Ficcao e Etnografia-opcional

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    Fico e etnograa: o problema darepresentao em Os papis do ingls,

    de Ruy Duarte de Carvalho, e Nove noites,de Bernardo Carvalho

    Fiction and ethnography: the problem ofrepresentation in Os papis do ingls,

    by Ruy Duarte de Carvalho, and Nove noites,

    by Bernardo Carvalho

    ANITAMARTINSRODRIGUESDEMORAES*1

    RESUMO: TRATAREI NESTE TRABALHO DOS ROMANCES OS PAPIS DO INGLS, DO ESCRITOR ANGO-

    LANO RUY DUARTE DE CARVALHO (2000), E NOVE NOITES, DO BRASILEIRO BERNARDO CARVALHO

    (2002). AMBOS IMBRICAM LITERATURA E ANTROPOLOGIA, CONVIDANDO SEUS LEITORES A LIDAR

    COM A QUESTO DA REPRESENTAO, COM O PROBLEMA DAS FRONTEIRAS ENTRE DISCURSO

    FICCIONAL E NO-FICCIONAL. MEU INTERESSE SER, A PARTIR DA ANLISE DE SUAS ESTRATGIAS

    DE COMPOSIO, SUGERIR COMO OS ROMANCES FORMULAM ESSE PROBLEMA.

    ABSTRACT: IN THIS ARTICLE, I DEAL WITH THE ISSUE OF FICTIONAL REPRESENTATION AS I STUDY

    AND COMPARE TWO CONTEMPORARY NOVELS: OS PAPIS DO INGLS(2000), BY RUY DUARTE DE

    CARVALHO, AND NOVE NOITES(2002), BY BERNARDO CARVALHO. BOTH WRITERS PROBLEMATIZE

    THE OBJECTIVITY EXPECTED FROM ETHNOGRAPHIC DISCOURSE AS WELL AS FROM REALISTIC NO-

    VELS, AS THEY RESORT TO SIMILAR NARRATIVE STRATEGIES. AS A RESULT THEY BOYCOTT A PARADIGM

    OF REALISTIC REPRESENTATION THAT WAS STRONGLY MAINTAINED IN BOTH DISCURSIVE DOMAINS

    DURING THE TWENTIETH CENTURY.

    PALAVRAS-CHAVE: LITERATURA ANGOLANA CONTEMPORNEA, LITERATURA BRASILEIRA CONTEM-

    PORNEA, ANTROPOLOGIA, REPRESENTAO FICCIONAL, ETNOGRAFIA.

    KEYWORDS: ANGOLAN CONTEMPORARY LITERATURE, CONTEMPORARY BRAZILIAN LITERATURE, AN-

    THROPOLOGY, FICTIONAL REPRESENTATION, ETHNOGRAPHY.

    * Universidade Federal Fluminense, Niteri, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: [email protected].

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    N1.

    o dia 06 de janeiro de 2001, a Folha de So Paulopublicou uma resenha doescritor Bernardo Carvalho a respeito de um romance h pouco lanado emPortugal, justamente Os papis do ingls. Em 2002, portanto pouco tempo de-pois, o mesmo escritor brasileiro publicavaNove noites. Este dado me interessaj que pretendo aproximar os dois romances sugerindo que lidam com pro-blemas e estratgias de composio semelhantes. Talvez a leitura do romancede Ruy Duarte de Carvalho tenha contribudo para a composio de Nove

    noites; certo que o escritor brasileiro conhecia o romance angolano e seinteressava pelo livro a ponto de escrever uma resenha. Aproveito, assim, osapontamentos de Bernardo Carvalho sobre Os papis do inglspara abrir minhaleitura comparativa das obras.

    Em sua resenha, Bernardo Carvalho prope que o romance de Ruy Du-arte de Carvalho auto-reexivo. Esta auto-reexividade se associa, em suaperspectiva, a algumas estratgias:

    1) A escrita com destinatrio: NOs papis do inglso narrador sugere que olivro seria como um conjunto de emails enviados para uma destinatria que

    se insinua e instala no texto (segundo dedicatria do romance).2) A presena de textos dentro do texto: Bernardo Carvalho conta como o

    livro de Ruy Duarte de Carvalho parte de uma crnica de Henrique Galvo(autor portugus do perodo colonial) intitulada O branco que odiava asbrancas, que integra o volumeEm terra de pretos, de 1927. Bernardo Carvalhose refere ao personagem central da crnica como personagem conradiana.O leitor saber que o narrador dOs papis... recorre efetivamente a JosephConrad para construir Archibald Perkings, aproveitando aspectos e trechos

    da novela The return.1

    3) A encenao da prpria elaborao ccional: A crnica de que se vale RuyDuarte de Carvalho, como explica Bernardo Carvalho, trata de um caador

    1 Alm da crnica de Henrique Galvo sobre Perkings, outra referncia ao ingls presente na litera-tura colonial mencionada no romance de Ruy Duarte de Carvalho: Que eu saiba, existe o registo depelo menos uma verso mais destes casos. Um mdico dos servios de combate doena do sono, queandou por aquelas paragens durante a dcada de quarenta, fala disso em artigos sobre a caa publicadosa partir de 1950, e durante mais de 15 anos, pela revista Diana, em Portugal, depois colecionados num

    volume chamadoManyama Recordaes de um Caador em Angola

    . (CARVALHO, 2007, p. 17)

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    ingls que, depois de matar um companheiro de prosso grego s margens

    do rio Kwando, na fronteira com a atual Zmbia, em 1923, e de se entregar sautoridades portuguesas, que no lhe do ouvidos, volta ao acampamento eabate a tiro tudo o que v pela frente, terminando por disparar a arma contra oprprio peito. (CARVALHO, 2001) No romance de Ruy Duarte de Carvalho,o narrador se dispe a recontar essa histria de maneira que o recontar, incluin-do viagens em busca de supostos papis que o ingls teria deixado e poderiamtrazer informaes relevantes, torna-se o prprio romance.

