliane 2009, p. 341.
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cada pessoa humana tem o direito a ser protagonista das escolhas clínicas que lhe
interessam. Há o direito a evitar a aplicação do tratamento agressivo ou de terapias
desproporcionadas que venham a prolongar inutilmente a própria vida sem esperança
de recuperação. Torna-se, contudo, um ato ilícito, quando o teor do documento
contém a autorização para privar o paciente daqueles cuidados essenciais tais como a
alimentação e a hidratação, o que constituiria em uma forma de eutanásia passiva.
A Igreja compreende, mais do que ninguém, sendo ela perita em humanidade,
o drama da dor e da doença e recomenda o respeito e o zelo revestido de profunda
compaixão para com as pessoas enfermas; porém, afirma veementemente que este
dado dramático da existência humana não pode transformar a morte em um direito ou
em uma expressão da liberdade.
Vale elencar alguns dos documentos que manifestam a preocupação do
Magistério da Igreja acerca da crescente adesão a práticas de Eutanásia, inclusive
reconhecidas pelo Estado como direito do indivíduo, como é o caso da Holanda, onde
a declaração antecipada de tratamento é já autorizada incluindo o direito de recusa dos
cuidados vitais. Tais declarações não colhe o princípio cristão do cuidado para com a
vida, desde a mais frágil à mais forte. Menosprezar a vida simplesmente porque esta
se encontra debilitada, denota uma incompreensão e um distanciamento da atitude de
Jesus Cristo que doa a sua vida para resgatar as vidas de todos, desde os mais vívidos
aos mais débeis.
Um dos primeiros documentos a tratar de modo específico sobre o tema é a
Declaração sobre a eutanásia (1980) da Congregação para a Doutrina da Fé, seguido
do documento do Pontifício Conselho “Cor unum” sobre as “questões éticas relativas
aos doentes graves e terminais” (1981). O conteúdo destes documentos são retomados
pela Encíclica Evangelium vitae de João Paulo II (1995) n. 64-67. Nesses documentos,
a Igreja não se limita a definir a Eutanásia como moralmente inaceitável, mas oferece
ao mesmo tempo um itinerário de assistência à pessoa enferma que esteja, seja sob o
aspecto espiritual e pastoral seja sob o aspecto da ética médica, inspirado na dignidade
da pessoa, no respeito pela vida e pelos valores da fraternidade e da solidariedade,
conclamando pessoas e instituições a responder com testemunhos concretos aos
desafios de uma alarmante cultura da morte.
Outro aspecto doloroso da Eutanásia é aquele que se refere à eugenia ou
eutanásia neonatal. Nestes casos se aplica tratamentos com injeções letais em neonatos
que possuem doenças graves ou deficiências estruturais que impedem uma expectativa
de vida longa. Um caso clássico é o da menina americana Baby Doe. “Baby Doe foi
um bebê que nasceu em 1982, em Bloomington, no estado de Indiana/EEUU, com
más-formações múltiplas (trissomia do 21 e fístula traqueoesofágica). Os seus pais se
negaram a assinar um termo autorizando a realização de uma cirurgia corretiva
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da fístula, que tinha 50% de chances de lhe salvar a vida. Os pais, que tinham outros
dois filhos sadios, alegaram que a criança era muito comprometida. Solicitaram,
ainda, que fosse suspendida a alimentação e os demais tratamentos. A equipe médica
solicitou à Justiça autorização para realizar a cirurgia, suspendendo, temporariamente
o pátrio poder. A Justiça negou em primeira instância. A promotoria apelou e a
Suprema Corte do Estado de Indiana se negou a apreciar o caso. Foi feita a tentativa
de apelar para a Suprema Corte dos Estados Unidos. O bebê, aos seis dias de vida
morreu, não dando tempo para que fossem feitas outras tentativas. O advogado da
família alegou que a mãe esteve sempre ao lado do bebê. Afirmou que "não foi um
caso de abandono, mas sim de amor”.
O debate que se seguiu induziu a Administração presidencial a estabelecer
regras de comportamento para situações similares. As diretrizes que seguiram desse
debate receberam o nome de Baby Doe rules, e afirmavam que as intervenções
médico-cirúrgicas que são eficazes em aliviar uma invalidez física são eticamente
obrigatórias.
