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Férias Com Um Casal Amigo - Ricardo Adolfo

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Lista de autores, por ordem de saída dos contos:

Pedro Paixão |  João Tordo | Rui Zink | Luísa Costa Gomes | Eduardo Madeira | Inês Pedrosa

Afonso Cruz | Gonçalo M. Tavares | Manuel Jorge Marmelo | Mário de Carvalho

Dulce Maria Cardoso | Pedro Mexia | Fernando Alvim | Possidónio Cachapa | David Machado

 JP Simões | Rui Cardoso Martins | Nuno Markl |  João Barreiros | Raquel Ochoa |  João Bonifácio 

David Soares | Pedro Santo | Onésimo Teotónio Almeida | Mário Zambujal | Manuel João Vieira

Patrícia Portela | Nuno Costa Santos | Ricardo Adolfo  | Lídia Jorge | Sérgio Godinho

Para aceder aos restantes contos visite: Biblioteca Digital DN

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Contos Digitais DN 

A coleção Contos Digitais DN é-lhe oferecida pelo

 Diário de Notícias, através da Biblioteca Digital DN.

Autor: Ricardo Adolfo

Título: Férias Com Um Casal Amigo

Ideia Original e Coordenação Editorial: Miguel NetoDesign e conceção técnica de ebooks: Dania Afonso

ESCRIT’ORIO editora | www.escritorioeditora.com

© 2013 os autores, DIÁRIO DE NOTÍCIAS, ESCRIT’ORIO editora

ISBN: 978-989-8507-34-1

Reservados todos os direitos. É proibida a reprodução desta obra por qualquer meio, sem o consenti-

mento expresso dos autores, do Diário de Notícias e da Escrit’orio editora, abrangendo esta proibição

o texto e o arranjo gráfico. A violação destas regras será passível de procedimento judicial, de acordo

com o estipulado no Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos.

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sobre o autor

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Ricardo Adolfo

Nasceu em Luanda, em 1974. Viveu nos arredores de Lisboa, Macau, Amesterdão

e Londres. De momento vive em Tóquio, onde divide o seu tempo entre a escrita e

a publicidade. Na sua obra, conta com os romances Depois de morrer aconteceram-memuitas coisas  (2009) e Mizé (2006 – traduzido para diversas línguas), o livro de contos

Os chouriços são todos para assar  (2003) e o livro infantil Os monstrinhos da roupa suja  

(2011). Em 2013 será publicado o seu novo romance Maria dos Canos Serrados .

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Férias Com UmCasal Amigo— • —

Ricardo Adolfo

Carregada com quinze dias de férias, a Passat de Rui e Fernanda seguia perseguida

pela Octavia de Fábio e Daniela, igualmente cheia de férias e de um agregado familiar

idêntico. Os dois casais amigos fizeram a segunda circular na faixa da direita a degustar

o pré-momento, aquele em que se sabe que se está lá quase, quase, mas ainda falta umnadinha de nada. As férias estavam prestes a começar. Há vários anos que mantinham

esta tradição, e por mais que os emissários dos povos do frio lhes dissessem que não mais

poderiam ir de férias porque não tinham como as pagar, eles não concordavam. As férias

no Brasil eram um direito que ninguém lhes poderia extorquir. Podiam assaltar-lhes os

subsídios, os ordenados, os feriados, os ivas, agora o fim de ano na praia não tinha como

ser taxado. Eles não eram menos. O sol quando nascia em Porto Galinhas não era só

para os louros, altos e ricos. Era para quem conseguisse lá chegar com o cartão tapado

ou destapado.

Nos vinte e dois quilómetros de IC, Rui fez as contas ao que já tinha ganho comas férias marcadas por si. Só em viagens ganhara quase dois mil euros, hotel uns mil

e quinhentos e refeições pelo menos quinhentos, se calhar um pouco mais. No total

eram cerca de quatro mil euros em caixa e as melhores férias de sempre à sua espera.

