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Falling - Tatiana Mareto Silva 1 01 NOVA Eu estava desabando em um abismo sem fim. Sentia seu corpo caindo e a resistência do ar não era capaz de manter-me. Abri os olhos, assustada, e limpei uma gota de suor que se formava na têmpora esquerda. Respirando com dificuldade, apalpei o espaço ao meu redor até ter certeza absoluta que estava em minha cama. Movi o olhar e assegurei estar em meu quarto. Tinha sido um sonho, mais um sonho estranho, daqueles que vinha tendo desde que meu pai fora brutalmente assassinado em um assalto. Nada estava sendo muito fácil para mim, desde aquele ano. Mais um semestre estava se encerrando, o verão estava chegando, e eu não conseguia me concentrar em muita coisa. Esforcei-me para que aquilo desse certo; esforcei-me para fechar todas as minhas notas entre o A e o A+, porque eu sabia, mais do que ninguém, o quanto aquilo era importante. Mas eu não iria ficar me lamentando. Eu não aceitava lamentar-me por nada; auto piedade nunca combinou comigo. Anos já haviam se passado, eu precisava superar aquilo. Desde que eu entrara na universidade, um humor estranho me havia dominado. Eu parecia outra pessoa, completamente diferente de

Falling

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Fanfiction escrita por mim, baseada na série "Hush Hush" de Becca Fitzpatrick

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01 – NOVA

Eu estava desabando em um abismo sem fim. Sentia seu corpo caindo

e a resistência do ar não era capaz de manter-me. Abri os olhos,

assustada, e limpei uma gota de suor que se formava na têmpora

esquerda. Respirando com dificuldade, apalpei o espaço ao meu

redor até ter certeza absoluta que estava em minha cama. Movi o

olhar e assegurei estar em meu quarto. Tinha sido um sonho, mais

um sonho estranho, daqueles que vinha tendo desde que meu pai

fora brutalmente assassinado em um assalto.

Nada estava sendo muito fácil para mim, desde aquele ano. Mais um

semestre estava se encerrando, o verão estava chegando, e eu não

conseguia me concentrar em muita coisa. Esforcei-me para que

aquilo desse certo; esforcei-me para fechar todas as minhas notas

entre o A e o A+, porque eu sabia, mais do que ninguém, o quanto

aquilo era importante. Mas eu não iria ficar me lamentando. Eu não

aceitava lamentar-me por nada; auto piedade nunca combinou

comigo. Anos já haviam se passado, eu precisava superar aquilo.

Desde que eu entrara na universidade, um humor estranho me havia

dominado. Eu parecia outra pessoa, completamente diferente de

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quem eu era. Nora Grey, a menina estudiosa que sempre tirava as

melhores notas, e que nunca se metia em encrenca, estava de férias.

Aquela Nora, que havia me dominado desde que o diretor anunciou o

primeiro dia de aulas, na University of Southern Maine, era uma

mulher diferente. Sim, ela era uma mulher. Não uma garota, não a

filha órfã de um pai assassinado, cuja mãe passava mais tempo

trabalhando do que em casa. Eu não era mais aquela que fazia terapia

duas vezes na semana. Irreconhecível, Vee disse, quando ela

finalmente me chamou para a realidade e me fez ver em que eu tinha

me transformado.

Aquela nova sensação de perigo, de adrenalina, de fazer a coisa

errada, me levou ao encontro de um “eu” desagradável. Eu não tinha

mais necessidade de cumprir regras, eu não dançava mais conforme

a música. E eu, invariavelmente, fazia tudo errado. O relógio tinha

dado as onze badaladas e Dorothea despediu-se de mim, com um

beijo na testa. A senhora de ascendência alemã, que ainda cuidava da

casa na ausência de minha mãe, era uma excelente pessoa. Uma

companhia agradável, apesar de muito falante. E eu estava apenas

esperando que ela saísse para escapar de casa, e perder-me na noite.

Eu não liguei para Vee, nem contei a ela o que planejava. Ela era

ainda uma boa garota, e ela merecia ficar fora daquilo. Eu sabia que

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eu também era uma boa garota, mas aquela fase não passava nunca.

E as altas temperaturas pioravam muito minha situação. O calor me

fez selvagem, cruel, diferente. Eu tinha certeza, a cada retorno para

as aulas e minhas prioridades, que eu seria levada de volta ao rumo

certo. Mas eu não queria pensar naquilo, então. Deixar Vee de fora

daquela parte da minha vida era uma demonstração de que eu a

amava, apesar de ela não aceitar aquilo como prova de amor.

Estacionei em frente a um emaranhado de lojas que se misturavam

na escuridão da noite. Alguns letreiros estavam ilegíveis, embaçados

pela imundície das lâmpadas e pela chuva de verão que tinha apenas

começado. Uma placa de neon amarelo e vermelho indicava

“Fliperama do Bô”, e eu sabia que estava no lugar certo. Procurei

minha carteira em meu bolso, e parei um instante para contabilizar

meu visual. Eu usava jeans escuros, justos e de cintura baixa; uma

blusa rosa com algum brilho, amarrada na cintura, que dispensava

sutiãs. Gloss cereja nos lábios e um pouco de rímel e delineador nos

olhos. O cabelo estava cuidadosamente preso para trás, com

pregadeiras de strass.

Aquela pessoa não era Nora Grey.

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Sacudi a cabeça para espantar os pensamentos e dirigi-me à entrada

do bar, colocando uma nota de vinte dólares por sobre o balcão que

vendia bilhetes. O homem de cabelos longos, sem corte e

despenteados, coberto por tatuagens, entregou-me um papel meio

amassado e meio sujo de gordura, com um carimbo vermelho escrito

“LIBERADO”, e cinco dólares de troco. Não sorri para ele quando

peguei o papel e enfiei no bolso traseiro de minha calça. Eu tinha,

então, dez dólares para gastar em um fliperama. Esperava que me

pagassem bebidas, se alguém ali estivesse interessado em uma garota

de vinte e um anos.

O fliperama estava cheio de rapazes da minha idade, talvez um pouco

mais velhos. Sentei-me no bar e pedi um dry Martini, mesmo sem

saber beber. Eu nunca tinha colocado álcool na boca, além de um

pouco de cerveja, de algumas festas de fraternidades. Eu não era

popular, então não frequentava fraternidades; eram apenas alguns

momentos únicos, em que eu precisava celebrar. Não durou muito, o

que significou que eu estaria de volta ao limbo social. Não perguntei

quanto custaria o drinque, apenas pedi. Com a taça elegante nas

mãos, examinando a azeitona que boiava na bebida, caminhei até as

máquinas e parei em frente ao pinball.

O que eu não sabia era que eu jogava muito mal.

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Meu dinheiro durou apenas cinco rodadas no fliperama. Eu perdia

tão rapidamente que pensei que viraria sensação – a maior derrotada

de todos os tempos. Se houvesse uma classificação negativa de

jogadores, eu a encabeçaria. Anos de abstinência social, pensei.

Aquelas coisas não mudavam como o humor feminino. Sem ter mais

como jogar, e nada interessada em desistir da noite antes mesmo que

ela começasse, perambulei pelo ambiente, observando o movimento.

Notei que havia uma escada que me levaria a um porão, cheio de

luzes e movimento. Desci.

A primeira imagem que vi, ao chegar ao porão, foi a do rapaz

curvado por sobre uma mesa de sinuca. Os jeans largos

escorregavam pelos quadris, exibindo displicentemente a beirada

bordada das boxers Calvin Klein. A camiseta preta estava suspendida,

enquanto ele se esticava para tentar uma tacada certeira. Ele estava

na última de cinco mesas, mas eu o vi, somente. Duas pessoas o

observavam, em completo silêncio. Em segundos, ele mirou,

disparou o taco, acertando a bola branca, e encaçapou a bola nove.

Eu deveria estar enganada, mas aquele era Patch Cipriano. Ele

estudou Biologia comigo, no segundo ano na Coldwater High. Eu não

deveria lembrar-me dele, aquela foi uma época sombria da minha

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vida. Perdi meu pai, perdi a casa onde eu morava, perdi tudo que eu

tinha que significava alguma coisa para mim. Apenas minha mãe

sobreviveu ao tornado que varreu minha existência, e alguns

prejuízos em nosso relacionamento nunca foram recuperados. Mas

eu o reconheci tão logo eu o vi, só não sabia que ele tinha continuado

no Maine. Ele nunca me pareceu muito o tipo que faria faculdade,

mas também não me parecia o tipo que criava raízes.

Deixei que meus pés me conduzissem até a mesa que ele jogava, e

que já estava rodeada de garotas, e parei, observando-o. Eu queria

poder dizer que estava observando o jogo, mas seria uma grande

mentira. Foi ele que capturou minha atenção no mesmo instante em

que eu o vi – e eu não sabia de onde tinha vindo aquilo. Talvez da

taça vazia de Martini em minhas mãos. Depois de algum tempo

vendo o jogo, sentindo a garganta seca, decidi sentar-me no bar que

ficava no porão e esperar, para ver se alguém se interessava em me

oferecer algo. Virei-me de costas para as mesas de sinuca, apoiando

os cotovelos no balcão.

— Um conhaque puro. – A voz masculina ecoou no meio do barulho,

bem próxima ao meu ouvido. Virei-me subitamente, sentindo um

arrepio gelado, apesar do sopro de ar quente que me atingira as

costas nuas. – Nora Grey. – Ele sorriu para mim, um sorriso parcial,

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apenas as laterais dos lábios erguidas. Havia um cheiro de menta que

o seguia, e considerei se eu deveria recordar-me daquele cheiro.

— Boa noite. – Eu disse, confusa. Ele se lembrava de mim, e aquilo era

definitivamente estranho. – Nós nos conhecemos?

— Pelo tempo que você passou olhando-me jogar, eu acredito que

sim.

Ele tinha percebido. E eu achando que sabia ser incógnita.

— Sim, claro. Eu não tive certeza, pensei que você me fosse familiar.

Patch, certo?

— Isso mesmo. – Ele virou completamente a face para mim. Seus

olhos negros pareciam conter toda a noite dentro deles, e a visão que

eles me proporcionaram foi chocante. Imediatamente, olhei para o

balcão e para meu copo completamente vazio. – Você não está

bebendo nada?

— Apostei todas as minhas fichas na máquina de pinball – e perdi.

— Você não pode jogar Star Wars. – Ele pareceu saber o que falava. –

A máquina está viciada, é uma engolidora de fichas. – Com um

movimento das mãos, Patch chamou a atenção do barman e pediu

que ele me servisse outro drinque, exatamente igual ao que eu tinha

bebido.

— Então, está de férias também? – Quis ser simpática, puxar assunto.

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— Você nunca veio aqui, não é verdade? – Ele ainda me encarava, e

eu mal conseguia erguer o olhar.

— Estou estudando em Portland desde que terminamos o ensino

médio; é a primeira vez que volto a Coldwater.

— Então está explicado. – Ele sorriu e desviou o olhar. Nossas bebidas

foram servidas, e Patch bebeu seu conhaque em um só gole. – Ao

menos você me reconheceu; isso é bom.

— Eu não reconheci você. – Menti, sem saber como ele tinha

percebido.

— Da mesma forma que eu reconheci você. Espero que as coisas

estejam melhores para você, Nora Grey. Menos fantasmas na sua

vida.

Franzi o cenho e ergui o olhar. Eu sabia que Patch Cipriano era um

garoto estranho, e ele então se mostrava um adulto estranho. Talvez

eu fosse a estranha, porque aquele não era o meu mundo. Eu não

pertencia àquele lugar; estava ali em um arrobo de insanidade que

me fez querer ser rebelde tarde demais. Mas algo na forma em que

ele pronunciou os fantasmas da minha vida deu a exata medida do

que ele quis dizer; ele sabia.

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— A vida precisa seguir. – Preferi ser honesta. – A faculdade não me

deixa com muito tempo livre, então não tenho tempo para temer o

bicho papão.

— Você tem compromisso amanhã?

De onde tinha saído aquilo, também, eu não sabia.

— Não. Sim. Quero dizer, provavelmente. – Engasguei com o Martini.

— Quando você decidir, avise-me. Haverá uma festa no Delphic,

como nos velhos tempos. Um pouco cheio de garotos, mas pelo menos

agora podemos comprar nossa própria bebida.

— Você está me convidando para sair? – Eu mal conseguia acreditar.

— Entenda como quiser.

Patch levantou-se, caminhando em direção às mesas de sinuca mais

uma vez. Antes de sair, avisou ao barman para me servir o que eu

quisesse, na quantidade que eu quisesse. A Nora Grey do ensino

médio não aceitaria aquele convite, menos ainda bebidas gratuitas.

Mas eu não era mais aquela pessoa, certo?

Aproximei-me da sinuca novamente, os olhos ainda vidrados na

imagem de Patch. Ele pegou um taco, colocou dinheiro por sobre a

mesa, e entrou em um desafio. Ele sabia o que estava fazendo, ele

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pertencia àquela realidade. Senti como se ele fizesse parte realmente

daquilo – e senti uma estranha atração pelo perigo que tudo

representava. Pensei se alguma vez eu considerei ver Patch com

aqueles olhos, quando estudamos juntos por dois anos. Se eu, algum

dia, poderia olhar para ele e não ver um cara esquisito, que se vestia

como um criminoso.

02 – UMA LISTA

Eu não podia ir até Delphic Beach sozinha. Eu já tinha ultrapassado o

limite da minha estupidez, e mesmo uma recém-descoberta Nora

Grey sabia até onde avançar. Tão logo acordei, no dia seguinte, um

lindo sábado de sol, disquei os números tão conhecidos de Vee. Nós

continuávamos melhores amigas, quase como se nos pudessem

considerar gêmeas. E fisicamente, ainda éramos as mesmas. Vee e

seu problema de sentir-se acima do peso, eu mais alta e mais esguia

do que a maioria das garotas.

E eu precisava recordar-me que não era mais uma garota.

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— Quais são seus planos para hoje? – Perguntei, da mesma forma que

fui perguntada.

— Bom dia. – Vee deu uma risadinha, e eu podia apostar que ela

estava se espreguiçando, acordando naquele instante. – Eu não tenho

nada em mente, você?

— Estou sabendo que haverá uma festa no Delphic.

— Festa? Delphic? Ah, quase esqueci que você é o alien que abduziu

minha amiga. Você pretende ir?

— Quero companhia.

— Seu namorado sabe disso?

Oh, o namorado. Eu às vezes esquecia-me dele. Fazia parte da nova

Nora Grey, ser cruel com o namorado, esquecer-se que ele existia;

sair de férias sem desejar levá-lo. De fato, fazia parte, da nova Nora

Grey, ter um namorado. Eu nunca me interessei por rapazes, e eles

não ficaram mais atraentes à medida que ficaram mais adultos.

Tirando eu mesma, nada mudou só porque eu tinha vinte e um anos,

um emprego na universidade e estudava engenharia física, ao invés

de ciências.

— Scott não está em Coldwater. – Rangi os dentes.

— Claro, você o excluiu da viagem.

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— Vee, eu vim passar as férias em casa. Vejo Scott todo dia na

faculdade, e ele nem é daqui. Ele tem a família dele para ver, suas

coisas para resolver.

E eu não queria dizer que a presença dele não era desejada, naquele

verão. A verdade é que Scott já tinha me cansado, um pouco. Eu

estava com ele há um ano, e tudo que fazíamos eu poderia ter feito

aos meus quinze anos. Nosso relacionamento não tinha qualquer

perspectiva de evolução.

— Está bem, está bem. A que horas eu te pego? Ou o velho Spider

ainda consegue chegar até lá?

— Prefiro que você me pegue. Às dezoito, está bom?

— Nora, você tentando ser diferente é muito engraçada. Dezoito

horas? Vamos a uma matinê?

— Então, que horas? – Vee tinha razão. Apesar de ela continuar

sendo a boa garota e eu ter-me perdido um pouco, ela sabia muito

mais o que fazer do que eu. Eu tinha boas intenções, se aquilo

contasse.

— Pego você às vinte e uma, esteja linda. Use aquela frente única

estampada que compramos, ou aquele sutiã da Victoria Secrets.

— Vee, eu pensei que você estivesse preocupada com a ausência de

Scott.

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— O namorado é seu, se você não liga...

Novamente, ela tinha razão. Eu não ligava, e a sensualidade era uma

arma que eu poderia usar. Como se eu soubesse realmente fazer

aquilo, eu me produziria para uma noite espetacular, mesmo em um

lugar tão estereotipado como o Delphic. Eu nada tinha para fazer

durante o dia, então aproveitei a ausência da minha mãe para

colocar minhas coisas em ordem. Meu quarto estava muito

bagunçado, eu não tinha organizado nada desde a última vez em que

estive em casa. Eu não passava férias em Coldwater há quatro anos, e

pouco retornava. Desde que mamãe precisou vender a fazenda para

pagar as contas, e tivemos que nos mudar para um condomínio no

centro da cidade, eu perdi as referências de lar. Nada daquilo me

pertencia, nada daquilo me lembrava de nada conhecido.

Quando Vee chegou para me buscar, eu já estava perfeitamente

pronta para a noite. Os cabelos estavam ligeiramente domados, os

cachos naturais pendendo pelas laterais da minha face; os mesmos

jeans do dia anterior, a blusa sugerida por ela. Fazia tanto calor que

eu não poderia pensar em melhor escolha. Uma leve maquiagem na

face me proporcionou uma cor melhor. Eu parecia ainda mais pálida

sob a luz do luar. O celular vibrou por sobre a cômoda, com a mesma

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mensagem de sempre. “ESTOU PARADA NA SUA PORTA”, era o

recado.

Vee não usava mais o Neon; ela tinha ganhado um lindo carro de seu

pai, quando foi admitida na faculdade. Ela dirigia uma Cherokee, e eu

sempre preferia andar com ela a encarar meu velho Fiat Spider. As

rodas do carro dela eram maiores do que eu.

— Você está sexy. – Ela disse, sorrindo.

— Você também.

— Eu sempre estou.

Tudo no Delphic era exatamente como quatro anos atrás. Coldwater

não tinha evoluído absolutamente nada – e nem eu. Mudar e evoluir

eram conceitos completamente diferentes, não necessariamente

excludentes. Desci da Cherokee com olhos atentos, observando a

multidão. A maioria dos jovens já estava se preparando para voltar

para casa, e depois das vinte e duas, apenas os adultos restariam. E

eu esperava encontrar alguém.

— Ontem eu estive no Bô. – Disparei, tentando introduzir o assunto

para Vee. O fato de que eu a obrigaria a aceitar uma terceira pessoa

no grupo.

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— Credo, o que foi fazer lá? – Ela torceu o nariz, enquanto procurava

uma mesa limpa para sentarmos. A primeira parada de Vee, no

Delphic, era sempre nas barracas de comida. – Aquele lugar não é

para você, Nora Grey. Não tem ninguém que valha a pena, melhor

manter seu namorado, mesmo.

— Eu vi Patch Cipriano lá. – Estava esquentando.

— Patch quem? – Vee me encarou, com uma sobrancelha erguida. –

Diga logo, Nora. O que você quer com esses rodeios?

— Ele estudou conosco, na Coldwater High. Fazia Biologia na nossa

sala.

— A personagem de filme de terror?

— Sim, isso mesmo.

— Ele continua indo ao Bô? Aposto que nunca foi à faculdade, e que

trabalha na oficina do pai. Se é que ele tem pai. Ele é muito esquisito,

Nora. Nunca mais o tinha visto. Mas por que ele surgiu na conversa,

agora?

— Ele me convidou para vir aqui, hoje.

Vee bateu com as duas mãos espalmadas na mesa, fazendo um ruído

enorme.

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— Ah! Eu sabia! Tinha que ter alguma coisa por trás dessa sua ideia

de vir ao Delphic! Você nunca gostou daqui, e de repente me convida

para uma festa? Mas... Patch Cipriano?

— Eu quis ser educada, e aceitar.

— Não, você não quis! A nova Nora teria dito um “não” bem redondo

na cara de qualquer um!

— Tudo bem, eu não quis. É que ele...

— Ele deve estar lindo, como sempre. – Vee matou a charada, e me

poupou o sofrimento de confessar aquilo para ela. – Se ele está como

tudo em Coldwater High, ainda veste botas, jeans Levi‖s e camisetas

de bandas de rock. E deve estar ainda mais definido, com quatro anos

a mais de academia.

— Exatamente isso. Ele me reconheceu, eu o reconheci. Ele me pagou

um drinque, e cá estamos.

— E onde ele está?

Aquela pergunta era excelente. Eu não tinha sido cuidadosa o

suficiente para pegar o telefone dele, ou para deixar meu número

com ele. Não marcamos horário nem ponto de encontro, eu apenas

disse que iria. Não era um encontro, eu preferia acreditar. Ficaria

difícil achá-lo na multidão, sem uma referência qualquer. Mas eu o

estava subestimando. Enquanto Vee foi até o caixa comprar alguma

coisa para comermos, deixei meus olhos se perderem entre os

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brinquedos antigos do parque de diversões que funcionava em

Delphic Beach. Distraí-me por alguns minutos, sentindo a brisa bater

em meus cabelos, quando notei que alguém se aproximava.

— Nora Grey. – A voz de Patch não me era familiar, mas soou muito

bem. Virei-me subitamente para ele, que tinha acabado de sentar-se

na cadeira ao meu lado. Sua pele lisa parecia recém-barbeada, e ele

cheirava a menta e tabaco. – Por sorte não apostei na sua ausência

aqui, hoje.

— Você tem o hábito de apostar se as pessoas vão ou não comparecer

aos compromissos?

— Eu duvidava que você viesse. – Ele sorriu. – Mas imagino que não

tenha vindo sozinha. – Os olhos dele capturaram a bolsa de Vee, que

descansava por sobre uma terceira cadeira.

— Minha amiga, Vee Sky. Estamos ambas de férias, em Coldwater.

— Se eu soubesse, poderia ter trazido um amigo também. Assim ela

teria distração.

— Não acredito que Vee se interessaria por seus amigos.

E a nova Nora entrava em ação. Eu jamais teria dito aquilo, antes.

— Imagino que não. – Ele não pareceu importar-se. – Mas teria sido

uma tentativa válida.

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— Você quer beber alguma coisa? Eu posso...

— Vou buscar duas cervejas. – Ele interrompeu-me. – Na verdade,

vou buscar três. Não quero ser rude com sua amiga.

Patch levantou-se, e caminhou em direção ao caixa. Virei-me

novamente, e vi Vee parada, olhando para mim, com a expressão que

eu tanto conhecia.

— Uau. – Ela disse, voz baixa, falando apenas para que eu entendesse.

– Ele? Uau! Realmente, homens são como vinho. Quanto mais passa o

tempo, melhores eles ficam.

— Não seja assanhada, Vee.

— Ora, o que me impede? Não sou eu que tenho namorado.

— Você não precisa me lembrar de Scott toda hora, sim? Eu sei que

ele é meu namorado.

— Mas não parece. Você quase parou de respirar quando o Sr.

Maníaco sentou do seu lado.

— Ele não é um maníaco.

— Ele se veste como um. Ele anda como um. Ele tem uma faca no cós

da calça, como um maníaco teria.

— Ele não tem uma faca! – Eu olhei assustada para Vee, sem entender

de onde ela tinha tirado aquela ideia. Ela torceu os lábios e, muito

calmamente, apontou para onde ele estava. Patch esperava pelo

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atendente da barraca de bebidas, e estava de costas para nossa mesa.

Podia-se ver o artefato metálico, com cabo preto, meio preso aos

seus jeans. – Bem, talvez ele tenha. Isso não o torna um maníaco.

— Você já foi mais prudente. Mas tudo bem, se quiser encarar, eu te

apoio. Ele tem mesmo uma bunda linda.

Não era nada daquilo, mas eu não podia esperar de Vee uma

interpretação diferente. Ela sempre foi hipersexualizada, e tudo para

ela era relacionado a homens e sexo. Eu, ao contrário, não ligava a

mínima para sexo. Antes que nossa conversa prosseguisse e atingisse

o nível de classificação restrita, Patch juntou-se a nós. Ele olhou para

Vee de cima, com uma expressão não amistosa, e então apoiou três

copos plásticos com cerveja, sobre a mesa.

— Um amigo meu, Rixon, está por aqui. Ele acaba de me ligar; vocês

se importam se ele se juntar a nós? – Ele disparou, sentando-se e

colocando um aparelho Blackberry no tablado.

— Claro, por que não? – Vee sorriu, e percebi que foi um sorriso falso.

Alguma tensão estabelecida entre eles. – Ele é membro da mesma

gangue que você?

— Pode dizer que sim. – Patch deu uma risada baixa, olhando

inadvertidamente para mim.

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— E então... Patch. – Minha amiga não me daria qualquer trégua. –

Você está morando ainda em Coldwater?

— Você pode dizer que sim. – Ele pareceu entediado, nada

interessado em responder perguntas. Olhei diretamente para Vee,

com aquela expressão de quem a estava pedindo para parar. O

celular dele vibrou, e ele leu uma mensagem. – Rixon chegou.

O amigo que ele decidiu levar para distrair Vee certamente poderia

ter sucesso em sua missão. Um homem alto, magro, de feições suaves

e muito bonito, vestindo uma camiseta azul marinho e jeans retos.

Ao contrário de Patch, ele não se parecia com o membro de uma

gangue. Eu pude notar a surpresa positiva nos olhos de Vee quando

ela foi apresentada a ele. Rixon sentou-se conosco, já trazendo sua

própria cerveja. Conversamos uma meia hora sobre nada, até que ele

decidiu arrastar minha amiga para longe de mim. Com um convite

que ninguém recusaria, ele perguntou se Vee estaria interessada em

ajudá-lo a superar o medo de altura na roda gigante, e prometeu

comprar para ela algodão doce.

Nenhuma mulher resiste a algodão doce.

Sem minha companhia para me apoiar, era eu sozinha com o Sr.

Maníaco. A piada interna quase me rendeu uma gargalhada externa,

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me alertando que precisava tomar cuidado. Tanto com minha língua

quanto com a pessoa sentada ao meu lado.

— Você quer superar o seu medo de altura, também? – Ele disse,

olhando diretamente para mim.

— Eu não tenho medo de altura. – Ele sabia, novamente. Aquilo me

incomodou só um pouco; ele parecia saber mais sobre mim do que

era autorizado a um estranho.

— Você mente mal. – Ele sorriu, movendo a cabeça para trás. – Eu

estava pensando em um passeio no Arcanjo, você já andou nele?

Sim, e a experiência foi horrível. Tanto que eu a tinha bloqueado.

— Não, nunca. – Menti mais um pouco. – Mas não gosto desses

brinquedos, a estatística mostra que eles não sofrem a manutenção

adequada e isso é a causa de muitos acidentes.

— Prefere algo menos violento, como os carrinhos?

Patch apontou na direção da pista de carrinhos, e senti meu coração

acelerar. Eu costumava adorar aquela diversão com meu pai; eu e ele

éramos uma grande dupla. Desde que ele morreu, eu nunca mais

sentei em um carrinho daqueles. As lembranças eram dolorosas. E eu

precisava, definitivamente, superá-las.

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— Uma corrida? – Desafiei.

— Se você conseguir terminá-la.

Ele era melhor do que eu, pensei. Patch pagou nossos ingressos, e

colocamos capacetes para poder correr. A pista não era muito grande,

ficávamos andando em círculos a maior parte do tempo; a diversão

estava em bater no adversário. Os carros eram revestidos de

borracha, e tinham para-choques por toda a extensão. A pista era

cercada, também revestida de borracha. Esmagar o adversário era a

aposta mais alta, e Patch estava realmente apostando. Ele conversou

brevemente com algumas pessoas que pareciam tão mal encaradas

quanto ele, e tirou algumas notas de dez dólares do bolso.

— Estão pagando cinco por um. – Ele disse, sorrindo, ao aproximar-se

novamente. – Você é um azarão interessante; espero que esteja

pronta para me destruir.

Com um capacete preto, Patch entrou em um dos carrinhos, e eu o

segui. Havia outras pessoas correndo, mas percebi que a disputa era

entre nós dois. Eu parecia realmente uma garota que não tinha a

menor aptidão para fazer aquilo, mas eu não era assim tão ruim.

Persegui-o durante várias voltas, e nossos carros se bateram bastante.

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Na última volta, joguei meu carrinho em cima dele e o encurralei

entre alguns pneus. A ultrapassagem se deu a poucos metros da linha

de chegada – e eu venci a corrida.

Apesar da derrota, Patch tinha um sorriso malicioso nos lábios

quando tirou o capacete. Seus cabelos, um pouco mais compridos do

que deveriam ser, estavam suados e alguns fios grudados em seu

pescoço. Ele passou a mão pela nuca, deslizando os dedos pelo cabelo,

e aproximou-se de mim, os músculos expostos pelas mangas da

camisa.

— Deixar você ganhar não foi tão ruim. – Ele mostrou um bolo de

dinheiro, em sua mão.

— Deixar? – Protestei. – Você não me deixou ganhar; eu venci.

— Claro, anjo, porque eu deixei.

— Como é que é? – Meus ouvidos deveriam estar me enganando. –

Você me chamou de que?

Ele deu uma risada baixa, caminhando em direção ao Arcanjo.

— Estou feliz que você esteja de volta, Nora Grey. – Patch disse, e eu o

segui.

— Eu não estou de volta, eu estou apenas de férias. – Protestei

novamente.

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— Estou feliz que você tenha decidido passar as férias aqui. – Ele

corrigiu sua frase. Com a mão direita, colocou o dinheiro no bolso

traseiro da calça e pegou um pedaço de papel amarelado, escurecido,

colado com fita adesiva.

— O que é isso? – Eu ainda não tinha entendido. Ele deixou o papel na

minha mão. Era uma folha de caderno, e aquela era a minha letra.

— Você deixou isso para trás, na segunda vez que falou comigo.

Fliperama do Bô, quatro anos atrás, trabalho de Biologia.

O papel continha uma lista. Pude observar que eram características

de alguém, e estavam escritas e rabiscadas, como se eu estivesse com

dificuldades para me decidir. “BABACA”, era a primeira palavra. Na

segunda linha, podia-se ler “FUMA”, e a frase riscada que vinha à

frente, “VAI MORRER DE CÂNCER”.

— O que é isso? – Repeti-me. Meu cérebro deveria ter bloqueado

aquele momento, porque eu não me lembrava de ter escrito aquilo.

Mas era a minha letra.

— Quando você se lembrar, conversamos. – Ele não parecia

interessado em me revelar nada.

Olhei novamente para o papel, meio atordoada. Embaixo de uma lista

que se completava com “GOSTA DE OUVIR METAL” e “GOSTA DE

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COMER GORDURA”, ainda havia “VESTE CALVIN KLEIN”. Minhas

bochechas arderam, e pude sentir o sangue se acumular em minha

face ao ler meus devaneios, mais abaixo.

“Preciso trocar de parceiro. Ele é lunático. Ele insiste na história de me beijar

– eu vou acabar lhe dando um soco quando ele falar isso de novo.”

— Você guardou isso por quanto tempo? – Eu ainda estava incrédula.

— Eu esperava poder realizar meu sonho, em um futuro próximo. –

Patch aproximou-se rapidamente de mim, encurralando-me entre a

cerca do Arcanjo e seu corpo. Prendi a respiração, evitando sorver

seu aroma, que estava misturado ao suor. Minha cabeça pendeu para

trás, e só depois me dei conta do movimento perigoso que estava

fazendo. O calor do corpo de Patch me causou uma sensação

desconfortável, e coloquei as duas mãos em seu peito, também sem

me dar conta daquela imprudência. Eu só queria afastá-lo.

— Próximo demais. – Murmurei, em uma frase de duplo significado.

— Você sabe que eu poderia fazer isso agora, não sabe? – Ele também

murmurou. – Eu posso beijar você, agora.

— Mas eu não quero beijar você. – Eu disse, vacilante.

— Isso nem deveria importar, anjo. – Senti que seu corpo relaxou, e

ele afrouxou a tensão ao meu redor. Voltei a respirar, e meu coração

saltou algumas batidas. – Mas não vou fazer isso à força.

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Quando Patch afastou-se o suficiente para que eu pudesse sair de seu

raio de ação, eu mantive-me imóvel. Minhas pernas amoleceram, e

eu sentia muito calor. Foi difícil saber se aquilo estava relacionado ao

pavor que senti, ao ver-me presa e na iminência de ser beijada por

um quase desconhecido; ou se, na verdade, eu estava frustrada.

A nova Nora Grey continuava medrosa.

03 – JUNTANDO PARTES

Tinha alguma coisa errada com o meu passado, alguma coisa muito

errada. Vee estava divertindo-se com Rixon; eu podia vê-la sorrir

alegremente com ele, na barraca de tiros. No final das contas, Patch

tinha um amigo pelo qual ela poderia se interessar. Mas eu estava

tensa, os músculos contraídos em meus ombros. A sensação de que

alguma parte da história da minha vida estava faltando era horrível.

Para melhorar a noite desastrosa no Delphic Beach, meu telefone

chamou várias vezes, o nome “SCOTT” piscando no visor colorido.

Patch continuava ao meu redor, mesmo se eu lhe desse pouca

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atenção. Eu quis ir para casa, mas não faria aquilo com Vee – ela

tinha o direito de aproveitar a noite.

— Preciso atender. – Falei com ele, movendo os ombros e me

afastando. – Boa noite!

— Nora, faz séculos que estou tentando te ligar! – A voz de Scott não

era amistosa. – Aconteceu alguma coisa?

— Estou em um lugar barulhento, não percebi o telefone vibrando.

Curtindo a primeira semana de férias?

— Você deveria ter vindo comigo, a Flórida está fantástica! Tudo tão

quente, tanto sol!

— O Maine já está quente o suficiente, Scottie. – Eu detestava aquele

apelido.

— Onde você está?

— Pensei que tivesse acabado de dizer... Maine.

— Não, quero dizer agora.

— Em Delphic Beach, com Vee. Eu vim a uma festa, acompanhá-la.

Sabe como Vee é dependente.

— Nada disso representa muito, para mim. Não sei que lugar é esse, e

você sabe como me sinto em relação a Vee.

Se eu contasse para ele que ela era quem o defendia, talvez ele

mudasse de opinião. Mas Scott não gostava da natureza do meu

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relacionamento com Vee, nem do fato de ter que me dividir com ela.

Ele era ciumento, quase possessivo.

— Tudo bem então, vou desligar agora, minha mãe está tentando

falar.

— Eu te amo.

— Eu também.

Pressionei a tecla vermelha do telefone, e assustei-me ao notar os

olhos negros de Patch me observando. Ele tinha a expressão rígida, e

os braços cruzados. Havia muitas perguntas e nenhuma resposta, em

seu semblante tormentoso.

— Mentindo no telefone. Mentindo para quem? – Ele disparou.

— Não interessa a você. Não deveria estar ouvindo minha conversa.

— Foi inevitável, você estava falando na minha frente. Scottie?

— Meu namorado. – A palavra saiu um tanto quanto travada. Eu não

sabia se queria colocar Scott na conversa.

— Você tem um namorado. – Não foi uma pergunta. Eu senti que foi

difícil para ele aquela admissão, também. E eu não sabia por quê. – E

onde ele está, agora?

— Flórida, com a família. Mas o que isso tem a ver?

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— Preciso saber o quanto você está se aproveitando de mim, essa

noite. – Ele sorriu, e considerei que Patch havia descontraído.

Foi então que senti um arrepio na espinha dorsal, que me fez tremer

do dedão do pé até os fios de cabelo mais rebeldes. Uma sensação

gelada, um sopro de vento vindo diretamente do inverno do Maine.

Mas não foi o frio repentino, no meio do verão, que me deixou tão

confusa; mas o fato de que eu já conhecia aquela sensação. Ela me foi

familiar.

— Aconteceu alguma coisa, anjo? – Ele me olhou, sem o sorriso

parcial. Patch pareceu mais tenso à medida que eu enrijeci meu

corpo, tentando me recordar de onde eu lembrava sentir aquilo.

— Não. Sim. Quero dizer, do que você está me chamando?

— Você está com frio? – Ele não me respondeu.

— Eu acho que vou chamar Vee, eu preciso ir para casa.

— Eu levo você. – Patch disse, colocando as mãos no bolso e pegando

uma chave brilhante. – Deixe Vee divertir-se com Rixon, ele não sai

com ninguém há muito tempo.

— Preciso avisá-la. – Meus pés apontavam em direções opostas.

— Você manda uma mensagem de texto, depois. Vamos, Nora.

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Eu me deixei conduzir fácil demais, e aquilo foi tão esquisito quanto

a sensação de déja vu que senti logo depois que desliguei o telefone,

com Scott. Foi como se eu já tivesse estado ali, naquele mesmo lugar,

naquela mesma situação, antes. Patch levou-me até o

estacionamento, sem sequer tocar-me. Meu cérebro funcionava em

modo automático, tentando montar um quebra cabeças de muitas

partes. Primeiro, o bilhete que estava com Patch. Depois, a sensação

conhecida, e o fato de eu não me sentir acuada perto dele. Eu

precisava fazer algumas conexões. A nova Nora faria.

Sem que ele precisasse me indicar, parei displicentemente em frente

à porta do carona de um Jeep Commander preto, brilhante. Cérebro,

modo automático, reações espontâneas. Ele abriu as portas,

pressionando o botão do alarme, e eu instintivamente sentei-me,

colocando o cinto ao redor do meu corpo. Olhei em volta, e senti um

novo arrepio. Por que aquele assento também me parecia familiar?

— O que está acontecendo? – Eu tive que perguntar, quando ele

parou o Jeep na porta da entrada do condomínio.

— Não está acontecendo nada, anjo. Você precisa dormir um pouco,

parece cansada.

— Pare de me chamar assim. – Protestei, abrindo a porta. – Eu não te

conheço.

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— Tudo bem, Nora. – Notei que as duas mãos dele continuavam no

volante de couro, segurando-o com força. Ele parecia desconfortável

comigo, enquanto eu me sentia o oposto. – Tenha uma boa noite.

— Eu posso ver você novamente? Qualquer dia desses?

Ele sorriu.

— Eu trabalho no Borderline. Se você quiser comida Mexicana, dê

uma passada por lá.

Patch fechou a porta do Jeep, e eu me perdi na escuridão da casa.

Senti-me mais solitária do que antes, e de repente a nova Nora não

fez mais muito sentido. Tentei conjecturar para descobrir onde eu

tinha me perdido, desde que vi aquele rapaz jogando sinuca, até

aquele momento. Só consegui realizar o óbvio, o passado não pode

ser apagado. Ele estava ali, dialogando comigo, pedindo a minha

interação, enquanto eu queria fugir dele desesperadamente. O

passado me espreitava, e bastou colocar os dois pés em Coldwater

para ele me provar que era impossível fugir.

A manhã seguinte me levou a outro fato que chamou minha atenção,

e ligou um sinal de alerta dentro de mim. Meu telefone chamou às

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oito da manhã, e eu tive certeza que era Vee, reclamando porque eu

a deixei sozinha, com Rixon. Como se ela não quisesse ter ficado

sozinha, e como se pegar carona com ele tivesse sido ruim. Mas, para

minha surpresa, o telefone não estava tocando, apenas avisando que

uma mensagem chegara. A mensagem mais esquisita que eu já tinha

recebido. De um número restrito, pude ler a simples frase

“MANTENHA-SE AFASTADA DE PATCH. ELE É PERIGOSO.”

Tive vontade de rir, sentada na cama, recém-acordada. Claro que

Patch era perigoso, era aquilo, afinal que me tinha atraído. Mas

incomodou-me que alguém tivesse se dado ao trabalho de me avisar

aquilo, por telefone. Alguém que eu não conhecia, e que não queria

ser conhecido. Dedilhei as teclas do telefone e liguei para Vee.

— Você não vale nada. – Ela disparou, antes mesmo que eu pudesse

falar qualquer coisa. – Onde você se meteu ontem, Nora?

— Eu voltei para casa. – Falei a verdade, mas ela não acreditaria.

— Sei que voltou! Por que desapareceu, então? Se queria voltar para

casa, deveria ter me chamado! Aliás, como você voltou para casa, se

estava sem carro?

— Eu não quis incomodar, você parecia divertir-se com Rixon. Patch

me trouxe.

— Eu estava me divertindo. E o que mais ele fez, ontem?

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— Nada. Mas diga-me, Vee... eu e Patch, nós éramos próximos? Na

escola?

Vee deu uma risada, porque a pergunta foi genuinamente ridícula.

— Nora, você não acha que, se vocês fossem próximos, você se

lembraria?

— Sim, eu acho. – Patética. Aquele adjetivo combinava melhor. – Mas

é que fiquei com uma dúvida. Ontem, parecia que ele me era tão

familiar. Foi tão confortável estar com ele, até quando pensei que ele

fosse me beijar, eu...

— Ele te beijou? – Vee soltou um grito.

— Não! Eu pensei que ele fosse. Ele tentou. Eu acho. – As palavras não

faziam sentido.

— Isso foi rápido! Não imaginei que o alien em você fosse te induzir

ao adultério, também.

— Vee! – Protestei. – Primeiro, eu não fiz nada. Eu disse quase. E,

segundo, só seria adultério se eu e Scott fôssemos casados. E nós não

somos!

— Detalhes, amor. Bem, eu não posso afirmar que você e Patch eram

próximos. Como uma observadora, eu cheguei a considerar que você

tinha uma queda por ele. Aquela paixonite de adolescente, sabe? Mas

metade da sala também tinha, e não foi para frente. Vocês se

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encontraram algumas vezes. Você tem certeza que não se lembra de

nada disso? O que você fez foi terapia ou lavagem cerebral?

Ela se referia ao meu tratamento. Desde a morte de papai, eu me

submeti a uma terapia de duas vezes por semana, e ela se

intensificou depois que perdemos nossa casa, e depois que eu

descobri que minha mãe era infiel. Ela foi infiel durante todo o seu

casamento, ela tinha um relacionamento com outro homem; se eu

investigasse a fundo, eu poderia ser filha de outro homem. Mas eu

não queria saber, meu pai foi Harrison Grey, e ninguém mais. A

terapia era bastante pesada, eu fazia hipnose, eu participava de

grupos para vítimas de violência em família. Na faculdade, a solidão e

o afastamento da família piorou minha situação, e foi quando surgiu

a nova Nora. Uma mulher que substituiria a patética Nora, a Nora

que precisava de terapeutas e remédios.

— Eu acho que me lembro disso. Eu quis apagar aquele ano de mim,

Vee. Talvez seja esse o problema, algumas coisas estão voltando. E

tem outra coisa.

— Diga.

— Recebi uma mensagem hoje cedo. Mandando-me ficar longe dele.

— Longe do seu passado?

— Longe de Patch.

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— Ah, uma mensagem? De quem?

— Eu não sei, número restrito. Eu estou preocupada, porque ele

realmente me parece perigoso, e eu estou querendo encontrar-me

com ele, novamente.

— Bem, nós podemos investigá-lo um pouco. Podemos pedir ao nosso

amigo, o detetive Basso, para descobrir mais sobre ele – você ficaria

confortável, assim?

Era uma excelente ideia, que eu não tinha pensado. Agradeci por ter

Vee como amiga, ela sempre me completava. Eu nunca sabia o que

fazer sem ela, e a recíproca era verdadeira. Claro que ela pediria ao

Basso para cavar fundo a vida de Patch, e descobrir qualquer coisa

possível sobre ele. Vivíamos a era do Big Brother e da tecnologia, a

polícia americana tinha de tudo. Respirei aliviada, parcialmente

aliviada. Eu ainda não tinha me livrado da vontade de vê-lo

novamente, mas precisaria conter-me. Eu queria ter certeza, antes.