    4) O acmulo e sobreposio de histrias ou desdobramento auto-ree-

    xivo de histrias dentro de histrias: Para o escritor brasileiro, Os papis do inglsconsiste numa narrativa em permanente suspeita perante si mesma, no sefecha, no se pode completar, recorrendo, podemos pensar, a uma srie de du-plicaes de maneira a armar uma trama densa, intrincada e labirntica.

    Estas quatro estratgias (construo de um interlocutor, citaes, ence-nao da elaborao ccional, duplicao de histrias dentro de histrias)apontadas por Bernardo Carvalho nOs papis do inglsencontram-se tambmemNove noites. Neste romance, parte-se igualmente de um evento real narradosem maiores explicaes (CARVALHO, 2006, p. 11-12). Nos dois romances

    teremos um evento de suicdio, nos dois casos para alm das fronteiras doespao familiar aos narradores e ao leitor (seja o destinatrio inventado, sejao leitor implcito) o suicdio do caador ingls se d s margens do rioKwando; o do antroplogo americano, na regio do Xingu. O personagemde Galvo ser reinventado por Ruy Duarte de Carvalho como tendo sidoum antroplogo, seu nome tambm ser modicado, de Perkings torna-seArchibald Perkings. Teremos, assim, Archibald Perkings e Buell Quain (per-sonagem central deNove Noites) ainda mais prximos: sero dois antroplo-

    gos que se suicidam em condies misteriosas. Por que se mataram? Esta per-gunta move as duas narrativas, que se aproximam, assim, do gnero policial.Os narradores sero personagens em busca de pistas, de papis, de relatos. Oleitor acompanha os esforos dos narradores-personagens para a composiode suas narrativas, como se as elaborasse tambm, em parceria.

    O cruzamento com a antropologia se d, podemos pensar, de mais de umamaneira. Temos, em ambos os romances, personagens antroplogos. No casodo romance de Ruy Duarte de Carvalho, o prprio narrador-personagem antroplogo (e se sugere que seja o prprio autor, ccionalizado); no caso

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    do romance de Bernardo Carvalho, o protagonista de fato foi antroplogo,

    sendo a investigao empreendida pelo romancista-narrador-personagem ummergulho em cartas (muitas delas envolvendo colegas de Buell Quain) e en-trevistas com antroplogos. Nos dois romances, nomes importantes para aconstituio da antropologia se fazem personagens, colocando-se a prpriadisciplina em perspectiva. Alm disso, os narradores-personagens vo a cam-po. Mesmo no sendo antroplogo (e sim romancista), o narrador de Novenoitesvai ter com os krah (acompanhando um antroplogo), sendo esta via-gem relatada (CARVALHO, 2006, p. 67-99). No caso dOs papis..., h o relato

    de uma espcie de viagem a campo, descrevendo-se um ritual por meio datranscrio das explicaes de informantes (CARVALHO, 2007, p. 133-147).Assim, alm de tratar da histria da antropologia, os romances encenam a idaa campo e formulam representaes de sociedades no-ocidentais.

    O que pretendo sugerir que tanto Nove noitesquanto Os papis do inglsna medida em que encenam o processo de escrita, evidenciando o caminhotrilhado pelos narradores para reunio de informaes (por meio de viagens,conversas e de leituras) ao apresent-los como personagens (com ponto devista restrito, portanto) impedem que as representaes das sociedades afri-

    canas e indgenas que oferecem sejam tomadas pelo leitor como correspon-dendo a uma realidade tal qual. O carter meta-narrativo dos romances con-corre para que suspeitemos das representaes. Anal, o que podemos saberde Perkings e Quain? O que podemos saber dos pastores do sul de Angola edos ndios trumai e krah? Como diz o outronarrador deNove noites: podemosimaginar (CARVALHO, 2006, p. 37). Nossa imaginao se mobiliza sempreque tentamos conhecer, seja uma pessoa, seja uma coletividade (por exem-plo: o narrador-personagem do romance de Bernardo Carvalho, assustado

    entre os krah, compe para si guras ameaadoras e reage a partir dessasconstrues imaginrias (CARVALHO, 2006, p. 94). E o que talvez seja aindamais srio: sempre que tentamos conhecer inclusive a ns mesmos. Anal,o que querem esses narradores seno saber de si? No se envolveriam obs-tinadamente na reinveno de Perkings/Quain para lidar consigo mesmos?Como veremos, uma srie de espelhamentos e contaminaes entre os planosnarrativos convida o leitor a associar as personagens suicidas aos narradores-personagens. Podemos ir mais longe e indagar: e o leitor, o que busca?