Ao seu lado, Fernanda trocava de posição num sonho com Christian. Na carrinha de

trás, Fábio voltou a questionar-se sobre as férias com o casal amigo. Mas como Rui

sabia quase sempre mais deixou a quinta continuar na sua vidinha. Por algum motivo,

Rui era também seu director e conduzia uma montada mais cara do que a sua. Daniela

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lembrou-se de que não tinha arrumado os fatos de banho na mala. Embora não fosse

provável que alguém desse por isso.

Em frente à garagem Rui puxou o travão de mão e olhou para o comando à distância

que ressonava ao seu lado, espalmada contra a porta. Por mais que fosse a vez de Fernanda,

não teve coragem de a arrancar dos braços do amante ficcional secreto e atirá-la à chuva.Fez sinal a Fábio para desligar as luzes e não fazer barulho. A garagem ficava no rés-do-

-chão de um prédio de três, branco contornado a amarelo. O que para a zona qualificava

quase como vivenda. E era por ser quase uma vivenda com mais metros cúbicos do que o

apartamento de Fábio e Daniela que fora a escolhida como a melhor opção para as férias.

é melhor vocês irem com os miúdos que nós descarregamos, disse Rui a Fernanda,

enquanto Fábio se chegava ao pára-choques o mais suave que conseguia. Fernanda não

questionou e não olhou para o marido. Estava puta demais para qualquer tipo de inte-

racção. Queria ser agarrada à força pelo seu herói em vez de ter de carregar com os vinte

quilos do filho a dormir. Seguiu por baixo do telheiro à volta do prédio, seguida porDaniela e pelos respectivos dezoito quilos de ternura com as calças encharcadinhas em

mijo. Até no peso o filho de Fábio e Daniela ficava aquém do de Rui e Fernanda.

Na garagem, Fábio e Rui admiraram as quatro malas e os dois sacos, mais uma série

de saquinhos que tinham de alombar até ao terceiro andar, que como era num prédio

com pretensões a vivenda não tinha elevador.

tanta merda pra oito dias de férias ao sol quando tudo o cum gajo precisa é dum fato

de banho e duns chanatos, disse Rui

um gajo deixa a gaja fazer a mala mas esquece-se qué ele é ca vai carregaré que nem dá pra levar pelas rodas quéramos logo apanhados

a esta hora se calhar ninguém ouve

eu oiço sempre

passa aqui muita gente com malas de viagem à noite?

não, mas se passasse eu ouvia, não é um som da rua, vê-se qué estrangeiro

podíamos deixar aqui duas e depois amanhã logo passávamos cá

amanhã inda é mais perigoso, toda a gente sabe que fui pró Brasil e os vizinhos do

primeiro acho que não vão a lado nenhum este ano

atão anda lá, agarra-te a uma e a terceira vai cos doisisso assim vai destabilizado, eu preciso do peso certo

queres levar todas já?

Rui tentou levantar duas malas ao mesmo tempo. Assim como se baixou, assim

ficou. Fábio fingiu que não viu e perguntou-lhe

isso vai?

tou aqui com um problema quelas escorregam, parece que tão mal desenhadas

queres ajuda?

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se calhar é melhor levarmos uma a uma devagar

eu levo duas na mesma pra despachar.

Entre a humilhação e o alívio, Rui escolheu a humilhação. Fábio era mais novo e

ainda jogava à bola de quinze em quinze dias. Era uma humilhação menor, atenuada esem testemunhas.

Em casa, Fernanda e Daniela decidiram esperar deitadas. E quando os homens

acabaram de recolher toda a bagagem e desfaleceram nos bancos da cozinha, já se ouvia

o ressonar maternal. Rui abriu uma lata de cerveja e ofereceu outra a Fábio. Por mais que

lhes apetecesse um copo de leite morno antes de irem para a cama, ambos sabiam que

isso não se fazia. Abriram as malas uma a uma na cozinha e arrumaram a comida para as

férias. Nos sacos vinham as bebidas, os artigos de higiene e tudo o mais necessário para

o merecido descanso sem terem de sair de casa.