O dia estava chuvoso, o que tornava o Fliperama do Bô uma boa pedida para

homens sem família e mulheres a procura de diversão. Jovens se misturavam

aos adultos, e muita bebida alcóolica era consumida já nas primeiras horas

do dia. Patch estava novamente debruçado por sobre a mesa de sinuca,

depois de ter iniciado a terceira partida. Ganhou as duas primeiras sem

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qualquer dificuldade, mas a bola sete estava fugindo dele há alguns minutos.

Sua concentração se perdeu completamente quando a pesada mão de Rixon

atingiu suas costas, fazendo com que seu corpo pendesse para o lado. O taco

escapuliu de seus dedos e atingiu, em cheio, o tecido verde que cobria a mesa.

— Obrigado por fazer-me perder essa. – Patch protestou, jogando o taco para

o lado e enfiando a mão no bolso direito. Contou algumas notas e entregou ao

adversário – Ainda bem que apostei pouco.

— Fez o serviço? – Rixon perguntou, sorridente.

— Que serviço? – Patch desconversou, acendendo um cigarro e dirigindo-se

para o balcão.

— Não sei que graça tem isso. – Rixon tomou o cigarro das mãos de Patch. –

Qual prazer te dá?

— Experimente. – Ele sorriu. – Trague bem fundo, deixe a fumaça entrar em

você, depois coloque tudo para fora.

— Hoje não. – Rixon lhe devolveu o cigarro. O barman colocou duas doses de

conhaque sobre o balcão e afastou-se. Não era hábito de ninguém, ficar

muito próximo durante as conversas entre Rixon e Patch. – Diga, Patch. O

que você pretende com ela? Esqueceu-se do que pode acontecer com você?

— Não. – Ele bebeu um gole do conhaque. – Mas eu não a chamei. Ela veio

porque quis.

— Patch, você sabe que Azrael não vai engolir essa historinha de destino.

Eles são arcanjos, você acha que ligam para o que você sente?

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— Eu sei que nem todos ligam, e que Azrael não gosta de mim. Mas eu não

posso evitar, Rixon. Não mais.

— Você aguentou tanto tempo. O que mudou, agora? – Rixon franziu a testa,

confuso. Havia poucas coisas que o deixavam surpreso, e uma delas era

Patch desistir de algo. Ou dizer que não era capaz de fazer algo. Patch não

respondeu à sua pergunta, apenas desviou o olhar para frente, mirando

fixamente as garrafas coloridas que estavam dispostas em uma prateleira de

vidro. – Não me diga que você... Patch!

— O que foi? – Ele virou-se para o amigo mais uma vez. – Não tire conclusões

do que você não sabe.

— Então explique-me. O que te fez mudar de ideia? Você não quer ser

humano? Não quer deixar essa carcaça inútil, como você diz, e tornar-se um

mortal?

— Mais do que qualquer coisa que já quis, um dia.

— Então! Eles vão poder te dar isso! Basta você jogar conforme as regras. –

Rixon continuava com o semblante franzido.

— Eu não posso. – Patch levantou-se, e apagou o resto do cigarro no fundo do

copo de conhaque vazio. Depois, pegou a segunda dose e virou de uma só vez.

– Eu tenho um conflito de interesses, agora. E eu nunca joguei conforme as

regras.

Ele deixou o copo de vidro sobre o balcão, junto de uma nota de vinte dólares,

e saiu. Rixon não recebeu qualquer explicação, e Patch não estava

interessado em falar sobre aquilo.

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04 – MEMÓRIA

Eu estava sentada em uma cadeira, olhando para um evento.

Ninguém parecia me notar, e eu não movia um músculo enquanto

assistia à cena. Patch estava parado, os braços estendidos ao lado do

corpo, um boné azul na cabeça. Ele olhava para o horizonte, através

de uma janela. Senti meu corpo estremecer quando percebi que era a

janela de meu antigo quarto. Ele estava no meu quarto, na casa da

fazenda. O dia estava amanhecendo, e ele tinha o olhar triste. Seus

olhos negros se moveram lentamente por todo o quarto, enquanto

ele parecia fotografar todo o ambiente. Depois, Patch tirou o boné, os

cabelos despenteados e suados, e segurou-o nas mãos. “Eu sei que não

estou autorizado. Mas você precisa saber, um dia.” Ele olhou em volta

novamente, depois caminhou em direção à minha antiga cômoda,

arrastando-a do lugar. Levantou uma tábua solta e colocou o boné

enrolado por baixo do assoalho, tomando cuidado de recolocar a

cômoda onde ela deveria estar.

Acordei sobressaltada; o coração disparado. Eu estivera sonhando,

aquilo era apenas um sonho. Parecia uma memória clara do que um

dia aconteceu, mas era apenas um sonho. Parecia uma memória, mas

memória de quem?

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Eu decidi que precisava retornar à minha antiga casa, e procurar por

aquele objeto. Todas as sensações esquisitas que eu vinha tendo,

desde meu retorno a Coldwater, começaram quando eu vi Patch pela

primeira vez, no Bô, e o reconheci. Desde aquele momento, o passado

passou a rondar minha porta novamente, e eu voltei a ter sonhos

tormentosos – mas neles eu não estava mais morrendo com um tiro,

ou vendo meu pai morrer com um tiro. Eu estava assistindo coisas

acontecerem, coisas que teriam acontecido comigo, e eu sequer me

recordava delas. Então, eu precisava checar aquela, considerando

que era uma pista fácil de seguir.

Sem tomar o café da manhã, pulei dentro do Fiat Spider e guiei até a

fazenda. Eu havia jurado nunca mais pisar naquele lugar, e quebraria

minha promessa. Meu coração continuava batendo acelerado, e eu

pensei que fosse ter uma síncope. A ansiedade me consumia, e eu

quase não percebi que estava infringindo o limite de velocidade até

estacionar na entrada da casa. As memórias imediatamente me

inundaram, desde a imagem de meu pai saindo pela porta principal,

até o momento em que me despedi daquele lugar. Eu nem sabia

quem estaria morando lá, mas aquilo era irrelevante.

Com pouca coragem e bastante curiosidade, bati à porta.

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— Bom dia? – Um senhor, de cabelos brancos, atendeu.

— Bom dia. Meu nome é Nora Grey. – Estendi a mão para

cumprimentá-lo. – Vim até aqui ensaiando o que dizer, mas decidi

que a verdade é a melhor tática. Eu era a antiga moradora dessa casa;

o senhor a comprou de minha mãe.

— Ah, sim! Claro, Blythe. Eu me lembro dela, chorou quando

assinamos o contrato.

— Sim, ela mesma. – Eu não sabia daquele fato. Fingi conhecimento. –

Então, a questão é que, quando fui embora, deixei para trás uma

coisa que gostaria de recuperar.

— Mas a casa estava completamente vazia. – O senhor estava confuso.

— É que a coisa estava escondida, sabe? – Eu sorria, e não

convenceria nem mesmo Vee. – Eu a escondia debaixo do piso.

— Você pode entrar para procurar. – O senhor abriu completamente

a porta, me dando acesso total à casa. Tudo modificado, nada parecia

como antes. Os móveis, as cores, o aroma. Aquela não era mais minha

casa, eu não reconhecia mais nada ali. – Mas nós fizemos uma

reforma, todo o piso foi trocado.

Olhei para ele, pânico dominando minhas emoções. Parecia tão

simples, verificar se aquele boné tinha mesmo sido colocado ali! Subi

correndo as escadas, atropelando-me até o quarto que eu costumava

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ocupar, e o desapontamento me submeteu quando vi a cerâmica

perfeitamente assentada por toda a sua extensão.

— Perdido para sempre. – Exclamei. O senhor vinha logo atrás.

— Meu filho foi o responsável pela reforma, se você quiser posso

perguntar se ele achou alguma coisa quando removeu a madeira. O

que era?

— Um boné azul.

— Ah! Claro que achamos! O boné... ele estava muito sujo, mas minha

esposa lavou e meu neto ficou com ele.

Arregalei os olhos, atordoada. Então, havia um boné azul, e ele estava

mesmo escondido ali. Senti um mal estar repentino, como se o

mundo desse uma volta e parasse no mesmo lugar, mas

completamente diferente. O senhor fez uma ligação, falou alguma

coisa com alguém, e deixou-me parada como uma estátua no meio do

quarto. Meu cérebro trabalhava, desesperado para tentar resgatar a

memória do motivo que teria levado Patch a esconder seu boné – que

eu ignorava que ele usava – em meu quarto. Como ele tinha acesso ao

meu quarto? Por que ele estava ali, com aquele semblante triste,

enquanto eu não estava? O que ele queria, afinal, que eu soubesse?

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Alguns minutos depois, o senhor retornou até o quarto, segurando

algo em suas mãos. Meus olhos me enganaram quando ele me

entregou o boné, que tinha o tecido gasto na aba. Meus lábios se

esticaram em um sorriso, e minhas mãos vacilaram ao segurá-lo.

— Minha esposa guardou. Meu neto já não liga mais para ele, e não

seria justo não dá-lo a você.

— Obrigada. – Olhei para o homem de idade já avançada, que tinha a

aparência amistosa. Minha garganta fechou-se com um bolo de ar,

que me impedia de falar ou respirar. Eu jamais veria meu pai naquela

idade. Eu não tinha um avô para me guardar as coisas quando eu não

as quisesse mais. Aquela concepção de família, ela não existia.

— Ele tem um cheiro bem característico. – O senhor sorriu. – Meu

neto dizia que cheirava como chiclete.

Deixei a minha casa – minha verdadeira casa – e guiei o Spider pelas

ruas de Coldwater sem saber exatamente para onde ir. Parei no

acostamento, um pouco antes de entrar no centro da cidade, e

peguei o boné novamente. Levei o tecido até meu nariz, e sorvi o

aroma, tentando relembrar-me das palavras que eu tinha acabado de

ouvir. O boné estava impregnado, como se tivesse acabado de

receber um banho de loção pós-barba.

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O mesmo cheiro de Patch.

Meu coração saltou uma batida. Eu precisava voltar para casa. Meus

neurônios funcionavam em velocidade máxima, e uma onda de

adrenalina me invadiu. Quis dirigir até o Borderline e encarar Patch,

questionando-o das razões pelas quais ele estava invadindo a minha

casa. Quis forçá-lo a dar-me uma resposta convincente, para que eu

pudesse ter certeza do que estava havendo. Quis encurralá-lo na

parede, exatamente como ele me fez, em Delphic Beach. Mas um

lampejo de consciência me fez considerar que havia um segredo

envolvendo tudo aquilo. O boné foi escondido. Patch estava sozinho.

Ele disse que não foi autorizado. Havia um segredo, alguma coisa que

não podia ser dita em voz alta, ou exposta.

Antes mesmo de colocar o carro na garagem, meus dedos já estavam

discando o número de Vee. Não que eu tivesse que contar tudo para

ela, mas eu tinha que contar aquilo para alguém.

— Vamos comer comida Mexicana, hoje? – Eu atropelei as palavras.

— Hm, tacos?

— Sim, no Borderline. O que acha?

— Você simplesmente acordou com vontade de comer tacos?

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— Por que você acha que por trás de minhas ideias sempre tem

alguma coisa escondida?

— Porque é verdade! – Ela deu uma risada. – O que você quer, hoje,

no Borderline.

— Confrontar Patch.

— Okay, não entendi. Explique-me.

— Prefiro falar pessoalmente. Eu preciso te mostrar uma coisa.

Façamos assim, você me pega, vamos até o Borderline jantar, e eu te

conto tudo.

— Vou ter que ficar curiosa até o jantar? – Vee deixou escapar uma

exclamação indignada. – Isso é tão injusto.

— Eu vou até a biblioteca. Você me pega lá? Vou caminhando,

deixarei o Spider na garagem.

— Sim, senhora, eu te pego às dezoito.

Não havia certeza alguma em mim quando decidi fazer aquilo. Vesti

jeans, tênis e camiseta de malha, e coloquei o boné azul na cabeça.

Meus cabelos couberam perfeitamente acomodados sob ele, e passei

alguns minutos admirando o visual, na frente de um espelho. O

aroma mentolado que estava impregnado no tecido imediatamente

penetrou em minhas narinas, e senti-me novamente familiarizada

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com ele. Saí para a biblioteca, a fim de pesquisar, por mim mesma,

alguns dados sobre aquele boné azul. Eu precisava me certificar que

ele pertencia a quem eu já tinha certeza que ele pertencia. Paradoxal.

Cumprimentei a bibliotecária, que ainda era a mesma desde que eu

tinha deixado Coldwater, e sentei-me no computador do laboratório

para fazer uma busca nas notícias da cidade e da escola na qual eu

estudava. Eu não sabia exatamente o que pretendia encontrar, mas

eu precisava tentar. Digitei algumas buscas para arquivo, procurando

a turma que se formou em 2006, a turma que participou dos jogos, a

turma que assinou o anuário. Eu queria ler sobre brigas de bar, sobre

acidentes de motos, sobre gangues em Portland; qualquer coisa que

pudesse relacionar-se a Patch.

Não havia nada. Ele não estava em foto alguma, como se ele não

tivesse existido naquele período. Mas ele existiu, todos sabiam, eu

me recordei. Considerei que ele fosse avesso a fotos, e acabei

desistindo de encontrar imagens dele com o boné azul, que aquecia

meus cabelos na sala com ar condicionado.

Vee não atrasou nenhum minuto, mas eu já aguardava por ela,

sentada no meio-fio na frente do prédio da biblioteca. Ela estava

lindamente vestida com um top verde, que realçava seus olhos e

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escondia seu sobrepeso. Ela era maníaca, mas eu não via problema

algum com o seu corpo; ela era muito mais linda do que eu

imaginaria ser. O restaurante Mexicano era um lugar agradável, e o

enorme sombreiro que ficava na entrada criava o clima necessário.

Entramos, fomos recebidos por uma garota jovem – mais do que nós,

e sentamos em uma mesa bem localizada.

— Deixe-me perguntar, o Patch trabalha hoje? – Vee disparou, sem o

menor constrangimento.

— Patch? – A garota deu uma risada. Alguma coisa no tom em que ela

pronunciou o nome dele me fez sentir um enjoo crescer em meu

estômago, vontade de vomitar. – Ele trabalha sim, por quê?

— Queremos ficar em uma das mesas que ele atende. – Vee colocou

uma nota de vinte na mão da recepcionista. – Qualquer mesa, desde

que nosso garçom seja ele.

— Uau, se todas que quisessem mesas com o Patch me dessem

gorjetas, eu ficaria rica em um mês. – A garota deu outra risada,

aquela mais alta. – Venham comigo, vou colocar vocês no lugar certo.

Realmente, eu precisava de Vee. Nem a velha, nem a nova Nora,

eram capazes de conseguir uma mesa daquela forma. Eu não tinha

dinheiro para gastar, nem tinha a facilidade de comunicação dela.

Não demorou muito para que Patch chegasse até nossa mesa. Ele

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ficou surpreso, e eu pude perceber isso. Suas mãos pressionaram os

dois cardápios que ele segurava, com força desproporcional. Ele

estava suando, apesar do ar condicionado. E eu podia apostar que

aquela reação estava relacionada ao boné que eu usava. Sem dizer

nada, ele apenas sorriu e deixou-nos com o menu, para nossa escolha.

— Por que você não tira esse negócio da cabeça? – Vee questionou.

— Não posso, ele faz parte do meu confrontamento. – Sussurrei. Ela

percebeu que precisaríamos falar em voz baixa; havia segredos.

— E o que você tem para me contar? – Ela me imitou. Patch retornou

à mesa e serviu a cortesia da casa, nachos com queijo cheddar, dando-

nos as costas em seguida.

— Eu tive um sonho muito estranho hoje. Um sonho quase real, eu

acho que foi uma memória. Eu tive uma recordação de algo que eu

havia esquecido.

— Ih, que coisa mais paranormal! Além de ser abduzida por um alien

você também virou médium? – Vee deu uma risada, baixa. – Sobre o

que era, o sonho?

— Eu sonhei com Patch. – Sussurrei mais baixo quando falei seu

nome. – Ele estava em meu quarto.

— Em seu quarto? Tem certeza que foi sonho? – Vee molhou os

nachos no queijo e colocou na boca, fazendo o ruído característico de

algo se quebrando. – Ele não estava lá, mesmo?

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— Não, Vee. – Protestei. – Eu estava dormindo, e sonhei. Era o meu

quarto antigo, na casa da fazenda. Ele estava lá, sozinho, com esse

boné na cabeça.

— Tá, e o que tem? É um boné bem a cara dele, não acha?

— Deixe-me falar! – Reclamei, e, daquela vez, em voz alta. Algumas

pessoas olharam. Vee assustou-se. – Desculpe-me, é que eu estou

ansiosa. Ele usava o boné, e ele o tirou da cabeça, escondeu debaixo

do piso, por sob minha cômoda.

— E? Como você o recuperou?

— Eu estive na casa da fazenda. O boné estava exatamente onde

Patch o escondeu, em meu sonho.

Falar daquilo me causou arrepios. Vee também desconsertou-se, no

mesmo instante em que nosso garçom chegava, para anotar nossos

pedidos.

— Já escolheram? – Ele perguntou, a voz nada amistosa. Patch tinha o

cabelo cuidadosamente penteado, e usava uniformes. A camisa

vermelha combinava com sua pele morena. Havia um pimentão

usando um sombreiro bordado no bolso.

— Sirva-nos quatro tacos com bastante pimenta, guaca mole e duas

Cocas. E traga mais nachos, por favor.

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Ainda bem que Vee sabia pedir com educação. Eu não sabia nem

pedir. Já estava começando a perguntar onde estava escondida a

nova Nora; desde a minha volta a Coldwater ela tinha ficado muito

retraída. Ele não trocou duas palavras conosco, e aquilo começou a

me irritar. Além de ele ser o garçom, e precisar ser simpático, ele não

podia nos ignorar daquela forma. Ele não podia me ignorar daquela

forma.

— Vou ao toalete. – Sussurrei novamente para Vee. Ela estava ainda

com nachos na boca, e eu precisava lavar o rosto. Levantei-me e saí

marchando até o banheiro feminino, e eu estava chateada. Parei em

frente à pia, olhei para mim mesma no espelho; coloquei uma mecha

teimosa para dentro do boné, e joguei um pouco de água na face,

tentando limpar o suor. Quase soltei um grito ao erguer novamente o

olho e ver uma figura soturna atrás de mim, pelo reflexo no espelho.

A porta estava fechada. Patch tinha as mãos nos bolsos e me fitava

com olhos diferentes daqueles que ele me olhava no salão. Era como

se todo o seu semblante estivesse suavizado, e ele parecia, então,

relaxado.

— Tire-o. – Ele sussurrou. A voz tinha um tom solene, e considerei

que ele estivesse falando do boné.

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— Não. – Falei, desafiadora.

— Eu não esperava que você fosse encontrá-lo. – Ele respirou, o canto

esquerdo de seu lábio ergueu-se. – Vamos, tire-o. Você não pode usá-

lo.

— Mas você me deu. – Arrisquei. – Não deu?

— Tire-o, Nora.

Patch caminhou até mim. Ele não parecia tenso, nem ameaçador;

naquele instante ele era apenas um homem, e não um membro de

uma gangue. Ele ergueu a mão e segurou a aba do boné, tirando-o

lentamente. Eu quis protestar, mas não consegui. Ele o segurou,

olhou para a estampa usada, descolorada, e colocou-o na cabeça.

— Você não pode usar boné no trabalho. – Arrisquei novamente.

— Não, por isso vou deixá-lo com minhas coisas, nos fundos.

— E não vai me contar o que está havendo? Por que eu achei esse

boné, o que afinal você estava fazendo no meu sonho?

— Você não estava sonhando, anjo. – Patch sorriu, e ele parecia feliz.

Suas mãos se moveram para frente, e quase me tocaram. Eu não

reagi, mas ele recuou. – Aquilo era uma memória.

— Eu quero saber o que houve.

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— Não posso te contar. – Ele baixou o olhar, e pude sentir a aura

negra que o envolvia. – Você precisa descobrir por si mesma, Nora.

Não posso interferir. Muito.

Patch deixou o banheiro, e eu quis sair gritando atrás dele. Se ele não

podia interferir, por que tinha deixado o boné para mim? Se ele não

podia interferir, por que ele estava ali, dizendo-me o que fazer e o

que não fazer? Mas eu não pude me mover pelos cinco minutos que

se seguiram. Passei a mão pelos cabelos; o cheiro de menta tinha

desaparecido.

Minha amiga estava já cercada por tacos e bebendo sua Coca Cola. Eu

tinha perdido a fome, mas tinha que comer algo, ou ela não me

deixaria em paz. Ela notou a diferença em meus cabelos.

— Cadê seu enfeite? – Ela fez um gesto com a mão, representando o

boné.

— Ele pegou de volta.

— Era mesmo dele?

— Sim, eu te disse. Eu não sei exatamente o que aconteceu, Vee Sky,

mas eu vou descobrir. O detetive Basso já te deu alguma notícia?

— Nada ainda, mas tenho certeza que ele está investigando. Não

fique paranoica, Nora. Você parece que bebeu nitroglicerina.

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Sim, eu estava pura nitroglicerina. Eu já tinha chegado à conclusão

que meu passado estava conectado a Patch. Eu não sabia quando, eu

não sabia como, mas havia conexão. E eu precisava descobrir o que

era.

05 – DISTRAÇÕES

Minha investigação não tinha por onde começar – eu apenas sabia o

que queria, e não como obtê-lo. Era um pouco frustrante aquilo,

imaginar-se parte de um grande segredo e não ter como conseguir

desvendá-lo. Para piorar a situação, eu ainda tive que lidar com

alguns intervenientes no meio do caminho.

Fiquei desapontada em ter que devolver o boné a Patch; eu gostei de

tê-lo comigo por algumas horas. Meu terapeuta diria que se tratava

de pertencimento, e outras palavras estranhas que ele costumava usar

para descrever minhas paranoias. Mas a verdade era que eu tinha

falta de coisas familiares, como cheiros, objetos, elementos. Aquele

boné era algo que fazia parte de algo, e, mesmo que eu não soubesse

o que era, eu me senti confortável. Mas eu não podia tê-lo; primeiro

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porque Patch era o dono, e o queria de volta; segundo porque,

aparentemente, estar com o boné poderia ser arriscado.

Meu telefone apitou duas vezes na manhã seguinte; recebi duas

mensagens de texto. A primeira delas era de minha mãe, avisando

que chegaria em algumas horas. Fazia tempo que eu não via minha

mãe, e eu cheguei a Coldwater sem saber se queria falar com ela. Mas

a adrenalina em minhas veias me fazia querer falar sobre tudo com

qualquer um – até com minha mãe. A segunda mensagem era de

Scott. “CHEGANDO A PORTLAND. VOU PARA COLDWATER EM

SEGUIDA. TE AMO.”

Aquilo me deixou bastante chocada. As batidas do meu coração

estavam fora de compasso, e eu engoli um bolo de saliva. Eu não

sabia se queria Scott em Coldwater. Aliás, eu nem sabia o que ele

pretendia, indo a Coldwater Ficar comigo? Passávamos o ano inteiro

juntos, ele não poderia querer tanto ficar comigo nas férias. Ou

poderia? Eu nunca tinha passado férias longe dele, e não sabia

exatamente o quão possessivo ele era. Eu estava sempre com Scott,

onde estivesse; éramos um casal bastante próximo. Eu considerava

que éramos amigos – apesar de ele não gostar muito de Vee, porque

ela sempre falava mais a verdade do que ele gostaria de ouvir.

Considerei se a marcha lenta de nosso namoro não teria contribuído

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com aquela decisão de vir atrás de mim. Talvez ele fosse mais ansioso

para dar um passo à frente do que eu.

Com minha mãe em casa e meu namorado no meu pé, ficaria difícil

investigar qualquer coisa. Eu poderia ser compelida a aceitar meu

futuro sem remexer no passado, ou sem tentar entender algumas

coisas. Talvez fosse melhor daquela forma, talvez eu não devesse

cavar muito fundo, porque eu poderia encontrar aquilo que eu não

esperaria procurar. Talvez fosse mais seguro para minha sanidade

mental se eu simplesmente aceitasse a vida como ela estava aposta, e

deixasse os fantasmas adormecidos para sempre.

Mas eu não pretendia esquecer.

Eu ainda rodava em círculos pela casa quando a porta da frente se

abriu, e minha mãe entrou, carregando uma enorme mala e uma

caixa com um laço. Ela sorria, com os olhos brilhando, como se

estivesse feliz em retornar. Eu não tive vontade de abraçá-la; não

ainda. Mas eu também fiquei feliz, por vê-la. Ficar sozinha fazia com

que meu cérebro trabalhasse muito rápido, e eu não podia fazer nada

para acalmá-lo.

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— Como foi o trabalho? – Eu perguntei, ajudando-a a levar as malas

para o quarto. As escadas eram menores do que na casa antiga, mas

ainda cansativas.

— Vendemos todos os itens, considero isso um sucesso. – Ela abriu a

mala maior e começou a guardar as roupas. Mamãe não costumava

fazer depois o que poderia fazer na hora. – Tive tempo até para

comprar isso para você.

Ela me entregou a caixa que carregava. Abri, sorrindo, e dentro havia

uma camiseta rosa pink, com escritos em prata.

— Obrigada. – Coloquei a roupa na minha frente, para ver se servia.

— Dizem que essa grife é famosa, eu não entendo nada disso. Para

você desfilar em Portland.

A camisa tinha três palavras dispostas em uma fila vertical. JUST an

EQUAL VIEW. Não entendi imediatamente o significado dela, mas a

maioria das camisetas era daquela forma – sem uma lógica razoável.

Era moda, e moda era, naturalmente, ilógica. Minha mãe continuou

contando sobre os acontecimentos durante a viagem, e nós passamos

algum tempo de qualidade juntas – o que não acontecia desde o Natal.

Eu não pensei em investigações ou segredos ou mistérios enquanto

conversávamos; só que eu precisava falar com ela sobre Scott.

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— Mãe, Scott está vindo para Coldwater. – Disparei. Ela me olhou,

curiosa.

— Você o convidou?

— Não, mas ele está vindo mesmo assim. Podemos hospedá-lo? Sei

que não temos um quarto para ele, mas...

— Tudo bem, Nora. – Ela me interrompeu. – Eu não sou inocente a

ponto de acreditar que você namora Scott há tanto tempo e... bem,

eu acho que posso confiar em você o suficiente. Ele pode dormir no

seu quarto, se você achar assim conveniente.

E, mais uma vez, alguém tinha me entendido errado. Não era aquilo

que eu queria dizer – eu não pretendia sugerir que Scott dormisse

comigo. Eu só não queria que minha mãe o expulsasse de casa,

considerando que não tínhamos camas o suficiente. Eu tinha

pensado no sofá, ou na cama dobrável que ficava escondida no closet

de mamãe. Minha cama, não. Eu nunca tinha dividido aquela cama

com ninguém, e não sabia quando aquilo ia acontecer.

— Eu e Scott nunca dormimos juntos, mãe. – Quis ser sincera. Ela

ergueu uma sobrancelha, em descrédito. – Mas ele pode dormir em

meu quarto, eu arrumo a cama dobrável para ele.

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— Você não precisa agir assim, Nora. – Ela acariciou minha face, em

um gesto maternal. – Eu sei que você é adulta; você mudou muito

desde que entrou na faculdade, mas eu ainda confio em você.

— Mas estou falando a verdade. – Fiquei um pouco indignada por ela

achar que eu estava fingindo. Eu não tinha motivos para mentir.

Saí do quarto de mamãe, um pouco contrariada, porque meu

telefone tocava sem parar. Joguei-me na cama para atender Vee, mas

ela já tinha desligado, deixando uma mensagem de texto. Ninguém

gostava mais de mensagens de texto do que Vee; ela era fanática.

“CINEMA, HOJE? ESTÁ PASSANDO AMANTES.” Tudo que eu precisava,

naquele momento, era de um filme com aquela conotação. Mas

perder-me no escuro do cinema deveria ser uma boa ideia para

acalmar minha ansiedade. Enviei uma mensagem de confirmação, e

disse que a encontraria no centro, antes da sessão começar. Eu não

podia pedir que Vee me pegasse toda vez que fôssemos sair; eu

precisava ser autossuficiente de vez em quando.

— Eu detesto filas. – Vee reclamava, enquanto esperávamos uma das

seis pessoas, que estavam em nossa frente, comprar seus ingressos.

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— Só em Coldwater um filme velho passa no cinema e tem fila. – Dei

uma risada. – Acalme-se, Vee, é apenas meia dúzia de pessoas.

— Mas eu gosto de sentar bem atrás, e com um balde enorme de

pipoca. Com essa demora, não vou conseguir comprar nada, ou vou

perder o início do filme.

— Esse filme vai ficar em cartaz por um ano, igualzinho ao último. –

Impliquei. – Você vê o começo outro dia.

Vee bateu em mim com a sua bolsa. Quando finalmente chegou a

nossa vez, a atendente não parecia satisfeita em vender duas meias-

entradas para mulheres adultas. Era como se nenhum universitário

tivesse retornado a Coldwater, e por isso as pessoas não sabiam como

lidar conosco. Os jovens, depois que saíam da cidade, pareciam nunca

mais desejar voltar. Demoramos tanto na minúscula fila que dava

para ouvir os trailers começando, quando cruzamos o corredor

acarpetado, em direção aos nossos assentos.

— Guarde nossos lugares lá em cima. – Vee apontou para a última fila.

O cinema estava vazio, e ela se portava como se estivéssemos em dia

de estreia. – Vou comprar pipoca. Você quer?

— Um balde pequeno, óleo de canola.

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Subi as escadas escuras e sentei-me em qualquer cadeira disponível,

dentre as que Vee aceitaria. Estava quase impossível de enxergar,

considerando que as luzes estavam apagadas e a imagem que passava

no telão era quase preta. Relaxei, despejando o peso de meu corpo

por sobre a cadeira e estiquei as pernas. Senti um lufo de ar frio me

atingir; olhei para cima, procurando o ar condicionado que não

estava ali. Virei-me para o lado e meus olhos me enganaram quando

o perfil de Patch Cipriano se delineou no breu, exibindo seu lábio

parcialmente suspenso em um sorriso malicioso.

— Belos shorts. – Ele sussurrou, meio que para mim, meio que para o

vazio em sua frente. Quis levantar para mudar de lugar, mas ele

segurou minha mão, mantendo meu braço firme no apoio.

— Com tantos lugares vagos, você precisava sentar ao meu lado? –

Protestei, sem saber direito por quê. – Estou desconfiada que você

está me seguindo.

— Foi você que se sentou ao meu lado, Nora. – Ele quis parecer sério.

— Então me deixe mudar de lugar. Estou com minha amiga, aqui.

Antes que eu pudesse tentar levantar-me novamente, meus olhos

capturaram Vee subindo as escadas, e ela logo desabou ao meu lado,

entregando-me um balde de pipoca. Respirei fundo, várias vezes; ela

não tinha notado Patch nem minha apreensão ao lado dele. Vee

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notava muito pouco daquilo que não a interessava, o que eu gostaria

de considerar uma qualidade. Senti a pressão aliviar em meu braço,

mas eu não mudaria de lugar. Não queria dar a todos a impressão

errada, novamente. A mão de Patch moveu-se para a minha pipoca,

enquanto eu tentava me concentrar na tela.

— Com manteiga é mais gostoso. – Ele disse, enquanto mastigava.

— Então vá comprar a sua. – Reclamei, em voz baixa. – A minha é

feita com óleo vegetal, muito mais saudável.

— Gosto disso em você, sempre saudável e linda.

— Shhh, o filme vai começar.

— Ainda tem vinte minutos de trailer. Sempre tem mais trailer do que

aguentamos ver.

Patch furtou mais pipoca – se eu podia considerar aquilo furto. Eu

estava vendo e não estava impedindo, então ele não fazia nada ilegal.

Vee quase deitou por sobre mim para ver quem estava ao meu lado, e

ela quase deixou escapar uma gargalhada ao reconhecê-lo. Eu teria

uma noite infernal, com ela falando de um lado, ele mastigando do

outro – e duvidava que fosse conseguir comer ou ver alguma coisa.

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— Amanhã haverá uma festa em Delphic. – Patch disse, depois de

algum tempo em silêncio. Eu fingi que não estava prestando atenção,

mas era mentira. E ele sabia. – Posso pegar você às vinte?

— Eu não vou a nenhuma festa. Menos ainda com você. – Mantive o

semblante rígido. Ainda passavam os trailers, e outras pessoas

conversavam.

— Eu posso te encontrar lá, então.

— Pensei que você tivesse entendido que eu tenho namorado.

— Eu entendi. – Sua voz ficou mais séria. – Mas eu não sou ciumento.

— Estou falando sério, Patch. – Virei-me para ele. Seus olhos eram

tão negros que eu mal conseguia enxergá-lo, no escuro. – E se você

continuar me seguindo, vou avisar à polícia. Já estou ficando

preocupada com isso.

— Não estou te seguindo.

— Toda vez que viro a esquina, você está lá.

— Talvez você esteja me seguindo. – Ele sorriu, aquilo eu consegui

notar. – Talvez eu deva avisar à polícia; você pode ser perigosa.

— Você sabe que isso não é verdade! – Protestei. Ele pegou mais

pipoca.

— O que? Não é verdade que você me segue ou não é verdade que

você é perigosa? Eu não sei, Nora, você pode ser uma psicopata.

— Como você é irritante! – Virei-me para frente novamente, cansada

daquela discussão ridícula. – Eu não estou seguindo você! Eu nem

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queria me sentar perto de você! Você teve todas as chances de ser

simpático e gentil e jogou todas elas fora. Você é sempre babaca

assim, com todas as garotas que conhece?

— Não sei. Elas sempre me deram outros adjetivos.

Meu sangue estava entrando em ebulição, e tudo que Patch fazia era

sorrir. Ele tinha um humor bem intenso, eu não podia negar. O filme

começou, e tentei relaxar e permitir-me assistir a história. Ele

continuou dividindo a pipoca comigo, colocando, no porta copos da

minha cadeira, o seu refrigerante. Vez ou outra, nossas mãos se

esbarravam quando decidíamos pegar pipoca ao mesmo tempo. Eu

cheguei a pensar que era provocação da parte dele, mas eu precisava

parar com aquela neura. Patch era um gozador e tinha a língua

afiada, mas eu não podia achar que ele me seguia ou fazia aquilo de

propósito. Quando eu descobrisse o segredo, eu entenderia tudo. Foi

como pensei. Se eu me afastasse dele completamente; se sucumbisse

àquele sentimento confuso, eu não teria a chance de descobrir o que

me intrigava.

Depois de acabar a pipoca, repousei meu braço na cadeira e prestei

atenção somente no filme. Senti uma onda de calor quando as mãos

firmes de Patch seguraram a minha, entrelaçando nossos dedos. Ele a

levou até os lábios, beijou os nós de meus dedos, e depois a fez

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repousar em sua coxa. Nunca, nem mesmo com Scott, eu me tinha

permitido colocar a mão em lugares como aquele. Meus dedos

inicialmente se retraíram, e eu pensei em puxar a mão. Só pensei.

Meu corpo não conseguiu mover-se, como se eu tivesse tomado uma

grande dose de morfina. Meus neurônios se anestesiaram em alguns

instantes, o calor tomou conta de mim e minha mão espalmou-se, os

dedos envolvendo o tecido dos jeans como se fossem misturar-se a

ele.

06 – CIÚMES

Aquele sonho não era como os outros. Eu não estava caindo, apenas

perdida em uma rua estranha, deserta, escura. Reconheci pertencer a

Coldwater; eu estava em casa. A minha cidade, mas muito mais

sombria e muito mais fria. Era inverno, eu usava um casaco pesado

de lã e luvas. Meus cabelos estavam protegidos por um gorro cinza.

Eu caminhava sem rumo pela rua, e as luzes muito fracas não

conseguiam me iluminar o caminho. Não havia lua, não havia

estrelas no céu. Um barulho vindo do conjunto abandonado de casas

que estava à minha direita me chamou a atenção. Atravessei a rua e

aproximei-me. Sombras me espreitaram, e elas eram muitas. Não

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eram pessoas, eram sombras. Como fantasmas. Disparei, correndo

pela rua, sem preocupar-me se algum carro poderia passar. Depois

de alguns metros, as sombras mais próximas de mim, vi uma pessoa

parada, de costas para mim. Ele usava calça jeans preta, casaco preto

com capuz, e tinha algo de metal brilhante que brilhava por baixo de

sua camisa. Ele virou-se, e seus olhos negros me envolveram em

escuridão.

— Nora, acorde. – A voz familiar me tirou do pesadelo. Abri os olhos,

assustada, e enquadrei em meu campo de visão a face preocupada de

Scott. Sentei-me na cama, passando a mão pela extensão de meu

corpo. Eu nunca tinha suado tanto em uma noite.

— Você... o que você...

— Sua mãe disse que eu podia subir. – Ele sentou-se na cama, ao meu

lado. Eu ainda estava confusa. – Ela disse que você já estava

dormindo demais, que era hora de te acordar.

Levantei-me por completo, sentindo uma tonteira repentina. Estava

tudo bem, porque eu estava em meu quarto. Era apenas um sonho

ruim, um dos muitos pesadelos que eu costumava ter. Eles não

tinham que ser todos iguais. Fui até o banheiro e enfiei-me debaixo

do chuveiro frio, para espantar os pensamentos desconexos. A

imagem do homem encapuzado ainda pulsava em minha mente. A

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sensação da pele morna de Patch continuava em mim. Eu não sabia

onde estava com a cabeça, agindo daquele jeito. Não acreditar no

futuro do meu relacionamento não significava enterrá-lo vivo. Eu era

melhor do que aquilo – eu era melhor do que aquela que

simplesmente trai.

Mas Scott estava ali, em casa, e eu não sabia o que fazer.

— Você está bem? – Ele perguntou, quando eu voltei para o quarto,

enrolada na toalha.

— Sim, eu só tive um pesadelo. – Falei, procurando algo para vestir.

Scott levantou-se e me abraçou por trás. Aquela posição não era

agradável; eu não costumava permitir ser abraçada, estando nua. Ele

levou os lábios até meus ombros, e beijou meu pescoço bem devagar.

– Scott Parnell, o que você pensa que está fazendo?

— Nada. – Ele sorriu, mas suas mãos continuaram em mim. –

Matando as saudades, talvez?

Virei-me de frente para ele. Nossos lábios ficaram a centímetros de

distância. Eu ainda estava nua, minha toalha já tinha afrouxado em

volta de meu corpo, e pude sentir a excitação em Scott. Ele me

mantinha próxima o suficiente dele. Seria lógico arrastá-lo para a

cama naquele momento, mas eu não o fiz. Ainda havia alguma coisa

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me puxando para longe. Scott inclinou-se sobre mim, e me beijou.

Ele era sempre urgente, ansioso, como se tivesse pressa. O atrito

entre nós aumentou, e assustei-me ao perceber-me sem a toalha.

Um barulho imenso em minha janela nos distraiu. Assustei-me, e

puxei a toalha de volta. Scott virou-se para a janela, e havia um dos

painéis de vidro estilhaçado.

— Aposto que são os moleques do condomínio. – Menti. Eu não fazia

ideia do que poderia ter sido. Aproximei-me da janela e notei um

objeto que havia sido jogado, e a causa do vidro quebrado.

— Devemos fazer alguma coisa? – Meu namorado estava confuso.

— Claro que não, é inútil. – Escondi o objeto embaixo da cama. Eu

lidaria com aquilo depois. – Mas você pode me esperar lá em baixo?

Eu preciso trocar de roupa.

Pelo suspiro desanimado de Scott, considerei que ele estava mesmo

pronto para levar nosso relacionamento para um nível adulto. Uma

coisa da qual eu vinha fugindo fazia tempo, e eu sequer sabia por quê.

Tranquei a porta atrás de mim, e corri até a cama, procurando o

objeto que eu havia acabado de esconder. Enrolado em plástico bolha

– e aquilo me fez considerar como o vidro foi estilhaçado – estava um

aparelho de telefone branco, antigo. Segurei-o entre os dedos, e

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tentei ligá-lo. “APARELHO SEM SIM,” foi a mensagem que me

incomodou. Ainda sem vestir-me, desliguei meu próprio telefone,

tirei meu chip e coloquei-o no aparelho branco, da marca Nokia.

Sentei-me na cama com o aparelho ligado, chocada. A imagem de

fundo era uma foto minha, de meu pai e de minha mãe. Os contatos

salvos eram meus amigos – Vee era a primeira da lista de chamadas

recentes. As mensagens de texto foram apagadas, e os arquivos

também. Havia apenas uma música na memória do aparelho, e eu

não a conhecia. “AEROSMITH – FALLEN ANGELS”. Coloquei a música

para tocar, e decidi vestir-me. Shorts jeans, camiseta azul piscina,

sandálias, uma pregadeira para manter meu cabelo no lugar. A

música acabou de tocar no exato momento em que eu acabei de me

vestir, e pude procurar o outro arquivo que estava no cartão de

memória – uma foto de Patch.

Meus ossos congelaram imediatamente. Ele usava o boné azul, os

cachos do cabelo preto escorregando para fora. Tinha a cabeça baixa,

e seus lábios estavam esticados em um sorriso, o mesmo sorriso que

eu vi todas as vezes em que o encontrei.

Aquilo já tinha passado do ridículo. Mas eu não troquei novamente

de aparelho, mantive o Nokia, no bolso traseiro de minha calça. Desci

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as escadas para encontrar meu namorado ansioso, esperando por

mim. Sentindo-me segura, vestida, pude beijá-lo com mais calma.

Patch estava sentado em uma pedra, olhando para o céu de verão sobre sua

cabeça. A tarde já estava acabando, e o sol movia-se rapidamente para oeste.

Ele tinha a cabeça apoiada nas mãos, os cotovelos nos joelhos.

— Veio repreender-me novamente? – Ele disse, pressentindo a chegada de

Rixon.

— Onde passou o dia?

— Ainda é dia. – Patch virou-se para o amigo. – Você acha que eles ainda

prestam atenção em mim?

— Eles pararam de prestar atenção em você há dois anos. – Rixon coçou o

queixo e sentou-se, ao lado do amigo. – Só um deles não te deixa em paz, mas

ela não é tão perigosa quanto eles.

— Eu não me preocupo com Dabria. – Patch voltou os olhos para o oceano. –

Ela não é um arcanjo.

— Mas ela tem conexões. Ela pode te causar problemas, você precisa manter-

se longe de Nora.

— Eu sei. – Patch moveu os ombros. – Eu tenho sido bastante cuidadoso,

Rixon. É que eu não posso resistir... eu planejei todas essas coisas para o dia

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que ela voltasse; eu tenho que fazer dar certo. Se for espontâneo, se ela quiser,

se ela mesma descobrir tudo, os arcanjos não vão interferir.

— Você acredita na palavra deles?

— Claro que não. – Ele deu uma risada. – Mas eu também tenho meus

contatos. Metade deles me respeita, e lamenta minha queda. A outra metade

está dividida, alguns não ligam. Eles só precisam acreditar que eu aprendi a

me controlar, que eu não vou perder a linha novamente.

— E você acredita que eles podem te devolver as asas? – Rixon parecia

bastante desacreditado.

— Não sei. – Patch tinha o olhar sombrio. – Eu não sei se as quero de volta; eu

quero ser humano.

— Sabe o que precisa fazer, para ter isso.

— Não. – Ele olhou para baixo. – Ser humano e não tê-la... seria o mesmo

sofrimento que tive, antes.

— Será o mesmo sofrimento, Patch. Ela vai crescer, envelhecer, morrer. O que

vai fazer com ela; congelá-la? Ela é humana, ela é inatingível. Os arcanjos

podem devolver suas asas, mas você ainda será um anjo. O que ganhará; a

capacidade de sentir. Você poderá sentir de novo, mas poderá senti-la por

quanto tempo? É isso que você quer; você não tem como mudar isso.