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    Ambos os romances nos fazem encarar, parece-me, o que h de cons-

    truo no que tomamos por realidade. Ou melhor: sugerem que, para nossituarmos com relao a ns mesmos e com relao ao outro, recorremosnecessariamente a elaboraes imaginativas que se aproximam de ces. Ouseja, lendo esses dois romances, somos convidados a pensar que elaboramosces a partir de esquemas ou ordens de representao disponveis social-mente, sendo a partir dessas ces (pequenas narrativas que construmosa todo o momento) que agimos (inclusive matamos, ou nos matamos). Aoproduzir as ces que devero representar o que somos e o que os outros

    so, mobilizamos representaes prvias. O real de que partimos seria umacamada espessa de representaes naturalizadas. Ambos os romances cons-troem, assim me parece, estratgias para expor essa camada, para iluminar oentrelaamento inevitvel entre imaginao, co e realidade.

    Mencionei que h outro narrador em Nove noites. Vale a pena descrevermais detidamente a composio dos romances.

    2.

    O romance de Bernardo Carvalho divide-se em 19 sees numeradas, al-ternando sees em estilo itlico e em estilo normal. Em itlico fala algumque se apresenta aos poucos a um voc, de incio desconhecido, mas quetambm ser sugerido ao longo do livro (na verdade, esse voc o narradorimagina que exista a partir de alguns eventos relatados); nas sees em estilonormal, o narrador se apresenta como sendo o escritor do romance que oleitor tem em mos. Temos assim a alternncia, a justaposio de dois planos

    narrativos (com narradores distintos). Ambos ocupam-se, porm, de BuellQuain. Aos poucos o leitor entende que o texto em itlico foi escrito poralgum que conheceu Quain (juntando as peas, o leitor ser levado a suporque se trata de Manoel Perna), e est se dirigindo a um amigo do antrop-logo (ou amante). Trata-se de um texto escrito, ou testamento, que deixa espera do amigo/amante do morto, pois imaginava que ele at ali viria embusca de notcias. Nesse texto, que diz escrever porque estava doente, nopodendo mais esperar, relata o que sabe e especialmente o que imagina arespeito de Quain. Explica, ento, por que destrura a carta que, antes de se

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    suicidar, Quain teria escrito ao amigo/amante. Interessantemente, sabemos

    que este narrador deve ser Manoel Perna por informaes que nos chegamda outra narrativa, a mais volumosa. Tambm nesta narrativa, na pgina 121,o narrador-romancista menciona quando teve a idia de que poderia haveruma oitava carta escrita por Quain antes de se suicidar (alm das sete queforam entregues), sugerindo, assim, que a narrativa em itlico seria inveno/descoberta sua (anal, o que especialmente atormenta Manoel Perna ter eleprprio impedido o envio de uma das cartas).

    A narrativa em estilo normal compreende um conjunto de citaes, seja

    de cartas seja de entrevistas. Apresenta, inclusive, o que no usual, trs fo -tograas: duas de Quain e uma de colegas seus no Brasil. De certa maneira,podemos pensar que o narrador-romancista expe os passos que percorreupara escrever a outra, em itlico; mas importa lembrar: a narrativa em estilonormal tambm resvala para a co. No podemos saber ao certo o que imaginao e o que no . Se h fontes apresentadas, personagens reais, car-tas, entrevistas, notcias de jornal, fotograas, de maneira que seja sugeridauma pesquisa documental, h a construo de um narrador que inscreve suahistria pessoal tanto memrias de infncia como eventos mais recentes

    nessa trama. Este narrador-romancista, ao se apresentar, convida o leitor anotar que toda a narrativa resultado do embate de sua imaginao (do nar-rador-escritor) com os dados que, ao acaso, como diz, encontra. Nessesentido, vale reiterar que traos do narrador, como seu carter obsessivo, suasparanias, vo aproxim-lo do personagem que quer recompor ccionalmen-te, havendo, assim, contaminaes, espelhamentos. Aos poucos, como disse,o leitor comea a questionar: o narrador est falando apenas do antroplogomorto? Ao nal do romance, o narrador-romancista mesmo confundido

    com Quain por um personagem, central para o desenrolar da trama, deliranteem seu leito de morte (CARVALHO, 2006, p. 130). Algumas passagens dis-persas sugerem esta busca de si no outro, pelo outro, como as seguintes: Ouvoc acha que quando nos olhamos no reconhecemos no prximo o que em ns mesmostentamos esconder? (CARVALHO, 2006, p. 8); preciso entender que cada um vercoisas que ningum mais poder ver. E que nelas residem suas razes. Cada um ver assuas miragens. (CARVALHO, 2006, p. 42)

    H uma parte do livro que se destaca como mais longa, a 11 (comea napgina 53 e termina na pgina 99). Nessa parte, o narrador-romancista narra

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    experincias pessoais, tanto da infncia como recentes, em terras indgenas

    ou prximas a territrios indgenas. Suas impresses de criana e adulto eco-am as de Quain, que nos chegam por meio de citaes (cartas) e da fala deManoel Perna (que conta, como diz, o que ouviu de Quain em nove noites deconversa (CARVALHO, 2006, p. 41). Pelo que nos conta este narrador (dotexto em itlico):