O primeiro dia de férias no Brasil começou tarde. As vantagens de não terem

comprado um pacote com tudo incluído começavam a revelar-se, pois o pequeno-almo-

ço não era apenas das 07.00 às 09.30. E como estavam em Porto Galinhas mandaram vir

suco de maracujá, bolinhos de queijo, não havia mamão nem abacaxi mas havia bananas,

que também se comiam muito do outro lado da água. Fernanda e Daniela ainda serviram

ovos mexidos com torradas, e quando se sentaram para comer os restos anunciaram que

dali em diante a cozinha do restaurante ia funcionar por turnos. Se os senhores não con-

cordassem então teriam de optar pela opção self-service .eu não tenho problema nenhum, faço uns bifes que podem perguntar à Daniela,

disse Fábio

eu tamem, disse Rui

não podemos comer bifes todos os dias, até porque não temos que cheguem,

explicou Fernanda

eu posso fazer feijoada, sugeriu Daniela

brasileira?, perguntou Rui

quer dizer, mais ou menos, explicou Daniela

não tenho feijão preto, clarificou Fernandasem isso não é brasileira, disse Rui

e só vamos comer comida brasileira durante oito dias?, quis saber Fernanda

no Brasil tamem há comida doutros sítios, disse Fábio

mas não comias, se tivesses lá, pois não?, quis saber Rui

eu adoro as pizzas brasileiras, disse Fernanda

eu tamem, concordou Daniela

não me lembro de te ver a comer nenhuma, respondeu Rui

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o melhor é seres tu a sopeira destas férias e só comermos o que tu quiseres, disse

Fernanda.

Rui já não respondeu, levantou-se e começou a arrumar a loiça na máquina.

Fernanda aproveitou a deixa e retirou-se para a sala. Tanto o filho como o seu amigode férias estavam demasiado calados há tempo demais. Daniela e Fábio decidiram que o

melhor era desaparecerem para o quarto. Todas as férias com o casal amigo obrigavam a

retiradas estratégicas. Momentos perfeitos para poderem ter as suas próprias discussões

enquanto assumiam posições opostas em relação ao assunto previamente discutido. Por

norma havia uma concordância de sexos. E quando não havia Daniela recordava que

Fábio e Fernanda tinham no CV uma noite de sexo embriagado numa tenda em Mil

Fontes há mais de vinte anos. Nesses momentos deixava o quarto e ia até à piscina ou à

praia ter com o filho, à guarda de um dos membros do outro casal. Na Portela de Sintra, a

pernoitar no quarto de uma criança de quatro anos e sem uma pulseira azul que lhe dessedireito a entrar e sair do aldeamento quando quisesse, decidiu juntar-se ao filho na sala.

atão e o fato de banho?, perguntou Rui.

Daniela tentou não olhar para a tanga do marido do casal amigo. Já não se lembrava

que Rui tinha renegado as bermudas XL desde a primeira vez que fora ao Brasil. Ao seu

lado as criancinhas brincavam em nu integral. E atrás de si entrou Fernanda, também ela

com um biquíni brasileiro desenhado para um corpo que não tivesse sido afligido pelo

tempo nem por um parto, carregando uma bandeja de caipirinhas. Era oficial, as férias

tinham começado. vai pôr o fato de banho e junta-te a nós, estamos na piscina, disse Fernanda

acho que me esqueci, respondeu Daniela, eternamente agradecida à sua capacidade

infalível de se esquecer de colocar os itens essenciais na mala cada vez que iam de férias

a Fernanda empresta-te um, disse Rui

deixa tar, nem trouxe para o Fábio tamem, disse Daniela, na esperança de que aquele

show  de strip  e nudismo infantil acabasse por falta de adesão

eu tenho mais do Rui, disse Fernanda, enquanto saía da sala em direcção ao quarto.