Dentro do horizonte cristão, portanto, a morte ganha significado a partir do
significado da vida doada por Cristo e renascida em sua vitória definitiva sobre o
pecado. A morte física, neste sentido, é constitutiva da experiência humana, da qual o
próprio Deus quis fazer parte para nos dar um modelo de superação da dor e do
esvaziamento total de nós mesmos para deixarmo-nos preencher por Aquele de quem
haurimos cada centelha de vida. O medo e a recusa da morte situam-se no medo de
perder-se, de extinguir-se, de deixar escapar o controle sobre si mesmo; o poder de
decisão definitiva sobre a própria existência, neste sentido a morte, do ponto de vista
teológico, constitui aquela experiência humana na qual o indivíduo se encontra
completamente descentrado, destituído de qualquer poder decisivo, faz-se húmus para
tornar-se vida nova em Deus, sua origem e seu fim.
CONCLUSÃO
A situação atual que põe o homem diante do desejo inatural de morrer revela
as sequelas de uma cultura de morte, bem como uma compreensão da morte natural
como uma anulação da própria existência, já que esta última haure seu significado das
formas exteriores de seu existir e não tanto de sua realidade mais profunda. A
pergunta sobre o significado do viver ou mesmo sobre o fim de cada existência,
individual e social, se torna cada vez mais irrelevante, numa sociedade do imediato e
da imagem. Às interrogações acerca do significado da vida se substituem aquelas
referentes ao que fazer agora para se tornar visível, para desfrutar ao máximo o prazer
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que os bens de consumo oferecem, tornando pessoas em utilitários e personificando
objetos e estados de ânimo.
O desafio de compreender a morte como realidade humana que lhe dá
significado se torna cada vez mais urgente de ser enfrentado. Nunca, na história da
humanidade, a reflexão sobre os opostos morte/vida foi tão pertinente ao ponto de se
tornar decisiva inclusive para a determinação daquilo que verdadeiramente nos
identifica e nos realiza como seres racionais e criaturas de Deus, feitos à sua Imagem e
Semelhança. Interpela-nos dia a dia, as realidades que encontramos do outro lado da
nossa rua ou dentro mesmo de nossas casas e no interior de nossas famílias. Como um
vírus que corrói as consciências, a cultura hodierna vai aos poucos se infiltrando nos
ambientes mais improváveis e fazendo do agir cristão um dever quase improponível.
Permanece, contudo, no coração dos discípulos de Cristo a certeza expressa
pelo apóstolo Paulo de que nem a morte nem qualquer outra coisa poderá separar-nos
do amor de Deus por nós e que, portanto, ainda que submetidos à tragédia do fim
temporal de nossas existências, por causa da Ressurreição do Senhor, permanecemos
ligados à Vida como o Ramo à Videira, posto que n’Ele, por Ele e para Ele existimos
e somos. Tal certeza nos impele ao cuidado pelas vidas que calcam os umbrais de seu
cumprimento e faz emergir o dever sagrado de fazer-se companhia e sustentáculo dos
irmãos que se encaminham à definitiva realização de suas vidas. Em Jesus Cristo,
cada homem se faz amigo e companheiro nos cumes últimos da caminhada terrena de
seus irmãos suportando-lhes a fadiga, aliviando-lhes a dor e o medo, nutrindo-lhes o
coração com a esperança vívida que transborda do Coração traspassado do Cristo
Morto por nós.
REFERÊNCIAS
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saggi di medicina e scienze umane, Milano, 1985.
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FAGGIONI, Maurizio Pietro. La vita nelle nostre mani – Manuale di Bioética
teológica, 2. ed., Torino: Edizioni Camilliane, 2009.
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“Omnia Hominis”, 25-8-1990. In: Insegnamenti, v. 13/2, 328.
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KASS, Leon R. La sfida della bioetica – la vita, la libertà e la difesa della dignità
umana. Torino: Lindau, 2007.
MORIN, Edgar. L’Uomo e la morte. Meltemi: Roma, 2002.
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RAZÃO, PAIXÃO E FELICIDADE
Alison Felipe de Moura286
RESUMO
O presente artigo trata de analisar a relação entre razão, paixão e felicidade a partir da obra: As
paixões da alma de Descartes, procurando refletir o que o autor entende acerca da felicidade e
ainda em que sentido essa felicidade é determinada somente pela razão, dado a influência do
corpo no processo de construção da mesma. Para tal reflexão, pensamos ser conveniente
destacar num primeiro momento as linhas gerais do pensamento do filósofo, em seguida,
apresentamos, a partir de uma reflexão crítica, os argumentos que o tratado das paixões da alma
apresentam sobre o tema a ser refletido e, por fim, tendo em vista a relevância do tema,
apresentamos uma reflexão da relação entre razão, paixão e felicidade, visando uma maior
clareza da questão no que toca ao pensamento da atualidade.