    Isto para quando voc vier e sentir o temor de continuar procurando, mesmo j tendo idolonge demais. Ele deve ter lhe falado dos portos que visitou, do que viu pelo mundo, sempre

    um pouco mais alm, numa busca sem fm e circular, e do que trouxe para casa, no os objetosque passaram a assombrar a me depois da sua morte, mas o que lhe marcou os olhos parasempre, deixando-lhe aquela expresso que ele tentava disfarar em vo e que eu apreendiquando chegou a Carolina na distrao do seu cansao, os olhos que traziam o que ele tinhavisto pelo mundo, a morte de um ladro a chibatadas numa cidade da Arbia, o terror deum menino operado pelo prprio pai, a entrega dos que lhe pediam que os levasse com ele,para onde quer que fosse, como se dele esperassem a salvao. Ele me disse que ningum podeimaginar a tristeza e o horror de ser tomado como salvao por quem prefere se entregar semdefesas ao primeiro que aparece, quem sabe um predador, a ter que continuar onde est. E

    eu imaginei.(...) (CARVALHO, 2006, p. 37)

    Saberemos, prosseguindo a leitura, que o menino operado seria ele mes-mo: O que pode ter passado um homem na infncia para trazer uma cicatriz daquelasna barriga? Que espcie de sofrimento o ps em sintonia com um mundo pior que o seu?(CARVALHO, 2006, p. 38). Assim, o antroplogo falava de si como um ou-tro, duplicando-se. Na sequncia, na parte em estilo normal, o narrador-ro-mancista relata sua viagem aos krah, tornando-se, agora ele, uma espcie de

    duplo do antroplogo, pois ser tambm aquele de quem se espera salvao(CARVALHO, 2006, p. 97-98).O narrador-romancista, como disse, demora-se contando das viagens que

    fez com o pai na infncia, viagens estas tambm marcadas pelo testemunhode brutalidades e pelo terror (pelo medo, e risco, de morte com destaquepara a performance do pai-piloto (CARVALHO, 2006, p. 63). Que espciede marca teriam deixado essas viagens no narrador-romancista? Por que elese envolve numa busca que o leva de volta a esses territrios conhecidos nainfncia? Importa notar que, no romance, desliza-se da esfera pessoal para a

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    coletiva: ao contar suas viagens, o narrador traz cena eventos recentes da

    histria do Brasil:

    A estrada terminava numa clareira defronte de uma parede de mata virgem.Conforme nos aproximvamos, fomos aconselhados a fechar a gola e as man-gas da camisa e a enar a bainha das calcas dentro das botas. O desmatamentodeixava a selva em polvorosa. Animais e pssaros gritavam por toda a parte, ehavia enxames de abelhas pretas, que cobriam os braos dos homens. Meu paitinha me dito para no me mexer, tentar no me incomodar com elas e torcer

    para que no entrassem por baixo da camisa ou da cala. Eu s queira sairdali. O que estvamos fazendo no meio do inferno, por um trabalho inglrio,que seria engolido em poucos anos? A gritaria na oresta era assustadora. (...)Passamos a noite numa cabana que no chegava a trs metros quadrados, feitade troncos nos de arvore espetados no cho de terra batida, que sustentavamum telhado de folhas secas a menos de dois metros de altura. (...) Por entre ostroncos nos, que formavam as paredes, podiam entrar cobras, lacraias e escor-pies. noite, fazia um frio do co. (CARVALHO, 2006, p. 62)

    O desmatamento, relativo ocupao desse territrio localizado no MatoGrosso e em Gois, faz-se durante o perodo militar:

    H uma foto desbotada em que apareo ao lado dele, mais pareo estar fan-tasiado de caubi para um baile de carnaval, com colete e botas marrons. Elearticulava desde 1966, em Braslia, a compra de dois latifndios no serto, pormeio de ttulos denitivos do governo. Era um negcio da China. (...) em geral,bastava derrubar a mata, plantar capim e encher as fazendas de gado. Meu pai

    devia ter os contatos certos. A nalidade da viagem era achar as terras. (...)Viajvamos os dois sozinhos sobre o m do mundo, e eu me distraa a folhearum manual de primeiros socorros e sobrevivncia na selva, onde se tratava dospiores horrores no caso de pouso forado ou queda do avio, como a descriode um peixe minsculo que me atormentava s de imaginar que pudesse entrarno orifcio do meu pnis e, uma vez instalado na uretra, abrir suas escama ousei l o qu, de maneira ano poder mais ser removido, tudo com farta ilustra-o. O campo de pouso da ilha do Bananal cava ao lado de uma aldeia karaj,

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    e quem chegava era recepcionado pelos ndios aculturados. Era um espetculo

    deprimente. (CARVALHO, 2006, p. 57-58)

    O acmulo de histrias, que chamou a ateno de Bernardo Carvalho em suaresenha do livro de Ruy Duarte de Carvalho, recurso decisivo em seu roman-ce. Justapondo memrias do narrador-escritor, o testamento ctcio de ManoelPerna, trechos de cartas e especulaes a respeito de Quain, arma-se uma tra-ma densa, o romance resultando na colagem de elementos que, justapostos,passam a se contaminar uns dos outros, numa rede de analogias. A meno ao

    medo que sentia de ter seu pnis invadido remete, por exemplo, aos tabus sexu-ais que sero decisivos na outra histria, a de Quain. O conjunto no se limita,portanto, soma das partes, h relaes imprevistas. Com esse procedimento,tambm (ou especialmente) a histria do Brasil recontada.

    Interessantemente, tanto emNove noites quanto nOs papis do ingls, sersugerido que a transgresso de tabus sexuais estaria envolvida nos eventos desuicdio abordados. Tambm em ambos os antroplogos testemunham, noslugares de fronteira que passam a habitar, uma situao de espoliao crimi-nosa e violenta afetando as sociedades indgenas de maneira brutal. Esta si-

    tuao de brutalidade ser apresentada como reincidente no presente a partirdas viagens dos narradores em busca de elementos para a composio de suashistrias. Assim, tambm no caso do romance de Ruy Duarte testemunha-seo horror tanto em 1923 como em 1999. Ou seja: Angola terra espoliadano perodo colonial e no nal do sculo XX.