Rixon tinha um bom argumento, e Patch sabia. Mas ele tinha uma

descoberta que poderia mudar aquilo. Havia uma pequena chance que ele

conseguisse o que tanto desejava. Havia uma pequena possibilidade, se os

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arcanjos não estivessem assim tão interessados em tê-lo com eles, e se

precisassem absurdamente transformá-lo naquilo que ele queria.

— Eu prefiro tê-la de qualquer jeito, é melhor do que de jeito algum. – Patch

tinha o semblante rígido. – Você me faria um favor, Rixon? Convidaria a

amiga dela para sair?

— A loirinha?

— Sim, ela mesma. Eu quero Nora no Delphic, hoje. Ela está com o namorado,

eu estou com ciúmes.

— Ih, Patch. Isso não vai dar certo, já estou sentindo cheiro de problemas.

Você não pode interferir, lembre-se disso.

— Eu já interferi. – Ele deu outra risada. – Mas ninguém percebeu, fique

tranquilo. E eu só quero vê-la e, talvez, quebrar a cara daquele que está em

meu lugar.

Passar o dia todo com Scott não foi muito ruim. Não foi nada ruim, e

aquilo me surpreendeu. Eu o achava entediante, geralmente, mas ele

tinha um brilho estranho em seu olhar. Aquele nem parecia meu

namorado, o de sempre. Foi bom não pensar em segredos, Patch ou

telefones misteriosos que entravam voando pela minha janela. Eu

não sabia direito o que fazer com ele à noite, até que Vee apareceu

com a solução.

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— Você vai comigo ao Delphic hoje. – Ela disparou, no telefone, por

volta das dezoito horas. O calor já tinha abrandado, mas ainda estava

muito quente. Scott estava tomando um banho, e eu estava sentada

na frente da televisão, sem nada para fazer. Mamãe preparava um

lanche.

— Não vou, não. – Peguei o controle remoto, para procurar um canal

decente.

— Eu preciso de você, Nora. Tenho um encontro.

— Rá! – Dei uma risada. – Se você tem um encontro, então

definitivamente não me quer atrás, Vee! Vou segurar vela para você?

— Você não está com Scott? Então, um encontro duplo! O que acha?

— Quem te convidou?

— Rixon.

E eu tive um pequeno momento de reflexão, relacionando Rixon a

Patch, e à proposta que ele me tinha feito no cinema, no dia anterior.

Logo, minha lógica rejeitou a ideia de que Patch pudesse ter aliciado

o amigo para convidar Vee, sabendo que ela me chamaria. Homens

não pensavam como mulheres, ele nunca teria aquela ideia. E ela era

absurda, considerando que não havia justificativa para Patch querer

tanto me ver.

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— A que horas?

— Vinte. Ele vai me pegar em casa, você pode ir com o Spider?

— Vee, Scott está aqui.

— Ah, você vai de Mercedes. Claro, esqueci que seu namorado é rico.

— Alguém tem que se dar bem, nessa história.

Desliguei o telefone com a missão de contar a Scott que teríamos um

encontro duplo, e que Vee era parte dele. Não que eu me importasse,

pois eu não ia ficar no meio de briguinhas dos dois. Scott estava na

minha casa, na minha cidade, no meu mundo, e ele seguiria minhas

regras. Mesmo que ele não quisesse, era aceitar ou ir embora. A nova

Nora não se deixaria comandar por ninguém, menos ainda por um

namorado.

Para outra surpresa minha, Scott aceitou facilmente sair. Para

melhorar o dia, eu só precisava de roupas novas – e eu tinha a

camiseta que minha mãe me havia dado de presente. Rosa, brilhante,

e nada que me deixasse parecida com Marcie Millar. Preferi usar

sapatilhas e jeans ao invés da minissaia que estava em minhas mãos.

Scott vestiu-se como um lorde, porque ele sempre se vestia daquela

forma. Jeans escuros, sapatos pretos, camisa polo listrada de azul e

vermelho, os cabelos loiros penteados para o lado. Ele era muito

branco, e seus olhos azuis eram inebriantes. Eu não achei difícil

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entender por que havia me apaixonado por ele, ao olhá-lo naquela

noite. Eu tive vontade de beijá-lo e atirá-lo na cama, pela segunda

vez, e acabei acreditando que faria aquilo mais cedo ou mais tarde,

naquele verão.

Encontramo-nos com Vee e Rixon no Delphic, e o encontro foi em

um restaurante de frutos do mar que ficava à beira da praia. Depois

do jantar, iríamos ao parque de diversões. Se eu conhecia meu

namorado, ele iria apostar – eu esperava que Rixon não fosse como

Patch. Eu conheci Patch em um bar, apostando na sinuca, e já tinha

me informado que ele era um jogador.

— Estou com os hormônios problemáticos. – Sussurrei para Vee,

enquanto caminhávamos as duas para o banheiro feminino. Já

tínhamos comido o prato principal, e os rapazes escolheriam a

sobremesa.

— Explique-me. – Vee sacou um batom vinho, com a intenção de

retocar a maquiagem.

— Eu não posso ver Scott que quero... ah, você sabe, eu quero...

— Uhu, Nora. Você tem tanta dificuldade assim de lidar com isso? –

Vee disse, com as duas mãos na cintura, me encarando. – Até parece

que você sofreu abuso na infância! Sexo, Nora! Você o vê e quer fazer

sexo com ele. Certo?

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— Sim. – Desisti, movendo os ombros em concordância. – É

exatamente isso. Hoje mais cedo, quase aconteceu. Mas outro evento

mais estranho ainda nos distraiu. Só que tem essa tensão, que não

passa.

— Mas isso é normal! Vocês namoram há tanto tempo, você gosta

dele, e...

— Não é só com ele. – Confessei. Minha cabeça girava, ela estava

assim desde o dia anterior. – Ontem, no cinema, Patch assistiu ao

filme inteiro segurando minha mão. Não entre as suas, mas entre as

pernas.

— Uau! Fácil assim? E o que você segurou, durante o filme todo?

— Vee Sky, não acreditou que você está pensando isso! – Tudo que eu

queria, naquele momento, era um buraco para esconder-me. – Eu só...

fiquei com a mão ali, sobre sua coxa.

— Nora! – Vee arregalou os olhos e deu uma risada. – Você precisa

urgentemente perder essa virgindade. Claro que seus hormônios

estão agitados; é verão, você está cercada de homens lindos, de

ambientes propícios ao romance, de situações limite. Dá até para

pensar que você está sendo testada! Você precisa dar um jeito nisso,

ou vai ficar doida. Só escolhe com quem, Scott, o namorado, ou Patch,

o desconhecido?

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Meu olhar a fez entender que a conversa tinha acabado. Não havia

escolha, claro que Scott vinha sempre em primeiro lugar. Qualquer

atração física louca que eu pudesse sentir pelo estranho Patch era

apenas isso – atração. Mesmo que eu e Scott fôssemos romper depois

de um mês, o que eu até achava provável, antes, aquilo não afetaria

minha escolha. A primeira vez tinha que significar alguma coisa.

Foi no parque de diversões que me obriguei a aceitar que eu havia

errado o tempo todo. Patch pensava como uma garota, e ele tinha

que ter feito Rixon convidar Vee. Bastou colocarmos os pés na sessão

dos jogos de fliperama que a sua figura sombria surgiu, camiseta polo

preta, os cabelos penteados como no dia em que o vi no Borderline.

As botas de couro estavam sujas de barro, como se ele tivesse

passado algum tempo fazendo um rali. Ele e Rixon se

cumprimentaram de um jeito bem masculino, e eu considerei que

precisava apresentar Scott. Apesar de estarmos de mão dada, e de ser

bastante óbvio que estávamos juntos, eu queria ser educada. Patch,

nem tanto. Ele não demonstrou qualquer simpatia para Scott, e seus

olhos pareciam desafiadores e inquisidores. Tive medo que ele fosse

bombardear Scott de perguntas, mas ele limitou-se a ignorá-lo o

máximo que pode.

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— Você está usando uma camiseta muito bonita. – Ele disse, para

mim, como se Scott nem existisse. – Essa frase, faz muito sentido.

— Você acha? – Minha surpresa foi genuína. – Para mim ela não faz

sentido algum!

— Um dia vai fazer.

Olhei novamente para minha camiseta, “JUST an EQUAL VIEW”, e

realmente me era compreensível. Scott também estava olhando para

ela, e fiz uma expressão indicando que não adiantava perguntar-me;

eu não tinha as respostas.

— Quem é esse? – Ele me interrogou, sussurrando em meus ouvidos.

— Um ex-colega do ensino médio. Ele é melhor amigo do Rixon, que

está com Vee. Você não sabe como cidade pequena é; só há um lugar

para ir, e todos se conhecem.

— Ele pareceu mais do que um ex-colega. – Scott reclamou. Ele não

estava errado em achar aquilo, eu também achava. Só não sabia

ainda por que.

— Isso porque ele é muito metido. – Dei uma risada. – Não adianta

ficar assim, Scott. Eu tenho um passado, você já sabia disso quando

me conheceu.

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E eu tinha um passado misterioso, foi o que eu deveria ter dito.

Segredos e coisas estranhas que decidiram revelar-se exatamente

naquele verão, sem aparente motivo. Ele me segurou pela cintura e

levou seus lábios até os meus. Eu ergui meu corpo um pouco, para

conseguir beijá-lo plenamente. Fazia tempo que Scott não me beijava

daquela forma, com tanta intensidade. Não senti a mesma urgência

de todos os outros. Enquanto nossas línguas brincavam, senti

novamente o gelo em minha coluna, quase como se o vento norte me

tivesse atingido, em cheio, no inverno.

Como se os sonhos estivessem ficando cansativos, eles decidiram

variar de temática. Depois de sombras e terror na noite anterior,

naquela eu sonharia com cores, flores, aromas e Patch. Sim, patético,

porque eu adormeci nos braços de Scott, e nós estávamos bastante

ativos. Apesar de todas as roupas terem ficado intactas, as carícias

estavam mais ousadas e eu precisei conter-me para não emitir

nenhum ruído que alertasse minha mãe sobre o que eu estava

fazendo de madrugada. Mesmo assim, a figura masculina em meu

sonho era Patch Cipriano.

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Ele estava mais lindo do que eu lembraria tê-lo visto. Estávamos em

um lugar desconhecido para mim, mas fazia sol e havia praia. Pensei

imediatamente que estivesse sonhando com Delphic Beach, mas não

era o mesmo local. Ele usava shorts, apenas, e seu corpo bronzeado

estava todo exposto. A simples visão de Patch já poderia desencadear

um incêndio em mim. Mas o diálogo que se seguiu à visão foi ainda

mais esclarecedor.

— Não tenha medo, Nora. – Ele disse, e eu não entendi. Eu estava

usando as mesmas roupas do dia, shorts e camiseta. – Eu devia ter

pensado nesse canal antes, mas eu só consigo entrar nele se você

abri-lo para mim.

— Do que você está falando? – Não entendi, novamente. Patch

sentou-se na areia, e suas costas estavam voltadas para mim. Havia

nelas duas cicatrizes que me assustaram e me fizeram colocar as

duas mãos na boca. Elas eram escuras, largas, e idênticas, com bordas

irregulares. Seguiam da sua omoplata até a linha dos rins, em forma

de um V mal feito, deformado, ao contrário. – Céus, o que houve com

você?

— Isso já está plenamente cicatrizado. – Ele não olhou para mim. –

Não tenha medo, sente-se ao meu lado. Você tem perguntas, mas eu

não posso te dar as respostas facilmente. Você precisa ser inteligente,

e consegui-las por si só.

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— O que eu preciso fazer?

— Você poderia tentar me seduzir. – Patch deu uma gargalhada. Eu

franzi o cenho, zangada.

— Eu vou conseguir respostas sem tentar seduzir você. – Aproximei-

me, mesmo sabendo que aquilo não era seguro. Afinal, era um sonho,

que mal poderia fazer? – Aliás, o que você está fazendo em meu

sonho?

— Você me permitiu entrar. – Ele sorriu, e olhou para mim. Franzi a

sobrancelha, confusa. Ele não falava como se fosse um sonho. Parecia

mesmo, muito real, mas tinha que ser um sonho. – Agora preste

atenção, você precisa mandar esse Scott embora.

— Ah, mas não preciso, não. – Protestei. – Ele é meu namorado, o que

te faz pensar que eu vou terminar com ele só porque você pediu?

— Ele é perigoso. Não consigo entender como uma coisinha como

você consegue ser tão atirada para o perigo. Primeiro, sou eu. Depois,

esse Nefilim.

— Eu não faço ideia do que você está falando. Mas Scott não tem

nada de perigoso, ele é um doce! E estamos juntos há mais de um ano,

se ele fosse perigoso, não acha que eu já teria percebido?

— Ele não sabe, anjo. – Patch estava controlado. O sol esquentou mais,

como se meio dia estivesse se aproximando. – Ele não sabe nem o

que é, mas você precisa ficar longe dele.

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— Você está dizendo essas besteiras porque está com ciúmes. –

Disparei. Eu parecia ainda mais esquisita naquele sonho; eu mal

podia me reconhecer. Seria uma reconstrução da Nora, ou a Nora nos

sonhos era mais patética do que a Nora real? Talvez a resposta fosse

me deixar insatisfeita. – E você tinha dito que não era ciumento!

— Eu menti. Claro que estou com ciúmes. – Patch virou-se para mim,

os olhos então sombrios. – Eu sei que vocês estavam juntos, mas eu

não vi. Eu não senti, eu não quis saber. Mas você o trouxe para

debaixo dos meus olhos; você não sabe como foi difícil vê-los essa

noite sem me meter no meio dos dois e arrebentá-lo em pedaços.

— Você está doido.

Eu não consegui levantar-me, como era minha intenção inicial. Ele

estava sempre no caminho, mas daquela vez ele segurou minha mão

com força. Puxou-me para baixo, eu caí quase em seu colo. Patch

jogou-me na areia e moveu-se por cima de mim, pressionando-me

contra o chão quente. Debati-me por baixo dele, irritada, querendo

livrar-me daquele abuso.

— Eu sou doido por você, Nora. – Ele colocou as duas mãos em minha

cabeça, e acariciou meus cabelos. Tirou algumas mechas da minha

face, e encarou-me. Eu respirava com dificuldade, depois de tentar

escapar, mas ele era muito mais forte. Sem que eu pudesse reagir

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novamente, Patch abaixou a cabeça e pressionou seus lábios contra

os meus.

Senti um tremor que me percorreu o corpo, e ondas de calor intenso

me arrebataram. Eu não consegui mover-me nos primeiros instantes

em que senti Patch me beijando; meus braços desabaram ao lado do

meu corpo. Fui dominada por um torpor imediato. Aos poucos minha

consciência retornou, mas eu não parecia apta a controlá-la. Minha

boca abriu-se, receptiva demais, para receber a língua morna que

queria brincar com a minha. O tempo quase parou, o relógio andava

muito devagar. Eu podia ouvir. “Tique”. “Taque”. “Tique”. “Taque”.

Cada vez mais devagar.

Eu retribuí, então. Meus dedos se cravaram nas costas de Patch, mas

ele segurou-me pelos pulsos e prendeu minhas mãos no alto de

minha cabeça. Com espaço para trabalhar, ele passou a beijar meu

pescoço, movendo lentamente para baixo. Eu deveria ter-me

constrangido por tremer tanto sob seus dedos, ou por emitir sons

que claramente demonstravam que eu estava gostando. Meu corpo

amoleceu por completo, e minha consciência me deixou novamente.

— Observe as pistas, anjo. – Ele sussurrou em meus ouvidos,

enquanto eu parecia mais uma vez cair em um abismo sem fim.

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07 – DESCOBERTAS

Acordei sobressaltada, e o relógio marcava cinco horas da manhã. Eu

estava por cima de Scott, e minha movimentação o fez despertar

parcialmente.

— Teve um pesadelo? – Ele sussurrou em meus ouvidos, o hálito

quente.

— Nada demais. – Menti. Meu coração estava disparado, e eu sentia

ainda as ondas de calor me atingindo. – Volte a dormir.

Scott cometeu o erro de buscar minha boca e me beijar. Imaginei que

ele quisesse apenas um rápido beijo, mas eu estava absurdamente

excitada. O simples toque de seus lábios acendeu todos os meus

alertas de perigo, e eu literalmente o ataquei. Estávamos na cama,

um pouco suados, a brisa penetrando pela janela aberta, o ventilador

ligado fazendo um ruído metálico confortante. E eu puxei Scott pela

bainha dos shorts de pijama e violentei seus lábios, beijando-o com

uma intensidade que não me era comum.

Eu não parei para pensar que aquele beijo era diferente do anterior.

Scott beijava muito diferente de Patch – não havia aquele aroma

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mentolado, nem o cheiro de tabaco que o fazia inconfundível. Mas

era bom, e eu estava ainda meio inconsciente. Scott respondeu ao

meu beijo, ousando tocar-me onde ele ainda não havia tocado. Sua

boca desceu para meu pescoço, que ainda pulsava onde Patch tinha

acabado de tocar; para meu colo, e seus dedos puxaram a alça da

minha camiseta. Mordi os lábios para não gritar quando ele avançou

para meus seios, e me beijou até o encontro da pele com o elástico da

minha calcinha. Naquele instante, eu já não pensava mais nada, só

que eu o queria. Vee me mandou escolher, eu não tive essa opção.

Scott estava em minha cama, era mais fácil com ele.

— Nora. – Ele interrompeu-me tão logo minha mão escorregou por

dentro de seus shorts. – Você sabe aonde isso vai nos levar.

— Sim, eu estou exatamente com essa expectativa.

— Você não quer que sua primeira vez seja assim, Nora Grey. – Scott

puxou minha mão e beijou meus dedos. – Eu te amo, e só de você me

tocar assim eu já posso ter um orgasmo. Mas eu sei o que você quer,

e acho que respeitar isso será melhor para todo mundo.

Por aquela eu não esperava. O Scott impulsivo, que chegou a

Coldwater e me fez, em um dia, repensar a ideia sobre nosso namoro,

tinha se perdido na madrugada. Aquele ali era o Scott que eu

conhecia, sempre comedido, sempre pensando em planos e

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estratégias. Eu tinha um planejamento para a primeira vez que eu

fizesse sexo, mas, na verdade, tudo que eu queria era que meu corpo

estivesse pronto para aquilo.

E eu estava mais do que pronta.

Mas, de certa forma, convencer Scott de que nós não deveríamos

fazer sexo às cinco da manhã, na minha cama, durante as férias, com

minha mãe dormindo no quarto ao lado, não parecia muito difícil.

Era o certo a se fazer. Relaxei, soltei seus lábios bem devagar, e ele se

ajeitou na cama. Seu corpo voltaria naturalmente ao normal, mas o

meu continuava movido pela adrenalina. Eu não conseguiria dormir,

não mais. Recompus meu pijama e desci as escadas, pretendendo

tomar um copo de leite morno e voltar para a cama.

— Teve um pesadelo? – Minha mãe me interceptou. Ela estava na

cozinha, enrolada em seu roupão tradicional. Eu me senti uma

pessoa muito perturbada; todos que me olhavam sabiam que eu

tinha tido um pesadelo?

— Perdi o sono. – Movi os ombros, demonstrando que aquela

informação era irrelevante.

— Sente-se, vou preparar um leite para você. – Mamãe acendeu o

fogo e colocou uma vasilha com leite e caramelo. O leite com

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caramelo dela era uma das poucas coisas familiares que eu

continuava usufruindo. Sentei-me na banqueta e apoiei os cotovelos

no balcão, encarando-a. Se eu não podia esquecer tudo e afogar-me

em uma noite de devassidão, então eu iria fazer o que Patch me

sugeriu. Ia seguir as pistas.

— Mãe. – Tentei imaginar como as palavras seriam ditas. Não era

uma missão simples. – Preciso perguntar uma coisa. Você conheceu

Patch Cipriano?

Minha mãe continuou mexendo o leite enquanto pensava o que me

diria. A pergunta pareceu difícil.

— Se eu o conheci? Tão bem quanto você, não. – Ela deu uma risada

baixa. – Mas sim, você o trouxe aqui umas duas vezes. Você não se

lembra?

— Eu tenho uma vaga lembrança. – Menti, porque eu não me

lembrava de nada. Eu tinha um buraco no meio da minha cabeça, que

precisava preencher com informações.

— E o assunto Patch surgiu na conversa por quê? – Mamãe serviu o

leite em dois copos e sentou-se à minha frente, oferecendo também

uma cesta com biscoitos de aveia.

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— Eu não me lembro de algumas coisas que aconteceram há alguns

anos. Eu revi Patch na semana passada. Eu o reconheci, mas

estranhamente achei que eu mal o conhecia. Só que...

— Você não se lembra, mesmo, Nora? – Minha mãe parecia

preocupada.

— O que eu deveria lembrar?

— Eu ficava pouco em casa naquela época, menos do que fico agora;

mas eu tenho certeza que vocês namoravam. Acho que o termo é

ficavam, certo? – Concordei com a cabeça. – Então, você escondia

muito de mim, mas eu via quando você falava com ele, como você

falava dele. Só que você foi se perdendo, foi ficando mais arredia,

mais difícil, e eu nunca mais vi o Patch por aqui.

Tomei um gole do leite, e senti a garganta ardendo. Então era

daquele jeito, eu e Patch namorávamos? Eu era próxima dele a ponto

de levá-lo até minha casa, a ponto dele deixar pistas para que eu me

recordasse dele? E como ele saberia que eu precisaria dessas pistas?

— O terapeuta disse que eu tive problemas em lidar com o passado, e

por isso apaguei algumas partes dele. – Confessei. Eu nunca tinha

dito aquilo para ninguém além de Vee. – Fizemos hipnose, e

teoricamente eu tinha recuperado tudo – eu tinha parado de negar a

realidade.

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— Eu sinceramente acreditava que o Patch fosse uma das partes boas,

do seu passado. – Minha mãe sorriu. – Ele é esquisito, eu sempre fui

contra você vê-lo, porque ele parece um bandido. Mas bastava falar o

nome dele para você se desmanchar. Você tentava negar, Nora. Mas

sou sua mãe, uma filha não esconde essas coisas de uma mãe.

Sacudi os pensamentos, muito mais confusa do que antes. Terminei o

leite e agradeci minha mãe com um beijo na bochecha, voltando para

a cama. Scott tinha ocupado toda a extensão do colchão, por isso

decidi embolar-me no sofá da sala. Eu também não sabia se

conseguiria acordar novamente ao lado dele e ter uma reação

normal. Só que eu não consegui dormir. Eu tinha o cérebro

fervilhando de informações, e eu precisava fazer alguma coisa com

elas. Parecia uma garota bipolar, cada hora querendo uma coisa

diferente. O sol ainda nem tinha nascido quando corri até meu

quarto, vesti qualquer coisa que estava por sobre a cadeira da

escrivaninha, e peguei as chaves de Scott. Ele ia dormir bastante

ainda, e eu precisava ir até a biblioteca pesquisar.

Patch tinha me dito para observar as pistas, e era o que eu pretendia.

Então, primeiro eu tinha que juntar tudo que eu já tinha obtido de

informação, para descobrir como utilizá-las de forma a obter

respostas. Mentalmente, enquanto eu dirigia a Mercedes com

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bastante cuidado, comecei a formar o quebra cabeças. Primeiro, eu vi

Patch no Bô. Aquilo deveria representar alguma coisa. Patch me

convidou para ir ao Delphic, e para andar no Arcanjo – outra

informação útil? E ele me deu uma lista de coisas que eu escrevi

sobre ele. Depois foi o boné azul, que ele me mostrou onde estava,

mas não me permitiu ficar com ele. O celular Nokia, que tinha a foto

de meu pai, a de Patch, com o boné, e a música do Aerosmith. E teve

o sonho, no qual Patch chamou Scott de Nefilim e me mostrou duas

enormes cicatrizes nas costas. Até parecia que tinham arrancado as

suas asas.

Meu pé pisou abruptamente no freio, e a Mercedes parou no meio da

rua. Obviamente eu estava, além de tudo, louca.

Voltei a guiar, e parei a Mercedes de qualquer jeito, na frente da

biblioteca. Passei correndo pelo portão, subi as escadas pulando

degraus, e cheguei até a recepção arfante, colocando os pulmões pelo

nariz. A gentil recepcionista ainda nem tinha ligado os

computadores do laboratório, mas como ela já me conhecia, permitiu

que eu mesma escolhesse um para mim e fizesse o resto. Enquanto

ele ligava, corri novamente até a seção de psicologia e psicanálise e

peguei alguns livros sobre hipnose e bloqueio da mente. Eu não

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entendia nada daquilo, mas se ia investigar, então eu tinha que

investigar a fundo.

Sentei-me à frente do computador, com dois livros abertos ao lado. A

primeira pesquisa que fiz foi sobre minha revelação acerca das

cicatrizes de Patch. Coloquei o Nokia branco em cima da mesa e

submergi em um mundo de anjos caídos, demônios, céu e inferno. Eu

não era religiosa, mas aquela história toda já estava me deixando

com os cabelos arrepiados. Li diversas lendas sobre anjos caídos,

sobre Lúcifer, sobre o banimento e a perda das asas. Havia tanta

informação que eu não poderia absorver tudo, com aquele estado de

espírito. Cliquei na aba de imagens, e imediatamente desenhos de

anjos caídos, com cicatrizes exatamente iguais às de Patch,

apareceram.

Se fosse possível realizar a hipérbole do queixo cair ao chão, teria

sido aquele um momento ideal. Mais uma vez, o mundo girou e

parou no mesmo lugar, e diferente. Cada vez que ele dava uma volta

em torno de si mesma, ele se modificava drasticamente. Meu celular

vibrou, levei um susto e quase o deixei cair. Era uma mensagem de

Scott. “ONDE VOCÊ ESTÁ?”, ele perguntava, e era óbvio que meu

namorado acordaria sem mim e ficaria confuso. Percebi que havia

duas chamadas perdidas, todas dele, que eu nem tinha notado antes.

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Eu precisava mentir, e mentir convincentemente. “VEE PASSOU MAL.

PRECISEI PEGAR A MERCEDES. EXPLICO DEPOIS,” era uma mentira

razoável. Vee confirmaria, e Scott não desconfiaria. Outra vibração, e

já nem vi quem era, certa de que Scott escrevia que me amava, ou

que já estava com saudades – aquelas frases melosas e básicas que

todo namorado já tinha decorado para dizer. Mas enganei-me outra

vez.

“EU AVISEI PARA AFASTAR-SE DE PATCH. VOCÊ NÃO TEME PELOS

QUE AMA?”

A frase me causou mais calafrios do que as histórias sobre anjos. A

mensagem vinha novamente do número restrito, e o vocabulário era

polido demais. Não podia ser engano, não duas vezes, não falando de

Patch. Duas vezes, em ambas eu estivera conectada a ele por um

longo período, mesmo que só em meus pensamentos. Fosse quem

fosse, estava tentando me alertar que Patch poderia fazer mal aos

meus amigos, à minha família, a Scott. Eu não duvidava que ele

pudesse ferir Scott, ele prometeu fazê-lo em sonho. Mas Patch

poderia parecer qualquer coisa – maníaco, bandido, criminoso, louco

– mas nunca violento. Não consegui vê-lo como um homem que fazia

mal às pessoas – apesar de ele andar com uma faca pendurada no cós

da calça.

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Meus pensamentos estavam contraditórios. Voltei para o

computador e procurei sobre os Nefilins, aquilo que Patch disse que

meu namorado seria. Pessoas sobre-humanas, cruzamento macabro

entre um demônio – o anjo caído – e um ser humano. Quase dei uma

risada com as imagens de esqueletos de Nefilins, todos gigantes,

alguns teoricamente com asas. Scott não tinha asas, nem era gigante.

Mas ele tinha mais de um metro e noventa. Talvez ele tivesse quase

dois metros. Ele nem cabia na cama. Eu só tinha certeza que Scott

não era um gigante, pois havia tantos homens muito mais altos do

que ele. Ele não tinha marcas do que fosse, enquanto Patch tinha as

cicatrizes de onde suas asas teriam sido cortadas.

Empurrei a cadeira para trás, e parei de olhar para o computador.

Aquela coisa toda era ridícula demais para ser levada a sério. Eu era

uma cientista, não dava para acreditar em sobrenaturalidade. Por

mais lógica que fizesse. Decidi voltar-me para os livros, e algumas

descobertas sobre hipnose, antes que eu perdesse o resto do meu

juízo.

PATCH‖S POV

Eu estava há quase dois dias sem ver Nora, controlando todos os meus

impulsos para não ir até ela e matar aquele Nefilim que estava no lugar que

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deveria ser meu. Mas eu não podia fazer nada enquanto ela não descobrisse

tudo por si só. E ela era lenta demais! Quantas vezes eu tive vontade de fazê-

la enxergar o óbvio, mas eu também precisava aceitar uma coisa: ela poderia

me esquecer, e viver a própria vida. Eu não sabia se Nora me amava da

mesma forma que eu a amava.

Pressenti que estava sendo vigiado novamente, apesar da estranheza que

aquilo me causou. Eu não deveria mais ser notícia, tive a impressão de que o

céu não tinha absolutamente nada de interessante para se fazer. Havia um

arcanjo me vigiando.

Eu costumava ser um arcanjo, e eu era muito popular e poderoso. Mas eu

sempre fui muito fraco – eu me deixei dominar pela luxúria e acabei sendo

banido do céu. Nunca soube se tinham me banido porque me apaixonei por

uma humana, ou se porque eles queriam mesmo livrar-se de mim. Eu sabia

que tinha sido enganado, que me fizeram acreditar que, caindo, eu me

tornaria humano. Só muito tempo depois eu descobri que aquilo era

impossível; caindo eu só conseguiria dar um passo em direção ao inferno. Foi

Azrael que me explicou, com prazer, que apenas uma forma de humanidade

eu poderia gozar – a benção dos anjos. E eles jamais me dariam aquela

bênção.

Eu achei outro jeito, e o descartei. Mas quando percebi que eu poderia

recuperar minhas asas e, talvez, em uma remota hipótese, receber a bênção,

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eu considerei as variáveis e aceitei o desafio. Eu precisava me sacrificar,

sacrificar aquilo que me levou ao banimento; eu precisava sofrer. Sofrer não

parecia ser tão difícil, eu já vinha sofrendo tanto desde minha queda que não

deveria ser nada demais.

— Rafael. – Eu disse, tão logo ele se fez ver. Estávamos no Delphic, e eu não

sabia até onde ele podia se aproximar.

— Saudações, Jev. – Eu detestava aquela conversa. Fazia séculos que eu não

falava com ninguém que usasse um vocabulário ao menos adequado, então

que ele guardasse suas saudações para outra ocasião.

— O que você quer? – Retruquei. – Pensei que vocês tinham entendido que eu

não vou me aproximar da garota, a não ser que ela queira.

— Entendemos. Alguns entenderam, outros não, mas a maioria impera. Vim

aqui hoje demonstrar que você pode confiar em nós. Desejamos tê-lo de volta,

Jev. Por isso, anseio para que sua prova se cumpra com sucesso.

— Você desceu lá de cima só para me falar isso?

Rafael era um arcanjo muito educado, até demais. Ele usava roupas brancas,

e vendo-o na Terra, eu até poderia dizer que ele era bonitão. Como todo anjo,

ele era loiro, olhos azuis, aquelas características todas. Eu era um caído,

meus cabelos eram pretos, meus olhos eram pretos, eu parecia queimado,

destinado ao fogo.

— A menina, ela corre perigo.

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Falling - Tatiana Mareto Silva

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— Nora? – Meu coração parou de bater. Aquelas sensações humanas eram

engraçadas, todas psicológicas. – O que está havendo, como você sabe?

— Um enviado notou um anjo da morte que a espreita. Ele está cada vez

mais próximo, e ela não está em seu momento. Os arcanjos querem designar

um guardião para ela, mas eu interferi e disse que você seria nossa melhor

escolha.

— Porque Nora é importante, para vocês. Vocês sabem que ela está envolvida

com um Nefilim, sabem o que ela representa e não querem perdê-la. – Eu

afirmei, e Rafael não negou. – Fiz meu dever de casa, eu sei exatamente os

motivos que levaram vocês a me proibir de vê-la. Não teve nada a ver com

Dabria.

— No final, tudo tem a ver com Dabria. Ela está fora de si, Jev. – Rafael

retraiu sua expressão. – Ela é o anjo que ronda a menina.

Era sorte Rafael saber que eu era o anjo mais engajado que existia. Anjo não,

demônio. Ainda. Quando estava determinado a fazer algo, eu fazia, mesmo

que aquilo me custasse muito. Eu tinha séculos de experiência em sofrimento,

então não havia nada que pudesse ser tão penoso que eu não estivesse

disposto a enfrentar. Se eu agisse, Dabria estaria morta em um minuto. Um

anjo como ela não seria páreo para mim – porque apesar de eu não ser mais

um arcanjo, eu ainda era poderoso. E eu não sentia nada, eu nunca cairia em

uma briga. Porém, eu nada podia fazer. Rangi os dentes, contraindo o

maxilar e fechando as duas mãos em punhos.

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— O que eu posso fazer? Por que você veio me contar isso?

— Queremos que você seja o guardião de Nora Grey, até conseguirmos

neutralizar Dabria.

— Eu posso neutralizá-la agora mesmo. – Bati o punho direito na palma da

mão esquerda, demonstrando o que eu pretendia fazer.

— Não perderemos outro anjo da morte. – Rafael ergueu a mão, me

repreendendo. Sim, claro. – Dabria será banida, se for preciso, mas primeiro

queremos tentar trabalhá-la.

— Eu não posso ser o guardião de Nora. Eu não tenho asas, eu sou um

demônio.

— Extra oficialmente. – Rafael sorriu. – Você está autorizado a quebrar o

pacto e aproximar-se dela, porém você ainda não pode interferir em sua

escolha. Entenda, Jev, que se for o destino dela estar com você, isso será

respeitado. Mas ela precisa exercer seu livre arbítrio, sem que você utilize

nenhum de seus poderes para despertar-lhe o interesse.

— Eu preciso ficar parado feito uma estátua enquanto ela me beija? É isso?

— Se ela te beijar, você pode beijá-la. Ainda não sei como você se interessa

por isso, afinal você não pode senti-la.

Rafael afastou-se, voltando para o lugar de onde veio. Claro que eu podia

senti-la, ele realmente não sabia de nada. Soltei meus punhos e respirei

fundo. Meu corpo semi-humano tremia. Eu passei anos fugindo de Nora,

anos tentando fazê-la me ver sem poder me apresentar. Eu não contava com

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aquela dos arcanjos, menos ainda com a permissão expressa para quebrar o

pacto. Depois de tanto tempo, eu não sabia como abordá-la.

08 – A ENTREGA

— Vee, eu preciso de você. – Eu disparei no telefone, solicitando os

auxílios de minha melhor amiga pela segunda vez em menos de uma

semana.

— Outra vez? Eu não durmo com você, Nora Grey. – Vee reclamou,

mas eu sabia que, na verdade, ela só fazia charme.

— Scott não pode saber o que eu vou fazer. Enrolá-lo é a coisa mais

difícil que eu já fiz; eu tive que inventar um prontuário para você,

quando cheguei em casa, ontem.

— E o que eu devo fazer para você, hoje?

— Levar-me até o Fliperama do Bô e ser meu álibi.

— O que vai fazer lá? – Vee usou aquele tom que significava que ela

precisava de respostas, ou eu pagaria um alto preço.

— Preciso encontrar-me com Patch. Eu estou investigando algo, e ele

tem respostas que ele vai me dar, nem que eu tenha que arrancar a

força.

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— Aposto que ele vai deixar você arrancar a força. – Vee deu uma

risada. – E como pretende enganar o príncipe encantado? Eu preciso

saber em que estou me metendo.

— Scott acha que vamos visitar sua avó no asilo.

— Que desculpa horrível! Não tenho avó nenhuma, menos ainda no

asilo.

— Em meia hora, Vee.

Desliguei o telefone. Minhas mãos suavam, e eu estava vestida como

uma freira. Afinal, eu mentia para meu namorado, dizendo que iria

visitar uma senhora senil em um asilo em Portland. Ele queria me

levar, mas eu insisti que Vee era muito sistemática com a família, e

eles não eram exatamente amigos. Eu estava descobrindo que Scott

era bastante possessivo, naquelas férias, mas convenci minha mãe a

fazer companhia para ele. Ela voltaria para o trabalho em dois dias, e

eu precisava aproveitar meu tempo.

Meus planos eram bem diferentes. Eu já tinha montado parte do

quebra cabeças; eu já sabia que Patch era um anjo caído, Scott

poderia ser um Nefilim – e eu não tinha muita certeza sobre aquilo; e

eu e Patch tivemos algo, alguns anos atrás. Eu demorei muito tempo

para assimilar o anjo caído; eu me recusava a enxergar aquela

possibilidade. Quarenta e oito horas depois da descoberta, eu ainda

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não tinha confrontado Patch sobre nada daquilo, e estava na hora. Se

havia um lugar no qual eu poderia encontrá-lo, esse lugar era o

Fliperama do Bô, à noite.

Era hora de fazê-lo falar.

Vee me deixou no estacionamento do Bô, e fiquei um pouco aliviada

quando vi o Jeep Commander parado do lado de fora. Ao menos ele

estava lá, e eu não tinha armado toda aquela estratégia por nada.

Paguei os quinze dólares de entrada, mas não gastei tempo perdendo

dinheiro em fliperamas, fui direto ao que me interessava. Eu tinha as

mãos cerradas em punhos, e desci correndo para as mesas de sinuca.

Eu precisava encontrar logo Patch, estava ansiosa com tudo aquilo.

Foi difícil esperar o momento certo para poder ir até ele, e naquele

momento eu já tinha perdido o controle.

Ele estava jogando, com outros dois adversários, e uma audiência

bem feminina. As garotas se amontoavam para vê-lo jogar, e eu

preferia fingir que nem sabia por quê. Não era porque ele era lindo,

porque Patch estava além daquele conceito. Patch era tudo, menos o

estereótipo de homem dos sonhos de alguma mulher. Ele era um

pesadelo.

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— Patch Cipriano. – Aproximei-me, falando em voz alta. Queria

espantar todos que estavam ali perto. Ele ergueu o corpo, uma

sobrancelha erguida, e me encarou. Eu mantive o corpo em

movimento, aproximei-me dele e tomei o taco de suas mãos e, sem

olhar para o lado ou pensar no que estava fazendo, atirei meus lábios

sobre os dele.

Eu ainda não tinha percebido se o beijo era igual, quando passei

meus braços por seu pescoço. Patch pareceu hesitante por alguns

instantes; mas logo ele me segurou pela cintura e retribuiu o beijo. E

então, eu tive certeza. Tão logo Patch pressionou-me contra seu

corpo e envolveu meus lábios nos seus, eu tive certeza de que aquele

sonho não tinha sido um sonho. Eu pude sentir o calor de seu corpo,

sua língua morna, tudo outra vez. O mundo parou de girar e só

voltou a mover-se depois de vários minutos, muito devagar. Não

havia tempo, o tempo era irrelevante e insignificante. “Tique.”

“Taque.” “Tique.” “Taque.” O relógio batia, martelando em minha

cabeça, enquanto as duas mãos espalmadas de Patch, em minhas

costas, me faziam sentir segura.

— Uau. – Ele disse, depois que nossos lábios se soltaram. – De onde

veio isso? – Ele sorria, e eu senti ira. Alguma coisa dentro de mim

estava desencadeando um cataclisma hormonal – eu sentia tudo ao

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mesmo tempo, desde que meus pés pisaram no mesmo espaço que

Patch. Afastei-me dele o suficiente para desferir um tapa em sua face,

com toda força que eu tinha. Ele franziu o cenho, confuso, e eu quis

sair de perto dele. Não importava o que tinha acontecido entre nós,

ele não tinha o direito de ser um anjo e de invadir meus sonhos. Ele

não tinha o direito de reaparecer e fazer aquilo comigo.

Patch saiu atrás de mim, que estava abrindo espaço por entre os

presentes no fliperama. Eu tinha certeza que ele poderia me alcançar

na hora que quisesse, mas ele só conseguiu chegar até mim depois

que eu parei no meio do estacionamento, surpreendida pela chuva

de verão que caía.

— Nora, onde você vai? O que deu em você?

— Você mentiu para mim! – Virei-me para ele, os olhos ardendo em

fogo. – Que jogo é esse que estamos jogando, por que você mentiu

para mim?

— Eu não menti, anjo. – Patch ergueu uma sobrancelha, confuso. A

chuva nos arrebatou em cheio, e estávamos parados no meio do

estacionamento, completamente molhados. – Foi você que esqueceu

tudo. Eu não tinha como contar a verdade, você não entende.

— Claro que eu não entendo, ninguém me explica! Eu só ouço dizer

que você deve ter sido importante para mim, ou que ninguém sabe

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exatamente o que aconteceu. Todos achando que eu superei você,

mas eu nem me lembrava de você até te ver aquela noite,

exatamente aqui.

— Nora, acalme-se. Precisamos conversar, mas aqui não é o lugar

certo.

— Você me ama? – Fiz aquela pergunta estúpida. – Diga-me, Patch.

Você me ama; você me amou? O que éramos um para o outro? Por

que eu não me lembro de nada disso, mas quando você me beijou, eu

senti como se isso fosse tudo que eu vinha procurando por todos

esses anos?

Eu vi Patch sorrir. Não era uma risada, mas um enorme sorriso, largo,

de satisfação. Mas seu semblante enrijeceu-se novamente, como se

ele precisasse reprimir aquele sorriso.

— Vamos entrar no Jeep, está chovendo muito. – Ele colocou a mão

no bolso e as luzes do seu carro piscaram. Deixei que ele me

conduzisse para o carro, e ele me colocou no banco do carona. Depois,

sentou-se ao meu lado, e girou a chave. – Vou levar você para casa.

— Não, eu não vou para casa! Não vou a lugar algum até você me

dizer tudo.

— Você seguiu as pistas? – Ele pareceu pronto para render-se.

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— Você é um anjo. – Ele olhou para baixo, e pude ver o sorriso

repuxar o canto dos lábios. – Você perdeu suas asas, isso é o que

significa a cicatriz. Você foi banido do céu.

— Isso incomoda você?

— Eu nem sei o que estou falando! – A ira, aos poucos, foi se esvaindo

de mim.

— Eu sou um anjo. Foi só isso que descobriu?

— Scott, tem algo errado com ele, também. E algo errado comigo. Eu

nem quis saber o que. Mas eu sei que tem. Eu tive minhas memórias

apagadas. Eu fui hipnotizada para esquecer. O que queriam apagar de

mim, Patch? Você sabe, não sabe?

— Vamos para outro lugar.

Patch aproveitou o Jeep ligado, e conduziu-o para a rodovia. Em

minutos, estávamos próximos de nada que eu conhecia. Apesar do

calor, eu comecei a bater o queixo, sentindo a temperatura cair

muito. Eu estava encharcada, era de se esperar que eu não me

sentisse muito bem. Tentei desconcentrar-me de seu perfil enquanto

ele dirigia, mas foi quase impossível. Uma enorme onda de calor me

arremessou para o assento do carro, fazendo-me grudar no encosto.

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Paramos em algum lugar; eu não prestei atenção, mas parecia um

motel de beira de estrada. Patch saiu do carro e entrou recepção

adentro, enquanto eu não sabia o que ele pretendia.

— Vamos. – Ele disse, estendendo a mão para que eu saísse do carro.

Antes de terminar de descer do Jeep, olhei para ele e senti apreensão.