Palavras-chave: Recta Ratio. Sentimento. Vida feliz. Antropologia. Descartes.
ABSTRACT
This article is to analyze the relationship between reason and passion and happiness from the
work: the passions of the soul of Descartes trying to contemplate what the author thinks about
the happiness and even in that sense that happiness is determined only by reason, given the
influence of the body in the construction of the same process. For such reflection should be
thought at first highlight the general lines of thought of the philosopher. Then we present, from
a critical review of the arguments that the treaty of the passions of the soul present on the topic
to be reflected. Finally, in view of the relevance of the topic, present a reflection of the
relationship between reason and passion and happiness towards greater clarity of the question
when it comes to thinking of today.
Keywords: Recta Ratio. Feeling. Happy life. Anthropology. Descartes.
286 Mestre em Filosofia pelo Ateneo Pontificio Regina Apostolorum (Roma). Graduando em
Teologia pela Faculdade Diocesana de Mossoró – FDM.
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INTRODUÇÃO
Podemos sem sombra de dúvidas concordar com Aristóteles287que a felicidade
é o fim ao qual todas as coisas tendem. Mas essa felicidade, na interpretação de São
Tomás de Aquino, em Questiones Disputatae de Veritatae, q.1 a.1, é entendida como
sendo o bem ou o bom quando relacionado com o ente. Em outras palavras, essa
felicidade deve ser ordenada por meio de uma reta razão, visto que, tanto o bem como
o bom querem nos indicar a verdade. Para São Tomás o bem e o bom equivalem ao
que se entende como os dois apetites do ser humano, o apetito concupiscível e o
irascível, sendo o primeiro como apetites da alma e o segundo como apetites do
corpo288. Sendo assim, a felicidade se realiza quando ordenamos os apetites ao seu fim
último, isto é, Deus como Sumo bem.
Com os avanços no modo de ser e de pensar do homem devido à influência
da técnica e das novas descobertas, quem instigaram a razão a se auto-afirmar, vão
surgir nesse período outros critérios que serão parâmetros para o que nós chamamos
de felicidade, como podemos ver na filosofia de Descartes que apresenta a razão como
critério último da e para a felicidade. Com isso, nos perguntamos: existe algum
critério que determine a felicidade? Até que ponto é possível ser feliz considerando
somente a dimensão racional da vida?
Partindo desses questionamentos, que consideramos como problema
norteador da nossa reflexão, o presente texto tem como objetivo analisar o que
Descartes entende por felicidade e ainda em que sentido essa felicidade é determinada
somente pela razão, dado a influência do corpo no processo de construção da mesma.
Apesar de ser um filósofo conhecido, pensamos ser conveniente para uma
melhor compreensão daquilo que queremos tratar neste artigo, apresentar num
primeiro momento, ainda que de modo sucinto, as linhas principais da filosofia de
Descartes, dando destaque ao que o próprio filósofo considera como primeiro
fundamento do seu sistema de pensamento – o cogito. Partindo dessa primeira certeza,
entendemos também ser conveniente apresentar a dimensão antropológica, através do
dualismo alma/corpo que surge como consequência da verdade do cogito visto que,
esse dualismo vai ser o que consideramos a pedra angular de todo o tratado das
paixões.
Num segundo momento, de modo reflexivo, trataremos propriamente do
tema ao qual nos dispomos a discutir, a partir do tratado das paixões, dando destaque
aos argumentos que tocam mais precisamente ao nosso objeto de análise, isto é, a
287 ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco, p. 55. 288 São Tomás de AQUINO, suma teológica, Ia II q. 23.
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felicidade, procurando, acima de tudo, entender o pensamento do filósofo e como ele
justifica os seus argumentos.
Embasados pelo pensamento do filósofo, pensamos num terceiro e último
momento, apresentar em certo sentido a relevância do tema tratado, a partir do
confronto das ideias de Descartes com a de outros filósofos, procurando, assim, um
aprofundamento da questão com vista a uma melhor compreensão do mundo que nos
cerca.