Sem saber o que fazer à roupa emprestada, Daniela entrou no quarto, onde Fábiosaltava de canal em canal à procura dos restos de um jogo da bola que lhe anestesiasse

o cérebro.

tens de vestir isto

porquê?

eles tão na piscina à nossa espera

piscina?

na sala

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montaram uma piscina na sala?

não, mas tão despidos

com este frio?

Daniela não respondeu. Virou as costas ao marido, vestiu o biquíni que lhe ficavamuito melhor do que a Fernanda, e saiu do quarto com a toalha de banho ao ombro,

perseguida por Fábio.

 vocês tão a gozar?, perguntou Fábio ao chegar à sala

anda lá, deixa-te de conversas, põe o fato de banho e agarra-te a uma caipirinha,

queu já vou fazer outra rodada, disse Rui

com este frio?, respondeu Fábio

tamos na praia, não tá nada frio, respondeu Daniela, enquanto culpava o marido por

estar de fio dental na sala de jantar do casal amigo

ao menos abre os estores pra entrar sol, pediu Fábionão dá, cos vizinhos vêem, disse Rui

 vêem o quê?

que tamos cá

e dá pra ligar o aquecedor, atão?

só costumamos ligar à noite, explicou Fernanda

eu já ligo, disse Rui, enquanto chutava a bola de praia aos miúdos que continuavam

a correr nus pela sala.

O aquecimento central ligado o dia inteiro durante oito dias era uma despesa queFernanda não tinha no orçamento do mês. Com a calculadora do telemóvel fez um

cálculo rápido e percebeu que tinha sido péssima ideia não terem cobrado um preço por

noite por pessoa ao casal amigo.

A festa na praia continuou animada e sem frio. As criancinhas foram arrumadas na

zona infantil de frente para o Madagáscar  em repetição contínua e sem som, devido à

aparelhagem ter sido requisitada para os grandes êxitos do Brasil dos anos 90. No canto

oposto à televisão, Fábio, Fernanda, Daniela e Rui tentavam dançar o forró como se

estivessem no Biroska da Cachaça.

grandes férias, disse Rui ao grupoe lá nem podias levar os putos prá discoteca, concordou Fábio

 vai fazer mais caipiras, ordenou Fernanda a Rui, enquanto se agarrava ao rabo de

Daniela a jingar de frente para Fábio.

O fim do primeiro dia de férias acabou com um jantar na praia de pizzas, batatas

fritas, salsichas, cerveja, vinho, espumante, e tudo o mais que não implicasse um esforço

maior do que carregar num botão ou abrir uma lata. As criancinhas deliciaram-se com

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o festival de gorduras e hidratos de carbono enquanto os casais amigos brindaram à

amizade eterna até já não conseguirem ingerir mais um mililitro de álcool.

Os estores corridos e as quatro ressacas épicas fizeram com que o segundo dia de

férias também começasse no fuso horário de Porto Galinhas para quase todos os vera-

neantes menos para Daniela, que fora a única a conseguir arrastar-se até à cozinha logopela manhã para fazer o pequeno-almoço para o filho e para o filho dos outros. Com o

passar das horas, Rui, Fernanda e Fábio voltaram para a praia, ainda de fato de banho

e de óculos escuros. Os restos da festa de lua cheia na sala foram recolhidos entre auto-

-recriminações várias, até que as criancinhas começaram a acusar os efeitos secundários

da prisão domiciliária. Queriam ir a uma praia com tudo aquilo a que tinham direito –

areal, água, baldes, sol, barcos –, não queriam ficar ali fechados nem mais um segundo. E

se os pais não os levassem eles tinham para a troca uma birra inesgotável. Fábio sugeriu

fechá-los no quarto, para ser de imediato vetado por Daniela e Fernanda. Segundo elas,

a chantagem das criancinhas era natural e devia ser satisfeita.sabes bem que não podemos sair, disse Rui