Eu não sabia o que estava fazendo; estava completamente dominada

pelo impulso. Eu já tinha me esquecido que ele poderia ser perigoso.

— Não. – Travei. – Eu não vou a lugar algum com você.

— Pensei que queria conversar comigo. Se quiser, precisa sair dessa

chuva.

— Eu não sei o que quero fazer com você.

— Eu deixo que faça o que quiser comigo, contanto que saiamos da

chuva. – Ele estava insistente, mas não senti mal em suas palavras.

Ou sua atitude. Permiti que ele me conduzisse, novamente, aonde ele

queria – e me vi entrando em um quarto de motel pela primeira vez

em vinte e um anos.

— Eu não acredito que estou em um motel imundo com um anjo.

— Tecnicamente, - Patch acendeu um abajur. – eu não sou um anjo.

Eu caí, eu perdi minhas asas.

— Não fez diferença alguma, na imagem que se formou em minha

cabeça.

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— E esse motel é bastante limpo. – Ele deu uma risada. – Já estive

aqui algumas vezes.

— Babaca. – Disparei, olhando para mim mesma. – Estou ensopada.

— Você deveria tomar um banho antes de conversarmos.

— Não, pare de me distrair. Eu preciso de respostas, Patch.

— Você já as tem, anjo. – Ele sorriu novamente. – Você já sabe, o que

você esqueceu é irrelevante.

— Não é! – Protestei. – Eu posso ter tido problemas no passado, mas é

meu passado, eu tenho direito a ele! Por que, o que levou a fazerem

isso comigo?

— Você acha que eu sei?

— Você sabe. – Esbravejei, e aproximei-me. A cada grito eu ficava

mais próxima dele, ignorando os riscos que aquilo significava. – Tudo

está ligado a você, então você sabe.

— Nora. – Patch levou as duas mãos até minha cabeça, e segurou

meus cabelos molhados entre os dedos. – Esqueça isso, sim? Você

não está enxergando o cenário como um todo, o que importa não é o

que você esqueceu ou por que você esqueceu, mas o que você pode

conseguir, encontrando a verdade. Olhe para dentro de você, agora.

O que você quer, nesse momento?

Aquela foi a pior pergunta que já tinham me feito. Patch tinha razão,

mas quando eu olhava para dentro de mim, eu me sentia tão imunda

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quanto o quarto de motel. Olhei para ele, seus cabelos molhados

escorrendo pelo pescoço, sua camisa preta grudada no corpo, seu

diafragma subindo e descendo, no movimento de sua respiração.

Seus lábios, entreabertos, receptivos, úmidos. Ele parecia querer

qualquer coisa tanto quanto eu, e foi inevitável que eu o beijasse

novamente.

Daquela vez foi diferente. Tão logo meus lábios avançaram por sobre

os dele, Patch segurou-me com força, e beijou-me com mais

intensidade do que eu poderia esperar. Nossos corpos molhados

grudaram como se fossem velcro, e a sensação foi ótima. Patch

empurrou-me contra a parede, e eu enlacei sua cintura com as duas

pernas. Ele não parou de me beijar, mas eu senti que ele estremeceu

com o contato. Meus dedos foram imediatamente para a bainha da

camiseta que ele vestia, e puxaram-na para cima com força

desproporcional. Ele me auxiliou a fazer o tecido escorregar pelos

braços molhados, mas logo estava com as mãos em mim, novamente.

Meus dedos, então, puderam explorar Patch sem interferências Ele

tinha músculos completamente definidos nos ombros. Repousei a

mão no botão de seus jeans, mas ele me impediu de prosseguir,

jogando-me na cama com alguma violência.

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— Não acha que devemos ir com calma, Nora Grey? – Ele disse, por

sobre mim, nossas pernas entrelaçadas, nossos corpos em sincronia.

— Eu já estou farta de ter calma, Patch Cipriano. – Ataquei sua boca

mais uma vez, e tomei a liberdade de livrar-me da minha própria

blusa. Ele se afastou de mim um instante, e me olhou. Pude ver que

ele estava genuinamente surpreso. Seus lábios voltaram para minha

pele, mas daquela vez beijavam meu pescoço, meu colo; desciam

para livrar-me do sutiã. Eu já tinha brincado daquilo antes, mas não

parecia tão intenso, antes.

— Você tem certeza mesmo que quer fazer isso? – Ele ainda vacilava,

mas falava com os lábios roçando em mim, deixando-me mais

excitada ainda. – Eu sei que você nunca ultrapassou essa barreira,

anjo. Não precisa ser agora, não...

— Você vai ser o segundo cara que recusa fazer sexo comigo? – E a

palavra tão proibida saiu de minha boca, de forma surpreendente.

Patch parecia liberar o pequeno monstro adormecido em mim. Não

era a velha nem a nova Nora, era a Nora de Patch.

— Segundo? – Ele encarou-me, mais uma vez surpreso.

— Scott. Na manhã seguinte ao sonho que tive com você; aquele

sonho fajuto que você usou para invadir e me beijar. Você me deixou,

Patch, e Scott estava ali, totalmente disponível. Mas ele veio com

essa mesma história, como se uma mulher da minha idade tivesse

esse tipo de ideia.

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— Então, minha inocente visita quase te rendeu uma manhã de sexo

com o namorado? – Ele divertia-se, enquanto eu continuava

constrangida, apesar de tudo. – Se eu soubesse, teria passado longe

da sua cama, ou teria expulsado aquele Nefilim de lá. Mas a questão

aqui é que estamos em um motel imundo, lembra-se? Não há

romantismo algum, as luzes estão acesas e estamos molhados de

chuva.

— Eu já passei da idade de ser romântica, Patch.

Ele parecia testar todos os meus limites, para assegurar-se que era

aquilo mesmo que eu queria. Que fosse, ou que não fosse; eu estava

ali e não iria recuar. Ele terminou de livrar-me do sutiã, enquanto eu

segurava mais uma vez o botão dos jeans, tomando coragem para

abri-lo. Patch percebeu minha hesitação e beijou-me novamente,

distraindo-me. Meus dedos fizeram o trabalho e deslizaram suaves

para dentro dos jeans, empurrando-os para baixo. Não havia

nenhuma barreira outra que me impedisse de tocar seu corpo por

inteiro. Ele beijava minha barriga, quando suas mãos seguraram com

força meus quadris e, lentamente, fizeram deslizar os meus jeans

encharcados para longe.

Eu nunca tinha ficado nua na frente de ninguém. Nem minha mãe

tinha autorização para entrar em meu quarto enquanto eu não

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estivesse completamente vestida. Eu não gostava do meu próprio

corpo, e não me sentia segura em mostrá-lo. Mas eu notei que Patch

me admirava. Ele me acariciava com a ponta dos dedos, e seus olhos

percorriam-me por inteiro. Senti o sangue se acumular em minhas

bochechas, e logo meu corpo se arqueou por completo, sentindo a

pressão suave dos lábios de Patch em minha coxa, na parte interna,

subindo para minhas partes íntimas.

Ele fazia aquilo com tanta tranquilidade que precisei impedir-me de

considerar com quantas ele já tinha dormido. Não era uma boa ideia,

pensar em eventuais ex-mulheres que ele pudesse ter tido. Eu sentia

que meu corpo todo estava prestes a explodir em chamas quando os

olhos de Patch estavam novamente nos meus.

— Você queria saber... – ele começou, e eu pretendi interrompê-lo.

Eu estava ansiosa demais para tê-lo, e aquela conversa estava me

fazendo perder tempo. Mas Patch insistiu. – se eu te amava. Você

perguntou.

— E você tem uma resposta para mim, agora?

— Eu te amo, Nora Grey. E se eu tiver que ir para o inferno por isso,

então que seja.

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Senti um calafrio, seguido de uma dor aguda e o calor que me

consumia sempre que Patch estava perto. O sabor de sua boca era tão

único que não parecia real – ele não podia mesmo ser humano.

Apesar da ansiedade e da certeza, naquele momento tudo se retraiu e

o mundo encolheu um pouco. Meu corpo travou, enquanto eu o

sentia dentro de mim.

— Relaxe. – Ele beijava cada centímetro do meu queixo, movendo

para meu pescoço, voltando para meus lábios. Seu corpo ainda

estava imóvel sobre o meu. – Respire. Se você quiser, eu paro.

— Não. Eu quero você, Patch.

Ele tinha dito que me amava, e eu não sabia retribuir à altura. Eu não

sabia dizer que o amava; eu não sabia o que sentir. Mas ele pode ler

meus sentimentos, ele pode se conectar comigo a ponto de ter

certeza que eu precisava daquilo, naquele momento. Patch usou as

mãos para afastar minhas pernas um pouco, enquanto ele

encontrava um espaço mais confortável para si. Meus olhos se

fecharam quando ele começou a mover-se lentamente, sempre

calculando a força e a intensidade com que ele investia contra mim.

Abri os braços, segurando-me com força na beirada do colchão.

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Eu não era mais uma criança, nem uma garotinha do ensino médio.

Eu era uma mulher adulta e me considerava bem resolvida. Quase

uma engenheira física graduada, já com um emprego encaminhado

no próprio laboratório da faculdade, e com um relacionamento fixo.

Mas foi somente ali, naquele momento, enquanto Patch me tinha de

forma completa, que eu percebi o quanto eu era tola, inexperiente,

vazia. Não era por causa do sexo, porque até aquele instante eu

sentia mais dor do que qualquer outra coisa. Havia um significado

diferente em tê-lo em meus braços, em beijar sua pele, em permitir

que ele me possuísse pela primeira vez. Não era nada relacionado aos

contos de fada que as meninas leem na infância; Patch não era meu

príncipe e eu não podia sequer considerar ser uma princesa.

Só que eu estava completamente preenchida por algo que me causou

uma euforia plena. Meus olhos se abriram e eu decidi ver Patch. Não

era suficientemente bom senti-lo, eu também queria enxergá-lo em

todos os sentidos. Meus dedos passearam pela extensão do seu corpo;

eu deslizei as mãos por ele até segurar seus quadris com força. Ele

tinha todos os músculos tão bem desenvolvidos, e eu quase caí na

risada lembrando-me da primeira vez em que me peguei olhando

para a bunda dele. Eu realmente não valia nada.

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Mas eu cometi um pequeno erro, eu corri meus dedos pelas suas

costas e toquei a sua cicatriz. Foi completamente não intencional, a

única coisa que eu pretendia era tocá-lo; meu cérebro já tinha

deixado de processar a existência de cicatrizes. E eu me vi sugada

por um redemoinho negro, que me atirou violentamente em um

lugar diferente. Eu não estava mais fazendo sexo com Patch, mas

completamente vestida, em meio a pessoas que eu não conhecia.

— E então, Patch, já decidiu? – Rixon apareceu, e meu senso de orientação

me fez perceber que estávamos todos no Bô.

— Eu já disse que não vou fazer isso, quantas vezes preciso explicar?

— Ela é sua chance de se tornar humano, e você está deixando escapar.

Nunca pensei que esse negócio de apaixonar-se fosse tão estúpido.

— Isso já está superado, Rixon. – Patch jogava sinuca. Aproximei-me dele,

mas ninguém me via. Era como se eu estivesse assistindo a um filme, e aquilo

me deixou ansiosa. – Eu não vou perdê-la para poder ser humano.

— E vai ficar com ela? Deve ser divertido, a cada ano, por duas semanas,

vocês se amam. E no corpo de um Nefilim. Ela já tem ideia disso? Que você

não pode tê-la enquanto você é assim, um anjinho?

— Cale-se, Rixon.

De repente, tudo ficou borrado e eu voltei para onde estava, antes.

Fui sugada para a realidade, se eu fosse ainda capaz de discernir o

que era real. Meus olhos arregalados encaravam Patch, que segurava

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minha mão nas suas, com a expressão de desalento. Ele havia parado

de mover-se, meu corpo estava rígido como uma pedra e a dor tinha

voltado a me consumir.

— O que você viu? – Ele parecia zangado. Talvez desapontado, mas

seus olhos tinham um brilho sombrio. – Diga, Nora, o que você viu?

— O que acabou de acontecer? – Eu estava atônita. – Eu estava no Bô,

e você e Rixon conversavam alguma coisa sobre tornar-se humano,

sobre usar o corpo de um Nefilim.

Patch pareceu perceber que eu não conseguiria levar aquilo adiante,

e ergueu seu corpo, afastando-se lentamente. Senti falta dele dentro

de mim no mesmo instante em que ele deitou as costas no colchão,

mas eu tinha muitas dúvidas e não conseguia me concentrar em mais

nada.

09 – MEU ANJO DA GUARDA

— Pergunte. – Patch disparou, respirando bem devagar. Ele parecia

mesmo zangado, mas eu sabia que ele estava se controlando.

— O que Rixon quis dizer? Você quer ser humano?

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— Sim, eu quero. – Patch deitou-se de lado, apoiou a cabeça nas mãos

e me olhou. – Eu sempre quis tornar-me humano, mais do que

qualquer outra coisa coisa.

— E isso é possível?

— Há duas possibilidades de um anjo tornar-se humano. A primeira,

eu perdi quando caí. A segunda, eu perdi quando me apaixonei por

você.

Senti um bolo na garganta que me impediu de engolir.

— E o que Rixon quis dizer com usar o corpo de um Nefilim?

— É assim que os anjos caídos fazem, para ter as sensações humanas.

– Ele disse aquilo em tom de confissão. Meus ouvidos capturaram a

frase errada, e eu não consegui entender o sentido do que ele falava.

– Quando é o Cheshvan, podemos possuir o corpo dos Nefilins e usá-

los, como se fossem nossos próprios corpos. Por duas semanas,

podemos experimentar as sensações humanas – o prazer físico, a dor,

essas coisas.

E a confissão caiu sobre mim como uma pedra.

— Prazer físico? Você quer dizer que...

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— Eu não sinto nada fisicamente, Nora. – Ele sorriu, mas eu via

tristeza naqueles lábios. – Isso é um presentinho dos arcanjos;

quando eles banem você do céu eles tomam de você a habilidade de

sentir o toque, o frio, o calor, a dor, o prazer.

— Mas você acabou de... quero dizer, você iria... nós estávamos...

— Eu amo você. – Ele repetiu aquilo bem devagar, sílaba por sílaba. –

Estamos conectados de uma forma que você não compreende; eu

sinto tudo através de emoções. Eu desejo você, e desejo tanto que

nada me fez sofrer mais do que ficar esse tempo todo sem tê-la.

— Mas é só isso? – Sentei-me na cama. Eu tinha parado de pensar que

estava nua, que ele estava nu; meus hormônios não estavam mais no

controle.

— Você acha isso insuficiente. – Ele coçou o queixo com a mão, e

deitou-se de costas, novamente. – Ah, anjo, eu nunca vou entender

você.

— Você não pensou em me contar isso antes de...

— A dificuldade em falar de sexo sempre foi uma característica linda

em você. – Ele me interrompeu, segurando-me pelos braços e me

puxando para si. Resisti à sua força, eu não queria sucumbir a ele

naquele momento.

— Teria feito alguma diferença, Nora? Se você não tivesse tocado em

minha cicatriz; se eu tivesse sido cuidadoso para impedir isso, nós

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não estaríamos tendo essa conversa e você estaria plenamente feliz e

satisfeita.

— E você não! – Esbravejei.

— Eu estaria plenamente feliz – e satisfeito.

— Você não sente nada quando me beija? – Insisti.

— Eu sinto, aqui. – Patch levou as duas mãos até seu peito e as

colocou, unidas, sobre onde batia seu coração. – Meu corpo é físico,

apesar de tudo. Só que é como se eu estivesse anestesiado, cheio de

morfina. Todas as sensações são minimizadas ao limite; eu não sinto

praticamente nada.

— Eu não quero isso.

Levantei, sobressaltada, e afastei-me da cama. Levei as mãos à cabeça,

confusa e um pouco indignada. Patch suspirou, respirando fundo, e

bateu os dois braços no colchão. Meu telefone tocou, e eu nem

lembrava como o Nokia ainda estava funcional, esquecido dentro do

meu bolso. Demorei um pouco a achar os jeans, e peguei o aparelho

em minhas mãos. “ONDE VOCÊ ESTÁ?” era a mensagem de Vee. Claro,

eu tinha combinado de ligar para ela, pedindo que ela me buscasse

no Fliperama do Bô. Sentei-me na cama e digitei para ela a resposta.

“ESTOU COM PATCH. NÃO PRECISA ME BUSCAR.” Eu sabia que aquilo

causaria uma enxurrada de mensagens, e uma Vee absurdamente

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curiosa. Olhei no relógio e já passavam das vinte e duas. Eu estava

tensa, e meu corpo tremia, mas Patch moveu-se pela cama e me

pegou desprevenida, fazendo-me deitar no colchão novamente.

— Você não precisa disso, agora. – Ele tirou o telefone da minha mão,

desligou-o e colocou-o por sobre a mesa de cabeceira. – Onde foi que

paramos?

Seus lábios me calaram antes que eu começasse um discurso. Quando

percebi, Patch estava por sobre mim novamente, e pude sentir sua

excitação.

— Como você consegue? – Afastei minha face, e o encarei. Ele torceu

os lábios. – Eu quero dizer, você não sente nada, como consegue?

Patch deu uma risada e arqueou o corpo para trás.

— Ah, você é muito divertida, anjo. Não são exatamente as sensações

físicas que despertam uma ereção em um homem, você sabia?

— Claro que sim. – Menti. Senti novamente o sangue correr para

minhas bochechas, e eu deveria estar vermelha como uma pimenta.

– Quero dizer, acho que sim. Eu não sei se sei como isso funciona, na

prática.

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— Eu quero você, Nora. E isso é suficiente. Eu posso não te sentir

fisicamente, mas aqui dentro – e ele apontou para sua cabeça – eu

sinto você plenamente.

Talvez ele soubesse sempre o que dizer, na hora exata em que ele

deveria dizer. Ou eu estava muito mais suscetível a ele, naquele

momento, do que nas outras vezes em que nos encontramos. Patch

me beijou outra vez, e senti o mundo girando muito mais devagar.

Daquela vez nossos corpos se encaixaram com tanta facilidade que

eu não senti dor. Um pequeno incômodo, mas meus sentidos foram

logo dominados pelo calor, e eu estava anestesiada.

Pisquei várias vezes os olhos quando a claridade tocou minhas

pálpebras. Movi para o lado, querendo fugir do sol, e senti alguma

resistência. Lábios úmidos tocaram minha testa, e meu corpo foi

movido de lugar. A claridade desapareceu, depois de meus ouvidos

capturarem um ruído metálico. Meu corpo foi movido mais uma vez,

e senti-me envolvida em braços firmes.

— Bom dia, anjo. – A voz de Patch me fez sorrir – era inevitável.

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Espreguicei-me com cuidado, porque eu ainda não tinha acordado

por completo.

— Já é dia? Pensei que você tinha trazido a noite de volta.

— Eu gostaria de poder fazer isso. – Ele beijou minha testa

novamente.

— Eu preciso ir para casa. – Girei em seus braços, ficando de frente

para ele. Meu nariz bateu em seu peito nu, e o cheiro de menta

estava inebriante. – Hm, você se barbeou?

— Você pode levantar, tomar banho comigo, tomar café comigo, e eu

te deixo em casa. Ou você pode ficar aqui agora e fazer amor comigo

o dia inteiro.

Ah, eram propostas tentadoras. Mas eu precisava recusar todas, se

quisesse sobreviver ao dia. Qualquer coisa que eu fizesse com ele

tornaria impossível desvencilhar-me dele, depois. Sentei-me na

cama, os músculos todos doloridos. Então, aquela era a sensação de

estar apaixonada? A simples ideia de afastar-me de Patch causava-

me dor?

— Eu vou ficar com o banho. – Sorri para ele. Patch estava lindo, na

penumbra da manhã. Prendi a respiração enquanto permitia-me

admirar seu corpo por sobre a cama. – Sozinha.

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Provavelmente eu não conseguiria fazer aquilo, mas demonstrar

força de vontade deveria contar alguns pontos. Fugi para o chuveiro,

e deixei que a água morna me despertasse os sentidos. Não foi fácil,

conceber que eu estaria lavando Patch de mim. A tão famosa

primeira vez tinha sido caótica, mas eu não desejaria que ela

acontecesse de outra forma. Mesmo que meu cérebro estivesse

dolorido, de tanta informação truncada, eu sabia que meus lábios

estampavam um sorriso irritante. Depois de me sentir limpa o

suficiente, enrolei-me na toalha e voltei para o quarto.

Patch não estava ali. Senti um aperto na garganta, e meu coração

saltou uma batida. Peguei meu telefone celular e o liguei, já

considerando que eu teria um longo caminho para explicar à minha

mãe e a Scott o meu desaparecimento. Havia cinco ligações perdidas

e três mensagens de texto. As ligações eram de Scott, as mensagens

de Vee. “SCOTT ESTÁ TE PROCURANDO. O QUE EU DIGO?” era a

primeira. Logo em seguida, “SUA MÃE ESTÁ TE PROCURANDO. VOCÊ

ME DEVE MUITO, NORA GREY.” Eu não duvidava que ela fosse cobrar

logo. E a terceira, uma hora depois, “MENTI PARA TODO MUNDO.

VOCÊ ESTÁ DORMINDO COMIGO. CONTE-ME DETALHES.”

Respirei fundo, e pensei em respondê-la. Mas eu não podia fazer

aquilo naquele instante, eu ainda não sabia o que dizer, e meus dedos

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estavam trêmulos. Ouvi o ruído da fechadura, e Patch voltou para o

quarto. Seus jeans estavam úmidos, caindo pelos quadris. Ele tinha os

cabelos despenteados, mas seu semblante era calmo. Ele carregava

algumas sacolas com ele, e sorriu ao me ver.

— Não sei como eu posso ter sido tão burro de comprar roupas para

você. – Ele disparou, jogando as sacolas para o lado e aproximando-

se de mim. Patch apoiou-se na cama e me beijou.

— Você comprou roupas para mim?

— Claro, eu sou seu anjo da guarda. Que péssimo anjo eu seria se não

protegesse você de tudo?

— Você é o que? – Ergui as sobrancelhas.

— Seu anjo da guarda. – Ele repetiu, beijando-me mais.

— Mas pensei que você tinha caído.

— Eu caí. Tecnicamente, eu não posso ser um anjo da guarda. Mas fui

designado para mantê-la segura, Nora. E farei isso.

— Você está falando sério?

— Nunca falei tão sério. – Ele me encarou, os olhos negros e fluidos. –

Nesse momento, por exemplo, eu quero mantê-la na cama o máximo

de tempo possível.

— Não seja ridículo! – Dei uma risada. – Eu preciso ir, Vee mentiu

para me acobertar e eu tenho que enfrentar os dois soldados que me

esperam em casa, agora.

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Patch ficou sério novamente. Sentou-se e me entregou uma sacola,

que tinha um vestido azul bastante festivo. Ele não tirou os olhos de

mim enquanto eu testava o vestido e depois quando descartei a

toalha e o vesti, definitivamente. Não havia nenhuma dificuldade em

ser natural na frente de Patch, eu me sentia perfeitamente eu mesma,

com ele.

— Como fiquei? – Eu perguntei, vendo que ele estava mudo.

— Linda, mas isso é redundante. – Ele me observava, a mão no queixo.

– Anjo, eu preciso te pedir uma coisa.

— O que? – Parei, olhando para ele, as mãos na cintura.

— Livre-se de Scott. – Sua voz era dura e grave, totalmente diferente

daquela que me disse ―bom dia‖. – Eu sei que não tenho o direito de

pedir isso, mas eu não posso protegê-la direito com ele por perto.

— Eu vou conversar com Scott, hoje. – Falei, ciente do que aquilo

representava. – Eu ainda não sei como explicar o que aconteceu, mas

não se preocupe, Patch. Eu não sinto por ele o que eu sinto por você.

— Não é bem isso, mas fico lisonjeado em saber. – E ele me beijou

mais uma vez. – Vamos sair daqui, eu vou levar você para comer

alguma coisa.

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10 – FANTASMAS

Eu não sabia se queria ir para casa, apesar de saber que precisava

encarar aquilo, mais cedo ou mais tarde. Patch me levou até o Enzo,

tão logo saímos do motel, porque ele sabia que eu adorava aquele

lugar. Era estranho, Patch saber tanto de mim e eu não saber nada

dele. No final, aquilo fazia pouca diferença, porque ele tinha razão.

Era irrelevante o que eu não me lembrava, o que importava era o que

eu queria naquele momento – e os sacrifícios que eu estava disposta

a fazer para ter o que eu queria.

Não parecia muito difícil, Patch era totalmente acessível. Desde o

início, ele pareceu mais interessado em mim do que eu, nele. Eu

sentia que tudo aquilo era injusto – e muito. Ele confessou que me

amava, e passou a noite me amando, mesmo que aquilo não

representasse nenhum prazer físico. Ele me tinha em seu passado, eu

não o tinha em lugar nenhum. Mas, perto dele, eu era diferente; eu

era outra pessoa e eu mal me reconhecia. Eu o via, e bastava uma

troca de olhares para eu desejar beijá-lo. E havia também algo que eu

ainda não tinha descoberto – o que ele tinha desistido para ficar

comigo e os motivos que o compeliram a afastar-se.

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O Jeep Commander parou em frente à casa de Vee Sky, e eu pude vê-

la na janela antes mesmo que eu conseguisse avisá-la que estava

chegando.

— Eu vejo você hoje, ainda? – Meu coração batia acelerado, na

expectativa de separar-me dele.

— Você quer me ver hoje? – Ele tinha o mesmo sorriso parcial nos

lábios, e usava o boné azul.

— Sim, eu quero. – Confessei, envergonhada por me sentir tão

patética falando aquilo.

— Eu te pego à noite.

Abri a porta do Jeep e saí, carregando a bolsa e uma sacola com

minhas roupas. Fui até a porta dele e pedi que abrisse o vidro. Patch

não entendeu, mas fez a minha vontade – e eu coloquei o corpo para

dentro, beijando-o nos lábios. Depois, entrei correndo na casa de Vee.

Esperei Patch manobrar o Jeep e afastar-se, até desaparecer no

horizonte. Meu nariz estava colado no vidro da janela, e aquilo não

parecia certo. Não deveria precisar ser daquela forma, eu estava me

sentindo mais do que patética. Eu era estúpida. Por que não aceitei a

proposta dele; tudo que eu queria naquele momento era correr de

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volta para seus braços e ficar ali, por muito tempo. Mas fui eu mesma

que decidi que tinha que voltar para casa. Mesmo quando minha casa

fosse o último lugar que eu quisesse ver.

Minha amiga levou-me para o quarto dela, os olhos brilhando com a

excitação de extrair de mim toda informação possível.

— Detalhes. – Ela jogou-se na cama. Eu estava retraída, apoiei a bolsa

e a sacola na cadeira da penteadeira e gastei algum tempo olhando

para a janela. – Nora, detalhes! Ele não vai voltar, vamos.

— O que você quer saber? – Eu não estava em condições de discutir

com ela, eu devia muita coisa a Vee.

— Você estava com ele, esse tempo todo? Claro que estava, quem

estou querendo enganar. Você o beijou quando saiu do carro... aliás,

que carro! Um Jeep? Céus, você só arruma homens com carros

perfeitos. Então, você passou a noite com ele? Claro que passou,

você está usando um vestido que eu não conheço! Você nem está

usando suas próprias roupas, Nora Grey! Isso é um indício e tanto.

Eu não sabia como Vee não engasgava. Ela falava tão rápido, e estava

sempre respondendo suas próprias perguntas. Sentei-me por sobre

as almofadas, no tapete felpudo que cobria praticamente todo o chão

do quarto. Minha pele estava sensível.

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— Eu passei a noite com ele. Pergunte algo que você ainda não saiba.

– Minha paciência não estava meu forte.

— Depois que você o confrontou no Bô, o que houve?

— Eu fui até o Bô porque eu precisava confirmar uma coisa, Vee. Eu

sonhei com Patch, duas noites atrás. E foi um sonho estranho – ele

me beijou e eu não sabia se aquilo era real ou não.

— Um sonho real? Soa meio paradoxal, não? – Vee fez uma careta,

tentando absorver minha loucura.

— Eu precisava ter certeza. E então eu o beijei. – Minha amiga

arregalou os olhos, e eu baixei os meus. – E foi exatamente como o

sonho. Vee, eu e Patch, nós tivemos algo, quatro anos atrás.

— Como assim, vocês tiveram algo? Nora, você não acha que se vocês

tivessem namorado, eu teria sabido? Você teria sabido? Você parece

que descobriu agora!

— E eu descobri. – Minha voz elevou um tom. – Para mim, Patch era

um cara da escola. Eu não sei o que aconteceu, mas por algum motivo,

eu não me lembro dessa parte do meu passado.

— E por algum motivo que eu não saiba, você me escondeu essa parte

do seu passado! – Ela parecia chateada. – Mas diga, vocês então

conversaram?

— Sim, nós conversamos. – E eu decidi que não deveria contar para

Vee, naquele instante, o que Patch era. – Mas nada que ele falasse

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faria muita diferença, eu fui sugada pelo momento. Senti-me como

aquelas garotas, que estão um ano sem ver o namorado – e se

entregam completamente.

— Uau! – Vee levantou-se, e caminhou em círculos por alguns

instantes. – Ele te levou para a casa dele? Como foi, Nora! Isso

deveria ser importante para você, não deveria?

— Fomos a outro lugar. – Também decidi não mencionar o motel de

beira de estrada. – E foi importante. Foi... surpreendente.

— Ele parece o tipo que tem uma pegada e tanto. – Ela deu uma

risada. – Vamos, vou te levar para comer alguma coisa.

— Já comi. Fomos ao Enzo.

— Oh, ele ainda sabe o que fazer no dia seguinte!

— Vee, eu preciso sair daqui. – Eu disse, sentindo-me mal. Minha pele

ardia, coçava, parecia irritada. – Você me leva até em casa? Eu tenho

que conversar com Scott, com minha mãe, eu preciso me trancar no

quarto e esperar passar toda essa euforia, toda essa agitação.

— Eu entendo você! – Ela sorriu. – Vou pegar a Cherokee.

Talvez toda aquela sensação ruim fosse porque meu cérebro sabia

que eu teria que entrar em conflito com Scott, naquele exato

momento. Bastou Vee me deixar em casa – trajeto que eu fiz

completamente muda, apesar da insistência dela para falar no

assunto – para que eu fosse abordada pelo namorado enciumado e

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pela mãe assustada, que mal sabia onde a filha tinha ido parar por

uma noite inteira.

Minha mãe era um problema a parte. Disse a ela, com poucas

palavras, que conversaria depois. Já Scott, com ele eu teria que lidar.

Não podia adiar aquela conversa, por mais súbita que ela parecesse.

Levei-o para meu quarto, fechei a porta atrás de mim, e olhei dentro

de seus olhos azuis. Patch disse que ele era um Nefilim, e eu ignorava

o que fosse um. Pouco sabia sobre aquilo. E Patch disse que podia

possuir o corpo de um Nefilim. Foi inevitável pensar que Patch

poderia possuir Scott, e então possuir a mim. E foi ridículo, porque

eu não queria nada daquilo. Eu queria Patch, mesmo que daquela

forma sobrenatural.

— Pela sua cara, acredito que não vá gostar muito da conversa. –

Scott disse, seu semblante preocupado. – Onde você passou a noite,

Nora?

— Eu preciso ficar sozinha. – Disparei. – Você... Scott, preciso que

você volte para Portland.

— Pensei que você me queria aqui. – Ele se aproximou. – Você

pareceu me querer aqui.

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— Eu devo ter pensado isso, também. – Confessei. – Mas não dá, Scott.

Algumas coisas aconteceram, e eu não sei como lidar com elas agora.

Preciso de tempo para tomar a decisão certa.

— Você precisa um tempo de mim?

— Sim, eu preciso.

Car is parked, bags are packed

But what kind of heart doesn't look back

At the comfortable glow from the porch

The one I will still call yours?

All those words came undone and now I'm not the only one

Facing the ghosts that decide if the fire inside still burns

Scott baixou o olhar, e ele parecia verdadeiramente triste. Senti o

mesmo aperto na garganta que não me deixava respirar, enquanto

ele colocava algumas coisas suas dentro da mala, ainda feita, no chão

do quarto. Naquele instante, eu quase desisti de tudo. Saber que eu

sentia alguma coisa por Scott era traumatizante, depois da noite que

tivera ao lado de outro. Mas eu sentia. Vê-lo aceitar tão

tranquilamente a minha imposição e resignar-se com a partida me

quebrou o coração em pedaços. Egoísta, cruel, inconsequente; aquela

era a nova Nora que eu repudiava.

It hurts to be here

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I only wanted love from you

It hurts to be here

What am I gonna do?

— Eu estarei por perto. – Ele disse, próximo aos meus ouvidos,

enquanto passava pela porta do quarto.

— Você deveria voltar para Portland. – Meus olhos ainda fitavam o

chão. Eu não tinha coragem de encará-lo. Eu era covarde, além de

tudo.

— Eu te amo, Nora. – A voz dele era firme. – Eu não vou desistir de

você.

Sem que eu esperasse, Scott livrou uma das mãos e puxou minha face,

beijando-me intensamente. Senti um arrepio estranho me percorrer

o corpo. Ele me deixou, fechando novamente a porta do quarto.

Fechei os olhos, respirei fundo, e fiquei travada na mesma posição

enquanto ouvia minha mãe falando, no andar de baixo. Ouvi a porta

bater, e o motor da Mercedes ligar. Meu coração ainda não tinha

batido. Tão logo o barulho desapareceu, meus ouvidos ficaram

completamente surdos. Minhas pernas amoleceram, e eu não

consegui mais manter-me de pé.

Desabei no chão do quarto, as costas coladas na parede, o corpo

convulsionando em lágrimas que brotavam inadvertidas de meus

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olhos. Coloquei as duas mãos na face e permiti-me chorar, como eu

não lembrava de ter chorado antes.

All I have, all I need

He's the air I would kill to breathe

Holds my love in his hands, still I'm searching for something

Out of breath, I am left hoping someday I'll breathe again

I'll breathe again

O dia não passou. Eu não vi nada acontecer, apenas deixei que as

horas girassem em meu relógio. Aninhada no chão do quarto,

abraçada a uma almofada, eu fiquei ali por muito tempo. Surda, sem

conseguir enxergar nada, sem conseguir emitir nenhum som. Minha

mãe tentou entrar no quarto, que nem estava trancado, em pânico

pelo que tinha acontecido. Se ela ao menos soubesse o que havia

acontecido, se ela soubesse que a filha dela estava viciada em uma

droga poderosa, e que a levava a fazer coisas estúpidas; talvez ela

desistisse de preocupar-se. Mas eu não permiti que entrasse, eu não

permiti que ela participasse daquele momento.

Já não havia mais luz natural, nem eu estava disposta a acender a luz

do quarto, quando o Nokia começou a tocar. Eu não queria pegá-lo

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para atender, também. Estiquei o olhar para tentar enxergar o visor,

e o número que aparecia não era conhecido. Deixei tocar uma vez,

duas vezes, cinco vezes. Fechei os olhos novamente, e tentei

concentrar-me e abstrair o mundo real. Eu não sabia por que estava

me sentindo daquela forma, eu só precisava tentar entender. A

campainha tocou no andar de baixo, e desejei que não fosse Vee me

procurando.

— Sra. Grey, boa noite. – A voz familiar me aguçou um dos sentidos. –

A Nora está?

— Boa noite. Ela está sim, mas não acredito que esteja se sentindo

muito bem. – Minha mãe não parecia tão educada.

— Eu estou tentando ligar para ela há bastante tempo. Sou Patch

Cipriano, colega dela do ensino médio.

Minha audição tinha voltado, mas eu não podia acreditar que ela

estivesse funcional. Tentei me mover, mas meu corpo não respondia

aos estímulos.

— Claro que me lembro de você, Patch. Bem, Nora esteve no quarto o

dia todo. Acho que você vai precisar voltar outra hora.

— Eu estou preocupado com ela, Sra. Grey. Será que eu podia subir e

falar com Nora?

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Pressenti hesitação. Mas eu não estava em condições de fazer nada,

porque eu estava completamente desconectada de minha

consciência motora. Como se eu fosse feita de gelatina, ou se as

sinapses não estivessem processando direito em meus neurônios.

— Nora? – A voz de Patch estava mais alta, e ele chamava por meu

nome. – Nora, eu posso entrar?

Sim, você pode. Mas a voz não saiu de mim.

— Nora. – Ele parecia mais urgente. – A senhora tem certeza que ela

está aqui dentro? – Mais batidas na porta. – Nora, eu vou entrar.

Ouvi o rangido da madeira, e uma pequena claridade penetrou o

quarto. Um par de mãos quentes me segurou pelos dois braços,

erguendo-me parcialmente. A respiração ofegante de Patch me deu

certeza que ele estava preocupado comigo. Tentei abrir os olhos, mas

estava muito escuro. Era difícil focar, eu estava apenas

semiconsciente. As mãos afastaram meus cabelos da face, e puxaram

os fios rebeldes para trás.

— O que houve com você, anjo? – Ele sussurrou em meus ouvidos. –

Você estava chorando, o que aconteceu?

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Eu não tinha certeza. Romper com Scott não poderia ter sido tão

ruim. Eu não sabia o que sentia por ele, não tinha certeza. Mas eu

estava sofrendo, aquilo era tão evidente quanto deveria ser. Talvez

nem fosse pelo rompimento, talvez houvesse algum motivo que

justificasse. Ou talvez eu quisesse acreditar que não fosse por Scott.

— Patch. – Finalmente, saiu voz de minha boca, ao mesmo tempo em

que meus olhos despejaram lágrimas. Ele me ergueu mais e colocou-

me na cama, sentando junto comigo. Enlacei seu pescoço, afundei

minha face em seu peito, e comecei a chorar. – Eu não sei o que estou

fazendo, você pode me explicar? – Eu disse, entre soluços.

— Eu não tenho essa resposta, anjo. – Ele beijou meus cabelos. –

Conte-me o que está fazendo você sofrer? Você... você mandou seu

namorado embora, não mandou? É por causa disso que você está

infeliz?

— Sim, é. – Respondi, certa da verdade em minhas palavras. – Mas eu

estou tão confusa, Patch. Você ficaria comigo, até passar?

— Eu ficaria com você mesmo que isso nunca passasse. – Ele me

apertou em seus braços. Continuei chorando, até que as lágrimas

lavassem a agonia que me comprimia a alma. Continuei chorando até

que eu pudesse me sentir confortável o suficiente nos braços de

Patch para adormecer.

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11 – UMA PAUSA

Eu acordei sentindo minha cabeça doer. Meus olhos demoraram-se a

abrir, inchados de tanto chorar. Passei a mão pela face, e senti-me

toda inchada. Meus braços se abriram, e eu tateei a cama,

procurando alguma coisa que deveria estar ali. O espaço vazio me

deixou apreensiva. Abri completamente os olhos, e quando eles se

acostumaram com a escuridão, encontraram Patch sentado na

poltrona que ficava próxima à minha janela. Ele parecia sério, tinha

o semblante rígido e as mãos seguravam o braço da poltrona com

força. Seus cabelos estavam despenteados, e ele usava uma blusa

preta de botões. Eu não me lembrava de Patch usando outra cor.

— Por que você está ai? – Questionei, esfregando os olhos.

— Eu não sabia se deveria deixar você sozinha; você estava miserável

quando eu cheguei. – Ele respondeu, o olhar fixo em mim.

— Não... perguntei por que você está aí, tão longe. – Sorri para ele,

mas não tive certeza se ele me viu. Minha cabeça latejava, as veias

pulsando em minhas têmporas.

— Você está bem? – Ele não me respondeu. – Quer alguma coisa, um

analgésico?

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E ele sabia que eu tinha dor de cabeça. Ele sabia tudo, era um fato

complicado de lidar.

— Patch. – Pronunciei seu nome com bastante força. Ele levantou-se

e sentou-se ao meu lado, como se o simples comando em minha voz

fosse uma ordem suficientemente forte para fazê-lo cumprir minha

vontade. – Você está distante. Arrependido?

— Arrependido? – Senti um tom de surpresa em sua voz. – Eu não

poderia estar mais satisfeito, Nora. Mas eu acho que talvez você

esteja.

— Por que pensa isso? – Olhei para ele, meu coração saltando

algumas batidas. – O que você está pensando, Patch?

— Você estava muito mal, quando eu cheguei aqui, hoje. Por causa

dele, do seu namorado. Você sofreu. Você terminou com ele?

— Não exatamente. – A voz saiu embargada, fraca.

— Não exatamente. – Ele remarcou minhas palavras. – Estamos em um

impasse, então. Eu não posso me envolver com você se não é isso que

você quer, Nora.

As palavras de Patch desceram bastante mal em minha garganta. Eu

tive que engoli-las, porque elas pareciam verdade, vistas de certo

ângulo. Mas eu precisava me explicar.

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— Patch. – Disse seu nome, mais uma vez. – Eu não sei como falar isso,

então talvez tudo que eu disser seja uma grande besteira. Mas eu

preciso que você me entenda. Ou tente entender, porque nem eu

mesma me entendo. Eu passei por alguns momentos bem difíceis, e

eles marcaram uma fase complicada da minha vida – minha

adolescência. Depois disso, eu fui para a universidade, e estou aqui

quase graduada, retornando para minha cidade natal, quatro anos

depois e o que descubro? Que há uma parte da minha vida que

desapareceu de mim, que está escondida em algum lugar, perdida no

meu cérebro. – Respirei fundo, para prosseguir o discurso. Patch não

parecia entediado, pelo contrário. Seus olhos de breu estavam mais

brilhantes. – Eu vi você pela primeira vez e tive certeza de que sentia

algo por você. Foi imediato. E foi muito confuso, porque eu não

parecia autorizada a sentir nada. Eu tinha alguém em minha vida, e

essa pessoa, por mais estranho que nosso relacionamento fosse,

estava comigo há um ano. Você está comigo há uma semana. Deve

haver algum tipo de regra que me permita sofrer por Scott mesmo

estando completamente louca por você.

Minhas palavras devem ter atingido Patch na face. Eu arfava, depois

de dizer tudo aquilo quase sem parar para respirar. Eu não sabia se

tinha dito algo que o magoasse, ou algo que o fizesse entender como

eu me sentia. O quarto ainda estava completamente escuro quando

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ele segurou minha face com uma das mãos e me beijou, da forma

mais absurda que ele já tinha beijado.

Não demorou para que ele escorregasse seu corpo por cima do meu,

deitando-me na cama e me pressionando contra o colchão. O beijo

ficou mais intenso, e ele ampliou seu campo de ação para meu queixo,

meu pescoço, meu colo. Seus lábios estavam úmidos e eu sentia sua

língua em minha pele. Foi o suficiente para ansiá-lo dentro de mim,

novamente.

— Ah, Nora. – Ele interrompeu-se, apoiando uma mão na cama. – O

que eu vou fazer com você?

— Preciso mesmo responder essa pergunta? – Eu tinha as mãos

cravadas no cós de seus jeans, e tudo que eu queria era arrancá-los.

— Eu preciso colocar você em segurança. – Ele respirou fundo. – Você

aceitaria fazer um passeio comigo? Dar uma pausa em tudo que você

vem vivendo, e passar algum tempo comigo?

— O que está havendo? – Eu me distrai, confusa. Não entendi o que

ele falava. – Por que me colocar em segurança?

— Eu fui designado seu guardião, não te disse? – Concordei,

balançando a cabeça. – Isso porque há alguém querendo te fazer mal.

Pediram-me para cuidar de você, Nora. Eu pretendo fazer isso. Sexo

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seguro, para mim, é sexo com você onde eu possa ter certeza que

ninguém virá nos importunar.