1 - A FILOSOFIA DE DESCARTES
A filosofia de Descartes (1596 - 1650) se apresenta como sendo a filosofia de
transição, dado que seu modo de pensar se deu num período que poderíamos chamar
de conturbado289 da história, tendo em vista as muitas transformações sociais e
culturais do seu tempo. Essas transformações foram, como dirá Silva290, um campo
fértil para o desenvolvimento do pensamento do filósofo, que em certo sentido, se
apresenta como uma tentativa de ruptura com o modo de pensar tradicional. O modo
de pensar da tradição era centrado numa causa externa ao homem. Tal causa externa
era, na verdade, a crença num Deus transcendente, onipotente e onisciente, princípio e
fim de tudo e de todos.
Partindo do pressuposto que Deus é o fundamento de tudo, todo o
conhecimento era justificado no que podemos chamar de argumento de autoridade,
devido à extrema valorização da cultura antiga e dos dogmas, limitando, assim, o
saber a apenas “um conjunto de resultados, sem grande preocupação com o método e
com o fundamento”291, ou seja, com certeza de que tudo isso que está sendo ensinado
era de fato a verdade e não um aglomerado de erros que se consolidaram ao logo dos
anos como verdade.
Para Descartes, a realidade seja ela transcendente ou imanente deve ser
entendida a partir do pensamento enquanto pensado, isto é, toda a existência estava
fundamentada no cogito ergo sum292. Partindo desse fundamento racional, o filósofo
justifica as suas ideias a partir da razão, já que para ele toda a verdade que existe no
289 Período conturbado, devido às muitas transformações fruto das descobertas científicas, que
colocavam em xeque verdades tidas como inquestionáveis, como por exemplo, a verdade
presente nas sagradas escrituras. 290 Cf. SILVA, Franklin Leopoldo e. Descartes e a metafísica da modernidade, 2001, p. 12. 291 SILVA: 2001, p. 15. 292 DESCARTES, Discurso do método. 1983a, p. 46.
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mundo e nas coisas deve existir primeiro na mente que pensa, ainda que esse
pensamento seja duvidoso, como argumenta nas meditações metafísicas.
[...] não há, pois, dúvida alguma de que sou, se ele [Deus] me engana; e,
por mais que me engane, não poderá jamais fazer com que eu nada seja,
enquanto eu pensar ser alguma coisa [...] cumpre em fim concluir e ter
por constante que essa proposição eu sou eu existo, é necessariamente
verdadeira todas as vezes que a enuncio ou que a concebo em meu
espírito293.
Em outras palavras, nosso filósofo parte de uma causa eficiente, isto é, do
sujeito que pensa, tentando compreender assim a causa primeira e última das coisas.
Ao eleger a causa eficiente como causa primeira e última, Cartesius, como era
chamado em latim, contrariando a doutrina da unidualidade entre alma e corpo,
apresentada por São Tomais de Aquino294, defende a ideia de uma distinção real entre
a alma e o corpo, em que alma e corpo apesar de unidas substancialmente eram duas
realidades heterogêneas em que a primeira era entendida como res cogitans, (a coisa
pensante), isto é, a dimensão puramente racional, ou ainda espiritual; e a segunda
como res extensa (a coisa extensa), ou seja, entendida na dimensão da materialidade.
Dessas duas dimensões, a mais importante para Descartes é a res cogitans, por ser a
única capaz de lhe dá a certeza de um conhecimento indubitável.
E, portanto, pelo fato que conheço com certeza que existo, e que, no
entanto, noto que não pertence necessariamente nenhuma outra coisa à
minha natureza, ou a minha essência, a não ser que sou uma coisa que
pensa, concluo efetivamente que minha essência consiste somente em
que sou uma coisa que pensa ou uma substância da qual toda a essência
ou natureza consiste apenas em pensar295.
Partindo desta certeza indubitável do cogito, Descartes fundamenta todo o
seu sistema de pensamento, já que, seu objetivo é alcançar um conhecimento certo e
seguro que garantisse a verdade das coisas em si mesma, pois o método vigente não
293 DESCARTES, Meditações metafísicas, 1983b, p. 92. 294 Assim como Aristóteles, São Tomás entende o homem como constituído de alma e corpo,
sendo o corpo a matéria e a alma a forma, ou ainda, em linguagem tomista, alma= essência,
corpo= ente. Na summatheologiae I qq. 75-78, ele apresenta o homem como um composto de
alma e corpo, em que a alma é entendida como subsistente, pois é ela que dá forma ao corpo.