    3.

    O romance de Ruy Duarte de Carvalho divide-se em trs partes: o LivroPrimeiro, o Intermezzo, e o Livro Segundo. Nos livros temos a alternn-cia de fragmentos em itlico e em estilo normal; no Intermezzo (cujo ttulosugere ser todo o livro uma espcie de pera), todo o texto est em itlico.Os fragmentos em itlico das outras duas partes so antecedidos por datasque sugerem um dirio ou conjunto de anotaes. As datas compreendem aescrita desses fragmentos entre os dias 23/12/99 e 01/01/00. O dia 28/12no aparece, em seu lugar est o Intermezzo. Todo o livro fragmentado: h

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    49 sees, justapostas aos fragmentos de dirio. O livro se arma justapon-

    do esses diferentes tipos de texto, como uma colagem. Os textos em estilonormal se apresentam como emails escritos a uma destinatria que efetiva-mente (como anuncia uma dedicatria) se instala no texto. Temos, assim,a colagem de emails e de notas de dirio nos livros primeiro e segundo, e,em separado ou separando-os, o Intermezzo (que narra, como num lme,momentos decisivos na vida de Perkings, envolvendo o dio s mulheresbrancas, mencionado na crnica de Galvo). Como na segunda narrativa deNove noites, ou testamento, aos poucos descobrimos quem a destinatria

    dos emails (especialmente na parte nal).O personagem central dOs papis do ingls, Archibald Perkings, em maiormedida uma inveno quando comparado ao Buell Quain de Bernardo Car-valho. A fragmentao mais radical, havendo menos evidente encadeamen-to entre as partes e mais espao para a participao do leitor na produo desentidos. Os fragmentos de dirio tm, no geral, um sentido aberto, ecoamoutras partes, produzindo-se relaes imprevistas que ampliam as possibi-lidades semnticas do romance. Como no romance de Bernardo Carvalho,o conjunto no se resume soma das partes. H vasos comunicantes que

    colocam os elementos em relao, sendo que este procedimento, no caso doromance de Ruy Duarte de Carvalho, mais radical. Isso porque no apenasa narrativa de Perkings ecoa a do narrador-personagem: os fragmentos dedirio interrompem a simples alternncia entre as duas narrativas, abrindobrechas para maiores possibilidades de sentido. De certa forma, esses frag-mentos irrompem demandando uma leitura trpica, indireta, ou seja, umadisposio de leitura atenta para deslocamentos e condensaes. O fragmen-to que abre o romance ecoa momento chave da narrativa de Perkings (como

    saberemos apenas no prosseguimento da leitura, evidentemente) e pode serlido como contendo uma imagem-sntese do prprio do romance:

    23.12.99Sa sozinho, logo que cheguei, para fotografar pedras volta do acampamento,no regresso atravessei uma linha de gua em stio errado e desz o rumo, man-tive as cabeas dos morros esquerda mas ultrapassei a zona, internei-me emmata sempre baixa mas cada vez mais densa, deixei de ver volta, fui ver muito frente, quer dizer, perdi-me. Subi uma pedra, vi a antiga pedreira de mrmore

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    j assim to perto, do acampamento s se lhe v a cabea branca. Retrocedi.

    Agarrei ento o curso de uma outra mulola, havia de vir ter at ao rio, rodeei umsombrio cemitrio, entalei no cinto um ramo de folhas verdes, a a apanhei umcaminho de bois que acabou por trazer-me a estas nascentes aqui ao lado. Andeis voltas por me julgar bastante, em terreno alheio. (CARVALHO, 2007, p. 11)

    O romance se abre com a sugesto de um caminhar por espaos desco-nhecidos, sem rumo certo, quem fala diz que esteve perdido. Esta experinciaecoa a da leitura: o romance oferece caminhos incertos, anda s voltas, con-

    duzindo o leitor a uma travessia em mata cada vez mais densa. A pedra, apedreira, o cemitrio sero elementos recuperados na narrativa de ArchibaldPerkings: o pai desse personagem teria as coordenadas de um tesouro escon-dido, do antigo soba Lobengula (primeira meno na pgina 89).2

    Dentro dessa mata, segundo o que sabia, havia de encontrar um monte de mui-ta pedra, pedra-da-gua capaz de matar a quem, branco ou preto, lhe tocasse. Eum monte de cinzas. E muita ossada de animais e gente. Ningum l ia. Desseferoz soberano zulu, Matebele, o Lobengula, constava que tinha mandado exe-