— Minha mãe não vai entrar.

Patch deu uma gargalhada.

— Não, anjo. Sua mãe não é meu problema. Noite passada nós

recebemos uma visita. Dabria, ela não aceita bem a sua existência.

— Quem é Dabria? – Aquele nome era de mulher, e minhas bochechas

arderam. Empurrei Patch para trás, encarando-o nos olhos.

— Dabria é um anjo. – Patch torceu os lábios.

— E por que ela não gosta de mim?

— Porque ela tem ciúmes. – Patch parecia sempre tão sincero, aquilo

era, de certa forma, tocante. – Dabria era uma namorada, há muito

tempo atrás. Foi um grande erro, mas aconteceu. Eu era um arcanjo,

ela um anjo da morte. E eu fui informado que ela pretende atentar

contra a sua vida, por isso eu estou seu anjo da guarda.

— Você me diz isso com essa calma? – Esbravejei. – Alguém quer me

matar e...

— Nora. – Patch sorriu para mim. – Hoje eu procurei o arcanjo Rafael

e informei o que aconteceu ontem. Eles levaram Dabria para uma

conversa; os arcanjos pretendem convencê-la a esquecer você. Mas

eu prefiro sumir com você antes que ela volte à Terra, só para

reforçar a segurança.

— Sumir comigo? – Franzi a sobrancelha.

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— Sim. Há um lugar no qual podemos ficar, se você quiser. Entenda,

isso é um convite, não há necessidade de irmos. Se você estiver

interessada em dar um tempo, e se puder ser comigo, podemos ir

para lá.

A proposta não poderia ser mais tentadora do que era. Dar um tempo

na vida, e passar dias e noites sozinha, com Patch? Senti-me tão

hipersexualizada quanto Vee, pensando apenas no prazer que aquilo

poderia me proporcionar. Mesmo que a história de manter-me em

segurança fosse pura enganação, eu comprava a ideia. Mas ele

parecia genuíno; Patch não parecia mentir para mim.

— Quando devemos ir?

— Se você quiser terminar o que começou, agora. – Ele deu uma

risada baixa muito gostosa, e eu tive vontade de terminar qualquer

coisa ali mesmo, naquele momento. Mas então pensei no problema

mãe, e eu teria que lidar com ele.

— Minha mãe retorna para o trabalho amanhã. – Considerei. – E

ficarei sozinha, em casa. Nós poderíamos ir amanhã? Vai ser difícil

convencê-la que eu devo viajar com você agora, às... que horas são? –

Patch me mostrou o relógio, que marcava vinte e uma horas. – Nossa,

é muito tarde. E eu estou morrendo de fome. E excitada. Eu nunca

me senti assim, e a culpa é toda sua.

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140

Meu protesto causou um efeito hilariante em Patch. Ele riu

novamente, beijando-me com bastante calma. Era difícil acreditar

que ele não me sentia, porque ele parecia o homem mais experiente

do mundo, naquilo. E também parecia que ele gostava – e muito.

A conversa com minha mãe foi nada esclarecedora. Ela me ouviu,

apenas, com algum desgosto estampado em sua face. Despejei toda a

minha frustração com tudo, expliquei que vinha passando um

processo de resgate do meu eu interior, toda aquela baboseira que o

terapeuta sempre me dizia. Eu precisava ficar longe de Scott, porque

aquele relacionamento não estava sendo bom para mim. E, apesar de

não precisar, eu confessei que sairia de Coldwater por algum tempo.

Eu não sabia o que Patch estava planejando, mas eu sabia que não

iria para um lugar com recepção de celular ou internet banda larga.

E lá estava eu, indo para um lugar que não sabia qual, porque ele se

recusava a me contar, dentro daquele Jeep Commander maravilhoso,

levando uma mala cheia de roupas e nada mais. Vee reclamou

demais da minha partida, mas bastou mencionar a ela que seria uma

viagem no estilo “Nove e meia semanas de amor” que ela me desejou

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a melhor sorte do mundo. Enquanto Patch dirigia, eu estava

aconchegada em seus braços, deitada em seu colo. Carros

automáticos tinham algumas vantagens; ele não precisava toda hora

mudar de marcha, então eu cabia perfeitamente no espaço entre seu

peito e o volante.

— Não saberei mesmo aonde vamos? – Perguntei, quase adormecida.

– Pelo que andamos, parece que saímos do estado.

— E estamos saindo do estado. – Ele beijou minha testa. – Durma um

pouco, quando chegarmos eu aviso.

— Estamos no Canadá? – Senti a brisa que entrava pelos vidros

abertos do carro. Eu estava enjoada com a viagem, e Patch sugeriu

que desligássemos o ar condicionado.

— Estamos em New Hampshire. Eu te aviso quando chegarmos, anjo.

Desisti de obter informações dele, e aceitei a proposta. Fechei os

olhos e mergulhei nos braços de Morfeu, acordando novamente

apenas quando senti o Jeep parando. Abri os olhos, preguiçosa – e eu

estava dormindo demais, e peguei Patch olhando para mim com o

semblante sereno.

— Chegamos. – Ele sorriu, erguendo os lábios só um pouco. Sentei-

me no assento do carona e olhei em volta. Já era noite, tínhamos

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andado bastante. Não havia muita luz onde estávamos, apenas um

pequeno poste que não clareava muita coisa. Patch tinha os faróis do

Jeep acesos, iluminando uma casa. Não era nada grande, e parecia

bastante isolado. Com certeza, nada de banda larga.

— Parece cenário de um filme de terror. – Confessei.

— Agora à noite. – Ele beijou meus lábios. – Mas amanhã você vai ver

que é um lugar muito bonito.

— E que lugar é esse?

— Eu estive em New Hampshire algumas vezes. Gosto de praia, e

Dephic Beach não atende a todas as minhas expectativas. O dono

dessa casa é uma boa pessoa, ele me alugou por um excelente preço.

Ele abriu a porta do Jeep e pegou nossas malas. Saí do carro e meus

ouvidos imediatamente capturaram o barulho das ondas estourando

na areia. Estávamos muito perto do oceano. Patch trancou o carro e

abriu a porta da casa, acendendo uma lâmpada interna. Considerei se

aquele lugar não seria perigoso, mas imaginei que o único perigo que

eu corria era o de me viciar em ter Patch comigo por tempo demais.

Ele não me levaria para um lugar cheio de bandidos – ele queria

exclusividade.

— Temos um quarto, uma sala, um banheiro, uma cozinha. Nada

elaborado, mas acho que é suficiente para duas pessoas. – Ele brincou,

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colocando as duas malas no pequeno corredor. Eu tinha levado tanta

coisa que minha mala era apenas o dobro da dele. Eu apostava que a

única coisa que ele carregava, além de blusas pretas e jeans, era a

loção pós-barba de menta. Aquele cheiro que só ele tinha.

— É mais do que suficiente. Eu não estou acostumada com muito –

até seu carro seria um bom refúgio.

— Por onde você quer começar? – Havia uma malícia explícita em

seus olhos negros, e a forma como ele disse aquilo me fez entender

perfeitamente que aquela frase não tinha dupla conotação. Tomei

ciência do espaço em que estava. A luz acesa do abajur clareava

parcialmente a sala, que tinha dois sofás cheios de almofadas e um

tapete. Havia uma lareira de pedra, alguns móveis utilitários e uma

grande porta de vidro, que dava para a noite. Patch pegou uma das

almofadas e afofou-a com as duas mãos. Depois levou os dedos aos

botões da sua camisa e começou a desabotoá-los. Engoli minha

própria saliva, e ela estava salgada de suor.

Patch abrindo sua camisa e tirando-a foi a coisa mais sexy que eu já

tinha visto. Meu corpo estava novamente em ebulição; a visão de seu

peito definido, seus jeans largos e o bordado Calvin Klein de suas

boxers não ajudava muito.

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— Podemos testar outras opções? – Eu perguntei, tentando entrar no

jogo.

— Quais? – Ele se aproximou.

— Todas elas.

— Contanto que o banheiro seja a próxima escolha, que seja feita a

sua vontade.

Patch avançou por sobre mim e tomou meus lábios de assalto.

Assustei-me com a pressão de seu corpo sobre o meu, mas não me

importei. Eu tinha certeza que não tinha ninguém ali, exatamente

como da primeira vez, então eu podia ser eu mesma. Inexperiente,

tola, carente. Suas mãos rapidamente entraram em minha blusa e

desataram meu sutiã. Com firmeza e habilidade, ele tirou as duas

peças de uma só vez.

— Você é ainda melhor assim. – Ele sussurrava, sem tirar os lábios de

mim. – Ao natural.

Eu não sabia o que dizer. Ele, no entanto, preferia fazer. Patch

deitou-me no sofá maior, afastando as almofadas e abrindo os botões

dos meus jeans. Era tão fácil para ele livrar-se de minhas roupas que

eu imaginei o que ele faria se eu usasse vestidos. Duvidava que ele

fosse se incomodar com eles, não seriam obstáculo algum. Sua boca

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percorreu a extensão do meu corpo, provando um pouco de cada

lugar. Soltei um gemido constrangedor quando senti que ele

capturava meus seios entre seus lábios, sugando-os devagar. A

sensação era tão fantástica que meu corpo produzia pequenos

espasmos. Pensei se aquilo fosse constrangedor, ou se deveria ser

daquela forma.

Mas Patch pretendia dar-me experiências novas, daquela vez. Eu não

tinha certeza se ele ficou tão ansioso por aquilo quanto eu, mas foi

difícil esperar um dia inteiro para fugir com ele para o meio de lugar

algum. Naquele momento, Scott era apenas uma vaga lembrança e eu

não estava pensando em nada que não fosse Patch. Ele estendeu seus

carinhos até a linha do meu quadril, massageando minha pele com as

mãos espalmadas. Eu não podia saber se ele estava excitado, porque

ele se distanciava de mim à medida que descia os lábios pelo meu

corpo.

— Anjo, eu vou fazer isso bem devagar. – Ele ergueu os olhos um

pouco, mas eu ainda tinha vergonha de olhar para ele. – Diga-me se

quer que eu pare.

Só se eu estivesse completamente louca, eu diria para ele parar

alguma coisa. Talvez nem a loucura fosse justificativa para tamanha

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heresia. Quando comecei a processar o que ele estava falando, senti a

língua de Patch invadindo minha intimidade. Eu poderia ter gritado,

se não tivesse engasgado comigo mesma. Meus dedos cravaram nas

almofadas, e eu senti uma onda de energia me eletrizando do dedão

do pé até os cabelos. Os sons que eu fazia me embaraçavam ainda

mais do que os espasmos do meu corpo.

Eu poderia ter chegado ao clímax em minutos, mas Patch sabia o que

estava fazendo. Ele não exagerou quando disse que faria aquilo bem

devagar – ele estava quase parando. Havia uma suave pressão de seus

lábios, que me sugavam em câmera lenta. Gostaria que aquele

momento pudesse ser prolongado para sempre, mas imaginei que eu

teria a oportunidade de repeti-lo – então melhor que eu aproveitasse

e me deixasse dominar pelo prazer.

— O que foi isso? – A pergunta estúpida, feita quando eu já o tinha de

volta para mim. Em meus lábios, em meus braços, em meu domínio.

— Recuso-me a acreditar que você seja tão ingênua. – Ele franziu as

sobrancelhas, com um sorriso maroto.

— E eu não sou. – Levei as mãos ao seu zíper, já ansiosa por livrá-lo

da inconveniência das roupas. – Mas eu sou, duzentos por cento,

inexperiente.

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— Nem tanto. – Senti seu corpo estremecer um pouco quando toquei

por dentro de suas boxers, e aquilo me causou uma pequena

surpresa. – Você já consegue abrir meu zíper em menos de cinco

minutos.

— O que você sentiu? – Eu quis saber, ignorando as piadas sobre a

minha habilidade. Repeti o toque, e observei seus olhos. Patch estava

sério, mas sua expressão era ansiosa e rígida, como se ele estivesse

tentando esconder alguma coisa de mim. – Diga-me, Patch, o que

você sentiu?

Ele se recusou a dizer-me, e me beijou. Mantive as mãos dentro de

suas boxers, e nem me preocupei em retirá-las – eu queria observar

algo mais relevante. Cada movimento que eu fazia, eu percebia que

ele se contraía um pouco. Eu não sabia se estava fazendo a coisa

certa, mas ele, teoricamente, não deveria sentir nada daquilo. Patch

garantiu para mim, duas noites atrás, que ele era insensível ao meu

toque – que toda a nossa conexão era puramente emocional. Uma

conexão emocional poderia proporcionar-lhe prazeres exóticos e

uma potente ereção, mas aquilo era completamente diferente. Eu

precisava ver até onde aquilo iria.

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— Por Cristo, Nora! – Patch afastou-se de mim, e arqueou o corpo

para trás. Sua respiração estava intermitente, e eu sentia seu coração

bater muito forte. – Vá devagar, por favor!

— Patch! – Protestei, com uma enorme surpresa em minha face. – O

que você está sentindo?

Ele me prendeu no breu de seus olhos.

— Parece que os arcanjos gostam de você. – Ele confessou. – De mim,

eu sei que não. Mas a sua frustração porque eu não senti prazer físico

na primeira noite foi maior do que o choque de saber o que fizemos.

— Eles sabem o que fizemos? – A vergonha me dominou por completo.

– Mas o que é isso, anjos sabem o que fizemos? Então essa história de

que Deus tudo vê é verdade?

— Eu posso garantir que sim. – Patch sorriu. – Mas estamos falando

dos arcanjos, e eles sabem jogar.

— O que você quer dizer com isso? – Eu estava ansiosa.

— Eles me permitiram sentir você, Nora. – Outra confissão. – Eu não

sei quanto tempo isso vai durar, nem o que isso vai fazer comigo –

talvez recuperar os sentidos me traga consequências. Mas desde

ontem eu venho sentindo, aos poucos, tudo em minha volta. E agora,

eu tenho certeza.

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12 – UNDER MY SCARS

Under my skin

Under these scars

Take me again

Tear me apart

Cause I wanna see

Everything you are

Til all that's left

Is not myself

Aquela revelação fez uma onda de ansiedade me invadir.

— Você sentiu-me hoje? No carro, eu em seus braços?

— Sim. – Ele beijou-me os lábios.

— Você está sentindo tudo, agora? – Eu tinha os olhos arregalados.

— Sim. – Ele beijou meu pescoço.

— Você fez tudo isso até agora porque você quis? Não foi só para me

agradar?

— Eu precisava sentir o seu gosto. – Ele beijou meus ombros. – Eu não

sei quanto essa brincadeira dos arcanjos vai durar, Nora.

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Aquela revelação fez meu sangue ferver completamente. E ele estava

ali brincando, sem saber por quanto tempo ele teria os sentidos de

volta. Perdi a vergonha, puxei suas boxers para baixo com força,

livrando-o de qualquer tecido que me impedisse de tocar sua pele.

Patch decidiu participar comigo, encontrando seu espaço para me

tomar por completo. Eu tinha certeza que, daquela vez, eu não

sentiria dor. Se sentisse, eu mentiria. Foi tão injusto, que ele me

desse tanto e eu não pudesse retribuir. Naquela noite, eu teria que

fazer tudo perfeito.

O controle que Patch teve em prolongar o meu momento anterior

não funcionou com ele. Eu tive certeza que durou menos do que ele

gostaria que tivesse durado, mas saber que ele estava tendo a mesma

experiência que eu foi maravilhoso. Como eu já sabia, ele não

precisou se conter. Eu ainda não o tinha ouvido emitir nenhum som

de prazer, e tudo aquilo só contribuiu para a experiência ser muito

mais fantástica. Patch era fantástico, e qualquer coisa que ele fizesse

só reforçava aquela certeza.

— Eu te amo. – Ele sussurrou em meus ouvidos, ainda sobre mim. Por

algum motivo eu considerei que seu corpo demoraria mais para

voltar ao normal, daquela vez. – Antes de conhecer você, percebo

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que minha vida não tinha a menor graça. Por você, eu quis ser uma

pessoa melhor.

— E eu estou... eu estou me apaixonando por você. – Eu disse,

vacilante. – Estou me apaixonando por você, de novo.

— Isso já é suficiente por enquanto, anjo.

Patch rolou para o lado. Estávamos imprensados no sofá – que não

era tão grande, mas eu não queria que nossos corpos se

desvencilhassem.

— Patch. – E eu chamava seu nome, mais uma vez. Ele me encarou. –

Quando você vai me contar a verdade?

— Nunca, Nora. – Ele sorriu. – Eu disse que você precisa descobrir

sozinha.

— Isso é cruel. – Reclamei. – Bem, qual você disse que seria a próxima

escolha?

Patch deu uma gargalhada.

— O banheiro. Mas eu acho que precisaremos ir com calma, anjo.

Com ou sem sentidos, eu preciso de descanso. E você, de comida.

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Mesmo cientes de que o dia seguinte poderia significar Patch

insensível de novo, nós não tivemos fôlego para repetir nossa

atividade mais de uma vez. Ele tinha razão quando disse que eu

precisava de comida, eu estava faminta. Por sorte, tínhamos passado

em um mercado e comprado suprimentos. Como não havia muita

coisa a se fazer, coloquei uma lasanha no forno e fui tomar um banho

– ainda sem a companhia de Patch. Ele decidiu fazer uma coisa que

gostava, e que ainda não tinha conseguido saber como era – fumar

um cigarro.

Quando saí do banho, vestindo uma camisola com um urso

estampado, e cheirando a perfume, Patch retornou pela porta de

vidro, em suas boxers. A lasanha cheirava bem, e meu estômago

revirou-se.

— Você está perambulando assim, por aí? – Considerei a sua falta de

roupas.

— Não tem ninguém para me ver. – Ele sorriu. – Deixou água para

mim? Eu agora quero tirar o cheiro de cigarro.

Aproximei-me dele, sorvendo o aroma de fumaça. Até o seu cigarro

cheirava a menta.

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— Foi bom?

— Qualquer experiência é boa. – Ele sorriu. – Um cego nunca diria

que não viu o mais lindo cenário, se pudesse recuperar a visão por

um dia.

— E comigo, foi assim?

— A experiência com você foi como nada que eu já tenha sentido

antes, Nora. – Ele disse, em tom solene. – Vá ver a comida, eu vou

tomar um banho.

Com uma lasanha inteira e quase uma garrafa de vinho, nenhum dos

dois estava em condição de ficar acordado por mais tempo. Patch

disse que não valia a pena entrar em desespero, que ele estava

satisfeito em ter-me independentemente das sensações. Ele sempre

dizia o que eu precisava ouvir, e aquilo era reconfortante.

Quando acordei, no dia seguinte, a cama estava vazia. Eu não gostei

de acordar sem tê-lo ao meu lado, mas a cena que eu vi, depois,

superou qualquer chateação egoísta que eu pudesse ter. Espreguicei-

me lentamente, sentindo tanto calor que tudo parecia estar em

chamas. Lavei o rosto, escovei os dentes, e decidi procurar por Patch.

Eu nunca fui dependente daquela forma de alguém, mas eu me sentia

ridiculamente carente. Talvez não fosse nada demais, afinal, eu

poderia ser carente com ele.

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Vaguei pela pequena casa atrás dele, e nada. O Jeep estava parado na

porta da frente, eu pude ver pela janela. Aquilo significava que ele

não poderia ter ido longe. A porta de vidro estava meio aberta, e

decidi verificar do lado de fora. A vista era linda – tudo que se podia

ver do lado de fora era o oceano azul e a areia branca e fina da praia.

A casa ficava quase dentro da praia, como que erguida na areia.

Encontrei-o a alguns metros da casa, vestindo uma sunga preta, com

a cabeça baixa, os olhos fechados, os braços abertos. As suas

cicatrizes expostas não pareciam mais tão horríveis quanto antes –

elas eram parte de quem ele era. Ele parecia venerar alguma coisa,

enquanto sua pele brilhava de suor. O sol.

Take away everything

Burn away all of me

As I break I believe

You will come to rescue

Considerei se deveria interrompê-lo. Colocar as minhas necessidades

à frente daquilo era simplesmente absurdo. Mas ele notou a minha

presença, antes que eu pudesse voltar para a casa.

— Venha cá. – Ele não moveu um músculo, apenas falou.

— Eu vou fazer um café. – Desconversei.

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— Venha cá, Nora. – Ele repetiu-se, e olhou-me por debaixo de seus

braços. Caminhei, pé ante pé, até chegar a ele e ser envolvida em um

abraço molhado. Ele estava completamente molhado, com os cabelos

cheios de sal.

— Você acabou de arruinar minha camisola – Tentei ser bem

humorada.

— Prefiro você sem ela, de qualquer forma. – Ele sorriu.

— Você ainda tem seus sentidos. – Foi uma constatação.

— Todos eles, e bem apurados. – Patch levou seus lábios até os meus.

Não era impressão errada; ele estava mais lento ainda depois que

recuperou os sentidos. – Ah, como você é gostosa, Nora.

Minhas bochechas arderam.

— Não.

— Sim, claro que sim. – Ele deu uma risada. – Obrigado, anjo. Se você

não estivesse tão preocupada comigo, eu duvido que pudesse ter essa

experiência, agora.

Ele me abraçou mais uma vez, e entramos na casa. Eu precisava

comer alguma coisa de manhã, ou sem sentia fraca. O que eu menos

queria, naquele instante, era sentir-me fraca. Patch não tirou o sal do

corpo, sentou-se à mesa de madeira rústica com a sunga molhada, e

devorou dois pãezinhos e uma tigela de cereais, além de suco de

laranja. Eu não estava acostumada com os homens; o bloqueio para

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não sentir a falta de meu pai funcionou contra todo e qualquer

homem que eu conhecesse.

— Agora – ele disse, terminando de limpar a boca com o antebraço –

eu vou tomar banho.

Patch levantou-se e foi até o banheiro. Eu tinha certeza que aquele

comentário não foi apenas para me informar de suas intenções – era,

na verdade, um convite. Recolhi a louça, coloquei tudo na pia, lavei

os pratos, organizei a cozinha. Ouvi o chuveiro ligar, e considerei o

que eu deveria fazer. Era um pouco ridículo pensar que eu tinha

vergonha de encontrar-me com ele no chuveiro, como se ver o corpo

nu de Patch fosse um tabu que eu precisasse enfrentar. Olhar para

ele deveria ser natural o bastante, se nós pretendêssemos continuar

com aquilo por muito tempo. E eu pretendia.

Pendurei o pano de prato, e caminhei com determinação até o

banheiro. Abri a porta que estava só parcialmente encostada e

peguei Patch sob a água que caía. Ele estava mais uma vez de costas

para mim, só que sem a sunga preta. Os dois braços apoiados no

azulejo do box, sustentando o peso de seu corpo. Seus cabelos

escorriam pelo pescoço como água negra. Ele estava gostando muito,

daquilo.

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— Pensei que precisaria ir te buscar. – Patch disse, sem virar-se. –

Lembra-se que nossa segunda escolha seria o banheiro? Se você

quiser repetir todas as opções, precisamos continuar o plano.

Ah, eu queria repetir qualquer coisa, com ele. Livrei-me sem

qualquer dificuldade da camisola de urso e abri a porta de vidro que

me separava de Patch – mesmo ainda estando com minhas roupas

íntimas. Abracei-o por trás, passando a mão espalmada por seu peito,

parando em sua barriga perfeitamente definida.

— Esse box é muito pequeno. – Reclamei. Patch deu uma risada, e

virou-se para mim, já me tomando em suas mãos.

— Tem um tamanho suficiente.

Ele me beijou outra vez, e parecia bem mais urgente do que na noite

anterior. Eu não sabia se ele tinha pressa, com medo da sensação ir

embora, ou se ele estava mesmo faminto. Nossos corpos deslizavam

por causa da água do chuveiro, e o cheiro de sabonete completava o

clima. Sem para de me beijar, Patch segurou-me nos braços e me

ergueu. Tão logo enlacei seus quadris com minhas pernas, senti-o

escorregar para dentro de mim. Surpreendi-me com a facilidade com

que nossos corpos se uniram daquela vez, sem qualquer atrito. Ele

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me empurrou de encontro aos azulejos, mudando de posição,

enquanto investia com alguma violência contra mim. Sim, Patch

estava urgente, e aquela atitude combinava com ele. Era difícil

imaginá-lo suave, romântico, comedido. Patch deveria ser bruto.

E ele estava sendo, naquele momento. Sua boca em meus seios, suas

mãos em minha carne, a forma como ele ia e vinha com força e

intensidade; tudo me levava a crer que ele estava despejando toda a

sua ansiedade em meu corpo. Mas não era ruim. Era uma experiência

diferente das duas anteriores, uma experiência que significava Patch

e seus sentidos. Ele não estava fazendo nada para me agradar, apenas;

ele estava fazendo aquilo que ele queria. Sexo violento.

Da mesma forma que o orgasmo deveria ser violento. Eu já tinha

desistido de me constranger pelos meus gemidos; principalmente

porque ouvi-lo foi muito mais excitante. Ele levou alguns instantes

parado, os músculos contraídos, a respiração acelerada. Depois,

soltou-me subitamente, e minhas pernas desabaram no chão,

vacilantes, trêmulas. Desconectamo-nos, e imediatamente senti

aquela sensação ruim de ausência. Ele apoiou o corpo nos braços,

mais uma vez, enclausurando-me no espaço entre seu corpo e os

azulejos da parede. Seu coração batia rápido demais, mas ele não

falou nada. Seus olhos líquidos me davam a medida exata do que ele

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estava sentindo, e somente aquilo me fez saber o quanto ele estava

gostando.

Eu estava dormindo nos braços de Patch, sentindo a sua respiração

lenta. Pensei que poderíamos nos amar o dia inteiro, em intervalos

regulares, mas aquilo não parecia saudável. Ele não demonstrou

interesse em ficar o dia inteiro trancado comigo, e eu entendi que

aquilo era bom. Fomos à praia, e eu achei que seria divertido um

bronzeado. Ninguém parecia mais branca do que eu, em Portland;

nem mesmo Vee. Enquanto eu ignorava a parte de cima do biquíni e

optava por um topless, lembrei-me da minha amiga e desejei que ela

estivesse ali. Não sozinha, porque ela se entediaria. Mas com alguém,

um namorado; um caso, como eu.

E então eu olhei para Patch, sentado na toalha, olhando para o

horizonte com o semblante calmo, e desisti. Eu ainda precisava de

muito tempo sozinha com ele, até querer me relacionar com outras

pessoas. Eu estava completamente presa à sua pele, ao seu cheiro, às

suas cicatrizes; eu não queria nem mesmo ouvir a voz de outras

pessoas. Doentio, certo?

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Mas era noite, estávamos cansados, e adormecidos na cama. Senti um

desconforto rápido quando ele se moveu, e meu sexto sentido avisou

que Patch tinha se levantado. Eu não prestei muita atenção no que

ele faria, até ouvir uma voz diferente, que conversava com ele.

— Vejo que está levando a sério seu trabalho como guardião, Jev. –

Era uma voz musical e sobrenatural. Nunca tinha ouvido nada como

aquilo. E do que ele tinha chamado Patch?

— Eu fui autorizado por Rafael a ficar perto dela. – A voz de Patch

estava sombria.

— Eu sei. Os arcanjos conversaram, e achamos que seria mais

prudente mantê-la protegida. Só não sabíamos que você ficaria assim

tão próximo.

— Tentei apenas tirá-la da cidade, eu não sei como anda a influência

de vocês com Dabria. E, bem, o resto... ela quis.

— Também sabemos que ela quis, Jev. Eu não estou jogando com você,

agora. Vim por motivos mais nobres. Dabria escapou, não sabemos

onde ela está. Ela será banida tão logo seja encontrada, mas gostaria

de alertá-lo que ela pode tentar fazer mal à garota.

— Ela não teria chances. – Patch tinha, então, ira na voz. Eu estava

sonolenta, e pensei e juntar-me à conversa. Mas eu não tinha sido

chamada, não sabia o que estava acontecendo.

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— Você acha? – Uma risada. – Jev, você não está se sentindo frágil e

sensível, agora?

Oh. Então era aquilo que a pessoa queria avisar a Patch. Ele corria

riscos, assim como eu corria riscos, porque um anjo da morte queria

me pegar. E Patch, com os seus sentidos recuperados, sentiria dor –

ele poderia se ferir de verdade.

— Sim, eu estou frágil, sensível, humanizado; eu sou uma vergonha.

Mas sei o que Dabria quer, e posso ganhar uma briga dela com uma

mão amarrada nas costas.

— Se é assim que você considera, então confiamos em você. Se

precisar de um substituto, posso providenciar um anjo de verdade.

Mas eu tinha outra coisa em mente. Talvez seja melhor não arriscar e

retirar novamente seus sentidos.

— Não faço objeções. – A frase me deixou agitada. Patch não ligava de

perder as sensações? Não era exatamente por causa delas que ele

queria ser humano? Estava tão ruim assim ficar comigo que ele

preferia retornar à sua carcaça anestesiada? – Se isso for ajudar-me a

proteger Nora, faça como os arcanjos quiserem.

— Estou surpreso. Colocando as necessidades dela acima da sua

luxúria – esse não é o mesmo Jev que bani do céu.

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— Eu fiz um pacto com vocês, e pretendo mostrar que ela me ama,

independentemente de qualquer poder que eu possa ter. Eu só

espero que, quando isso fique evidente, vocês cumpram com a

promessa que me fizeram.

— E já não estamos cumprindo, Jev? A quem você acha que deve

creditar esses momentos de perversão humana que você está

vivendo com ela? Mas, você está mesmo preparado para perder os

sentidos e não contar nada a ela?

— Não posso contar? – Senti hesitação em sua fala. – Mas não acha

que ela vai perceber, Azrael?

— Agora eu estou jogando com você. – Outra risada. – Se você a ama

tanto, pode fingir. Você pode mentir para ela e convencê-la de que

ainda a sente, de que ainda sente tudo. Se você quer ficar um mês

com ela, sozinho, alegando que a protege, então pode fazê-lo

fingindo que sente cada toque que ela te dá. Fingindo que ela

proporciona a você algum prazer.

Daquela vez eu levantei, nervosa. Meu coração batia pesado como

um martelo, e eu mal podia respirar. Arrastei-me pelo corredor para

encontrar Patch recostado na janela e uma entidade clara, vestindo

uma bata branca e calças de tecido cru, pés descalços, o cabelo

absurdamente loiro, de costas para mim. Ao me ver, Patch arregalou

os olhos e sua voz travou. Ele marcou meu nome com os lábios, e a

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entidade virou-se para mim. Eram os olhos mais azuis que eu já tinha

visto.

Patch ultrapassou o homem e me envolveu em seus braços, protetivo.

— Anjo, o que você está fazendo aqui? – Ele disse, beijando meus

cabelos.

— Eu estou sonhando? – Perguntei, envolvendo sua cintura com os

braços.

— Não, você não está. Vamos, volte a dormir.

— O que vocês estão falando, Patch? – Ergui os olhos e perdi-me na

noite que me encarava. – Que história é essa?

— Vocês? – Ele pareceu genuinamente surpreso. – Você... pode vê-lo?

— Claro que posso, e ouvi-lo muito bem. Você vai perder os sentidos?

Ele vai fazer isso com você? E por que você tem que mentir?

Minhas perguntas não desafiavam respostas de Patch, porque ele me

olhou com absoluta surpresa por vários instantes antes de me

afundar em seu peito.

— Não, anjo. Você está dormindo, ainda. Ele não vai fazer nada disso,

você entendeu errado.

— Você disse que não estou sonhando. – Protestei.

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— Não está, mas você está sonolenta. Não se preocupe com isso.

Volte a dormir, eu encontro você tão logo termine de acertar uns

detalhes com Azrael.

— Jev. – A voz da entidade soou musical, e olhei diretamente para ele.

– Deixe-me aproximar dela. – Patch hesitou, mas afrouxou as

amarras ao meu redor. – Está tudo bem, eu não vou machucá-la.

O homem me examinou também por alguns minutos. Eu continuei

encarando seus olhos azuis, como se ele me hipnotizasse

simplesmente com o olhar.

— Deixe-me colocá-la na cama, eu já retorno. – Patch disse, a voz

baixa e confusa.

— Vocês dois são mesmo impressionantes. Você não poderia me ver,

menina. – O homem falava comigo, mas parecia uma imagem e não

uma pessoa real. Como se ele fosse projetado, um holograma. – Você

também não poderia me ouvir. Eu ainda vou descobrir tudo que você

é capaz. E você, Jev, tão altruísta a ponto de abrir mão da semi

humanidade para poder ficar com ela. Esse sentimento me comove.

Patch o encarou e me tomou nos braços. Eu podia andar, mas ele me

segurou no colo, e me levou até a cama. Colocou-me por sobre o

colchão, ligou o ventilador de teto e puxou as cortinas para

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aumentar a escuridão dentro do quarto. Beijou minha testa e me

deixou novamente. Eu deveria estar sonhando.

13 – EXPLICAÇÕES

Eu tinha certeza que não era um sonho, apesar de estar tudo muito

borrado em minha cabeça. Quando abri os olhos pela manhã, Patch

estava dormindo ao meu lado. Observei-o por alguns instantes,

considerando que eu não entendia nada de criaturas sobrenaturais.

Ele dormia. Ele comia. Ele parecia como qualquer homem com quem

eu teria a oportunidade de cruzar na rua. Ou não, porque Patch era

único. Mas aquilo não deveria estar ligado à sua condição

sobrenatural, e sim à sua perfeição absoluta. Quem quisesse poderia

me repreender, porque Patch era qualquer coisa, menos perfeito.

Apenas eu o via daquela forma, imaculado.

Peguei meu telefone celular e fui até a sala. O relógio marcava mais

de oito da manhã, o que me dava a autorização de ligar para Vee.

Estava na hora de envolver alguém mais naquela fuga de Coldwater;

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eu queria ouvir minha amiga e suas esquisitices. O telefone chamou

algumas vezes, até que ela atendeu, aos gritos.

— Nora Grey! Você me ligando de manhã? Não tem nada melhor para

fazer, não? Espera, provavelmente você nem deve ter dormido, né?

Ficou a noite toda fazendo sexo selvagem! Mas, então, por que você

está ligando para mim? – Vee disparou, em um só fôlego. Aquilo era

típico dela.

— Bom dia. – Eu sorri, mas ela não poderia ver. – Eu estou te ligando

porque gosto de falar com você, oras. E não, e não passei a noite

fazendo nada disso do que você está pensando.

— Como não? Você está em sei-lá-onde com o Sr. Maníaco e vai me

convencer que não aconteceu nada?

— Claro que aconteceu. – Ri novamente. – Muita coisa, coisas que eu

nem tenho coragem de descrever. Liguei para saber se está tudo bem,

se minha ausência é sentida em Coldwater.

— Seu namorado ainda está por aqui. – Vee confessou. – Eu acho que

ele ficou meio nervoso quando eu disse que você tinha viajado.

— Você disse que foi com Patch? – Perguntei, apreensiva.

— Não, eu não sou dedo-duro. Só disse que você tinha ido expandir

seus horizontes. E outras coisinhas mais, que preferi não contar a ele.

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Dei uma risada. Apenas Vee para me fazer gargalhar no início da

manhã, depois de uma noite tensa. Meus músculos ainda estavam

rígidos.

— Talvez eu ainda demore um pouco, aqui.

— Talvez? É bom que você demore. Nada vai explodir ou mudar de

planeta até você voltar, Nora.

Equanto Vee discursava, ouvi passos. Patch apareceu na sala,

sentando-se no sofá comigo. Ele sorria, com a cara amarrotada e os

cabelos despenteados, e beijou-me. Senti seus lábios em meu pescoço

e minha orelha, e comecei a rir.

— Pare com isso. – Falei, sem parar para pensar que Vee escutaria.

— Com quem você está falando? – Vee questionou. – Patch está aí?

Oh, então melhor eu calar a boca, estou interrompendo algo.

— Não, Vee, está tudo bem. – Mas ele continuava me beijando, e me

empurrando para baixo dele. – Patch! – Protestei.

— Está bem, vou desligar. – Minha amiga deu uma risada. – Não volte

a me ligar até o final de semana, sim?

Vee desligou do outro lado, e eu olhei para Patch, que não tirava os

lábios de mim.

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— Lembre-me de sumir com seu telefone. – Ele dizia, e eu estremecia.

Foi então que a conversa da madrugada voltou toda à minha cabeça,

e eu me dei conta que esperava por explicações, que Patch

provavelmente se recusaria a me dar. Coloquei as duas mãos em seu

peito e o empurrei para cima, olhando com seriedade em seus olhos.

— Quem esteve aqui, de madrugada? – Foi uma pergunta simples,

mas Patch pareceu ansioso para não respondê-la. Ele correu os dedos

pelo cabelo, torcendo os lábios.

— Ninguém. – Ele tentou me beijar e eu não permiti.

— Mentira. Quer tentar de novo?

— Nora...

— Eu não estava sonhando. Alguém esteve aqui, à noite, e a conversa

que vocês tiveram foi muito louca. Quem era?

Patch sentou-se no sofá e coçou o queixo. Ele estava sem camisa,

usando apenas as boxers.

— Se eu for severamente punido por contar qualquer coisa, você sabe

de quem é a culpa. – Ele protestou. – Aquela pessoa que esteve aqui,

ontem, foi um arcanjo. E você não deveria tê-lo visto, Nora. Os

humanos não podem ver os anjos, a não ser que eles se mostrem.

Uma das coisas que Azrael não faz é mostrar-se.

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— Ele é o chefe? – A pergunta era estúpida. Patch deu uma risada alta.

— Ele é um arcanjo, e os arcanjos são os chefes. Mas há vários deles.

Azrael não é meu maior fã. Mas esqueça isso, sim? Eu sou um anjo

caído, anjos e arcanjos são comuns em minha vida.

— Por que eu o vi? – Insisti.

— Não sei, anjo. – Ele parecia sincero. – Mas, como eu disse, esqueça

isso.

Patch afastou minhas mãos e voltou a me beijar. Ele realmente não

parecia interessado em me dar respostas, mas eu poderia fazer um

teste. Escorreguei minha boca para seu pescoço, descendo para os

ombros, e mordi-o com força. Força o suficiente para que qualquer um

pudesse sentir dor.

— Nora!! – Patch pulou para trás, colocando a mão onde eu tinha

acabado de morder. – Calma, anjo... assim você me arranca um

pedaço!

— Você sentiu! – A reação dele me encheu de júbilo.

— Claro que senti, o que você pensou? Que eu fosse...

E então ele realizou o que eu estava fazendo.

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— Eu precisava testar. – Respondi à sua pergunta mental. Ele me

olhava, talvez tentando descobrir o que fazer comigo.

— Eu disse que ele não faria aquilo, você entendeu errado.

— Não entendi errado, Patch. – Protestei, cruzando os braços. –

Aquele anjo, arcanjo, sei lá; ele estava te colocando à prova. Ele disse

que estava jogando com você. Que jogo é esse, ele te dá e tira seus

sentidos, e manda você mentir? E que jogo é esse, que você precisa

provar para ele que eu te amo?

— Eu já disse, Nora! – Ele parecia irritado. – Eu não posso falar sobre

isso com você, será que você não entende? – Patch ergueu-se, e girou

pela sala. – Se eu abrir a boca e contar qualquer coisa, esse será nosso

último dia juntos. Eu não estou autorizado, você consegue aceitar

isso?

— Por quê? – Continuei protestando. – Eu preciso de respostas, Patch!

Minha vida tem um branco de quase um ano, eu tive memórias

apagadas!

— E talvez elas fossem ruim demais, você já pensou nisso? Que suas

memórias foram apagadas para o seu bem?

— E elas foram? – Desafiei. Patch recuou, e sentou-se ao meu lado

novamente. Ele segurou minha face entre suas mãos e olhou

diretamente para mim, fazendo-me distrair um pouco sobre o que

era a minha irritação.

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— Você é uma pessoa especial, anjo. – Ele disse aquilo quase com

reverência. – E eu estou falando sério, sem qualquer exagero. Você é

especial e eu não mereço você, definitivamente. Mas eu te amo. Você

já me ouviu dizer isso quantas vezes? É porque é verdade. – Ele

beijou a ponta do meu nariz. – Eu faria qualquer coisa para ficar com

você, e eu estou fazendo. Eu só posso ficar com você se você quiser,

se você assim desejar. Você entende, Nora? – Balancei a cabeça, sem

conseguir falar nada. Mas aquela constatação era ridícula, porque

não poderia haver dúvidas que eu quisesse ficar com ele. Quem

estava contando? – Então, por favor, facilite as coisas para mim.

Esqueça essa história de memórias apagadas e do passado que

tivemos juntos; ele não importa mais. O que importa é, você quer que

tenhamos um futuro juntos? – Patch colocou a mão direita sobre

meu coração. – Se você sente, aqui, que gosta de mim, isso é o que

importa.

Baixei o olhar, chateada e lisonjeada com tudo que ele disse.

— Você pode, ao menos, dizer por que eu sou especial? Eu tenho o

direito de saber, não tenho?

— Sim, você tem. E acho que isso não faz parte do acordo. – Ele

considerou. – Você tem uma genética especial, Nora. Mas a

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informação que eu tenho sobre isso é muito chocante, eu não sei se

você quer ouvi-la agora.

— Eu estou perguntando.

— Mas você não sabe o que eu vou responder. Você está pronta para

descobrir sua origem? Seus pais, sua história, seu legado?

— Se eu não estiver agora, não estarei nunca. – Confessei. Minhas

mãos estavam trêmulas. – Você consegue juntar as peças, se eu me

partir?

— Há não muito tempo atrás, um dos arcanjos mais sérios que havia

no céu, caiu. – Patch ignorou minha pergunta, e entendi que a

resposta era óbvia. – Na verdade, ele não chegou a cair, ele foi

diretamente banido para o inferno.

— Por quê? – Fiz uma careta. – Ele não era um anjo?

— Ele cometeu um pecado muito grande. Ele era apaixonado por

outro anjo, Sara. Ela era diabólica, o anjo mais cruel que o céu já viu.

Não foi difícil entender por que os arcanjos tiraram suas asas e a

mandaram para cá. Mas esse arcanjo não entendeu, ele achava que

Sara tinha salvação – e queria tentar. Mas ele nunca conseguiu. Ao

contrário, ela o tentou de todas as formas. Ele acabou sucumbindo, e

Sara o explicou como eles poderiam ficar juntos: ele deveria possuir

o corpo de um humano.

— Essa história de possuir corpos é horrível. – Reclamei. Patch

contava a história como se ele a tivesse vivido.

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— Mas é a forma que os anjos caídos têm de sentirem os prazeres

humanos. Mas nós só fazemos isso com os Nefilins, porque eles são

uma raça ruim. Já possuímos humanos, e depois passamos a possuir

os Nefilins. Sempre no Cheshvan, por duas semanas.

— Você costuma possuir corpos para fazer sexo? – Aquela ideia me

era repugnante.

— Eu costumava, Nora. – Patch me olhou, sério. – Mas faz algum

tempo desde meu último Cheshvan.

— E esse anjo, Sara, ela e o arcanjo, possuíram Nefilins?

— Não. Os anjos não podem possuir bestas como os Nefilins. Ele tinha

que possuir um humano – e esse foi o grande pecado que ele

cometeu. Nós, anjos caídos, já estamos condenados. Possuir

demônios não vai fazer os arcanjos gostarem menos da gente. Mas

um anjo... um arcanjo... ele não poderia ter feito isso. Quatro dias

depois, eles foram pegos. Ambos banidos para sempre, para o inferno.

Patch olhava fixamente para um ponto qualquer, e seu semblante

era relaxado. A história parecia afetar-lhe, de qualquer forma.

— E o que tem isso a ver comigo? – A resposta certa ainda não tinha

sido dada.