Apresenta ainda a união da alma e o corpo, refutando assim a teoria dualista de Platão. S. tomas
entende a natureza humana como um composto de corpus et anima unus. 295 DESCARTES, 1983, p. 134.
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possibilitava essa garantia. Como consequência dessa garantia, tinha-se a verdadeira
felicidade que nada mais era que viver a vida segundo a recta ratio296.
Portanto, toda a filosofia de Descartes tem como princípio e fim a razão.
Sendo assim, é a razão quem vai ordenar toda a vida do homem, até mesmo no campo
dos sentimentos e paixões, tal como argumenta no tratado das paixões da alma, como
veremos.
2 - A ARTE DE BEM VIVER CARTESIANA: A VIDA SOB A GUIA DA
RAZÃO
No tratado Lespassions de l’ame297, Descartes apresenta o que podemos
chamar de diretrizes para bem viver, ou seja, para ser feliz, como ele mesmo
argumenta no último artigo do tratado.
Como vimos inicialmente, motivado pelos novos ideais da época, e agora
mais ainda pelo seu próprio sistema de pensamento, Descartes tenta apresentar um
modo de pensar radicalmente novo como se ninguém antes tivesse feito ou pensado.
Por isso, tenta se desfazer das opiniões dos antigos concernentes a muitas questões,
dentre elas, a questão das paixões, pelo fato de considerá-los não muito acreditáveis298.
Na verdade, esse desejo de trilhar um caminho em que ninguém antes tivesse
tocado, tinha como objetivo, o que podemos chamar de uma clara distinção com a
tradição, mais precisamente com a tradição Aristotélico-Tomista, como vemos no
artigo 68, onde Descartes reconhece que, com a ordem que ele propõe, se afasta da
opinião de todos aqueles que até o momento escreveram sobre tal questão, visto que,
para o nosso filósofo, não há nada que distinga “na parte sensitiva da alma dois
apetites que chamam um concupiscível e o outro irascível”299. Ainda sobre esse ponto,
296 Do latim, significa reta razão. 297 Escrito em francês e publicado em novembro de 1649. O tratado está estruturado em três
partes. Na primeira parte, o filósofo apresenta as paixões em geral, ou ainda como são entendas
a partir da máquina do corpo. Na segunda parte, ele apresenta o número e a ordem das paixões e
a explicação das seis primitivas, a saber: admiração, amor, ódio, desejo, alegria e tristeza. E, na
terceira parte da obra, trata das paixões particulares, como elas se aplicam na vida prática e em
que sentido proporcionam a felicidade. Segundo alguns estudiosos, o tratado das paixões surge
como resposta às dúvidas da princesa Isabel, com quem Descartes durante muitos anos trocou
correspondências. Há ainda quem defenda que esse tratado seria um esboço das concepções
éticas do filósofo, dado que, toma como principio uma moral provisória, como apresenta no
discurso do método. (cf. DESCARTES, 1983a, p. 41 – 46). 298 O motivo pelo qual fazia Descartes desacreditar dos antigos, era pelo fato de que estes
entendiam as paixões a partir da dimensão do corpo, ou seja, do apetito sensitivo, e ainda pelo
modo de apresentar tais paixões como aparece na Suma de teologia Ia – IIaqq. 22 – 48. 299 (DESCARTES, 1983c, p. 244).
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R. Parellada destaca que: “frente à filosofia escolástica contemporânea, Descartes
nega as potências vegetativas e sensitivas da alma e sustenta que o calor corporal, a
nutrição, e a locomoção são atividades da máquina do nosso corpo”300.
Para Descartes as paixões são entendidas como ações, ou seja, as paixões que
se realizam na alma através das ações do corpo quando afetado pelas ideias
adventícias, quer dizer, das ideias que surgem devido ao contato com o meio externo.
Na primeira parte do tratado, nosso filósofo apresenta como se realizam essas
paixões através das ações do corpo, fazendo referência ao Tratado do homem, onde o
mesmo explica de modo detalhado a máquina do corpo. Contudo, no artigo 7 (da obra
que está sendo analisada) ele faz uma breve explicação de como esta máquina é
composta, como sabemos, de coração, cérebro, estômago, nervos e coisas semelhantes
e, ainda, de como funciona, isto é, dos movimentos desses membros301.