se não sairmos eles não se calam, respondeu Fernanda

mas têm de se calar, a vizinha do primeiro chega ao fim do dia e até pode ouvir

se calhar podíamos ir até à varanda, sugeriu Daniela

achas que não dá bandeira?, perguntou Fábio

não sei, se tiverem lá a brincar de gatas se calhar nem se vê, disse Daniela

mas fazem barulho, respondeu Rui

eu pra já punha-os a dormir, sugeriu Fábiooutra vez?, perguntou Daniela

nós temos aí drunfos, disse Rui

nem pensar, disse Fernanda

se for só meio nem faz mal nenhum, disse Rui

é melhor não, concordou Fábio

mas eu tamem já não os consigo ouvir, disse Fernanda

não dá pra os pôr a fazer um jogo?, perguntou Rui

 jogo de quê?, quis saber a Daniela

não sei, qualquer um queles gostem, podíamos brincar ao homem estátua, porexemplo, disse Rui

não inventes, temos dir sair com eles, disse Fernanda

não dá, explicou Rui

eu tamem não me importava de apanhar ar, disse Daniela

 vamos à noite, quando os vizinhos tiverem a dormir, eles vão cedo prá cama,

disse Fernanda

eu acho arriscado, disse Fábio

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e é, concordou Rui

tens uma ideia melhor?, perguntou Daniela, enquanto se levantava para pegar no

filho ao colo e tentar que parasse de chorar pela milionésima vez.

Fábio não tinha uma ideia melhor. Nem Rui. Às onze da noite saíram de casaenrolados em anoraques, luvas e garruços, com as criancinhas ao colo. A praia de verdade

ficava a meia hora sem trânsito. Na carrinha de Rui, em vinte minutos chegaram à terra

prometida. O areal estava tapado por um cobertor de geada e o termómetro do carro

marcava três graus de temperatura exterior. Rui desligou o carro e percebeu que à sua

 volta todos dormiam. Levou a mão à buzina e os olhos ao espelho mais uma vez. Estava

ali por causa de todos aqueles que agora ignoravam aquele momento. Desistiu de solicitar

as suas testemunhas. Acordou pouco depois com o barulho do dia a invadir o carro.

Rameloso, olhou em volta. Estavam quase todos acordados. As criancinhas pediam para

ir brincar para o que restava do areal engolido pela maré cheia e alagado pela chuva.o melhor é voltarmos pra casa, disse Fábio

agora não dá, disse Rui

queres ficar fechado dentro do carro o dia todo?, perguntou Fernanda

não querias vir prá praia?, respondeu Rui

se continuamos assim amanhã passamos o dia no porta-bagagens, disse Fernanda

se voltarmos agora apanham-nos, justificou Rui

capanhem, estou farta destas férias, fartinha, foda-se, disse Fernanda

olhaí os putos, caralho, disse Ruieu tamem preferia ir pra casa, disse Daniela

qual casa?, perguntou Fábio

prá minha, explicou Daniela

tenho a certeza que vamos ser catados, disse Rui

não quero saber, não quero saber, disse Fernanda, enquanto tentava abafar o choro

do filho sobre a praia.

Contrariado, Rui ligou o carro e seguiu pelas curvas da serra em direcção à grande

humilhação da sua vida. Todas as justificações que poderia dar aos vizinhos lhe pareciamridículas. Ninguém iria acreditar que tinham decidido voltar mais cedo por causa do mau

tempo. Todo o respeito e admiração que tinha na rua ia ser trocado por chacota. Era

uma questão de horas até começar a receber as mensagens dos colegas que iam arruinar

a sua reputação e eventualmente forçá-lo a demitir-se. Teria de emigrar para uma cidade

interior onde não o conhecessem e onde não houvesse qualquer tipo de hipótese de

 voltar a arranjar trabalho na vida. Pior, teria de fechar a sua página no Face .