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— Os humanos que Sara e Mizael possuíram são os seus pais

biológicos, Nora. Você é tão importante para os arcanjos porque você

é a única descendente semi-humana de um anjo.

E eu desabei no chão como se aquela verdade me tivesse atingido no

meio da face. Patch tinha a expressão rígida, e eu estava ali, jogada

no tapete, encarando-o como se ele tivesse me contado um absurdo.

— Nora, você está bem? – Ele perguntou, depois que eu fiquei vários

minutos parada, com a boca aberta, tentando realizar tudo que tinha

acabado de acontecer. O mundo deu outra volta, aquele giro de cento

e oitenta graus que o colocava diferente frente aos meus olhos. Patch

tinha me dito que meus pais não eram meus pais, e que eu era filha

do estranho cruzamento entre dois seres sobrenaturais – e que

estavam no inferno, agora. Era informação demais, eu deveria ter

aceitado o aviso dele.

— Quem são meus pais? – Eu fiz aquela pergunta idiota.

— Nora, seus pais, aqueles que você conhece, são as pessoas que

importam. Harrisson e Blythe tinham acabado de ter uma filha, e

essa menina tinha morrido. Você foi colocada em seu lugar, ninguém

nunca ficou sabendo.

— Como, nunca ficaram sabendo? – Levantei, rodando pela sala. –

Como alguém não fica sabendo que um bebê morreu?

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— Quem trocou você na maternidade foi um anjo da morte. Eles têm

controle absoluto sobre as almas que vão; tudo foi feito da forma

mais sutil possível para os humanos não perceberem.

Um anjo da morte. E Patch sabia daquilo tudo. Ele sabia quem eu era,

desde a primeira vez que ele me viu. Senti um mal estar repentino, e

corri para o banheiro. Eu queria vomitar, colocar para fora o veneno

que me preencheu a boca no instante em que ele me contou aquela

história. Tranquei a porta, ajoelhei no chão e abracei o vaso sanitário,

deixando sair todo o meu conteúdo estomacal em golpes violentos

do meu esôfago.

— Nora. – Patch falou.

— Saia daqui, eu não quero conversar mais. – Falei, ainda sentindo as

convulsões e o amargo sabor do ácido gástrico na minha boca.

— Anjo, você disse que eu deveria estar perto para juntar seus

pedaços, se você partisse.

— Eu menti. – Minha boca estava amarga, eu estava zangada, e

precisava descontar aquilo em alguém.

— Eu vou sair. Preciso conseguir dinheiro, vou até Portsmouth. Meu

número está gravado na memória do Nokia, se você precisar...

— Vá embora, Patch. Por favor, me deixe sozinha.

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Ouvi um estampido, o ronco do motor do Jeep, e tudo ficou em

silêncio. Meus joelhos fraquejaram e eu escorreguei para o chão do

banheiro, completamente. A vontade de vomitar deu lugar às

lágrimas, e comecei a chorar. Eu não tinha direito de agir daquela

forma, pois fui eu mesma que insisti para que a verdade me fosse

exposta. Eu queria perguntas, e eu deveria estar preparada para as

respostas. Mas, de tudo que poderia ter acontecido comigo, nada

deveria ser tão chocante quanto descobrir que meus pais não eram

meus pais, e que meus verdadeiros pais estavam no inferno – e

aquilo parecia definitivo. Pior, minha mãe era um anjo mau, um anjo

que seduziu outro anjo e o levou para a escolha errada.

Enquanto eu chorava, e me punia por ser eu mesma, lembrei-me que

estava sozinha ali, e que a ex-namorada de Patch queria me matar.

Eu estava frágil e completamente desprotegida, o que me tornava a

vítima perfeita para um anjo com sede de vingança. Eu era a vítima

perfeita para qualquer criminoso, porque ser estúpida parecia parte

inerente do meu ser. Mas eu não podia fazer nada, eu nem sabia se

queria fazer alguma coisa. Estava quente, a manhã alta no céu; eu

tinha muita fome e nenhuma vontade de sair do estado catatônico

em que me tinha colocado.

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14 – MEU MUNDO E NADA MAIS

Quando Patch retornou para casa, eu estava de banho tomado,

sentada na cama, encolhida bem próxima à cabeceira. Eu segurava

minhas pernas com os braços, e tinha uma cara de poucos amigos.

Pelas minhas contas já tinha passado da hora do almoço, e eu não

tinha nada – mesmo – em meu estômago. Aquela história de pais

anjos estava remoendo ainda dentro de mim, fazendo-me enjoar

cada vez que eu pensava nela. Eu já tinha vomitado mais de uma vez,

pensando em um anjo tão cruel a ponto de não amar ninguém, a

ponto de colocar seus desejos mundanos acima de qualquer

consequência. Pensando em um anjo tão idiota que sucumbisse a

qualquer coisa para possuir aquela que ele amava. Talvez a minha

estupidez fosse genética. E pensei o tempo todo na relevância que

aquilo teria para o resto da minha vida. Se ser parte anjo – se é que

eu era parte anjo – representava alguma coisa para mim.

Lembrei que Scott, meu ex-namorado, era um Nefilim; ao menos

aquela era a versão de Patch. Os anjos e os Nefilins eram inimigos; o

que poderia ter acontecido se eu continuasse o namorando? E se

tivéssemos nos casado, e se eu tivesse engravidado? O que seria de

nosso filho, o cruzamento de uma besta com um... anjo?

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Nada daquilo fazia sentido. E então eu estava olhando nos olhos de

Patch, a sua face atormentada, a sua expressão ainda muito rígida.

Ele chegou em silêncio e manteve-se em silêncio até encontrar-me

no quarto. Olhei para ele, que vestia o mesmo preto de sempre, botas

mal amarradas e sujas, jeans surrados, e não consegui enxergar nada

além dele mesmo. Patch parecia tão simples de se visualizar, e tão

absurdamente complexo de se entender. Eu acreditava que ele fosse

incompreensível, e eu cometendo o erro de querer decifrá-lo. Notei

uma marca em seu olho esquerdo, mas não dei muita atenção a ela.

— Está melhor? – Ele perguntou, e eu apenas assenti, com a cabeça.

Mentirosa, eu era, porque nada parecia melhor. – Você quer voltar

para a sua casa? – Eu neguei, balançando veemente a cabeça para os

lados, rejeitando a ideia no mesmo instante em que ela me dava

náuseas, novamente. – Quer ficar sozinha? – Neguei novamente. – O

que você quer, anjo?

Era uma excelente pergunta. Eu sabia o que queria?

— O anjo da morte, que me trocou. O nome dela era Dabria?

— Nora... – Ele colocou a mão na face, em uma atitude de desalento. –

Vai começar com isso outra vez?

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— Só responda.

— Sim, era.

— Foi assim que você me conheceu? Você me conhece desde que eu

era... um bebê? – A ideia era repugnante.

— Sim, mas não foi por causa de Dabria que te conheci. Foi por causa

disso que Dabria te conheceu.

— Qual a sua conexão comigo? Você me deixa te tocar, outra vez?

Patch levou alguns instantes para entender meu pedido irracional.

— De jeito algum. – Ele não mudou o tom de voz, mas pude sentir a

sua indignação. – Eu não sei o que você vai ver, Nora. Meu passado

não é algo de que eu me orgulhe, e depois que você entrar nele,

levarei dias para desfazer qualquer mal entendido.

— Então você vai me contar, qual é a sua conexão comigo? Por que

você perdeu a sua chance de tornar-se humano quando se apaixonou

por mim.

— Sim, eu vou. – Patch torceu os lábios. – Eu preciso matar você, para

me tornar humano.

Eu deveria ter tido uma reação idêntica à anterior, com aquela nova

revelação. Mas meu cérebro estava anestesiado, eu estava fraca, e

não conseguia considerar a relevância da informação.

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— É só isso que você precisa? – A frase nem soou como deveria. Eu

não pretendia ser sarcástica.

— Você pode pensar o que quiser, Nora. – Patch disse, de forma

ríspida. – Eu sei quem sou e o que sou. Mas eu pretendia matar você

muito antes de você pensar em me conhecer; se eu quisesse fazê-lo,

você nunca nem teria sabido quem eu era.

— Você deixou de ser humano por mim, ou você se aproximou de

mim porque sabia que os arcanjos iriam cair de amores por você?

Você não teve coragem de me matar, e preferiu se tornar meu

melhor amigo?

— Tornar-me seu amigo? Nora, veja o que você está dizendo! – Patch

passou os dedos pelos cabelos, emaranhando as ondas bem feitas. –

Você acha que os arcanjos gostam de mim? O prazer maior de Azrael

é me fazer sofrer! Eles nunca me dariam nada só porque eu quero.

Você não tem ideia do quanto eu abdiquei...

Ele parou a frase no meio. Comprimiu os lábios, olhou para mim e

para o colchão, por alguns instantes. Depois, retomou seu discurso.

— Eu não poderia matar você, Nora. Eu estava apaixonado.

— Como você se apaixonou assim, por mim?

— Eu já me fiz essa pergunta todas as vezes, e nunca obtive resposta.

Você me disse que estava se apaixonando por mim. Por quê?

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Minha voz travou. Eu não tinha respostas, ele estava certo. Fiquei

muda, e também olhei para o colchão.

— Anjo, se você quiser motivos para algo que eu não compreendo, eu

posso inventar as respostas. Mas elas não serão verdade, e você

saberá. Nem tudo faz sentido. Você quer voltar para Coldwater? Eu

levo você, eu não posso mantê-la aqui contra a sua vontade.

Ele respirou fundo, e percebi que ele prendia o ar. Virou-se

parcialmente, tomando coragem para levantar e atravessar a porta,

em um sinal de que ele estava me deixando. Deixando-me

desamparada, deixando-me por minha própria conta. A hesitação em

seus músculos me mostrava que ele não queria fazer aquilo – era

uma forma de respeito ao meu livre arbítrio. E parecia muito

importante, para ele respeitar a minha vontade.

— Patch, não. – Eu disse, quando ele já caminhava em direção à porta

do quarto. Seus pés pararam, mas ele não se virou. Suas mãos

estavam fechadas em forma de punho, os braços relaxados ao lado do

corpo. – Você não precisa ir. Eu estou sendo infantil. Mas você

precisa entender o meu lado, também. Acabei de receber duas

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notícias muito difíceis de lidar; uma delas que você queria me matar.

Agora você quer me proteger. Eu estou confusa.

— Acho que eu não consigo proteger você. – Ele disse, ainda sem

virar. – Nem manter a boca fechada eu consigo.

— Você só contou porque eu insisti. – Retruquei. – Eu deveria ter

recebido seu alerta.

— Eu só vim trazer seu almoço. – Ele disse, ainda sem virar-se. – Vou

voltar a Portsmouth, eu estou ganhando uma aposta.

— Sinuca?

— Poker.

Patch continuou andando, e eu quis atirar-me por sobre ele.

Considerei alguns minutos se aquela atitude pertencia à velha Nora

ou à nova Nora. A velha era chata, ranzinza, teimosa. A nova era

cruel, desinibida, exagerada. Correr atrás de homem não era atitude

de nenhuma delas – era atitude da Nora de Patch. Nova ou velha,

sempre idiota.

Caminhei vacilante até a sala, e meus pés aceleraram quando

ouviram a porta do Jeep batendo. Saí porta afora, os pés descalços,

mas o carro já se havia afastado e já seguia para a rodovia. O sol

queimou minha pele imediatamente, mas fiquei em pé ali, por alguns

instantes. As luzes de ré do Jeep acenderam, e ele retornou para o

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pátio de onde tinha acabado de sair, fazendo uma manobra que

parecia pertencer ao estilo de Patch. Ele abriu a porta e soltou o

cinto de segurança, olhando para mim como que esperando algum

movimento que o autorizasse a fazer algo.

Torci os lábios e atirei-me em seus braços, enfiando o nariz em sua

camisa. O cheiro de menta e tabaco me dominou por completo, quase

embriagando. Patch hesitou um pouco, mas logo seus braços me

envolviam e suas mãos pressionavam minhas costas.

— Desculpe-me, anjo. – Ele sussurrou em meus ouvidos. – Eu queria

te contar tudo isso, era muito difícil segurar. Mas eu devia ter

pensado em você.

— Está tudo bem. – Respirei no tecido preto, afogando-me em seu

cheiro. – Eu queria saber; eu sabia que você ficaria aqui para me

remendar. O jogo vai demorar?

— Que jogo? – Patch deu uma risada baixa, e puxou meu queixo para

cima com os dedos. Beijou-me os lábios bem devagar, enquanto

desligava o Jeep e me carregava para dentro de casa.

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Provavelmente já tinham se passado cinco dias – eu não estava

contando mais o tempo. Depois da revelação bombástica de que eu

não era filha de Harrisson e Blythe – ao menos não biologicamente, e

depois da constatação ridícula de que Patch quis me matar antes

mesmo de me conhecer – e eu nem quis saber por que, eu decidi

permitir que ele me fizesse esquecer tudo da forma que ele sabia

fazer melhor. Resolvi encarar a verdade e viver o momento – eu

estava fisicamente muito envolvida com Patch, e meu corpo ansiava

por ele a cada minuto. Emocionalmente, eu ainda não sabia como me

sentir. Era estranho, porque eu sabia que a conexão emocional que

ele tinha comigo era muito forte, enquanto eu não podia retribui-lo.

Mas eu percebi que, por motivos que talvez eu ignorasse, ele estava

satisfeito com as coisas como elas se apresentavam. Mesmo que eu

ainda não fosse apta a corresponder os seus sentimentos – eu não

duvidava que um dia isso fosse acontecer, porque eu o quis desde

que o vi pela primeira vez. E eu não o quis simplesmente, eu o quis

de uma forma absoluta, que eu ainda não tinha querido ninguém.

Foi em seus braços que eu passei o tempo, escondendo-me de um

perigo iminente, descansando literalmente nas férias de verão – com

praia privativa e sexo o tempo todo. Bem, sexo não me fazia

descansar, pelo contrário. Mas eu não me importava – era bom

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demais fazer qualquer coisa com Patch, até não fazer nada. Era uma

manhã qualquer, eu não sabia exatamente quando, nem que horas.

Estávamos na varanda da casa, que dava para a areia da praia,

observando o horizonte e aproveitando a brisa morna que soprava

em nossos cabelos. Patch estava sentado em uma espreguiçadeira e

eu deitada por cima dele. Já tínhamos tomado um banho de mar e

estávamos esperando a hora de almoçar. Eu tinha os olhos quase

fechados, enquanto Patch acariciava meus cabelos e, eventualmente,

me beijava.

Até a paz ser quebrada por um barulho pesado, e uma voz familiar.

— Patch-o! – Rixon surgiu na varanda, subitamente, assustando-nos.

Bem, eu me assustei, e agarrei-me com Patch, sentindo-me

completamente envergonhada. Nós estávamos seminus; eu usava

apenas a parte de baixo do biquíni.

— Você precisa aprender a ter modos. – Patch envolveu-me em um

forte abraço, e puxou a toalha de praia por sobre nós. – O que você

está fazendo aqui, Rixon?

— Vim ver se você ainda estava vivo ou se Dabria já tinha conseguido

achar vocês. – Patch o encarou e pude ver faíscas saindo do preto de

seus olhos. Aqueles olhos que pareciam mais densos do que a noite

de inverno. – O que foi, ela ainda não sabe?

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— Eu sei. – Respondi, a voz abafada no peito de Patch.

— Rixon, volte por onde veio. Vá para a porta da frente, dê-nos cinco

minutos para nos vestirmos. – Patch sibilou.

— Você só precisa de cinco minutos? – Rixon deu uma gargalhada.

— Desapareça, Rixon!

Eu tive que dar uma risada, e aquilo despertou o bom humor em

Patch. Estávamos de bom humor, não era difícil nos fazer sorrir. E eu

estava adorando usar sempre a primeira pessoa do plural, ao invés

do singular. Com uma troca de olhares, decidimos que deveríamos

entrar em casa e vestir roupas – por menos que aquela atividade me

fosse prazerosa. Fazia algum tempo que eu nem abria a minha mala

de roupas – vestia apenas os biquínis ou nada.

Patch abriu a porta da frente, e qual foi a minha surpresa quando, ao

invés de Rixon e sua boca grande, quem entrou saltitando na casa foi

minha amiga Vee. Eu deveria ter ligado no final de semana, mas eu

nem lembrava quando foi o final de semana. Ela usava trajes de

banho, chapéu e óculos escuros.

— Nora Grey, sua danada! – Vee deu uma risada quando me viu. –

Essas roupas são tão forçadas! Coloque já seu biquíni, vamos para a

praia, temos que conversar – e muito!

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Olhei para Patch, que moveu os ombros, querendo dizer que não

tinha nada a ver com aquilo. Torci os lábios, mas estava feliz em ver

Vee.

— Vocês querem ir até Portsmouth? – Patch considerou. – Eu e Rixon

temos assuntos por lá, podemos deixar vocês na praia e cuidarmos

de nossos negócios.

— Parece ótima ideia. – Vee sorriu, agitada. Aquela era a mesma Vee

que eu tinha deixado em Coldwater, ela nunca mudava. – Vamos,

Nora, coloque seu biquíni! Estamos perdendo o sol!

Vee arrastou-me para o quarto e deu uma longa olhada na cama

desarrumada. Os lençóis guardavam o cheiro de Patch – ele era

fantástico. Eu acredito que já tenha mencionado muitas vezes as

qualidades de Patch, e eu sabia que todas elas só existiam em minha

cabeça. A cara marota que ela fez ao me encarar enquanto eu

procurava biquínis limpos e novos em minha mala disse mais do que

qualquer palavra que saísse de sua boca. Eu estava mesmo vivendo o

filme Nove e Meia Semanas de Amor.

O carro de Rixon estava parado ao lado do Jeep Commander, e

considerei se ele não tinha tanta sorte no jogo quanto Patch. Ele

dirigia uma BMW antiga, bastante antiga, provavelmente os anos 70.

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A cor azul geladeira da vovó não negava que o carro era mesmo

ultrapassado. Peguei-me pensando que eu estava envolvida demais

com alguém que eu desconhecia até mesmo o modo de ganhar a vida

– eu não tinha certeza de como Patch conseguia dinheiro. Eu deveria

saber isso, antes, quando minhas memórias me foram tomadas. E,

por algum motivo, naquele instante, aquilo era irrelevante.

Patch nos guiou até Portsmouth. Andar no Jeep sem deitar-me por

sobre ele foi uma nova experiência. Vee passou o trajeto todo

falando um milhão de coisas diferentes, controlando a língua para

não mencionar Scott em nenhuma frase. Mas eu sabia que ela tinha

muito a dizer sobre ele, e eu até mesmo queria ouvir. Quando os

rapazes nos deixaram na praia, corremos até uma boa área para abrir

as cadeiras e nos colocamos a assar ao sol – literalmente.

— Então. Agora que estamos só as meninas, fale-me do Sr. Maníaco. –

Vee disparou, colocando os óculos escuros.

— Ele não é um maníaco. – Protestei. – E não sei o que eu deveria

falar dele para você.

— Ele carrega uma faca, Nora. – Vee puxou os óculos e me olhou. –

Mas tudo bem, se o sexo for bom...

— Não é bom. – Falei, os lábios esticados.

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— Não é bom? – Vee repetiu-me, e sentou-se na cadeira. – Como

assim, não é bom, eu pensei que...

— É espetacular. – Interrompi-a, e desabei em uma gargalhada.

Minha amiga me bateu com sua saída de praia. – Desculpe, mas eu

tive que fazer essa brincadeira. É espetacular, está bom? Você fica

satisfeita assim?

— Claro que não! Você me diz que está dormindo com um cara que

parece aqueles bandidos de filmes, mas que é absurdamente sexy;

insinua que ele é bom de cama e não fala mais nada? Dê-me detalhes.

E diga por que você veio se enfiar em New Hampshire – não tinha

motel em Coldwater?

— Vee. – Franzi o cenho, envergonhada. Eu não ia contar detalhes. –

Patch me convidou, o lugar é agradável, eu não tenho nada para

fazer e esse último ano de universidade será muito difícil. Achei que

seria bom relaxar. E eu não preciso de motivos nem justificativas

para viajar com meu namorado.

— Ah! Ele é seu namorado, agora? E aquele loiro de dois metros de

altura que passa todo dia na porta da sua casa, que deixa milhares de

mensagens em sua caixa de correio, e que fica espreitando a sua rua?

— Scott? – Assustei-me. – Ele virou um stalker?

— Quase pior que isso. Já pensei em chamar a polícia.

— Não estamos mais juntos. – Falei, ajeitando-me para o bronzeado.

– Terminamos, eu estou com Patch.

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Rixon e Patch retornaram à casa, daquela vez sozinhos. Eles não

tinham nenhum lugar para ir nem nada para fazer, mas precisavam

livrar-se das garotas. Patch jogou uma cerveja para o amigo, que a

abriu. Sentaram-se na varanda, Patch fumando um cigarro.

— Diga logo, Rixon. O que está havendo em Coldwater?

— Dabria está havendo. – Ele concentrou-se em beber o líquido frio. –

Ela tem perguntando bastante, Patch. Ela não sai de Delphic, ela

ronda atrás de você; ela está completamente perdida.

— Nenhum arcanjo apareceu para resolver isso?

— Você acredita que os arcanjos querem se envolver? Eles não estão

nem aí se você morrer ou se matá-la.

— Mas ela não me quer. – Patch observou a fumaça do cigarro. – Ela

quer Nora.

— E daí?

— E daí que Nora é a filha de Mizael, Rixon.

A revelação causou choque no anjo caído. Ele passou alguns instantes

encarando Patch, que continuava concentrado em seu cigarro.

Depois, caiu na risada.

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— Você quase me enganou.

— Eu não estou brincando. Nora Grey é a filha de Mizael, é ela que os

arcanjos protegem há mais de vinte anos. É por causa disso que eu

fui designado.

— Eles querem ver você morrer pelas mãos de Dabria, e então eles

vão bani-la para o inferno. – Rixon considerou.

— Alguma coisa assim. Eles me fragilizaram – deram a mim

exatamente o que eu queria, mas isso me faz inferior em uma luta

direta com um anjo da morte. Imagine a quantidade de dor que

Dabria pode me causar, até que eu consiga atingi-la?

— Nem quero considerar; nessas horas eu louvo ser um amaldiçoado.

Mas você está sentindo tudo, tudinho mesmo? Dor, calor, frio... como

está sendo, com ela?

— Eu não vou falar disso com você. – Patch apagou o cigarro. – Eu

agradeço você ter-me contado sobre Dabria. Eu preciso ir até ela, não

posso esperar que ela me encontre nem posso fugir com Nora para

sempre.

Os dois amigos assentiram sem palavras, e retornaram para

Portsmouth. Patch sabia que precisaria da ajuda de Rixon, e de

outros anjos caídos, para vencer Dabria – se ele conseguisse essa

ajuda. Ela era uma louca e estava enfraquecida, mas ela

provavelmente não dispunha mais de seus sentidos, e aquilo a

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tornaria quase invencível. Patch sabia bem como mulheres

apaixonadas reagiam, e Dabria não era nada mais do que uma mulher

apaixonada.

Eu nunca pensei que diria aquilo, mas Patch sendo um mau garoto

era um absurdo de sexy. Eu e Vee já tínhamos torrado no sol, tomado

sorvete de baunilha e conversado o assunto de um mês quando meu

telefone tocou, e o visor mostrou a foto de Patch e o boné azul. Meu

coração sempre se aquecia quando eu o via com aquele boné, e

aquela foto representava uma conexão que não voltaria mais –

mesmo que eu recuperasse meus sentimentos por ele. Fomos

chamadas para encontrá-los em um lugar próximo, e o ambiente não

era dos melhores. Imagens de mulheres pouco vestidas na entrada,

luzes coloridas e cheiro de álcool eram ingredientes fortes que

afastavam definitivamente duas garotas que não buscavam confusão.

Mas quando entramos, apesar dos olhares e comentários que preferi

ignorar, a imagem de Patch com um cigarro na boca, usando uma

camiseta preta justa, o boné azul virado para trás, sentado em uma

mesa de Poker, me deixou completamente ligada. Eu estava

realmente hipersexualizada, e a culpa era toda dele. Rixon nos viu e

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acenou para que nos uníssemos a eles. Rixon era um cara bonitão,

Vee deveria investir nele. Ela confessou que o tinha achado atraente,

e seria bom ter mais alguém que eu conhecesse envolvido com anjos

e demônios. Eu adoraria poder contar a Vee que meu namorado era

uma aberração, se o dela também fosse.

Patch ergueu o olhar para mim e afastou a cadeira da mesa, baixando

as cartas. As pessoas me olhavam, mas eu acabei percebendo que

ninguém ali se importava com o fato de ele ser safado, nem eu

deveria. Havia outras mulheres observando o jogo, todas suspirando

pelos jogadores – e a maioria por Patch e seu estilo novato. Com um

movimento de cabeça, ele me convidou para sentar em seu colo e eu

o fiz, como se aquilo fosse bem natural. Ele ajeitou a cadeira, tragou o

cigarro, entregou-me e reviu suas cartas.

— Dê-me sorte, anjo. – Ele beijou meu nariz. O cheiro de fumaça

penetrou em meus pulmões, mas não estava ruim. – Se bem que eu

não preciso.

Com a mão que ele tinha, Patch ganhou a mesa. E depois ganhou

mais uma, e outra em seguida. Ele ganhou as apostas mais absurdas

que eu já tinha visto, sem muito esforço. Depois de algumas horas, eu

já estava com seu boné na cabeça, e participando ativamente das

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jogadas, enquanto Vee divertia-se com Rixon em uma mesa de sinuca.

Jamais poderia imaginar que aquela situação se encaixasse tão bem

em mim, e que fazer parte daquele mundo de Patch fosse tão natural

para mim. Como se eu já tivesse vivido aquilo antes, como se eu já

tivesse superado aquilo antes, como se eu já tivesse me envolvido

com aquilo antes. O mundo de Patch parecia, naquele momento, meu

próprio mundo. E eu não fazia a menor ideia da confusão que estava

por vir.

15 – ANJOS E CONFISSÕES

Se a minha vida pudesse ser perfeita, ela talvez não tivesse graça

alguma. Mas eu poderia atrair menos problemas, sempre achei isso.

O dia estava ótimo, e já quase acabando, quando tudo aconteceu.

Patch me pediu para pegar uma cerveja para ele, e eu obviamente

precisaria subornar o barman para que ele me vendesse alguma coisa.

Vee e eu fomos até o bar pedir cerveja para todos – inclusive para

nós duas, enquanto os rapazes continuaram as apostas. Acreditei

sinceramente que minha resposta sobre como Patch ganhava a vida

já tinha sido respondida. Se não fosse no jogo, eu não sabia mais

onde seria. Ele era bom, não, ele era excelente. E ele ganhava todas. E

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ele já tinha ganhado mais dinheiro, naquela tarde, do que eu

imaginaria ganhar em um ano.

Por mais ridícula que eu parecesse, naquele momento, eu estava feliz.

O calor do verão fazia minhas bochechas arderem, e eu tinha um

bronzeado verdadeiro sem as inconvenientes marcas do biquíni. Meu

corpo estava relaxado e plenamente satisfeito, enquanto minha

cabeça não pensava em nada que fosse desagradável. Nem em minha

mãe, nos problemas, na morte de meu pai. Eu não tinha mais

pesadelos. Estava em um botequim de péssima reputação, no meio

do álcool e das garotas de programa, usando roupas que eu jamais

pensaria em usar em um lugar público, o boné do meu namorado, e

eu podia dizer que estava dormindo com o vencedor.

Virei-me em direção às mesas de Poker e fui atingida literalmente

por um lufo de ar gelado. Aquilo era estranho, porque não estaria

ventando dentro do bar; e porque Vee não pareceu sentir a mesma

coisa. Ela carregava dois copos de cerveja, assim como eu, e

continuou seguindo. Eu parei. Aquela era a mesma sensação que eu

tinha quando Patch estava por perto, mas não era a sensação boa.

“Nora, pare,” eu ouvi a voz de Patch, mas ele não estava ali. Meus

olhos o capturaram jogando, como se ele nem estivesse percebendo

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que eu estava me aproximando. “Dê meia volta e esconda-se,” a voz

continuou. “Ouça-me, Nora, eu não posso explicar de outra forma.

Vamos, esconda-se.”

Eu não tinha como entender, e ele dizia que não podia explicar. A voz

de Patch estava na minha cabeça, como se ele pudesse falar para os

meus pensamentos. Senti um mal estar súbito, tentando decifrar a

mensagem. Por que ele precisava que eu me escondesse? Vee

continuou seu caminho em direção aos rapazes, sem notar

exatamente que eu parei. Rixon correu em sua direção e a abordou,

puxando-a para outro lugar. Meus pés me permitiram mover, e

arrastei-me para o lado, tentando misturar-me em meio às pessoas

que transitavam, para poder observar sem ser vista. Patch não

parecia mesmo prestar atenção em mim, e eu notei a aproximação de

uma mulher – sim, uma mulher, não uma jovem, uma garota, uma

daquelas que costumava cercar Patch – loira, de cabelos lisos e

vestuário pouco adequado.

Talvez adequado demais, aquela fosse a consideração correta. Ela

colocou as duas mãos nos ombros de Patch, e ele pareceu bastante

confortável com ela. Suas mãos pousaram em sua cabeça, e ela

acariciou seus cabelos. Meu sangue ferveu, e eu pensei que ele fosse

evaporar. A raiva me dominou e pensei que ela fosse me cegar,

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porque a minha vontade foi a de correr até onde eles estavam e dar

uma surra – nos dois. “Nora, nem pense nisso,” a voz de Patch falou

comigo. Arregalei os olhos, considerando se ele podia ouvir meus

pensamentos. “Você é previsível, anjo. Por favor, faça o que estou

pedindo. Esconda-se.”

Meu corpo entrou em modo automático. Coloquei as duas cervejas

por sobre uma mesa qualquer, e caminhei, a passos largos, em

direção ao banheiro feminino. Meu coração estava disparado. Entrei

em um dos sanitários e tranquei a porta, a respiração ofegante. O que

estava acontecendo, a pergunta martelava em minha cabeça. Eu não

sabia, eu não tinha permitido que meu cérebro processasse o que

poderia fazer Patch me esconder, até que um nome saltou na frente

dos meus olhos, como que desenhado no ar.

Dabria.

A ex-namorada de Patch, a louca que queria me matar, ou fazer

qualquer mal. Aquela que fez um arcanjo aparecer apenas para

avisar Patch que ela tinha fugido. E estaria atrás de mim. Meu sangue

ferveu novamente; meu corpo inteiro latejava. Olhei para minhas

mãos, para mim inteira. Saí do sanitário e me encarei no espelho.

Quem era eu, para fugir daquela forma? Para esconder-me, para

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correr do problema tão logo ele aparecesse? Aquela era a velha Nora,

a Nora que se martirizava pela morte do pai e que sonhava com o

bicho-papão. A nova Nora era uma lutadora – ela adorava confusão. E

a Nora de Patch não deixaria aquela vadia encostar a mão nele.

Fechei as duas mãos em punhos e senti-me preenchida por uma

coragem que eu nem sabia que tinha. Abri a porta do banheiro com o

pé direito, dando um chute certeiro no meio, como eu já tinha visto

fazer nos filmes. Os meus cinco minutos de realização renderam o

início do caos, e quando me peguei novamente no bar, tudo parecia

muito confuso. As pessoas estavam fugindo, algumas observando

para ver que tipo de briga era aquela. Rixon tinha Vee escondida

atrás dele, e ela imediatamente travou seus olhos em mim. Patch

estava no chão – em uma posição que me fez sentir o coração

paralisar – enquanto a loira o encarava, com um sorriso maligno nos

lábios.

— Se eu soubesse que os arcanjos teriam me facilitado tanto as coisas,

eu teria vindo atrás de você há mais tempo! – Ela dizia, com uma

risada alta. – Diga-me, Jev, onde está a garota?

— Você vai precisar de muito mais do que isso para me fazer falar,

Dabria. Reze para que eu nunca levante daqui, ou esse terá sido seu

último erro.

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A vadia não tinha só as mãos em Patch. Ela o estava causando dor.

Fazendo-o sofrer. E eu sabia que aquele sofrimento só poderia

acontecer porque eu queria Patch com sensações, porque eu pedi,

em minhas orações, que ele pudesse me sentir. A nova Nora não

permitiria que ninguém sofresse por sua culpa – principalmente ele.

— Eu estou aqui. – Falei, e as pessoas que estavam à minha frente se

afastaram, criando um corredor direto entre mim e o anjo da morte.

– Se você tem algo a me dizer, diga na minha cara.

Vi os olhos da mulher ardendo em fogo. Patch sentou-se, como se a

dor tivesse diminuído, e olhou para mim. Ele tinha a expressão de

desapontamento, porque eu não segui suas ordens. Mas ele tinha que

entender, eu não podia simplesmente fugir. Ia fazer o que, viver

fugindo? Viver me escondendo de um anjo louco? Alguma coisa

tinha que impedir aquela Dabria, e se os arcanjos prestassem atenção

em mim, talvez focar a violência dela fosse uma boa ideia.

— Nora, vá embora. – Patch disse, entre os dentes. Caminhei firme na

direção de Dabria, enquanto ela continuava a me olhar.

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— Devo admitir que ela tem personalidade. – A loira riu novamente.

– Enfrentar um anjo da morte de peito aberto, sem a proteção de um

anjo da guarda, é muita coragem – ou muita burrice.

— Dabria, deixe-a em paz. – Patch disse, levantando-se. – Se você

quer resolver isso comigo, vamos lá fora.

— Cale-se, Jev! – Ela olhou para ele, e Patch voltou a contorcer-se,

caindo ao chão novamente. – Eu não quero discutir com você. Eu vou

matá-la, e assim você acaba de vez com essa tentação de ser humano.

Depois que eu acabar com a garota, vou poder ter você de volta para

mim.

Ela deveria mesmo estar louca, porque aquela construção frasal não

fazia o menor sentido. Ela acreditava que, matando a mulher por

quem Patch estava apaixonado, o faria voltar para ela? Ou ela

acreditava que ele não estava apaixonado por mim? Bem, eu

acreditava que sim. Então, ela tinha mesmo que estar fora de seu

juízo perfeito.

— O que você quer, me matar? – Enfrentei-a. Eu já estava perto o

suficiente. – Vamos, mate-me. Todo mundo já tentou me matar

mesmo, até esse aí. – Apontei para Patch.

— Nora, pare com isso. – Ele dizia, e cada vez que ele falava meu

nome, seu corpo se revirava no chão, em convulsões.

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— Deixe-o em paz. – Usei as duas mãos para empurrar o anjo para

trás. Dabria não estava esperando por um contato físico comigo, e ela

cambaleou um pouco. Seus olhos pareciam brasas ardendo. – Como

você vai fazer? Sugar minha alma? Esfaquear-me? Jogar-me do alto

de um prédio?

— Eu acho que seu problema é mesmo burrice. – Dabria deu uma

gargalhada. Com um movimento rápido, ela moveu-se em minha

direção e me pegou pelos cabelos. Patch levantou-se e correu até ela,

mas o simples movimento de mão de Dabria o fez recuar, segurando

a garganta em agonia. – Vou levar você a um lugar, primeiro.

— Eu achava que você era só uma vaca assassina, mas agora vejo que

é mesmo uma psicopata. – Desafiei-a mais.

— Dabria... – Patch disse, as mãos já frouxas em torno do pescoço,

respirando normalmente.

— Eu vou matá-la, Jev. – Dabria olhou para ele, ainda me segurando

pelos cabelos. Aproveitei a distração e escapei, golpeando-a pelas

costas. Ela cambaleou, e voei para cima dela com toda a minha força.

Derrubei o anjo da morte no chão, e soquei-a na face algumas vezes.

Ela nem se importou em reagir, dando gargalhadas toda vez que eu a

golpeava. Patch pulou por sobre mim, puxando-me e me colocando

atrás dele, naquela atitude protetiva que eu já tinha visto antes.

— Deixe-me. – Eu bradava, irritada. – Eu também posso matá-la!

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— Não pode, não, anjo. – Patch sussurrou. – Fique fora dessa

confusão, por favor. Sou seu anjo da guarda, lembra?

— Você é o que? – Dabria ergueu-se, e pareceu sem reação. – Você é o

anjo da guarda dela? Você recuperou suas asas, Jev?

— Não. – Ele parecia sempre tão sincero. – Mas eu estou designado

para cuidar de Nora. E você não vai levá-la.

Observei a face de Dabria transtornada, e os olhos novamente

irradiando fogo. As mãos de Patch seguraram-me com força, e eu

sabia que ele estava sentindo dor. Mas, daquela vez, ele não cedeu.

Seus músculos estavam contraídos, e as veias do pescoço saltadas. Ele

fazia um tremendo esforço para resistir à investida cruel do anjo da

morte, até que ela desistiu, muitos minutos depois.

— Eu volto para te buscar. – Ela disse, o olhar centrado. – E, dessa vez,

ninguém vai estar perto para te proteger.

O anjo desapareceu de forma abrupta, como se tivesse transformado

em fumaça. Senti novamente um mal estar, e Patch desabou ao chão.

Ajoelhei-me, nervosa, ao seu lado, fazendo-o virar para mim. Havia

sangue saindo de seu nariz e lábios, e ele estava quente como fogo.

Olhei para Rixon, que se aproximava, e para Vee, que estava

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aterrorizada. Patch parecia desacordado, e todos no bar estavam

assombrados com que tinham acabado de ver.

Rixon afastou-me e pegou Patch nos braços. Nós duas seguimos os

anjos caídos até o Jeep Commander, que foi guiado por Rixon até a

casa de praia. Patch foi deitado em meu colo, o corpo todo mole, sem

abrir os olhos nem reagir. Ele suava muito, e estava cada vez mais

quente. Tirei sua camisa para limpar o suor, e usei-a como um

abanador, tentando minimizar o calor. Ele, ainda assim, não reagiu.

Rixon o colocou na cama, e eu retirei suas botas e cobri-o com o

lençol. Saímos do quarto para uma pequena conferência.

— Vou passar a noite aqui. – Rixon decidiu. – Ela pode voltar, e Patch

não está em condições de enfrentá-la.

— O que houve, com ele? – Eu estava apreensiva.

— Humanidade. Como anjo caído, perdemos boa parte disso, apesar

do corpo semi-humano. Quando ele recuperou as sensações, ele

recuperou toda a fragilidade dessa parte humana – ele pode sentir

dor, ficar doente, sangrar. E Dabria estava se aproveitando disso.

— Vocês dois vão me explicar tudo que aconteceu? – Vee finalmente

encontrou palavras para perguntar. – Porque, assim, vocês dois

falando essa língua particular de vocês, e eu não estou entendendo

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nada. Nada! Anjo caído? Anjo da morte? O que raios aconteceu lá no

bar, agorinha mesmo?

— Rixon, é melhor deixar que ela saiba. – Falei, movendo os ombros.

– Você poderia contar tudo a ela, já que pretendem ficar. Eu vou

cuidar de Patch.

Voltei para o quarto, e deixei com o amigo a função de convencer

Vee daquela loucura toda. Eu não tinha cabeça para pensar em como

contar à minha melhor amiga que eu estava envolvida com um anjo

caído e que arcanjos e anjos da morte estavam na história. Havia um

anjo deitado em minha cama, ardendo em febre, ferido por minha

causa. A visão de Patch inerte sob aqueles lençóis foi muito mais

dolorida que qualquer outra dor que aquela Dabria pudesse me

causar – eu não deveria ter permitido aquilo.

Sentei-me ao lado dele e acariciei seus cabelos.

— Patch. – Sussurrei em seus ouvidos. – Patch...

Ele moveu-se. Minha respiração acelerou, e segurei a sua mão entre

as minhas. Ele estava absurdamente quente, e eu tremia.

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— Nora. – Ele finalmente disse; seus lábios partindo-se suavemente

em um meio sorriso. – Você tem sorte de eu estar assim. – Ele

engoliu um pouco de saliva. – Eu vou te matar, quando melhorar. Por

que – ele engoliu mais – você não pode fazer o que te mandam?

Sorri, beijando sua testa bem devagar. Levantei-me da cama, em um

salto, e corri até a cozinha para pegar um copo de água fresca. Depois,

procurei em minha bolsa por analgésicos. Com um comprimido de

Tylenol, sentei-me novamente ao lado de Patch.

— Vou erguer você um pouco. – Sussurrei novamente. – Você precisa

baixar essa febre, vou te dar um remédio.

— O que te faz pensar que seus remédios fazem efeito em mim? – Ele

sorriu novamente. Seus olhos estavam abertos, mais negros do que

de costume.

— Só beba, Patch. – Eu disse, colocando o comprimido em sua boca.

— Sou eu quem deveria te proteger. – Ele engoliu o comprimido, mas

eu precisei ajudá-lo com a água. Suas mãos estavam trêmulas e não

conseguiram segurar o copo.

— Você já me protegeu. Ela iria me matar, lembra-se?

— Você é louca. – Ele voltou a deitar-se. – Céus, parece que meus

ossos foram moídos e colados.

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— Toda essa dor, porque eu caí na besteira de reclamar que você não

me sentia. – Fiz um bico.

— Nora. – Ele me olhou, e quando ele falava meu nome daquela

forma, eu sabia que era uma repreensão. – Eu enfrentaria dor pior

que essa, mas não abriria mão de sentir você, se eu tivesse essa

escolha.

— Rixon vai passar a noite, Vee também. – Falei, mudando de assunto.

– Vou ter que arrumar a sala para eles. Vou colocar Vee no sofá, será

que Rixon se incomoda em dormir no chão?

— Ele já dormiu em lugares piores. – Patch tentou rir, mas retraiu-se

em dor.

— Eu vou vê-los, então. Chame-me se sentir algo. Eu já volto, sim? Te

amo.

Beijei-o na testa e dirigi-me à porta. Meus pés travaram e meu

coração saltou uma batida quando tomei consciência do que eu tinha

acabado de dizer. Meus olhos arregalados viraram-se bem devagar,

na expectativa que Patch estivesse distraído, e que ele não tivesse

ouvido nada. Mas ele ouviu. Os olhos dele estavam tão saltados

quanto os meus, e ele tinha erguido um pouco o corpo. Patch me

olhava com surpresa e encantamento, mas eu não estava apta a lidar

com aquilo, também. Saí do quarto, fechando a porta atrás de mim.

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16 – PS: EU TE AMO

Rixon e Vee estavam sentados na sala. Nenhum dos dois falava nada,

e eu notei que minha amiga parecia atordoada. Eu também teria

ficado, se aquela história toda me fosse despejada de uma vez. Eu

descobri o que Patch era, e talvez eu já soubesse aquilo antes – só

tinha me esquecido. E, desde então, eu vim tendo graduais

revelações sobre o mundo dele. Eu passei a mão em sua cicatriz, eu vi

um arcanjo, eu descobri que não sou uma simples garota pobre que

perdeu o pai, eu fiquei sabendo que um anjo da morte queria

vingança por eu ter roubado o namorado dela. Ainda não eram todos

os segredos, mas era o suficiente, por enquanto.

Mas Vee não teve tempo para processar. Ela presenciou uma luta

corporal entre anjos, comigo envolvida; ela viu alguém jurar que ia

me matar, ela viu Patch se contorcendo de dor apenas por causa dos

pensamentos de Dabria. E ela estava então ciente de toda a verdade,

depois que Rixon lhe contou tudo. Assim, em menos de um dia. E ela

parecia não exatamente assustada com a realidade, mas incrédula.