Na realidade, Descartes apresenta nesta primeira parte o que pode ser
chamado de fundamento físico das paixões, ou ainda, o que se pode chamar de a
natureza das paixões, em que o filósofo admite que o produto final resultante da ação
do mecanismo do corpo constitui a verdadeira origem das paixões.
As paixões acontecem propriamente na alma. No corpo acontecem as ações,
ou reações, em que, influenciados pelos objetos dos sentidos, produzem o que
poderíamos chamar de “paixões corporais”, como é o caso, por exemplo, da dor no pé.
O fato de sentir a dor no pé incita os espíritos animais a mover-se com intensidade
para o pé por meio dos nervos presentes no pé, possibilitando a movimentação dos
músculos do pé, devido à dor. Contudo, essa sensação da dor, como dirá Descartes, é
na verdade não no pé, mas na mente. A sensação ou percepção da dor é nada mais que
pensamentos presentes na alma, como virá especificado no artigo 27, onde o filósofo
define propriamente as paixões:
Depois de haver considerado no que as paixões da alma diferem de
todos os seus outros pensamentos, parece-me podemos em geral defini-
las por percepções, ou sentimentos, ou emoções da alma que referimos
particularmente a ela e que são causadas, mantidas e fortalecidas por
algum movimento dos espíritos302.
Tal conceito nos apresenta o cerne do que estamos tratando, visto que nos
apresenta com precisão os elementos que contribuem para o que pode ser constituído
300 “Frente a la filosofia escolástica contemporânea, Descartes niegalas potencias vegetativas y
sensitiva del alma y sostiene que el calor corporal, lanutrición y lalocomociónson atividades de
la maquina del nuestro corpo”(PARELLADA, 2000, p. 236) [tradução nossa]. 301 (Cf. DESCARTES, 1983c, p. 218-219). 302 (DESCARTES, 1983c, p. 227).
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como o bem viver cartesiano. Em que sentido? Seja na primeira, como na segunda
parte da explicação dessa definição, Descartes associa as paixões à dimensão
cogitativa, ou seja, apesar de não falar diretamente do cogito303, mas dá a entender que
é ele quem orienta todas as ações e reações do modo de ser do homem, seja
propriamente na alma, ou no corpo.
Se prestarmos bem atenção, podemos perceber que Descartes nessa definição
das paixões, apesar de não negar a distinção real da alma e do corpo, aponta para a
união substancial dos mesmos tentando justificá-la, quando diz:
Para compreender mais perfeitamente todas as coisas, é necessário saber
que a alma esta verdadeiramente única ao corpo todo [...]. Mas
examinando o caso com cuidado, parece-me ter reconhecido com
evidência que a parte do corpo em que a alma exerce imediatamente
suas funções, não é de modo algum o coração, nem o cérebro todo, mas
somente a mais interior de suas partes, que é certa glândula muito
pequena, situada no meio de sua substância304.
Essa glândula no centro do cérebro seria, na verdade, o ponto de encontro de
todas as ações e paixões. Sendo assim, todas as paixões tanto do corpo como da alma
seriam, na verdade, fruto da ação dessa pequena glândula, que une em si as
impressões dos objetos frutos dos sentidos. Tal glândula seria responsável, segundo
Descartes, por todas as paixões, pelo fato de mover tanto o corpo como a alma. Como
no caso, quando se estar com medo, a glândula moveria os espíritos animais às partes
do corpo que movem as pernas, incitando o indivíduo a correr, e/ou ainda, quando
queremos nos recordar de algo, essa glândula se move de tal modo a buscar nos
recôncavos do cérebro a coisa a qual buscamos305.
A movimentação da glândula tinha como objetivo favorecer o emprego das
paixões em dispor a alma a buscar as coisas que, segundo a natureza, seriam úteis, a
partir de uma certa ordem306. Essa ordem consistia em seis paixões consideradas como
primitivas, apresentada da seguinte maneira: admiração, amor, ódio, desejo, alegria e
tristeza307.
303 Ou seja, a reta razão como via para a felicidade, como vimos nas discussões com Elisabete. 304 (DESCARTES, 1983c, p. 228). 305 (Cf. DESCARTES, 1983c, p. 231). 306 (Cf. DESCARTES, 1983c, p. 241). 307 Essa ordem apresentada por Descartes, Segundo G. Lbrun é superior às demais, ou seja, as
apresentadas pela tradição, por permitir distinguir as paixões primitivas, contudo, Descartes não diz qual o critério para tal distinção. Cf. nota 73. In: R. DESCARTES. As paixões da alma, art.