    2 A referncia a Lobengula remete a passagens deManyama, de Luiz Simes (livro mencionado pelonarrador). Este mdico-caador relatava, ento, que: Uma das causas que contribuiu certamente paraeste tabu do rio Lomba, a seguinte lenda que corre entre os habitantes daquelas terras. // Em ns dosculo passado, o clebre potentado negro Lobengula, que o nosso audacioso explorador Serpa Pintoconheceu pessoalmente na sua prpria capital em 1877, no desejando submeter-se ao domnio ingls,tentou resistir pelas armas, mas, vencido, refugiou-se no nosso territrio, fazendo-se acompanhar de500 carregadores transportando seu fabuloso tesouro, avaliado pelos prprios ingleses em 500 milhesde libras, o qual consistia principalmente em ouro, marm e pedras preciosas. // Dizem os nativos quedepois de Lobengula penetrar no nosso territrio, subiu pelas margens do rio Luiana em direco ao

    norte, e como tivesse encontrado prximo do rio Lomba uma oresta impenetrvel de grande exten-so, ali se refugiou com todo o seu squito e, depois de ter ordenado a todos que enterrassem bem fun-do tudo o que haviam transportado,envenenou os quinhentos homens. Os nativos do a esta oresta onome de Mucaje. Ali reina portanto a alma diablica de Lobengula comandando 500 vtimas, e, parao esprito ultra-simplista do nativo, todo curso desabitado do rio cou impregnado destes espritosmalcos. // Convm esclarecer que esta lenda tem uma parte verdica. Os ingleses e os sul-africanosconsideram verdadeira a existncia do tesouro, armando que h provas histricas de que Lobengulase refugiou no nosso territrio e aqui morreu. // Ainda recentemente um general sul-africano solicitouautorizao do nosso governo para vir a Angola procurar o cobiado tesouro. Mas ignoro se esta lhefoi concedida. // A outra parte verdica da lenda tem a seguinte explicao: exista ali uma mancha demosca do sono infectada (Glossina morsitans), que dizimou muita centenas de pessoas durante o per-odo decorrido entre 1920 e 1940. (SIMES, p. 133-134)

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    cutar isso j o sabia Archibald desde que o pai semeara na sua cabea e na

    da Americana aquela insidiosa e carnal idia de tesouros os 500 carregadoresque tinham transportado a preciosa carga de ouro, marm e pedras preciosas.Quando Archibald descobriu nalmente o local e deparou com a pirmide depedras e com o monte de cinzas que na realidade ali se achavam, acompanha-vam-no apenas o av de Paulino o Ganguela-do-coice e uma bizarra gurade homem estreito, comprido e sempre vestido com uma velha labita, quiocode barba na e bom atirador que passaria mais tarde para o servio do Grego,quando este se lhes ajuntou. Archibald no mexeu em nada. (CARVALHO,

    2007, p. 120-121)

    Os motivos (pedras, cemitrio) reincidem, costurando-se, o fragmento deabertura, trama da narrativa sobre Archibald Perkings. Em seguida, a explo-rao retoma o motivo da pedreira; ressurge tambm o cemitrio:

    (...) E aproveitara [o Grego], desde que viera juntar-se-lhe, todas as ausn-cias de Archibald, quando este se afastava na caa, para vir aqui, guiado peloquioco que era nal quem caava para ele, o prprio Grego no atirava nada,cavar e desmantelar tudo at ao ponto em que agora se achava.

    A pirmide estava completamente derrubada e entre o amontoado de pedrasem que se tinha transformado via-se um perfeito paraleleppedo de granito,de dimenses enormes, e setas de ferro, enxada s centenas e instrumentos deferreiro de manufatura sem dvida muito antiga, crnios humanos e de animaisdomsticos. Abaixo do nvel do cho em que a pirmide assentara havia o querestava de uma superfcie de lajes onde se abria um buraco de terra preta paraonde convergiam as bocas de trs galerias. volta, pela rea que circundava osdespojos da pirmide, mais de oitenta buracos tinham exposto luz do dia terra

    preta novamente, lajes, pedras cbicas, enxadas e ferros, setas e facas curvas. Ea partir de um amplo quadrado aberto de cinzas que lhe cava a uns duzentosmetros, para alm de umas valas que h muito tempo tambm tinham sido aliabertas, divergia uma surpreendente rede de galerias largas, e por vezes fundas,de onde areia rosada e na tinha sido trazida superfcie.

    (...). A raiva era a que no poderia deixar de ocorrer a Archibald Perkings, an-troplogo distinto, discpulo de Frazer e Radcliff-Brown, perante a monumen-talidade de uma barbrie como a daquela demolio que se exibia sua frente.

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    E o horror era por no poder deixar de vir a ter que confrontar-se, no imediato,

    com o autor de tudo aquilo, um monstro com quem andava candidamente aprivar fazia j tanto ms, e isso sim, era uma coisa insuportvel.Voltou ao acampamento e poucas horas depois os ces lambiam, no cho daclareira, o sangue do Grego. (CARVALHO, 2007, p. 123-125)

    O assassinato resulta, assim, de um gesto de brutal espoliao por parte doGrego. O suicdio de Archibald tambm ser associado a um gesto de brutali-dade, o rapto da menina, mulata-muda, a quem o protagonista tinha decidido

    ter como esposa (segundo carta a irm, p. 175). A barbrie impera na Angolacolonial (o destino da menina ser a opresso e explorao, certamente). Osmotivos da brutalidade no passado ressurgem, porm, no presente, atando adcada de 1920 aos nais do sculo (CARVALHO, 2007, p. 148). O Gregofora, pouco antes, associado ao primo Kaluter (o narrador, depois de exporsua arma ao primo, considera: O Grego poderia ter-se nado assim (CAR-VALHO, 2007, p. 116). Sugere-se que est interessado em novamente explo-rar riquezas em Angola, depois do declnio do regime comunista:

    O meu primo Kaluter fazia parte daquela avalanche dos que, tendo deixadoAngola com a independncia, para habitar sobretudo Portugal e a Nambia,vinham agora depois das eleies, e mesmo com a guerra de novo a ferver,avaliar como que as coisas estavam a correr c pela terra. (...) A corrupoimperava e isso e a prpria guerra, mais o desconcerto institucional, favoreciammuito negcio, muito expediente. (CARVALHO, 2007, p. 103)

    O narrador-personagem se assemelha a Archibald Perkings, entre outras

    tantas coisas, pela no adeso a intentos de explorao do territrio angolanoe dos povos que nessa terra habitam. Logo a seguir, pondera; Ou ento noera eu que vinha ali, era o sujeito da minha prpria co. (CARVALHO,2007, p. 109) A condio ccional do eu que se congura como narradorse expe: inventado no s Archibald Perkings, tambm o Ruy Duartepersonagem. medida que o leitor conduzido a notar traos comuns a am-bos pode comear a supor que a narrativa inventada (ocupada de ArchibaldPerkings) uma espcie de desvio, de manobra do narrador-personagem quefala de outro para, de maneira indireta, falar de si.

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    Se precrio o conhecimento que podemos ter de Archibald, do prprio

    narrador-personagem, o que pensar dos pastores do sul de Angola? Ou me-lhor: se o que podemos saber se expe como construo (sendo o recursoostensivo a citaes estratgia que apia e refora esta exposio), se a re-presentao est marcada inevitavelmente por projees, o que esperar darepresentao das chamadas sociedades africanas tradicionais? O ttulocompleto do romance : Os papis do ingls ou o Ganguela do Coice. O Ganguelado coice, av de Paulino, personagem que acompanha o ingls Archibald.A dupla Paulino/narrador-Ruy Duarte se espelha na dupla Ganguela/Archi-

    bald Perkings. Esse Ganguela (os ganguela so um povo de pastores do sulde Angola) salvou de virar cinzas os papis do ingls, em busca dos quais semove o narrador-personagem (como disse j, o tom policial ou de aventurado romance se deve especialmente a essa busca).

    A cena inicial do Intermezzo merece ateno:

    Toca violino. O Ingls toca violino, de tempos a tempos e ao cair da tarde.Repete quase sempre sries inndveis de frases musicais, vira a pauta, ensaiaum trecho frente, raramente executa uma qualquer aprecivel extenso de

    msica. (...).O fenmeno insinuou-se de forma subtil. O Ganguela, cozinheiro e carrei-ro do coice, calado sempre, passou a vir agachar-se aos ps do Ingls, quaseencostado s pernas altas do branco. Da primeira vez veio com uma caixa demadeira, espcie tambm de rabeca, aparelhada em peas cortadas catana.Esperou por uma das pausas, fez o gesto mas deteve-se, deixou passar mais trsou quatro, e imediatamente a seguir que lhe trouxe a coragem, plangeu umsom de sua lavra. Ningum reagiu. (...)

    Da terceira vez, nalmente, foi de kissanje que o Ganguela se apresentou, umdesses kissanges dos mais completos, com caixa grande de cabaa antiga. To-mou a posio habitual, ensaiou o tom j na primeira pausa, verteu no ar ochoro das palhetas, prolongou a escorrncia, deteve o uxo com um rematebrusco. O Ingls endireitou o corpo, rmou-se com fora na perna esquerdapara dar melhor apoio ao ombro do Ganguela, xou-se na pauta e rasgou ashoras, crepusculares, mornas ainda, do m da tarde nos conns do Kwando.Uma importante alterao ao programa viria a dar-se quando, na estao seguin-te, o Ingls passou a vir acompanhar, na sanzala, os solos de kissange do Gan-

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    guela, surdina morosa em noites de lua e frias, e nos intervalos de alguns trechos

    mais sentidos era o lancinante contraponto do stradivarius que vinha dilacerar opeito de tantos homens, de tanta raa e to ss. (CARVALHO, 2007, p. 77-79)

    Esta cena de abertura do Intermezzo, justamente uma pea musical (oque justica o ttulo da seo), talvez se trate de uma metfora-manifestodo projeto literrio de Ruy Duarte de Carvalho. O Ingls, que toca apenasfragmentos de peas musicais europias (anlogas a tantas citaes de Con-rad, Cline, Sade e Michaux que atravessam o romance?) ser interpelado

    sutilmente (e corajosamente) pelo Ganguela, para que passem a tocar emparceria. Aos poucos, aps hesitao inicial, o Ganguela e o Ingls passam atocar juntos, entrelaando fragmentos musicais europeus e africanos em umanova composio. Trata-se de encontro e dilogo, construdo devagar. Parao dilogo, e no a incorporao do outro no que o prprio, a ida do Ingls sanzala momento decisivo (no apenas o Ganguela se move a espaofamiliar ao Ingls, este tambm se move a espao familiar ao Ganguela). OIngls e sua msica com notaes escritas; o Ganguela e sua tradio oral. Oencontro no oferece uma soluo, ou composio-sntese, mas a abertura.

    O Ganguela tem seus instrumentos, ele que toca e inscreve sua expressonos interstcios da msica do Ingls, por sua vez j fragmentada, porosa (emcrise?). O Paulino, distncia, abanava a cabea e murmurava no vale apena (CARVALHO, 2007, p. 133); S soube disso depois, porque o Pau-lino me poupa o quanto pode a certas coisas. (CARVALHO, 2007, p. 137)A presena discreta de Paulino, que acompanha o narrador-personagem emsuas viagens, no se inscreve nos interstcios de sua escrita?