Como se fosse impossível de acreditar naquilo tudo. Rixon estava

sem camisa, sentado, e imaginei que ele tivesse exibido suas

cicatrizes para ela. Esperei sinceramente que ela não as tivesse

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tocado, mas imaginei que os anjos caídos tinham muita reserva

quanto a humanos penetrando em suas memórias.

— Vocês estão bem? – Perguntei, fingindo inocência. – Vou colocar

alguma coisa no forno para comermos. Vocês preferem lasanha

vegetariana, pizza de peru ou...

— Você está mesmo falando em comida? – Vee me interrompeu. –

Sério mesmo, Nora Grey?

— Eu estou com fome, vocês devem estar com fome, Patch precisa

comer.

— E anjos comem? – Ela tinha os olhos arregalados. Não percebi se ela

estava sendo sarcástica ou ingênua.

— Nós comemos, claro. – Rixon sorriu. Ele era bonito, talvez a beleza

fosse característica dos anjos. – E sim, eu estou com fome. Como está

o Patch?

— Sentindo muita dor. O que houve, por que ele está assim?

— Dabria é um anjo da morte, ela tem a capacidade de retirar

completamente a dor das pessoas. Mas ela também pode infligir uma

dor absurda – quem tira pode dar.

— Anjo da morte! – Vee levantou-se, e rodou pela sala. – Nora, você

me escondeu esse absurdo desde quando? Você... você está dormindo

com um anjo! Deve ter alguma lei contra isso, quero dizer, isso não é

pecado?

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Rixon deu uma risada, e eu tive que segui-lo.

— Patch é um anjo caído. Ele não é mais anjo, não da forma como

ficamos conhecendo. Ele é meio que...

— Um renegado. – Rixon me completou. – Somos assim, indesejados

no céu, indesejados no inferno, bestas na Terra.

Movi os ombros e fui até a cozinha, tentar preparar o jantar. Eu não

me sentia segura, nem mesmo com Rixon ali, porque eu pensava em

Patch e no que aquela Dabria poderia fazer se o pegasse tão

debilitado. Ele resistiu bravamente a ela, no bar, mas o seu corpo

estava sofrendo muito. Eu ainda tremia, e foi difícil organizar a

comida. Deixei a lasanha no forno – que eu escolhi, já que ninguém

me ajudou com a tarefa – e voltei para a sala.

— Vocês se importam em dormir aqui? – Perguntei para Vee e Rixon,

que continuavam mudos. – E, por favor, será que poderiam me

ajudar um pouco? Eu estou meio que em uma situação aqui, tentando

lidar com anjos feridos, ameaças de morte, amigas descobrindo fatos

fantásticos... seria legal se vocês fizessem um esforço.

— Eu não durmo com um homem desde os cinco anos. – Vee fez um

bico. – Sexo casual não conta, conta?

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Falling - Tatiana Mareto Silva

210

— Eu não durmo com uma mulher desde o último Cheshvan. – Rixon

riu. – Acho que vamos superar isso.

— Rixon, no tapete. Vee, no sofá. – Joguei o controle remoto da

televisão por sobre minha amiga. – A TV funciona, se quiserem

assistir alguma coisa. Vou buscar roupa de cama – se é que tem isso

por aqui.

Entrei novamente no quarto, tentando não fazer nenhum ruído.

Patch parecia estar dormindo. Abri gavetas da cômoda atrás de

lençóis limpos e toalhas. Peguei o que queria e voltei para a sala,

ouvindo o barulho da televisão ligada. Estava passando algum

seriado daqueles sobrenaturais, e tentei imaginar por que Rixon

insistia em ver aquilo, já que provavelmente não retratava a verdade.

A lasanha cheirava no forno, e em poucos minutos ficou pronta.

Ninguém estava conversando muito, enquanto a noite caía fresca do

lado de fora. As estrelas brilhavam sorridentes no céu de verão, e a

lua cheia estava propícia a uma noite apaixonada na areia da praia.

Eu poderia ter uma noite na areia da praia, mas não aquela. Servi a

mesa com a louça que havia na casa, e chamei os convidados para

sentarem-se comigo.

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Falling - Tatiana Mareto Silva

211

— Não tem como fingir que não aconteceu, certo? – Vee considerou,

apoiando o garfo no prato.

— Não acho que seja possível. – Respondi, a boca cheia. – Eu também

fiquei chocada e assustada, se isso conforta você.

— Nora, eles são anjos. – Ela sussurrou, como se quisesse que apenas

eu ouvisse. – Isso não faz sentido.

— Você vai descobrir que não é nada demais. – Sorri para ela. – Olhe

para eles e encare como se fossem pessoas com dons especiais.

— E você vem se utilizando desses dons há algum tempo, né? – Vee

me olhou, maliciosamente.

— Ei! – Rixon protestou. – Estou aqui, senhoritas. Não preciso de

detalhes, sim?

Nós duas demos risadas. Mas a conversa parou por aí. Terminamos

de comer, lavamos e secamos a louça, e separei um pouco de comida

para Patch. Eu não sabia se ele comeria, mas eu precisava tentar.

Deixá-lo com fome, eu não iria. Entreguei a roupa de cama e as

toalhas para Vee e Rixon, e pedi que eles se comportassem. Rixon

avisou que ficaria alerta, e que patrulharia o lado de fora da casa

antes de dormir. Eu não deveria me assustar com barulhos, seria ele

em sua vigilância. Agradeci por sua boa vontade em ajudar, mas

sabia que ele fazia aquilo por Patch, e não por mim. Depois que Vee

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estava acomodada no sofá e distraída com a televisão, fui para o

quarto cuidar daquele que precisava de mim.

Eu ainda não tinha parado para lidar com eventos pretéritos. Meu

cérebro estava trabalhando bem, e a adrenalina me permitiu

funcionar perfeitamente sem pensar em nada que me causasse stress.

Mas, com a porta fechada atrás de mim, perdida na escuridão do

quarto, as cortinas se agitando com a brisa feroz que refrescava a

noite, os olhos travados na imagem serena de Patch, meio encolhido

na cama, eu não tinha como fugir de mim mesma. Apoiei o prato

morno em cima da cômoda e fechei os olhos, visualizando o meu

interior. Havia uma verdade entre todas as verdades, que merecia ser

levada em consideração. Eu havia dito “eu te amo” para Patch, de

uma forma súbita, inesperada, inconsciente. E as frases ditas

inconscientemente eram as mais significativas. Eu não pensei para

falar, eu simplesmente falei.

Mas eu não podia menosprezar o sentido daquilo. Eu não me

lembrava de ter dito “eu te amo” para Scott. Ele dizia, sempre, e eu

concordava, sempre. Eu dizia “eu também”, ou “você sabe que sim”,

toda vez que ele me questionava sobre meus sentimentos. Eu não

sabia dizer que o amava porque, na verdade, eu não deveria amar.

Era confortável estar com ele, era satisfatório. Era um porto seguro tê-

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lo ao meu lado na universidade. Então, por que eu tinha

deliberadamente deixado escapar de meus lábios uma frase tão

complicada quanto aquela?

E, afinal, que diferença aquilo fazia? Patch me amava, ele disse tantas

vezes. Eu deveria estar autorizada a amá-lo. Não podia ser chocante

ou inadmissível. Nós estávamos juntos. Amá-lo poderia modificar as

coisas? Amá-lo poderia causar-me algum mal? Amá-lo poderia causar

a ele algum mal? Já havia um anjo insano nos perseguindo – parecia

que nada podia ser pior que aquilo.

Aproximei-me da cama, e notei que Patch tremia. Ele estava tão

quente que parecia queimar por dentro. Aquela febre persistente, e

eu não sabia o que fazer. Cobri-o com os lençóis e fui até o lavabo,

encher uma pequena bacia de ágata com água fria. Sentada ao seu

lado, passei a embeber uma toalha limpa na água e colocá-la dobrada,

em sua testa. Patch contraiu os músculos com o primeiro toque, mas

aos poucos relaxou. Passei a toalha por sua face, seu pescoço, seu

colo, tentando amenizar a temperatura. Talvez ele estivesse certo e

remédios humanos não lhe fizessem diferença alguma. Mas,

novamente, eu precisava tentar qualquer coisa.

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214

Enquanto eu o acariciava, de uma forma nada sexual, eu considerava

o que havia em mim para sentir-me daquela forma. Fechei os olhos

novamente, e olhei para as imagens que se formavam no escuro.

Cenas se passaram em minha frente, como se eu estivesse vendo um

filme. Sim, era um filme. Era o filme da minha vida, por mais clichê

que aquilo pudesse parecer. Meus músculos ficaram flácidos, e perdi

momentaneamente os movimentos enquanto as cenas iam e vinham.

Minha respiração estava acelerada, e depois de vários minutos senti

algo me puxando de volta para a realidade. Patch segurava minha

mão, que repousava em seu peito, segurando a toalha. Ele me

encarava com os olhos mais negros que eu já vira.

I see forever when I look in your eyes

You're all I ever wanted, I always want you to be mine

Let's make a promise 'till the end of time

We'll always be together, and our love will never die

E então todas as cenas fizeram sentido.

When I look into your eyes

I can see how much I love you

And it makes me realize

When I look into your eyes

I see all my dreams come true

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When I look into your eyes

Eu estava me lembrando.

— Nora? – A voz rouca e embargada de Patch penetrou meus ouvidos.

– Você está bem?

— Eu acho que sim. – Falei, sem conseguir parar de olhar para ele. As

cenas continuavam a passar, porém eu as via no preto de seus olhos.

Ele pegou a toalha das minhas mãos, e a colocou dentro da bacia, que

não sei como ele encontrou. Livrou-se dos objetos que ocupavam

espaço na cama, e ergueu o corpo um pouco.

— Você quer conversar? Sobre o que houve, mais cedo? – Ele falava

com dificuldade. Eu só conseguia olhar para ele, com a admiração de

quem via uma maravilha pela primeira vez.

— Eu não sei o que houve. – Minha mente estava distante. Eu não

coordenava as ideias com facilidade.

— Talvez você queira pensar nisso. – Ele insistiu. Patch parecia

ansioso para entender o “eu te amo”, e talvez ele estivesse certo. Eu

deveria pensar naquilo. Mas não enquanto o filme do meu passado

refletia em seus olhos de forma fascinante. – Tem alguma coisa

errada, Nora?

As mãos de Patch seguraram minha face e ele franziu as

sobrancelhas.

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— Sim, tem. – Confessei. – Mas eu ainda não sei o que é. Você está

melhor? Como se sente?

— Moído. – Ele sorriu. – Dabria é muito forte, e o ódio é um poderoso

ingrediente.

— Pensei que ela te amasse.

— Amor, ódio; é tudo a mesma coisa, no final. – Ele contraiu a face e

deitou-se novamente. – Você comeu?

— Trouxe lasanha para você. – Aquela frase não respondia a

pergunta, mas ele poderia entender que eu havia jantado, se tinha

lasanha para ele.

— Não posso comer agora, anjo. – Ele sorriu novamente. – Preciso

descansar, amanhã estarei melhor.

— Você quer que eu vá...

— Nora. – Ele me encarou. – Sossegue. Você está agitada, acelerada,

estou sentindo a adrenalina correr em você. Tem certeza que não

quer conversar?

— Patch. – Disse, com o olhar baixo. Peguei-me observando seu

diafragma contrair e expandir com a respiração.

Ele segurou-me pelos braços e me puxou para baixo. Cedi ao impulso

de abraçá-lo, e repousei a cabeça em seu peito. Eu não sabia se aquilo

lhe seria doloroso, então tentei não colocar meu peso por sobre ele.

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Seus dedos acariciaram meus cabelos, e fechei os olhos sentindo meu

corpo latejar.

— Eu te amo. – Falei, daquela vez com consciência. Sussurrei, na

verdade. Minha voz saiu tão baixa que não tive certeza se ele ouviu.

Patch continuou me segurando em seus braços, enquanto o sono me

abatia. – Eu não vou deixar aquela vadia encostar um dedo em você.

Naquela noite, eu sonhei. Eu sonhei tão profundamente que eu não

sabia exatamente se eu estava dormindo ou se tinha sido

transportada para outra dimensão. Era o mesmo sentimento de

quando eu toquei a cicatriz de Patch; como se eu fosse expectadora

da vida de alguém – que, naquele caso, era a minha própria. Eu não

estava caindo no abismo, nem morrendo ou correndo de monstro

algum. As cenas da noite voltaram a mim, e o sonho durou muito

tempo. Eu não sei exatamente como acordei, nem por que acordei,

mas meus olhos pareciam lacrados e foi muito difícil abri-los de

manhã. Senti dedos mornos me tocando o braço, e tive vontade de

sorrir.

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— Bom dia. – Os lábios desenhados de Patch marcaram as palavras.

Foi a primeira coisa que vi, depois seus olhos. Eles estavam

vermelhos, e havia enormes olheiras embaixo. Mas ele parecia

melhor. – Teve uma boa noite?

— Você conseguiu dormir? – Perguntei a ele. Eu estava apagada, não

tinha prestado atenção nele durante a noite.

— Como um anjo. – Ele zombou, com o olhar maroto. – Estou bem

melhor agora. Obrigado. Mas ainda estou preocupado com você,

Nora. Você não pareceu dormir bem, estava agitada.

— Eu nem percebi. – Confessei, espreguiçando-me. Passei os dedos

pelos cabelos dele, desembaraçando alguns cachos. Ele estava lindo,

na luz da manhã. Foi a primeira vez que olhei para ele daquela forma,

com o coração de quem, finalmente, sabia. – Mas eu tenho algo para

te falar.

— Você não precisa, se não quiser. – Ele baixou o olhar, e beijou meu

ombro.

— É sério, Patch. – Sorri, inevitavelmente, quando ele estendeu as

carícias para meu pescoço. – Você quer saber por que eu disse aquilo,

ontem?

— Aquilo? – Ele continuava me beijando. – Você quer dizer, por que

você disse que me amava? Duas vezes? – Senti seus lábios em meus

ouvidos, e sua língua contornando o lóbulo na orelha. – Você estava

me compensando, anjo. Eu sei, está tudo bem.

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— Eu não estava. – Ele subiu os lábios e avançou sobre os meus. –

Patch, você vai ou não me deixar falar?

Patch apoiou a face na mão. Ele estava quase por sobre mim.

— Diga, anjo.

— Eu disse que te amava em um impulso. Quando parei para pensar,

eu tive... uma visão. – Patch continuava me encarando, curioso. – E

essa noite, eu tive um sonho muito estranho. E foi então que eu

descobri o que havia, por que eu estava tão sensível. Não sei se foi

ver Dabria torturando você, ou se foi o ímpeto louco de me sacrificar

ou a vontade de espancá-la; mas alguma coisa acendeu um

interruptor em mim.

— Você está me deixando confuso, Nora. Vá logo ao ponto.

— O ponto é que eu sei, Patch. Eu me lembro.

— Lembra-se do que? – Ele franziu a testa.

— De tudo. Eu vi, eu revivi tudo. Nosso passado, nossa história, os

momentos que eu tive com você. O passado, quatro anos atrás; as

razões que me fizeram reconhecer você no Bô. Eu simplesmente...

Patch não me deixou falar mais nada. Em instantes, ele tinha os

lábios sobre os meus novamente, e estávamos nos beijando como

ainda não tínhamos nos beijado. Foi a primeira vez que eu o tive

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sabendo que eu o amava, lembrando-me porque eu o amava. Meu

coração estava cheio de uma alegria que eu não me lembrava de ter

sentido. Senti o ar fugir de meus pulmões quando Patch moveu-se

por sobre mim, pressionando seu corpo contra o meu. Sem separar-

me dele, levei minhas mãos até a base do meu pijama e tirei a

camiseta pelo pescoço. Ele ainda estava quente, mas eu não sabia se

era da febre. Empurrei para baixo o resto de minhas roupas, e levei

as mãos às boxers Calvin Klein que eu adorava. Meus dedos

exploraram o corpo de Patch por um breve minuto, até que eu o

tocasse exatamente onde ele esperava que eu o fizesse. Ele deixou

escapar um gemido quando eu forcei-me contra ele, fazendo-o

introduzir-se em mim. Sua cabeça descansou sobre meu peito

enquanto ele se ajeitava.

— Você está ansiosa. – Ele disse, sorrindo para mim.

— Sim, desculpe-me. – Falei, prendendo-o pelos quadris. – É que

sinto que preciso provar isso agora. Quero dizer, eu quis você antes,

mas agora eu quero você de uma forma diferente. Faça amor comigo,

Patch.

A palavra amor era mais suave que sexo. Eu preferia fazer amor. Até

aquele momento, tínhamos feito sexo – ao menos por minha parte.

Nós estávamos nos relacionando de uma forma intensa, mas era tão

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físico; tão puramente físico; que me deixava preocupada. Eu não

sabia se um relacionamento poderia ou deveria se sustentar somente

pelo sexo. Naquele momento, eu amava Patch. Os sentimentos

estavam todos em mim, afogando-me, transformando-me em outra

pessoa. E eu o desejava tanto, da forma mais absurda que eu já pensei

em desejar alguém. Eu jamais imaginaria que o amor fosse tão súbito.

Coloquei a cabeça para fora do quarto, espiando pela porta. A casa

estava silenciosa. Enrolada no lençol branco, fui até a sala e

encontrei um bilhete escrito com a letra de Vee. “Estamos na praia.

Vocês estavam fazendo muito barulho. Bom saber que Patch está melhor.

Encontrem-nos lá.” Senti calor nas bochechas, certa que elas estavam

completamente vermelhas. Foram muitos dias naquela casa sem

ninguém com que se preocupar, provavelmente nós passamos dos

limites. Não foi intencional, mas acabou sendo divertido.

— Posso sair, Nora? – A voz de Patch ecoou pela casa, e virei-me para

ele instantaneamente. Como eu não gritei que não, ele abriu a porta

do quarto e veio em minha direção. Pegou-me com as mãos e beijou-

me, como se ele não tivesse acabado de fazer aquilo. Muitas vezes.

Até cansar. Se fosse possível cansar-se de Patch sem que aquilo

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pudesse ser considerado ilegal. – Banho, agora? Onde estão aqueles

dois?

— Praia. – Apontei para a porta de vidro. O dia estava lindo, claro e

quente.

— Então, banho, depois praia? – Ele afastou-se, caminhando para o

banheiro. Era tão natural para ele agir daquela forma, andar nu pela

casa, beijar-me indisciplinadamente em qualquer lugar, demonstrar

seu desejo e sua excitação. Eu não podia dizer que não adorava.

Fui atrás dele, que já estava ligando o chuveiro. A água estava fria,

porque o sol ainda não tinha tido tempo suficiente de aquecê-la a

contento, mas Patch lançou-se debaixo sem hesitar, e puxou-me com

ele. Levei um choque e quis fugir da água, mas ele me cercou com

seus braços, mantendo-me ali até que meu corpo não mais se

importasse com a temperatura. Ele passava as mãos por meus

cabelos e me beijava – e tive certeza que seria impossível cansar-me

dele.

— Eu também tenho algo para te contar. – Ele disse, colocando meu

shampoo em suas mãos.

— E decidiu que debaixo do chuveiro seria a ocasião ideal? –

Impliquei. Ele colocou o shampoo na minha cabeça e começou a

massagear meu couro cabeludo.

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— Enquanto eu lavo seus cabelos. – Ele tinha o tom sério, mas eu

sabia que era apenas um engodo. – Se você quebrou a maldição, e

lembra-se do que tivemos, é justo que eu conte a você como eu te

conheci – e como me apaixonei por você.

Tentei virar-me para ele, mas não consegui. Ele não parecia querer

fazer aquilo comigo olhando para ele.

— Mas você disse que me conheceu quando eu nasci; você sabia toda

a história.

— Sim, eu participei de tudo. Mas de longe – eu era um anjo caído. Eu

não podia sequer me aproximar de nada, e Mizael já tinha sido

banido para o inferno. De qualquer forma, eu prestei atenção em

você, eu sabia que os arcanjos tinham interesse em você e aquilo

poderia me ser útil. Você precisa saber, Nora, que eu era uma pessoa

terrível. Bem, nem uma pessoa eu era. Nunca fui. Mas eu era terrível,

eu não respeitava nada e não queria saber de seguir regras. A

decepção e a frustração da queda, a perda daquilo que eu amava; eu

estava descontando no mundo o meu sofrimento.

Patch fez uma pausa e me puxou para baixo do chuveiro novamente,

a fim de tirar a espuma dos cabelos. Eu estava totalmente relaxada;

ele parecia saber o que estava fazendo.

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— E então eu descobri. O Nefilim que Sara havia possuído era parente

direto do meu vassalo, de Chauncey.

— Você tem um vassalo? – Achei aquilo medieval.

— Eu tinha. – Ele ponderou. – Chauncey Langeais, era o homem que

eu possuía por duas semanas, durante o Cheshvan, para poder sentir

os prazeres mundanos. E ele era seu parente de sangue – seu

ancestral.

— Credo. – Fiz uma careta. – Mas ele não morria? Quero dizer, ele era

imortal?

— Sim, os Nefilins não morrem facilmente. São extremamente

resistentes. Eles não sofrem os efeitos do tempo.

— E você queria me contar isso?

— Não, eu ainda não terminei. É uma história. – Ele continuava

lavando meus cabelos. – Eu fui atrás de você, porque sabendo da sua

ascendência, eu podia colocar meu plano em prática. Matar o

descendente humano do meu vassalo e tornar-me humano

definitivamente.

Senti um nó me apertar a garganta. Ele já tinha me dito que queria

matar-me, mas ouvir a história toda era um tanto quanto assustador.

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— Eu passei a observar você. Eu tinha que me aproximar de você e

conquistar sua confiança. Segundo a lenda, não bastava que você

morresse. O sacrifício tinha que ser espontâneo, eu tinha um longo

caminho a percorrer. Nos meses que passei te vigiando eu me

envolvi seriamente com você. E decidi que precisava entrar na sua

vida. Entrei para a escola, fingi-me um garoto, manipulei a mente das

pessoas, inscrevi-me nas mesmas aulas que você, fiz-me notar. Usei

meus poderes para fazer-me notar.

— Você tem poderes? – Surpreendi-me. Daquela vez, virei-me para

ele, encontrando seus olhos sombrios. Ele estava rígido, não havia

qualquer traço de humor em suas linhas.

— Todo anjo tem. Só os caídos os utilizam deliberadamente com o

propósito de satisfazer a própria luxúria.

— E você fez isso porque estava apaixonado por mim?

— Não. Eu fiz isso porque queria mesmo te matar. Eu tive várias

chances, e não consegui. – Ele tinha a respiração seca e fora de ritmo.

– Eu queria você, Nora. Eu precisava ter você, e tive a ideia de

esperar o Cheshvan – assim eu poderia possuir Chauncey e passar

duas semanas com você, antes de te matar.

— Ew, Patch! – Protestei. – Você acha mesmo que eu, aos dezesseis

anos, iria me entregar a um garoto que nunca tinha visto?

— Eu não me importava. – Ele baixou o olhar. – Se eu tivesse que ter

você à força, eu faria.

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— Isso é horrível! – Fiz outra careta. Minhas mãos estavam em seus

ombros, acariciando sua face. – E?

— E eu esperei demais. – Ele sorriu, parcialmente, sem me olhar. – O

Cheshvan nunca chegava, e você estava em todo lugar. Eu respirava

você, meus olhos só viam você. Eu fui muito idiota, achando que

poderia esperar. Fui eu quem escolheu aproximar-se de você, e

depois eu não conseguia mais me afastar. E você correspondia; você

também parecia interessada em mim. Quanto eu te beijei pela

primeira vez eu tive certeza – eu estava cometendo o ato de maior

burrice. Eu sabia que estava apaixonado.

Patch passou os dedos por meu queixo, e depois por meus lábios.

— E você estava apaixonada. Meus planos tinham ido por água

abaixo. Eu te amava, e não podia te matar. Passou o Cheshvan e não

consegui possuir Chauncey, porque eu não queria fazer sexo com

outras mulheres. Eu queria você – somente você. Mas você era uma

criança, então eu soube que teria que esperar.

— E por que nós nos separamos, Patch? – Eu tinha que fazer aquela

pergunta.

— Você estava sofrendo outros problemas. A morte do seu pai te

perturbava muito, e você tinha constantes sonhos que te

atormentavam. A sua natureza talvez fosse assim. Ser parte anjo

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deve ser uma coisa esquisita. Você precisava de tratamento, e eu não

merecia você.

Passei os braços ao redor do pescoço dele e não perguntei mais nada.

Eu ainda tinha tantas dúvidas, e precisava de tantas explicações, mas

eu não podia pedi-las naquele momento. Ele havia aberto uma ferida

para mim, e ela estava sangrando. Eu não sabia o que pensar ou o que

achar, eu só sabia que precisava confiar nele. Eu precisava aceitar

que ele estava fazendo aquilo por mim, e acreditar que ele falava a

verdade. Recostei minha cabeça em seu peito e escutei seu coração

bater por algum tempo até ele fechar a água e decidir que estava na

hora de nos juntarmos a Vee e Rixon.

So here we are face to face and heart to heart

I want you to know we will never be apart

Now I believe that wishes can come true

'Cause I see my whole world

I see only you

17 – CAPTURADOS

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Finais felizes são para os trouxas, e histórias felizes são apenas

contos de fadas. Se eu tivesse certeza daquilo, não me desapontaria

nunca. Melhor esperar o menos do que não receber o mais.

Foi exatamente ciente das dificuldades e impossibilidades que

decidimos voltar para casa, naquele mesmo dia. Não adiantava mais

fugir de Dabria, pois ela já sabia onde estávamos. Não havia mais

lugar seguro, ela precisava ser derrotada. Eu acreditei que Patch

esperava que os arcanjos interferissem, mas Rixon não tinha essa

esperança. Depois de uma manhã agradável na praia com minha

amiga, meu namorado e o amigo dele, decidimos voltar a Coldwater.

Minha mãe já deveria estar em casa, e seria terrível ter que lidar com

ela e com toda essa confusão, mas eu daria um jeito.

O Jeep Commander parou na porta do condomínio, mas daquela vez

eu o fiz entrar. Abri o portão e pedi que Patch estacionasse na

garagem de casa, bem em frente ao Fiat Spider. O Ford de minha mãe

estava parado na frente da casa; ela nunca o colocava na garagem. Vi

seus olhos na janela tão logo a porta do Jeep se abriu e Patch saiu,

vindo para abrir minha porta. Eu não sabia de onde tinha saído todo

aquele cavalheirismo – eu conhecia e me lembrava de Patch, e ele

não era um cavalheiro. A frase dele ecoava na minha cabeça, que ele

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era uma pessoa horrível. Alguma coisa o tinha feito encontrar o

caminho certo, eu só não sabia o que.

Ele pegou minha mala e me entregou.

— Você quer entrar? – Olhei em seus olhos. Ele estava parado, mãos

nos bolsos dos jeans, o boné azul na cabeça. Parecia um menino – o

mesmo menino das minhas visões, do meu sonho.

— Sua mãe não vai gostar muito disso.

— Ela não tem que gostar. – Falei, decidida. Já tinha parado de me

preocupar com a aprovação da minha mãe há algum tempo. Eu a

respeitava, respeitava nossa casa. Mas Patch tinha direito de entrar

comigo, afinal Scott dormiu no meu quarto e ela não ligou. – Aliás,

ela precisa mesmo ser informada dessa nossa nova situação.

— Nossa situação. – Ele deu um sorriso. – E qual seria, essa situação?

— Estamos juntos, não? Somos... namorados?

O sorriso aumentou, e seus lábios perfeitos logo se abriram.

— Eu beijaria você agora. – Ele disse. – Mas sim, eu quero acreditar

que estamos juntos.

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Eu dei uma risada alta. Segurei sua mão livre e caminhei em direção

à porta, arrastando-o. O Patch que eu me lembrava também não era

tímido, então eu tinha certeza que ele estava apenas se exibindo para

minha mãe. Que estava nos esperando na sala, fingindo

deliberadamente que assistia televisão, enquanto eu a tinha visto

espiando nossa conversa do lado de fora.

— Boa noite, mãe. – Eu disse, e era bastante tarde. Ela se virou e nos

encarou. – Eu vou colocar as coisas no quarto e já volto. Você jantou?

— Pedi comida chinesa. – Ela encarava Patch, e não eu. – Mas não

estava pensando em três pessoas.

— Vou ligar para o restaurante e aumentar o pedido.

Peguei o celular e subi as escadas discando o número que eu sabia de

cor. Minha mãe não falou mais nada, e Patch subiu atrás de mim,

carregando a mala. Coloquei nossas duas bolsas no meio do quarto –

porque eu o tinha feito descarregar o Jeep – enquanto adicionava

mais macarrão e peixe no pedido de minha mãe. Patch precisava se

alimentar, porque ele não tinha comido direito ainda.

— Eu vou ficar para o jantar? – Ele zombou, sentando em minha

cama. – Seu quarto se parece com o antigo.

— Você vai passar a noite. – Disse, maliciosa.

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— Brincando com fogo, Nora Grey? – Ele sorriu. – Sua mãe não vai

gostar dessa história.

Movi os ombros, e desci com Patch. Realmente, ele estava correto.

Minha mãe nunca gostou de Patch, e ela não foi muito sincera

comigo quando conversamos. Tirando a parte que ela acertou, que

Patch era uma das coisas boas de meu passado, ela sabia que nosso

relacionamento era mais sério. Eu tentei esconder, como tentei

esconder de todos, mas ela era minha mãe – ela sabia mais do que

revelou e nunca sequer perguntou por que eu e ele tínhamos nos

afastado.

Fui direto para a cozinha, preparar a mesa do jantar. Já passava de

onze da noite, mas eu tinha avisado eu chegaria tarde. Apesar da

minha rebeldia moderna, eu não tive coragem que desaparecer e

deixar mamãe preocupada, arrancando os cabelos pela filha fugitiva.

Patch sentou-se na bancada, e eu servi a ele um copo de refrigerante.

Ele tirou o boné e me entregou, ajeitando os cabelos. Eles estavam

mais compridos, bem mais do que eu me lembrava. As pontas

desiguais enrolavam em cachos aleatórios, muito negros, que davam

a ele uma aparência rústica, desleixada, perfeita. Suspirei olhando

para ele, mas tentei concentrar-me na tarefa que eu tinha assumido.

Minha mãe parou na porta para nos observar, e eu só notei aquilo

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alguns minutos depois. Ela conseguiu ver nossos olhares trocados, o

pouco tempo que ficávamos sem estarmos um nos braços do outro,

em vários dias, a tensão que havia entre nós. Nem eu sabia que era

possível querer alguém daquela forma.

— Vocês vão me contar o que está acontecendo? – Blythe Grey

decidiu juntar-se oficialmente a nós, puxando uma banqueta e se

sentando de frente para mim. Torci os lábios. Talvez eu quisesse

contar, talvez não.

— O que você quer saber? – Perguntei, afinal. A campainha tocou, e

Patch levantou-se, fazendo com o olhar um sinal para que eu

deixasse a comida por conta dele.

— Você disse que estava em Portsmouth. Com ele?

— Parece óbvio. – Eu sorri. – Sim, com ele.

— Você e Scott, acabou?

— Também parece óbvio. Posso ser muitas coisas, mãe, mas não

ficaria com duas pessoas ao mesmo tempo. Eu... – baixei o olhar,

encarando a bancada de fórmica por breves segundos – não podia

continuar enganando Scott.

— Ele vai dormir aqui, hoje? – O olhar dela era calmo, apesar de

inquisidor. Patch voltou com a comida, e colocou sobre a bancada.

Comecei a desfazer as embalagens, com a ajuda dele. Mais olhares

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foram trocados, seguidos de sorrisos de cumplicidade. Parecíamos

dois adolescentes.

— Ele vai. – Confessei. – Hoje, e quantas outras noites ele quiser, o

que imagino que sejam todas.

— Você está muito segura de si, Grey. – Patch mordeu um pedaço de

peixe empanado, zombando de mim.

— E falei alguma mentira? – Fiz charme, servindo macarrão em um

prato e oferecendo a ele.

— Meu Deus. – Minha mãe ergueu uma sobrancelha. – Eu estou

surpresa, não posso negar. Nora, você... – ela parou o que ia dizer,

repensando a frase. – você está apaixonada por ele.

— De novo. – Eu dei uma risada, e Patch esticou os lábios em um

sorriso fantástico. – Eu beijaria você agora. – Repeti a frase dele, que

mudou rapidamente o olhar de menino brincalhão para quem ouvia

alguma coisa muito séria. – Mas vamos jantar, primeiro.

Daquela vez, não comemos em silêncio. Minha mãe tinha muito o

que perguntar, e perceber tão claramente que a filha dela estava

envolvida com o amor do passado a deixou mais tagarela alinda. Eu

pensei que Patch ficaria assustado, mas ele conversou com ela o

tempo todo, tentando escolher palavras educadas e pouco

reveladoras da nossa história chocante.

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Sozinhos no escuro do meu quarto, bastante tempo depois, sabendo

que minha mãe estaria atenta a qualquer som que ela não

considerasse plenamente natural na conversa entre duas pessoas, eu

e Patch poderíamos conversar um pouco sobre a situação. Sobre nós,

sobre Dabria, sobre o futuro.

— Faltam poucos dias para as férias terminarem. – Suspirei, a cabeça

apoiada no peito nu de Patch.

— Eu sei. – Ele me beijou os cabelos. – Portland é logo ali; eu não me

importaria com isso.

— E Dabria? Quero dizer, como poderei voltar para a universidade e

levar a vida normalmente com essa louca querendo me pegar?

— Vamos enfrentar Dabria antes disso. – Ele contraiu os músculos ao

meu redor. – Agora durma, Nora. Lidamos com esse assunto pela

manhã.

O céu estava vermelho como o fogo do inferno. As nuvens cinza-

chumbo pairavam pesadas e imóveis, anunciando uma chuva que

nunca caía. Coldwater estava em estado de alerta, porque um ciclone

extratropical figurava na previsão do tempo por dois dias. Patch

sabia bem o que aquilo representava. Sentado no telhado da casa de

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Nora, olhando para o horizonte poluído de cores, ele coçava o queixo

e tentava descobrir uma forma de atrair o anjo da morte. Ele

precisava encontrar-se com Dabria antes que Dabria encontrasse

Nora novamente.

Ela estava com Vee fazendo compras, e Rixon prestava atenção nas

duas. Havia um revezamento desde que retornaram a Coldwater, os

dois anjos caídos zelavam para que Dabria não tivesse chance de ver

Nora sozinha. Perdido em pensamentos, ele não ouviu seu telefone

tocar. Depois da quinta chamada, Patch percebeu o objeto que

vibrava no bolso dianteiro dos jeans Levi‖s, e examinou o visor,

querendo ler o nome da garota em letras brilhantes. Não era ela.

— Patch, venha para o Bô. – A voz de Rixon estava apreensiva.

— O que houve? – Patch levantou-se imediatamente e pulou do

telhado, aterrissando nas flores que Blythe Grey cultivava.

— Eu não vi acontecer. A garota foi ao banheiro, e não voltou. Vee

está em pânico, eu não sei o que fazer.

— Nora? – A voz quase não saiu de sua garganta, enquanto ele já

ligava o Jeep. – Rixon...

— Ela desapareceu, Patch-o. Não estamos encontrando-a em lugar

algum.

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Patch sentiu o corpo estremecer, e os músculos vacilarem. Ele

desligou o telefone de qualquer jeito e acelerou o máximo que pode

em direção ao tão conhecido refúgio perto de Delphic. Sua cabeça

latejava, e seus pensamentos passavam todos a mil milhas por hora.

Zonzo, ele nem mesmo trancou o carro quando parou na frente do

Bô e entrou correndo atrás de Rixon, que estava no bar com Vee.

Agarrou o amigo pelo colarinho da camisa de malha e o encarou,

olhos negros como a morte.

— Como isso aconteceu? – Patch estava agitado.

— Eu disse, ela foi ao banheiro. – Rixon suava, e estava bastante

ansioso. Vee tinha um copo de água com açúcar nas mãos, e tremia

como se tivesse visto um filme de terror horrível. – O que queria que

eu fizesse, entrasse com ela?

— Seria bom! – Patch largou Rixon e socou o balcão. – Droga! Agora

não sabemos onde Dabria está, nem onde Nora está!

— Eu sei.

A voz feminina ecoou, destacando-se no ruidoso ambiente dos

fliperamas. Patch virou-se instantaneamente, enxergando a figura

formosa e elegante de Dabria. Cabelos loiros presos no alto da cabeça,

saia envelope, blusa branca de gola rolê, meias finas e scarpim preto.

Seu andar era silencioso como o de qualquer anjo; ela movia-se com

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graciosidade. Patch pode ver suas asas escurecidas, meio

dependuradas em suas costas. As penas flutuavam pelo ar, deixando

um rastro por onde Dabria passasse. Ela as estava perdendo; estava

perdendo as próprias asas.

A ira que o dominou foi contida pela razão. Ele não podia matar

Dabria, porque não tinha forças e porque precisava descobrir onde

Nora estava, primeiro.

— Então diga. – A frase saiu dolorida, do fundo de sua alma. Os dentes

travados rangiam como madeira velha.

— Não, acho que não. – O anjo da morte aproximou-se

definitivamente, colocando os dedos longos no queixo de Patch e

fazendo-o olhar para ela. – Se quiser sua preciosa Nora de volta, terá

que vir comigo.

— De jeito algum! – Rixon protestou. Ele estava na frente de Vee,

protegendo-a com o próprio corpo. Mesmo sabendo que Dabria não

queria nenhum dos dois, ele achou que deveria fazê-lo.

— Não há escolhas aqui, anjo caído. – Dabria encarou Rixon, os olhos

dourados em brasas. – Ele vai comigo por bem ou por mal – é a única

coisa que ele pode decidir.

— Se eu for com você, você a deixa ir? – Patch respirou fundo e

enfraqueceu a voz. – Se eu voltar para você, você deixa Nora em paz?

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A risada que Dabria soltou foi um misto de desespero, humor e

sarcasmo. Cada nota da gargalhada ecoou pelo Bô como se fosse

saída diretamente de um filme de horror.

— Ah, Jev... você me encanta! – Ela colocou as duas mãos nos ombros

dele. – Acha mesmo que eu vou acreditar que você ficará comigo

enquanto essa mundana estiver viva? – Ela franziu a testa, olhando

para o nada. – A diferença entre vir comigo por bem ou por mal é a

de garantir a ela uma morte rápida – e indolor, ou uma morte

torturante e agonizante, como só eu sei proporcionar.

Patch livrou-se das mãos de Dabria e investiu contra ela. Seu punho

fechado atingiu o anjo no meio da face, com tanta força que ele

sentiu seus dedos estalarem. Algumas falanges quebradas, mas ele

não se importava. Dabria cambaleou para trás, apoiando-se no balcão.

Rixon a golpeou com um banco, que se espatifou como se fosse feito

de biscoito. O anjo da morte, impassível, moveu-se até Patch, que a

atacou novamente. Houve um pequeno confronto físico, até que o

anjo caído foi jogado por sobre duas máquinas de pinball.

Novamente, o barulho de ossos estalando, e Patch não conseguiu

erguer-se. Seu nariz sangrava, seus lábios sangravam, e ele tinha

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uma enorme peça de plástico enfiada em sua perna direita. A dor lhe

consumia, mas ele precisava continuar lutando.

Dabria ergueu-o com uma mão apenas, olhando para o resultado de

suas investidas.

— Patético. – A voz diabólica parecia ainda mais cruel. – Patético, Jev.

Preciso resgatar você; consertar o que aquela humana destruiu.

Sem que ninguém pudesse impedir, nem mesmo Rixon, que já havia

tentado derrubá-la outras três vezes, Dabria arrastou Patch,

semiconsciente, para fora do Bô, sob as vistas assombradas de todos,

que nada entendiam. Sob o sol poente no céu de sangue, Dabria levou

consigo a peça que faltava para completar seu macabro quebra-

cabeças.

Quando abriu novamente os olhos, Patch percebeu que não

conseguia enxergar direito. Tentou levar a mão até a face, mas não

podia. Estava preso; havia dois grilhões atados a seus pulsos, que o

impediam de fechar os braços. As correntes levavam até dois outros

grilhões, atados em seus tornozelos. Ele piscou várias vezes e olhou

em volta, tentando descobrir onde estava. Havia um chão de pedra

sob seu corpo, pedra limosa, escorregadia, fria. Duas colunas de

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pedra se erguiam, imponentes, ao seu lado. Ele podia ver o céu, já

plenamente escurecido, e as estrelas cintilantes piscando sobre sua

cabeça. Ele não fazia ideia de onde estava.

Sua visão parou na imagem da mulher presa a uma terceira coluna,

afastada o suficiente de si para que ele não tivesse como perceber

seus detalhes. Suas roupas estavam rasgadas, seus cabelos

despenteados e sua cabeça pendendo. Ela estava desacordada. Um

fino fio de sangue coagulado tinha escorrido pela sua lateral, até

tocar o chão. Patch quis levantar, mas seu corpo não lhe permitia. A

dor aguda da perna transpassada o fez recuar, enquanto ele não

conseguia tirar seus olhos dela.

— Nora! – Ele gritou, e sua voz não saiu como deveria. – Nora! –

Tentou uma segunda vez, mas ela não se moveu. Puxou as duas mãos,

com força, até sentir a carne rasgar pelos grilhões afiados.

— Não adianta debater-se, Jev. – A voz de Dabria ecoou novamente.

Ela caminhou até sua direção, daquela vez mostrando-se como

deveria. Vestia um manto branco rasgado, e as asas pareciam ainda

mais prejudicadas. Seus cabelos esvoaçavam com a brisa inexistente.

– Eu não queria prender você assim, mas você não me deixou escolha.

— Solte-a, Dabria. – Ele disse, odiando-se pela impotência. – Sou eu

que você quer, deixe-a em paz.

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— Não. – O anjo da morte aproximou-se de Nora. – Eu preciso matá-la,

Jev. Você não entende – enquanto ela viver, a humanidade vai te

tentar. Você precisa aceitar isso, e voltar comigo.

— Voltar para onde? Acha que o céu vai aceitar você de volta? Acha

que suas asas resistem a mais um dia? Você está tão maldita quanto

eu. Os arcanjos não te querem mais!

— Não seja tolo, Jev. – Ela franziu o cenho. – Depois que eu resgatar

você, terei a clemência do céu.

— Você é muito ingênua! – Patch esbravejou.

— E você é patético! – Ela retrucou. – Eu já disse isso! Veja você, um

anjo caído completamente perdido, desmanchando-se por causa de

uma... uma garotinha? Bem, essa conversa acabou. Como você acha

que eu devo matá-la, com a espada ou a adaga?

Dabria puxou uma adaga reluzente, que brilhava no escuro da noite

morna. O cabo encrustado de símbolos sagrados tinha uma pedra

amarela na ponta. A lâmina era quase transparente, como se feita de

vidro. Ela encarou a adaga por alguns instantes, invocando algumas

palavras em latim. Patch baixou o olhar, a respiração ofegante. Seus

lábios marcavam a mesma palavra repetidas vezes, enquanto ele

sentia o salgado em sua boca. Sacudiu a cabeça, os cabelos presos na

face pelo suor, mas não foi suficiente para impedir uma lágrima de

cair.

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18 – A BENÇÃO DOS ANJOS

Tão logo a lágrima de Patch tocou o chão pedregoso, o tempo parou.

Literalmente. Tudo ficou embaçado e paralisado, como se ele

estivesse em um filme, e a audiência tivesse pressionado a tecla de

pausa no controle remoto. Ele ergueu a face e viu Dabria erguendo a

adaga, a lâmina afiada direcionada para o pescoço de Nora, a sua face

retorcida de ódio e vingança. Uma gota de suor que escorria de sua

própria face parou no ar, ao entrar em contato com a atmosfera

pesada e densa.