68, p. 244.
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É, portanto, a partir dessas seis paixões ditas primitivas, que Descartes vai
desenvolver o que chamamos de a arte de bem viver cartesiana.
Segundo nosso filósofo, todas as nossas ações, escolhas, desejos etc., tem
como ponto de partida essas paixões. Em outras palavras, tudo o que acontece na vida
do homem, tanto de bom como de mau, é fruto da ação dessas paixões primitivas na
máquina do corpo, como é o caso, por exemplo, do amor e do ódio:
O amor é um a emoção da alma causada pelo movimento dos espíritos
que a incitam a unir-se voluntariamente aos objetos que lhes parecem
convenientes. (Já) o ódio é uma emoção causada pelo movimento dos
espíritos que incita a alma a querer está separada dos objetos que se lhes
apresentam como nocivos308
O amor e o ódio, somado e/ou subtraído a alegria e a tristeza, tem como
consequência as várias espécies de ódio e de amor, como é o caso do agrado e do
horror, em que um implica amor pelas coisas boas e belas, já o outro, ódio pelas coisas
más e feias.
Como vimos inicialmente, as paixões nascem da relação do corpo com a
alma, sendo assim, todas essas paixões de amor e ódio, alegria e tristeza se realizam a
partir da admiração e do desejo. Como assim? Apesar de serem consideradas por
Descartes como paixões, a admiração e o desejo podem ser entendidos como vias de
acesso, visto que, possibilitam, no caso da admiração, a considerar com atenção os
objetos que são tidos como raros e extraordinários, gerando, portanto, uma grande
força no cérebro a fim de conservar tal impressão, de tal modo a passar para os
músculos, ou seja, a mover os músculos em vista do objeto admirado309. No caso do
desejo, este dispõe a alma a querer para o futuro o que lhe parece conveniente. Em
outras palavras, abrem caminho para as quatro paixões de modo primário, antes
mesmo do nosso nascimento310.
Na realidade, Descartes tenta decifrar como acontecem as diversas reações do
corpo diante das paixões primitivas, ou ainda, como essas paixões primitivas
contribuem para as reações do corpo, como é o caso do movimento do sangue e dos
espíritos que causam as mais variadas paixões311. Prova disso são os sinais exteriores
dessas paixões, como por exemplo, das ações dos olhos, da mudança de cor312 etc. Se
observarmos bem, Descartes tenta justificar um modo de ser do homem, levando em
308 (DESCARTES, 1983c, p. 247). 309 Cf. Ibid, art, 70, 245. 310 Cf. R. DESCARTES.Tutte le lettere (DESCARTES, a Chanut, 1647), 2009, p. 2387. 311 Cf. R. DESCARTES.As paixões da alma, art. 96, p. 254. 312 Cf. R. DESCARTES.As paixões da alma, art. 112 a 114, p. 258 – 259.
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consideração somente a dimensão horizontal, por meio de uma total dependência
exclusivamente corporal, isto é, como vimos na primeira parte do tratado das paixões,
de modo eminentemente físico. Em outras palavras, para Descartes, o modo de ser do
homem é orientado pelo que poderíamos chamar de vontade de potência radicada no
cogito.
3 - RAZÃO, PAIXÃO E FELICIDADE: UMA REFLEXÃO
Como vimos, para Descartes o que importa para ser feliz é centrar a vida no
que ele chama de recta ratio, ou seja, uma felicidade menos passional e mais voltada
para a razão, que, por meio do domínio das coisas na ideia, o filósofo acreditava ter
também, neste campo, a garantia de uma felicidade certa e segura, uma felicidade
isenta dos erros dos sentidos.
Se observarmos bem, essa repressão excessiva dos sentidos, seja por não dar
muito crédito aos mesmos, seja pelo seu egocentrismo exagerado, quer indicar um
entendimento limitado acerca da vida. Contrariando tal limitação, Damásio argumenta
que é impossível pensar a vida a partir de uma só dimensão, pois,
Parece que a natureza criou o instrumento da racionalidade não apenas
por cima do instrumento de regulação biológica, mas também a partir
dele e com ele. Os comportamentos que se encontram para além dos
impulsos e dos instintos utilizam, em meu entender, tanto o andar
superior como o inferior: o neocórtex é recrutado juntamente com o
mais antigo cerne cerebral, e a racionalidade resulta de suas atividades
combinadas313.