podíamos ir tomar o pequeno-almoço a qualquer lado, disse Fernanda

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não queres mesmo saber, respondeu Rui

só sei questou esfomeada, disse Fernanda

comes em casa, respondeu Rui

Da fome até à mesa da cozinha foram pouco mais de quinze minutos.

e não fomos apanhados, disse Rui, enquanto propunha um brinde de sumo de laranja

nem vamos ser, tá tudo de férias, disse Fábio

e inda andam praí a protestar com os cortes, respondeu Rui

lá no serviço ia quase tudo pró Algarve ou prá neve, disse Daniela

a neve em Espanha não vale nada, disse Rui

alguns acho quiam prá Serra, respondeu Daniela

pior ainda, disse Fábio férias sem bronze não são férias, disse Rui

podes crer, disse Fábiosó vocês é que estão sempre bem, disse Daniela, antes de se levantar e bater com a

porta da cozinha atrás de si.

O casal amigo e meio acabou de comer em silêncio, e o resto do dia foi passado à

sombra da televisão, entre sessões do Madagáscar  e interrupções para o telejornal e a

novela. O desgaste das férias começava a pesar nos corpos, que já não sabiam como se

esconder para não começarem a bater uns com os outros.

Depois das criancinhas acamadas, Fábio e Rui serviram a pior moqueca de camarãoalguma vez cozinhada a leste de Porto Galinhas, o que não ajudou a recuperar a boa

disposição das férias. Daniela fingiu que comeu, enquanto Fernanda nem teve para isso.

Voltou para a sala com uma saca de chocolates onde tinha à sua espera um volume virgem

com as aventuras do seu homem de sonho, Christian. A noite arrastou-se, prolongou-se

por mais um dia sem luz, sem sorrisos nem idas à praia.

No penúltimo dia de férias, Fernanda deu por terminada a sua relação extramatri-

monial com Christian e teve um desejo enorme de fazer Rui sofrer pelas putas das férias

e por não ser um jovem magnata.

 vai ser estranho chegarmos do Brasil sem tarmos bronzeados, disse à mesaestranho porquê?, perguntou Fábio

oito dias ao sol e voltamos mais brancos do que fomos?, respondeu Fernanda

ela tem razão, disse Daniela

e o qué que sugeres?, perguntou Rui

A sugestão de Fernanda era algo que Rui odiava com todos os poros. O spray  bron-

zeador que deixava a mulher cor de laranja no início de cada mês de Inverno. Daniela

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aderiu de imediato. Sempre quisera experimentar o visual saudável e viajado da amiga.

E antes de se colocar a jeito, com a cabeça a sair de um buraco num saco do lixo de 50L,

ainda explicou a Fábio sem nada lhe dizer que era bom que ele também voltasse de férias

tostadinho. De outra forma, iria sofrer represálias. Fábio percebeu o recado, mudo, e

quando Fernanda deu por terminada a sessão de Daniela, pôs-se a jeito para ficar igualà metade da sua laranjinha. No fim das três sessões, Rui parecia um homem doente. Por

contraste com os outros, a sua palidez era ainda mais pálida. Era óbvio quem é que tinha

ido para o Brasil de férias e quem é que ficara feito cão de guarda. Depois de todos os

esforços e sacrifícios, da poupança genial e da liderança ímpar, o grupo ganhava vontade

própria e rebelava-se.

Rui focou na mulher, parou o olhar, passou ao amigo e à mulher do amigo. Ali, à sua

frente, na sua cozinha, as pessoas a quem ele proporcionara as melhores férias de sempre

no Brasil diziam-lhe que afinal eles tinham ido e que ele tinha ficado para trás. Era uma

grande injustiça. Todos sabiam o quão importante aquela viagem era para ele.Depois de enxovalhar a mulher, o amigo e a mulher do amigo, em silêncio, Rui

levantou-se, agarrou na lata de spray , apontou-a a Fernanda e disse

pró ano ficamos em casa.

Este texto foi escrito de acordo com a antiga ortografia.

Para aceder aos restantes contos visite: Biblioteca Digital DN