— Azrael. – Ele disse, piscando algumas vezes, já sabendo o que

estava acontecendo. Arcanjos entendiam coisas de arcanjos. A figura

loira e tensa surgiu em seu campo de visão. Os cabelos estavam mais

longos, e a face mais rígida.

— Você está horrível, Jev. – O arcanjo colocou a mão no queixo e o

observou. – Exatamente igual a um humano. Se não fosse por essas

cicatrizes horríveis, eu não adivinharia que um dia você foi um anjo.

— Veio tripudiar do meu sofrimento? – Patch abaixou novamente o

olhar. – Veio prolongar a minha dor?

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— Claro que não. Vim impedir essa louca de cometer um crime. –

Azrael estendeu sua mão em direção a Dabria. – Imagine, usar uma

adaga sagrada para matar um Nefilim.

— Nora não é um Nefilim. – Patch protestou.

— Claro que ela é. – Azrael sorriu. – Um Nefilim muito especial, uma

geração evoluída e capaz. Mais consciente, menos agressiva. Uma

matadora nata de demônios – alguém que consiga controlar as coisas

por aqui.

— Ela é só uma garota, Azrael. Não mata demônio algum, ela nem

saberia fazê-lo.

— Ela não. – O arcanjo sorriu novamente. – Diga-me, Jev, como vai a

sua sensibilidade? Aguçada? Satisfatória? Você consegue suportar a

dor física?

Azrael tocou o ferimento da perna de Patch com a ponta do sapato

lustroso. Ele contorceu-se de dor, tentando reprimi-la da forma que

pode. Sem muito sucesso – a dor era excruciante.

— Basta, Azrael. – Outra figura loira, mais familiar, apareceu no

campo de visão de Patch. – Não viemos aqui torturá-lo, Jev não

merece isso.

— Fale por si. – O arcanjo torceu os lábios. – Mas sim, você tem razão.

Não vamos torturá-lo, afinal ele vem servindo bem à causa.

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— Que causa? – Patch disse, respiração ofegante.

— Você já se perguntou, Jev, os motivos que nos levaram a te dar as

sensações de volta? E já se perguntou como isso foi possível?

Patch baixou o olhar outra vez. Ele nunca tinha feito aquele tipo de

pergunta – ele estava feliz demais com Nora para prender-se a

detalhe. A bondade dos arcanjos não era algo a que ele estava

acostumado, então ele preferia acreditar que fosse por causa dela.

Eles gostavam de Nora, eles queriam que ela tivesse suas preces

atendidas. Não era algo questionável, era para ser aproveitado.

— Qual é a relevância disso, agora?

— Você sabe que não é possível sentir, sendo um caído. – Foi Rafael

que decidiu explicar. – Ou você volta a ser anjo – o que obviamente

não aconteceu, ou você...

— Torna-se humano. – Patch arregalou os olhos. – Mas eu não sou

humano. Eu projetei-me nos pensamentos de Nora, eu ainda tenho

poderes.

— Sim, claro. Nós não te concedemos a humanidade, Jev. – Rafael

estendeu sobre ele a mão direita. – Nós te concedemos a nossa

bênção.

— Mas... eu... o que foi que...

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— Você foi abençoado porque nós precisávamos que você procriasse

– com o Nefilim.

O mundo girou em torno de Patch, e ele sentiu-se zonzo. Seu

estômago, em um sinal claro da humanidade que restava dentro dele,

borbulhou, e foi impossível evitar as náuseas. Apoiado pelas mãos

feridas, Patch convulsionou e vomitou líquido verde, condensado, de

cheiro forte. Ele não tinha comido muito naquele dia. Sua cabeça

latejava e o calor era insuportável. Sua pele parecia queimar como o

fogo, enquanto os céus, perfeitamente estáticos, indicavam que o

inferno não iria embora.

Ele olhou para Nora, pendurada na coluna de pedra, e desejou nunca

tê-la conhecido. Desejou nunca ter-se apaixonado por ela, desejou

que as suas existências nunca tivessem se cruzado. O sentimento de

horror que o dominou serviu apenas para certificá-lo de que seu

lugar era junto com os demônios. Ele era uma pessoa ruim, ele ainda

não tinha conseguido redimir-se. Por sua causa, Nora sofria. Por sua

causa, ela era o joguete dos arcanjos. Por sua causa – por sua própria

luxúria, apenas.

— Vocês não estão falando sério. – A voz saiu amarga de sua garganta.

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— Nós não brincamos. – Rafael considerou. – Jogamos, mas não

brincamos.

— O Nefilim carrega uma geração muito aperfeiçoada de filhos de

anjos com humanos, Jev. A mais avançada que já se teve notícias –

um verdadeiro filho de anjo. Ela tem o sangue de Mizael nas veias, e

você... você é um arcanjo. Sempre foi um anjo poderoso, sua genética

é fabulosa. Foi muito conveniente quando você se encantou pela

garota, não haveria outro que pudesse fecundá-la.

— Não! – Patch bateu com as duas mãos no chão. – Por que não me

avisaram de suas intenções? Ela tinha o direito de saber, ela tinha o

direito de escolher!

— Não podíamos arriscar, Jev. Sua nova concepção moral de certo e

errado não combinava com as nossas intenções. – Azrael sorriu. –

Justo você, decidiu redimir-se para estar com ela. Tão tocante, tão

humano. Você mereceu a bênção – desde as sensações até a

capacidade reprodutiva plenamente restaurada.

Desolado, Patch ergueu-se e sentou-se. Foi a primeira vez que ele

conseguiu erguer o corpo, depois de ter sido capturado por Dabria.

Seus músculos tremiam, e ele estava imundo. Coberto por sangue e

uma poeira preta, seus jeans estavam imprestáveis. Seus dedos

seguraram o plástico que havia perfurado sua carne e o puxaram

para fora, em um só movimento. A dor foi reprimida dentro de sua

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garganta. O músculo latejava, e sangrava. Fez um curativo com a

camisa encardida, rasgada em tiras, e inspecionou os demais

ferimentos. Nenhum parecia tão sério – a carne dilacerada no pulso,

o lábio cortado, a mão direita fraturada. Era possível suportar aquela

dor, nada doía mais do que seu peito, naquele instante.

— O que vocês vão fazer, agora? – Ele perguntou. Lágrimas brotavam

de seus olhos, e ele não sabia se um dia tinha chorado. Nem quando o

seu primeiro amor – a humana pela qual ele caiu, morreu.

— O que foi programado. – Rafael sorriu. – Vamos levar Dabria

conosco, ela terá suas asas cortadas e será banida.

— E quanto a mim? E quanto a Nora?

— Vocês dois não são mais tão interessantes assim. – Azrael deu uma

risada, sendo repreendido por Rafael, pelo olhar. – Quero dizer,

vocês devem viver suas vidas como quiserem. Não era esse seu

grande sonho, Jev? Tornar-se mortal? Então, você agora é mortal. E

ela, não é o amor de sua vida? Não foi por ela que você entregou tudo?

Vivam plenamente e sejam felizes juntos – é um desejo sincero.

— Quanto ao filho que ela carrega... – Rafael manifestou-se. – ele é

muito precioso. Voltaremos a conversar quando ele atingir idade

suficiente para ser treinado.

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O arcanjo aproximou-se de Patch, e abriu seus grilhões sem precisar

de chave. Fez o mesmo com os que envolviam seus tornozelos,

libertando-o por completo. Ele ergueu-se com dificuldade, mas sem

qualquer ajuda, colocando-se de pé. A perna dilacerada não

conseguia tocar o chão, e ele arrastou-a na direção de Nora. Azrael

foi até Dabria e tomou dela a adaga, entregando o artefato a Rafael,

que a colocou na cintura. O tempo continuava paralisado, como se

tudo fosse artificial.

— Vocês vão acordá-la? – Patch abraçou-se a Nora, acariciando seus

cabelos com mãos imundas.

Os dois arcanjos moveram os ombros. O relógio voltou a girar, e as

mãos vazias de Dabria acertaram o braço protetor de Patch, erguido

para amortecer o golpe. Ela olhou para ele com fúria intensa e

confusão, até ser segura completamente pelo arcanjo Azrael. Nora

tossiu, engasgada, despertando. Sua cabeça estava ferida, somente.

Ela se viu nos braços de Patch quando ergueu a face, e pode observar

o que acontecia ao seu redor. Dabria gritou, um som gutural e

hediondo, que jamais poderia ter saído da boca de um anjo, quando

Rafael, segurando a adaga sagrada, arrancou as duas asas com cortes

precisos. Os três desapareceram, minutos depois, deixando Patch e

Nora sozinhos, com o deprimente céu do ocaso.

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Quando voltei a mim, Patch me segurava com força, e eu podia sentir

seu coração bater irregular. Ele murmurava a mesma frase sem parar

“Vai ficar tudo bem,” como que precisando reafirmar aquilo para si

mesmo. Eu sentia uma dor terrível na cabeça, onde tinha sido

golpeada pela vadia do anjo da morte, e desde então não tinha visto

nada. Mas, olhando para o cenário, imaginei que as coisas não

tinham sido muito boas.

Depois que me soltou, Patch entrou em colapso no chão. Pude ver o

ferimento horrível que ele tinha na perna, e compreender a extensão

do que ele tinha passado. Eu não sabia direito onde estávamos, mas

acabei identificando um depósito antigo próximo do distrito

industrial. O lugar do meu sonho, o sonho em que achei que Patch

fosse o monstro que queria me matar – enquanto ele era meu

salvador. Meus dedos vacilaram, mas consegui pegar o celular e ligar

para a emergência. Patch continuava a balbuciar que tudo ficaria

bem, em um estado assustador de semiconsciência.

A ambulância do socorro médico chegou rápido, mas não rápido o

bastante. Eu estava nervosa, ansiosa, em pânico. Patch estava mole

nos meus braços, e eu não fazia ideia de tudo que tinha acontecido.

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Pensei que ele tivesse matado Dabria – apesar de não haver vestígio

algum dela. Eu não sabia o que acontecia com anjos quando eles

morriam – nem se eles eram capazes de morrer. Mas ela não estava

ali, nós estávamos soltos, e eu queria acreditar no que ele dizia, que

ia ficar tudo bem. Esperei sinceramente que, daquela vez, os

remédios humanos fizessem alguma diferença para ele. E que

ninguém resolvesse tocar naquela cicatriz.

No hospital, depois que me colocaram no pronto atendimento à

espera de um médico, liguei para Vee. Não queria envolver minha

mãe naquilo antes de pensar no que eu contaria para ela. Minha

amiga já sabia a verdade, e considerando que ela estava comigo

quando eu desapareci, ela deveria estar desesperada. Não vi para

onde levaram Patch, nem prestei atenção no residente que apareceu

para fazer um curativo na minha cabeça. Menti descaradamente,

dizendo que tínhamos sido vítimas de um assalto, e que Patch fora

agredido porque reagiu. Ouvi um sermão sobre como era perigoso

reagir a assaltos enquanto o residente me anestesiava e costurava

alguns uns pontos em mim. Vee chegou em seguida, acompanhada

do seu novo escudeiro, Rixon.

— Nora Grey, você quer mesmo nos matar do coração! – Ela falava

alto demais, para um hospital. – Graças a Deus você está bem!

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— Onde está Patch? – Rixon estava preocupado.

— Não sei, levaram ele daqui. Deve ter ido para a cirurgia. Ele pode

ser operado?

— Se ele precisa, então é porque ele pode. – Rixon demonstrava

apreensão, mas eu não sabia se era pelo tratamento ou pela

possibilidade de não recuperação do amigo. – O que houve, como

vocês se livraram de Dabria?

— Eu não sei, ela me bateu na cabeça e eu fiquei desacordada.

Quando recuperei os sentidos, Patch tinha acabado de me soltar e

estava em choque. Eu acho que ele a matou.

— Improvável. – Rixon coçou o queixo. – Um anjo caído não mata um

anjo da morte.

— Os arcanjos? – Arrisquei.

— Talvez. Quando Patch puder nos dizer, tenho certeza que ele

contará a história toda.

Eu não ficaria satisfeita em esperar, porque eu precisava saber o que

estava acontecendo com Patch. O residente terminou de me costurar

e me mandou repousar. Recebi algumas pílulas para dor, mas eu não

estava sentindo nada. Incitei Vee para saber alguma coisa, quase

implorei para que ela fosse até a recepção buscar informações. Ela

não queria me deixar sozinha, mas eu expliquei que, não importava o

que tivesse acontecido, Dabria tinha ido embora. Fomos informados

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que Patch estava mesmo em cirurgia, mas que estava tudo bem e que

poderíamos vê-lo tão logo ele fosse para um quarto. Eu recebi a

liberação do médico meia hora depois, e decidi manter a versão do

assalto. Liguei para minha mãe, que estava em casa, e tentei ser

bastante eufêmica quando contei o que tinha havido.

Uma das graças em se apaixonar por um anjo é imaginar que ele não

pode se ferir, que ele é imortal, que você nunca vai sofrer com ele o

que sofreu com seu pai – você nunca vai perdê-lo. Então, ver Patch

deitado na cama de hospital, sedado, com tubos em seu nariz, tubos

em seu braço, e monitores dos seus batimentos cardíacos, foi uma

cena chocante. O médico disse que estava tudo bem, que o objeto que

tinha transpassado sua perna não tinha atingido nada além de

músculos, e que ele se recuperaria logo. Mas o que meus olhos

enxergavam era alguém debilitado, e eu não esperava vê-lo daquela

forma, nunca.

Sentei-me ao seu lado, na cama, e acariciei sua face. Meu ferimento

começou a doer, mas eu ignorei. Havia coisa mais importante para

lidar do que a minha dor egoísta. Ele piscou os olhos, e abriu o

esquerdo. O direito estava tão inchado, as pálpebras não se moveram.

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— Como você se atreve a fazer isso comigo? – Protestei, tão logo o

percebi consciente.

— Anjo. – Ele disse, e seus batimentos cardíacos aceleraram. – Onde

estou? Você me trouxe para o hospital?

— Claro, o que queria que eu fizesse? – Eu passava os dedos por seus

cabelos, envolvendo-os nos cachos mal formados. – Ainda bem que

aquele anjo da morte...

Antes que eu continuasse, Patch levantou o dedo, com alguma

dificuldade, e me selou os lábios.

— Não vamos falar disso, agora.

— Está bem. Mas vamos falar disso, algum momento.

— Sim, vamos. Como você está, anjo?

— Eu estou bem. Com dor de cabeça, mas bem.

Patch ajeitou-se na cama. Ele não pareceu habilidoso com os tubos, e

foi a primeira vez que vi Patch não saber lidar com alguma coisa. Ele

me olhou, por longos instantes, com olhos tensos e desesperados. Era

como se o fim daquela tortura ainda não estivesse próximo; como se

alguma coisa ruim ainda estivesse por acontecer. Sua mão enfaixada

tocou minha face, e ele sorriu. Depois, repousou-a no meu ventre, eu

entendendo que ele precisava descansar os músculos.

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— Quando eu sair daqui, Nora, precisamos conversar. – As batidas do

seu coração aceleraram ainda mais. Senti apreensão.

— Não sei se gosto desse tom. – Franzi a testa.

— Está tudo bem, anjo. – Ele segurou minha mão e a beijou. – Vai

ficar tudo bem.

Fazia alguns dias que eu não via Patch. Ele foi liberado do hospital

três dias depois do nosso encontro com Dabria, quase recuperado. A

mão quebrada levaria algum tempo para consolidar, e ele mancava

com a perna operada. Fora isso, e alguns arranhões e manchas roxas,

ele estava perfeito. Diverti-me sendo compelida a dirigir o Jeep,

porque ele não podia fazê-lo. Só que Patch não quis ir para minha

casa, ele pediu-me para deixá-lo com Rixon, no Delphic.

Achei aquela atitude estranha, juntando com o fato de que ele disse

que precisávamos conversar. Aquela frase, “precisamos conversar,”

era típica de fins de relacionamento – ou de problemas insolúveis.

Foi a mesma que eu disse a Scott quando terminei com ele, no dia

seguinte à minha primeira vez com Patch. Eu duvidava que Patch

quisesse terminar comigo, porque não parecia que estávamos nesse

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nível. Nós nos adorávamos – e ele não fazia questão de esconder que

me amava. A volta das minhas memórias era o que faltava para nosso

relacionamento ser pleno. Então, não podia ser aquilo. Era algo

diferente, tinha que ser. Só não fazia ideia do que, e fiquei

martelando aquela dúvida dentro de mim por algum tempo. Vee

disse que não conhecia ninguém que tivesse se sacrificado tanto por

outro alguém, e que, por mais esquisito que ele parecesse, ele

deveria me amar.

Em poucos dias eu teria que retornar a Portland para o início do

semestre letivo – meu penúltimo, na universidade. E eu precisava

saber o que estava acontecendo. Era noite, uma linda e clara noite de

verão, com as estrelas saltitando no céu e a lua cheia amarela

enfeitando sobre nossas cabeças. Eu e mamãe estávamos jogando

buraco, algo que não fazíamos havia muito tempo, quando ele tocou

a campainha. Foi a primeira vez que vi Patch usar algo que não fosse

preto – ele estava com uma camisa polo verde escura, jeans claros e

sapatos. Nenhum coturno, nenhuma corrente, nada com caveiras ou

dizeres macabros. Os cabelos estavam mais curtos – ele tinha

eliminado os cachos que eu tanto adorava, penteados

cuidadosamente.

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— Boa noite, Blythe. – Ele disse, sorrindo, para minha mãe. – A Nora

está?

— Claro, Patch. Entre. Como você está?

— Ainda avariado. – Ele exibiu a mão e a faixa recém-trocada. – Mas

bem melhor, obrigado.

Eu estava apreensiva, como se aquela fosse a primeira vez que eu o

via. Mancando, ele veio até mim, segurou-me pela nuca e beijou

meus lábios, sem importar-se se mamãe assistia ou não. Só quando

ouvimos o pigarro usado para limpar a garganta e chamar a atenção

que nos demos conta que tinha mais gente na sala.

— Quase morri de saudades. – Ele sussurrou em meus ouvidos. – Você

pode vir comigo, por favor?

— Depende. – Ergui uma sobrancelha. – Eu preciso trocar de roupa?

Patch afastou-se e me olhou. Eu usava um short de moletom velho e

uma camiseta branca esfarrapada. Sem sutiã.

— Eu gostaria que não precisasse. – O sorriso dele dizia mais do que

palavras. – Mas sim, é melhor você vestir alguma coisa mais

apropriada para o convívio em sociedade.

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Subi correndo as escadas, sem preocupação em deixar Patch com

minha mãe. Eles tinham que aprender a se gostar. E, depois que

contei a ela que ele me salvou de bandidos furiosos, ela passou a

respeitá-lo. Qualquer homem que quase morresse para salvar a sua

filha era bem visto. Os dois conversaram bastante, enquanto eu

decidia por um vestido de alças ou o básico. Lembrei-me do que

Patch vestia e optei pelo vestido, que demarcava algumas partes do

meu corpo que eu não gostava, mas que me permitia exibir as longas

pernas. Eu sabia que Patch adorava me ver usando vestidos. Era uma

boa oportunidade.

Ele estava com o Jeep, e eu não sabia se deveria deixá-lo dirigir. Mas

ele tinha chegado até ali, então talvez ele estivesse mesmo se

sentindo melhor a ponto de poder acelerar o carro. Disse a minha

mãe que voltaria quando fosse possível – se fosse possível, e pedi que

ela não me esperasse. Eu era adulta o suficiente para não ter mais

horário para chegar em casa. Patch não falou nada enquanto guiava

pelas ruas escuras de Coldwater. Paramos em um restaurante

elegante que ficava no centro; um lugar que eu nunca tinha ido. Não

podia dar-me ao luxo de comer em restaurantes chiques quando eu

mal podia pagar as contas.

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Patch tinha reservas. Fomos levados a uma mesa reservada e nos

entregaram o cardápio. A garçonete sorriu para ele e nos deixou a

sós.

— Então, viemos jantar. – Eu sorri, olhando os pratos.

— Sim, viemos. – Patch chamou a garçonete e pediu duas bebidas.

Para mim, ele pediu um coquetel sem álcool, enfatizando essa parte.

— E você não pretende me ver bêbada, essa noite. – Dei uma risada

nervosa. Eu estava nervosa.

— Não é isso, anjo. – Ele segurou minhas duas mãos, por cima da

mesa. – Nora, eu tenho algo muito sério para te dizer, e você precisa

prestar muita atenção em mim. Porque pode ser que, depois que

você souber de tudo, você nunca mais queira me ver.

— Você está me deixando ansiosa. – Engoli minha própria saliva.

— Eu sei. Desculpe-me. – Ele baixou o olhar, e parecia que ele tinha

mesmo algo difícil para falar. – O que eu quero dizer é que você tem

o direito de saber o que houve quando perdeu suas memórias.

19 – MORTALIDADE

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Senti um calafrio me percorrer a coluna.

— E você pode me contar, agora?

— Sim, eu posso. Se isso não te fizer odiar-me... talvez seja essa a

razão dos arcanjos me autorizarem.

— Patch. – Pressionei os dedos dele entre os meus. – Diga logo o que

você tem para dizer, eu estou ficando ansiosa demais.

As bebidas chegaram. Patch fez o pedido e dispensou a garçonete

mais uma vez.

— Está bem. Quando eu e você começamos a nos relacionar, isso era

errado. Não que eu me importasse, mas era errado. Eu fiz tudo

errado ao tentar aproximar-me de você; eu manipulei pessoas, eu

entrei na sua mente, eu fiz com que os caminhos se abrissem para

mim. Eu praticamente forcei você a se interessar por mim.

— Não é isso que me lembro. – Fiz um bico.

— Mas foi assim, Nora. Eu preciso ser sincero. Você acabou se

apaixonando por mim, e isso foi verdadeiro, ou você não se

lembraria. Mas, inicialmente, eu forcei.

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Patch bebeu um gole do refrigerante que ele pediu. Refrigerante. Eu

não tinha visto Patch beber refrigerante na minha frente ainda – era

sempre algo alcoólico.

— E? – Eu queria que ele prosseguisse.

— E que os arcanjos não gostaram. Uma noite eles vieram me ver, e

demonstraram insatisfação com minha conduta. Eu não dei a mínima,

afinal não havia mais nada que eles pudessem fazer comigo – eu era

um anjo caído e eles não tinham autoridade sobre mim. Mas então

Azrael veio com uma proposta irrecusável. Se eu me afastasse de

você, se eu aceitasse participar de um jogo, eu poderia ter, ao final,

minha humanidade.

Ele fez outra pausa. Percebi que falar daquilo era difícil.

— E você me trocaria por sua humanidade?

— Não. Eu só teria a humanidade se tivesse você. Eles queriam que eu

provasse que era capaz de mudar, de ser uma boa pessoa. Eles

queriam que eu me sacrificasse. Eu teria que me afastar totalmente

de você, e esse afastamento teria que ser sincero. Eu só poderia ficar

com você de novo se, e somente se, você encontrasse seu caminho

até mim. Eu não podia me aproximar de você; você tinha que me

redescobrir.

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— Mas como isso funcionaria, Patch? – Meu coração estava disparado.

– Quero dizer, eu te amo. Eu não lembraria que te amo?

— Você lembraria. Por isso, eles apagaram suas memórias.

— Os arcanjos apagaram minhas memórias? – Era difícil de acreditar.

— Sim. – Patch olhou para a mesa. – Eu estava com você, segurando a

sua mão. Você não sabia o que aconteceria. Eu nunca traí ninguém

dessa forma. Eu sinto muito, o meu egoísmo, meu desejo de me

tornar humano, me cegou. Eu queria você, Nora. Eu precisava de

você, e eu acreditei que, tornando-me humano, seria mais digno de

você. Então eu aceitei a proposta, eu participei de tudo, e eu

mantive-me longe de você. Mas eu trapaceei, e muito.

— As pistas que você me deu. – Lembrei-me.

— Exatamente. Mas foi uma trapaça branca; afinal você já estava em

Coldwater e você já tinha me reencontrado. Depois que você se

mudou para Portland, eu coloquei em prática meu plano de ser

melhor. Libertei Chauncey, porque eu não queria mais um vassalo

Nefilim. Ou eu teria você como eu era, sem sentidos, sem máscaras,

ou eu teria você como humano. Mas eu não teria você através de

outro, nem teria outras mulheres. Eu não queria outras mulheres. Eu

esperei por você. Você demorou tanto! Mas eu esperei,

pacientemente.

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Se ele achava que aquela informação me faria desistir dele, ele não

poderia estar mais enganado. Apesar do horror de ter as memórias

tomadas à força, eu não podia negar que Patch fez aquilo por amor.

Eu o iria preferir com os sentidos – eu o iria preferir humano. Então,

eu não tinha o direito de julgá-lo. Ou julgar as suas atitudes.

— Eu ainda te amo. – Disse, beijando seus dedos. – Eu preciso

entender o que levou você a fazer isso. Eu acho que posso entender.

Mas... você vai conseguir a sua humanidade?

Os olhos de Patch se transformaram subitamente. Ficaram sombrios

e fechados, e sua expressão enrijeceu-se.

— Não. – Ele respirava devagar. – Os arcanjos mentiram para mim.

— Mas, você já não está sentindo? Quero dizer, você ainda tem seus

sentidos, certo? – Choquei.

— Sim, como nunca antes. Mais apurados do que de qualquer

humano.

— Então, estou confusa.

— Foram os arcanjos que salvaram você, Nora. – Ele confessou, e

aquilo pareceu doloroso para ele. Seus olhos estavam caídos, fixos na

toalha da mesa. – E eles me contaram o preço que você teria que

pagar por eu ter sido tão ingênuo de acreditar neles. Quando

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estávamos capturados por Dabria, Rafael e Azrael vieram nos

resgatar, e fiquei sabendo que você não é tão preciosa para eles como

eu pensei. Eles queriam você porque precisavam purificar a raça –

eles estão idealizando uma raça. Uma raça de filhos de anjos capaz de

viver na Terra e lidar com os demônios, uma raça de lutadores.

Nunca existiu isso antes do seu nascimento, e eles planejaram

aprimorar você. Eles me deram tudo que eu queria porque, assim, eles

teriam o que queriam, também.

— Isso parece coisa que se faz com cachorros. – Fiz uma careta. – Eles

cruzam animais de raças diferentes, tentando obter uma raça melhor.

— Foi exatamente isso que eles fizeram, anjo. – Uma lágrima caiu por

sobre a toalha. Meu coração parou de bater, enquanto levei minha

mão até a face de Patch. Meu dedo limpou sua bochecha úmida. Eu

nunca tinha visto Patch chorar.

— Mas... Patch, eles estão enrolando você. Eu nunca cruzei com

ninguém. Credo, que pensamento horrível! Mas é verdade; como eles

poderiam pensar nessa história de melhorar a raça se você foi o

único homem que eu tive, e continuará sendo enquanto você me

quiser?

Os olhos vermelhos de Patch, somados à sua expressão de derrota,

responderam minha pergunta.

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— Eles pretendem que nós tenhamos um filho. – A afirmativa soou

estranha.

— Eles não pretendem. Nós vamos ter um filho.

Aquela afirmativa soou completamente errada. Engasguei com o

coquetel que estava bebendo, e quase dei uma risada alta demais. Eu

não fiquei chocada, porque era tão absurdo de se considerar o que

Patch tinha acabado de dizer que eu me recusava a enxergá-lo

diferente de uma brincadeira. De péssimo gosto.

— Você está grávida, Nora. – Ele repetiu a informação, ante minha

incredulidade.

— Não estou, não! – Protestei, puxando a mão. – Eu saberia, se

estivesse! Como você pode saber?

— Os arcanjos sabem. Se eles sabem, é porque é verdade.

— Eles te contaram isso? – Arregalei os olhos. A comida tinha

acabado de chegar. O aroma delicioso do espaguete com manteiga de

ervas me embrulhou o estômago. – Eles disseram que vou ter um

filho, eles planejaram isso?

— Sim, anjo. – Outra lágrima escorreu dos olhos de Patch, mas

daquela vez não fiz nada. – Eu sou um arcanjo; mesmo caído, eu sou

mais do que um anjo qualquer. Eles se aproveitaram dos meus

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sentimentos irracionais para produzir a criança que eles queriam – o

filho de um arcanjo com um Nefilim igual a você.

Levantei-me subitamente, e senti o mundo girar. Foi outra volta de

cento e oitenta graus, mas daquela vez ele não queria parar. Girou

outra vez, e mais uma terceira vez. Sem dizer nada, cambaleei até o

banheiro feminino. Ouvi Patch dizer qualquer coisa para a garçonete,

mas não prestei atenção. Entrei no banheiro, fechei a porta, e apoiei-

me na bancada. Olhei-me no espelho, e o mundo ainda girava. Senti

uma vontade terrível de vomitar, e ajoelhei-me na frente de

qualquer sanitário, deixando que meu estômago se esvaziasse. Era

como eu reagia quando a informação era demais para meu corpo

suportar – eu a colocava pra fora junto do meu suco gástrico. Senti

um par de mãos segurando meus cabelos, mas continuei não

prestando atenção.

— O que você está sentindo? – A pergunta doeu em meus ouvidos. Eu

não queria que Patch me visse daquela forma, mas era inútil.

— Você tem certeza que está me perguntando isso? – Dei uma risada

baixa, levantando-me devagar. Eu estava zonza, e fui tropeçando em

mim mesma até a pia, para lavar o rosto e a boca. – Aliás, o que você

faz em um banheiro feminino?

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— Nunca tive problemas para entrar nos banheiros femininos. – Ele

sorriu, mas minha expressão não se modificou. – Você precisa ver

um médico?

— Eu estou bem, Patch. Fisicamente, estou ótima. Mas eu

provavelmente preciso ver um médico, você não acha? – As palavras

saíram como flechas, de minha boca. Eu queria falar com ele daquela

forma, eu queria ser rude o suficiente.

— Nora, se eu soubesse que havia a possibilidade de você engravidar,

você acha que eu não teria tomado alguma precaução? Eu sou um

anjo caído, eu não deveria nem sentir você, quanto mais isso! Posso

ter sido um tolo egoísta e apaixonado, mas eu jamais planejei ter um

filho com você.

— Ah, agora ter um filho comigo é péssimo. – Enxuguei a face com

papel toalha e recostei-me na bancada, ficando de frente para Patch.

Ele estava completamente transtornado, era possível ver isso em

seus olhos.

— Não é péssimo! – Ele passou os dedos pelos cabelos. – Eu só estou

pensando em você, anjo. Céus, eu tentei ser melhor, tentei mudar,

tentei ser merecedor do seu amor. Eu abri mão do que eu era por

você. E era fácil ser o Patch, Nora! Era muito fácil. Eu não tinha

responsabilidades, eu não tinha compromissos, eu nem precisava

trabalhar! Eu era um nômade, não me preocupava com nada além de

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mim. Mas isso não é bom. Eu não queria mais ser assim. Eu não sou

mais assim, por você.

Ele segurou minhas mãos, as ataduras vibrando porque ele tremia.

Eu baixei o olhar, sentindo ainda o estômago revolto. Minhas pernas

amoleceram e precisei sustentar-me com os braços.

— Você quer voltar para seu jantar?

— Não estou com fome. – Menti.

— Pedi que embrulhassem a comida. Quer ir para casa?

— Não. – Minha voz era apenas um eco profundo; quase silenciosa.

— Quer ir para a minha casa?

Ergui os olhos e ele tinha o semblante preocupado. Balancei a cabeça

para frente e para trás, concordando, e ele me segurou pela cintura e

saiu comigo do banheiro. Ele estava mancando e provavelmente

sentindo dor, mas sustentou meu peso da melhor forma que pode,

enquanto atravessava o salão comigo. No meio do caminho, ele

parou para pagar a conta e pegar a comida para viagem. Ele estava

totalmente diferente do Patch que eu me lembrava. Do homem

malcriado e cheio de respostas afiadas, do homem que só pensava em

si mesmo e no que queria. Aquele Patch era novo, talvez surgido para

conviver com a nova Nora.

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Fizemos mais uma pequena viagem em silêncio, que terminou

quando ele estacionou o carro no Delphic. Nós não deveríamos ir

para a praia, e tentei imaginar onde afinal Patch estaria me levando.

Ele morava no parque de diversões? Não, claro que não. Ele morava

no alojamento do zelador, que ficava escondido atrás do Arcanjo.

Bastante sugestivo – eu deveria ter suspeitado. Subimos um pequeno

lance de escadas e entramos por uma porta cinzenta que Patch abriu

com uma chave que ficava pendurada em um chaveiro preso ao cós

de seus jeans. Eu nunca tinha percebido aquela chave ali, talvez ela

nunca estivesse ali.

Com as luzes acesas, a morada de Patch era simples e suficiente. Para

quem passava a maior parte jogando e bebendo, não era preciso de

mais que um apartamento cozinha/quarto/banheiro. Havia uma

cama no canto direito, uma cômoda antiga e dois sofás. Uma porta

deveria levar ao banheiro, e a bancada, que ficava exatamente à

frente da porta, indicava que por trás dela estava a cozinha. Ele tirou

algumas roupas que estavam por sobre a cama e abriu a única janela.

O calor estava intenso e nauseante.

— Sente-se. Deite-se. Você quer água? – Ele foi até a minicozinha,

enquanto eu reconhecia o espaço. Aceitei a água com outro

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movimento de cabeça, sem me preocupar se ele estava vendo ou não.

Patch sempre sabia o que eu queria. Voltou com água gelada em um

copo de vidro e me entregou.

— Eu cheguei a achar que você morasse no Bô. – Falei, sentando-me

na cama. Ele afundou em um pequeno sofá vinho. – Não imaginei que

fosse no Delphic.

— O Delphic pertence aos anjos caídos. – Ele contou. E mudou

totalmente de assunto. – Eu levei uma semana pensando em como

contar isso tudo a você. Pensei em deixar que você descobrisse por si

só, daqui a um tempo, quando seu corpo se modificasse. Mas essa

seria uma atitude do “eu” anterior; seria mais fácil.

— Você tinha que ser honesto comigo. – Torci os lábios.

— Totalmente honesto. Por isso ofereci trazer você aqui, hoje. Para

você não perder nenhuma parte de quem eu sou. Você pode me

dispensar, Nora. Mas precisa fazer isso sabendo de toda a verdade.

— Por que eu dispensaria você, Patch? – Falei, finalmente. – Você

acha que é assim, que meus sentimentos são iguais a um interruptor,

que posso ligar e desligar? Eu te amo, você entendeu bem essa parte?

— Claro que entendi. – Ele tinha um pequeno sorriso diabólico nos

lábios. – Mas eu não sabia como você reagiria a mais um golpe – mais

uma perturbação na sua vida por culpa minha.

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— Ter filhos é uma coisa natural. – Movi os ombros. – Mulheres que

têm vida sexual ativa e que não se previnem correm esse risco.

Poderia ter sido com você ou com qualquer outro.

Patch avançou sobre mim, sentando do meu lado, selando meus

lábios com um dedo indicador.

— Não, não com qualquer outro. – Ele sussurrou. – Nem o Patch

altruísta poderia dizer que ele não ficou muito feliz em ter sido o

primeiro homem da sua vida, Nora Grey. Eu também estou muito

feliz que seu filho será meu. Mesmo com os efeitos colaterais que isso

possa ter – eu estou muito feliz, agora.

— E o que você pretende fazer quanto a isso? – Ergui uma

sobrancelha. – Foi meio repentino; nós estamos juntos há tão pouco

tempo.

— Nós estamos juntos há muito tempo, anjo. Agora você se lembra.

Ficamos afastados, mas nossos sentimentos não mudaram.

— E o que isso significa?

— Significa que farei tudo que deve ser feito. O que você acha que fiz

durante quatro dias, enquanto eu tomava coragem para te contar a

verdade?

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— Não faço ideia. – E era sincero. Patch puxou outra chave do seu

bolso – e aquela provavelmente nunca tinha estado ali. Colocou na

minha mão, e fechou meus dedos em volta dela.

— Um apartamento em Portland. Dois quartos, próximo à

universidade, tem uma varanda ótima.

— Você comprou um apartamento? – Arregalei os olhos, assustada.

Ele estava rindo, e eu quis beijá-lo ali mesmo e esquecer qualquer

coisa.

— Não, eu ganhei. Tem poucas coisas em que eu sou bom, uma delas

é poker. – Ele gargalhou. – É um ótimo apartamento, eu já o vi. Só

precisa de decoração, mas acho que você pode fazer isso. É um

problema para sua mãe, você sair de casa?

— Eu já não moro exatamente com ela há três anos. – Fiz uma careta.

– Mas, isso ainda é muito confuso. O que você pretende, afinal?

— Eu pretendo amar você até o último de meus dias. – Ele beijou

meus lábios rapidamente. – O resto é consequência.

Era impossível não estar confusa – completamente confusa – com

tudo que eu passei naquele verão. Eu descobri segredos bizarros

sobre minha origem, descobri que os anjos têm especial interesse em

mim; descobri que amava um anjo caído e quase fui morta por um

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anjo da morte. Fazia sentido, pensar daquela forma. Quem mais

poderia matar-me, que não o anjo da morte? E, como golpe de

misericórdia, eu descobri que estava grávida – e que meu filho era

um tipo de ser purificado conforme os interesses dos arcanjos que

baniram Patch do céu. Os mesmos que decidiram abençoá-lo e torná-

lo mortal.

Patch não tinha deixado de ser sobrenatural. Ele era mortal, quase

humano. Mas sua sobrenaturalidade permanecia. Ele ainda tinha as

enormes marcas das asas arrancadas, e eu tive certeza que os

arcanjos tinham deixado aquilo ali para lembrá-lo do que ele

realmente era. Um anjo caído. Um renegado. De qualquer forma, eles

perderam o interesse em nós. Não havia mais risco porque os

arcanjos não queriam nada de mim até que meu filho nascesse – e

então nós precisaríamos descobrir o que eles queriam com ele. Não

que eu estivesse interessada em permitir que eles o levassem, ou que

eles o transformassem em uma arma. Mas, afinal, ele teria que seguir

seu destino.

Minha mãe recebeu a notícia da minha condição com alguma

incredulidade – e eu pude até mesmo ver o desespero em seus olhos.

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— Você vai ter um filho. – Ela repetiu a frase, pela quinta vez.

Estávamos na sala, Patch segurava tranquilamente a minha mão,

enquanto conversávamos. Ele parecia nunca ficar nervoso ou ansioso,

sempre natural.

— Nós vamos. – Ele corrigiu-a, também pela quinta vez.

— E vão morar em Portland.

— Nora já mora em Portland, Blythe. – Patch considerou. – Só estou

proporcionando a ela melhores condições durante a gravidez. Ficar

em um dormitório de universidade é uma péssima escolha para ela.

— E você vai garantir que ela esteja bem cuidada? – Minha mãe

encarou Patch. – Vai morar com ela, vai estar com ela sempre que ela

precisar?

— Com certeza, eu vou. – Patch sorriu. – Não haveria outra razão

para eu fazer o que estou fazendo. Eu amo Nora, e vamos fazer isso

dar certo, juntos.

— Vocês são tão jovens.

— Somos velhos o suficiente. – Eu disse, com um sorriso. – Não

precisa se preocupar, mãe. E você pode me visitar quando quiser.

Não pode?

— Claro que sim. – Patch deu uma risada.

Vee fez bastante escândalo – tanto porque eu seria mãe quanto

porque eu me mudaria do dormitório. Ela precisaria dividir o quarto

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com outra pessoa, uma pessoa desconhecida, e aquela hipótese, para

Vee, era aterrorizante. Eu não podia julgá-la, porque eu também não

aceitaria muito bem morar com um desconhecido. Já com Patch,

aquilo seria perfeito. Eu não pretendia mudar quem ele era, mas ele

já parecia bastante diferente. Eu estava diferente. Tive certeza que

ele continuaria jogando, fumando, e que aquele estilo de vida que ele

levava não era de todo ruim; era parte do que eu adorava nele.

Meu conto de fadas não era nada tradicional, e eu nem esperava que

fosse. Minha vida de filha perfeita na família perfeita acabou quando

meu pai foi assassinado, e eu passei a enxergar o mundo como ele era

– ou deveria ser. Eu deixei de ser uma garota, e tornei-me mulher. Eu

não precisava de um homem que ganhasse muito dinheiro ou que

tivesse um emprego estável para me garantir estabilidade; eu

aceitava que ele me passasse essa sensação em casa, em seus braços,

em suas palavras. Eu não precisava me casar; eu percebi que nunca

fiz a menor questão daquilo. Quando coloquei os pés no apartamento

que Patch escolheu para nós, eu entendi que nada que ele fizesse

poderia significar mais do que aquilo.

E, quando eu entrei no quarto que ele tinha preparado para nosso

filho, eu tive certeza que nunca alguém poderia amar como eu o

amava. A intervenção dos anjos não nos separou. Ele querer me

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matar não nos separou. A falta de sensações físicas não nos separou.

A minha estupidez não nos separou. No final de tudo, a verdade era

apenas uma. Eu estava naquele mundo para me apaixonar por Patch,

e ele estava naquele mundo para mim, apenas para mim. Nunca

houve uma velha Nora – havia a Nora antes do Patch. Também nunca

houve uma nova Nora – havia a Nora sem o Patch. Aquela nova

concepção minha era quem eu realmente deveria ser. Completa.

EPÍLOGO

O homem tinha asas enormes, de penas brancas, macia como o

veludo. Os cabelos claros cacheados caíam pelos ombros, em um

corte despretensioso e ousado. Havia um sorriso gélido em seus

lábios pálidos; um sorriso de vitória. Ele se aproximou do berço de

madeira branca e admirou, por alguns instantes, a criança que

dormia serena.

Sem pensar muito mais, o homem estendeu os braços e segurou a

criança em suas mãos. O bebê acordou confuso, não identificando

quem o tocava, e iniciou um choro lamentoso e agudo. O homem

levou um dedo aos lábios, indicando que o garotinho deveria ficar

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em silêncio – mas de nada adiantou. Antes que ele pudesse sair dali

com o bebê, uma porta se abriu e a claridade inundou o quarto.

— O que você está fazendo? – Patch arregalou os olhos, assombrado,

ao ver Azrael segurando o pequeno Gabriel nos braços. O bebê

chorou mais alto quando o viu, mas ele tinha os músculos travados e

rígidos.

— Eu vim buscá-lo, Jev. – Azrael confessou, tentando acalentar o

menino. – Você não achou que poderia ficar com ele, achou?

— Ele é meu filho. – Patch rosnou. – Você não se atreveria a...

— Ele é seu porque nós permitimos. Nada que você tem hoje é seu,

Jev. Tudo foi obtido pela nossa bênção – e o que podemos dar,

podemos tirar. Você sabe disso, é um anjo inteligente.

— Ele é apenas um bebê. – Patch respirava com dificuldades.

— Os arcanjos cuidarão bem dele.

Azrael disse, e saiu pela janela aberta, desaparecendo na noite morna.

Patch correu, gritando, estendendo os braços, tentando recuperar

Gabriel. Acordou suado, arfando, com lágrimas escorrendo de seus

olhos, o coração batendo em velocidade incompatível com a

madrugada. Ele olhou em volta, percebendo o local, visualizando seu

quarto, escuro, silencioso. Ao seu lado, Nora dormia, relaxada. Patch

tateou pela cama até tocar-lhe o ventre expandido com a mão

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espalmada. O bebê chutou, movendo-se dentro da barriga da mãe. A

mão quente de Nora segurou a de Patch, com os dedos carinhosos.

Ele virou-se na cama, e acariciou seus cabelos até que ela pegasse no

sono novamente. Ele já estava ficando cansado daquele sonho –

talvez o menino não devesse chamar-se Gabriel. De anjos, ele já

estava farto.