Em outras palavras, admitir a distinção entre o andar superior e o inferior,
isto é, entre mente e corpo, é reconhecer uma incompletude na e da dimensão humana,
pois, apesar de divergentes quanto a sua função no que constitui o todo que é o ser
humano, ambas se completam.
Considerando o nosso segundo elemento de reflexão, a saber – a paixão –
esta se apresenta para o nosso filósofo como uma equação matemática, ou seja, como
a soma e/ou a subtração de determinadas ações que em certo sentido determinam o
ritmo da vida humana, tal como argumentamos acima ao referirmo-nos a segunda
parte do tratado. Partindo desse entendimento, a paixão deixa de ser um sentimento e
passa a ser um mero instrumento dos mecanismos da razão.
313 (DAMASIO, 1998, p. 157).
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Na visão de Scheler314, essa instrumentalização da paixão tirou do homem
moderno a capacidade de discernir de modo crítico tudo aquilo que o sentimento e a
vontade presentes no corpo têm de autêntico e inautêntico. Em outras palavras, essa
instrumentalização privou o homem de sair de si mesmo, dos seus esquemas de
pseudo felicidade, ou seja, das ilusões geradas pelo excesso de tanta racionalidade que
tende a tirar do homem a sua própria humanidade.
A felicidade não se limita nem se determina somente pela razão, nem tão
pouco, somente pelos sentimentos, mas pela união desses dois elementos quando se
colocam em relação de reciprocidade, visto que, como dirá Buber315 é essa
reciprocidade o ato vital da existência humana e fora dela não há vida, visto que, fora
dessa relação o homem perde a sua dignidade de ser pessoa, quer dizer, perde a sua
autonomia. Sendo assim, a felicidade tão desejada pelo homem, só será realmente reta
quando for entendida a partir da dualidade como reciprocidade, ou seja, como abrir-se
ao mundo do outro tanto em sentido horizontal, como vertical, visto que, só é possível
entender o eu a partir do tu. Em outras palavras, é impossível ser alguma coisa sem o
reconhecimento do outro como parte constitutiva do meu eu. Sendo assim, a felicidade
se realiza plenamente na relação.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Apesar de não ser nossa pretensão esgotar as discussões acerca da questão
tratada, mas antes, contribuir para uma reflexão em vista de uma melhor compreensão
do sentido da vida hoje, apresentamos como conclusão o que consideramos como os
seguintes resultados da nossa pesquisa.
Considerando a vida em sua amplitude e complexidade e ainda as
contribuições deixadas por Descartes no que diz respeito à compreensão do ser
humano como sujeito, como indivíduo que tem uma subjetividade que o constitui
como ser único, podemos, portanto, concluir que a felicidade que o ser humano tanto
anseia, não se limita a simples critérios humanos, mas vai além das capacidades
cognitivas e sensitivas, visto que o ser humano como horizonte vertical é chamado a
transcender as categorias do espaço e do tempo, chamado pela sua própria essência, a
responder ao seu criador316. Ao pensar assim, entendemos que não existe um
entendimento acerca das questões existenciais no que toca à felicidade, sem uma
abertura ao transcendente, pelo fato de que, sem essa abertura, corre-se o sério risco
314 (SCHELER, 2008, p. 90). 315 (BUBER, 2003, p. 04). 316 (Cf. L. LUCAS, 2007, p. 260).
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de se cair no que consideramos como as esquizofrenias da razão que faz do homem
escravo de si mesmo.
Podemos concluir também que a felicidade, apesar de não ter um critério
único e definitivo, como pensava Descartes, não se define somente por critérios
subjetivistas, como os instintos, os desejos, ou ainda critérios utilitaristas de prazer e
de poder. Mas, considerando as necessidades existenciais do individuo, se nos
apresenta como um estado de satisfação de todas as dimensões da vida humana, tendo
em vista que o ser humano é um composto orgânico e, sendo assim, não se limita, nem
se constitui de uma só dimensão da vida, mas devido a sua estrutura, tem necessidades
que se ligam a todas as dimensões de sua existência, por serem essas necessidades
norteadoras do modo de ser dos indivíduos, como é o caso da felicidade enquanto em
relação com a razão e a paixão.
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