    Minha sugesto que a fragmentao do romance de Ruy Duarte de

    Carvalho pode ser lida como estratgia produtora de porosidade. Podemospensar em vrias vozes atravessando o romance, em construo polifnica,portanto. Nesse sentido, vale a pena atentar para a parte 43, que comeacom a seguinte frase: Etnograas, mais: (...) (CARVALHO, 2007; p. 159).Trata-se da descrio de um ritual kuvale. Desde a parte 40 somos alertadosde que A etnograa ia entrar em campo (...). (CARVALHO, 2007, p. 145)O narrador-personagem convida a amiga da sobrinha de Kaluter a gravar asconversas que ia promover dali para a frente (CARVALHO, 2007, p. 145).Fragmentos de fala sero apresentados como transcrio de falas traduzidas

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    por informantes para o narrador (como se no momento em que tudo estives-

    se se passando). Descrevem-se as aes do tyimbanda e sua fala (certamentea traduo de B., informante do narrador) de maneira que a totalidade deseus sentidos no se faa conhecida (CARVALHO, 2007, p. 160). H umalgica que se mantm resistente compreenso do narrador e, certamente,do leitor. A fala do tyimbanda no se faz compreendida na fala do narrador-personagem, escapa.

    Entre a seo 40 e a 43, temos uma espcie de digresso que me parece im-portante. Especialmente a inscrio de notas em itlico (como os fragmentos

    de dirio) no meio do texto em estilo normal:

    Puxei do meu caderno e anotei ento: o desconhecimento da lngua impede-me oudifculta-me tambm o tratamento que certas expresses me deveriam merecer, nomeadamente

    aquelas que remetem a eixos de comunicao articulados sobre outros usos do corpo e dos sen-tidos. Algumas, como o riso, situam-se a, ou a dana, e o canto, assuntos de que pouco enten-do intuitivamente e de que intelectualmente nada sei.(CARVALHO, 2007, p. 152-153)

    Entre as etnograas, esta passagem destaca as limitaes do narrador.

    No se espere, portanto, a representao do ritual em sua totalidade (total-mente apreendido e explicado). Teremos apenas fragmentos, uma aproxima-o delicada: o outro no se captura. A presena do narrador como persona-gem, com suas limitaes, fantasias, medos, impede que se instale a iluso darepresentao transparente. Representaes com ambio totalizante falsi-cam, dissimulam o que escapa? O que dissimulam especialmente no seria suaprpria ccionalidade?

    4.

    Se no h como distinguir claramente o domnio da co e o da no-c -o, nada verdade? Qualquer coisa verdade? No me parece que podemos,ou que valha a pena, incorrer nesse tipo de vale tudo (ou de nada vale). Oque sugiro : o contar que se encena impede que se naturalize o representa-do. Sendo o real uma trama densa de representaes (que se fazem a partirde procedimentos de ccionalizao), ser nela, a partir dela, que agiremos.

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    Essas representaes participam/fomentam/legitimam aes. Combater re-

    presentaes naturalizadas implicadas em violncia torna-se, parece-me, umimperativo tico. Em ambos os romances, no se trata de apresentar umarepresentao mais verdadeira (a verdade sobre os ndios ou africanos), masde proliferar as representaes, de duplic-las em vertigem. Os ndios e osafricanos no sero apreensveis em sua totalidade nem Perkings ou Quain,tampouco os narradores. Esta incompletude demanda a renncia a represen-taes totalizadoras. Representando o ato de representar, os romances abalamcristalizaes. Trata-se, de certa maneira, de abrir brechas, rupturas. Se somos

    precrias construes, se para nos compreendermos e ao outro recorremosa elaboraes ccionais (somente assim podemos nos situar, produzir senti-do), o que se faz preciso que certas representaes no se sobreponham aoutras. Ou seja, que os krah no sejam apenas o que o narrador-romancista(ou qualquer um) possa deles dizer, que possam narrar a si (inscrever-se ati-vamente nesse jogo). A relao colonial pode ser, desta feita, entendida comoa imposio de uma representao que se entende como transparente e total.Colonizar se torna dizer o outro, e no ouvir; impedir que o outro, ao (se)dizer a si mesmo, escape ao que dele digo (lembremos que representar tem

    tambm um sentido poltico: ser representado, ter representao, quer dizerencontrar meios de se exprimir socialmente). O que algum pode dizer desi sempre precrio, uma construo delicada e instvel. No entanto, essamatria sutil que nos constitui. Denir o outro se faz, assim, uma forma deviolncia, coisa que ambos os romances abordados estrategicamente evitame acabam por explicitar.

    Talvez seja aqui que o dilogo com a antropologia se torne mais premente.O inevitvel jogo de projees que marca nossas relaes (conosco e com os

    outros) se faz extremo quando se trata de lidar com outras culturas. Comoposso falar daquilo que de todo desconheo? Produzir uma etnograa seriatentar criar um espao conhecido, familiar, naquilo que radicalmente estra-nho? EmA interpretao das culturas, Geertz argumenta que fazer etnograa como tentar ler (no sentido de construir uma leitura de) um manuscritoestranho, desbotado, cheio de elipses (...). (GEERTZ, 1989, p. 7) A atividadedo etngrafo seria, em sua perspectiva, antes de tudo interpretativa: trata-sede tentar entender o que os atos humanos atos de pessoas de uma socieda-de ou grupo social a ele no familiar signicam.

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    O desconhecido oferece menos resistncia a projees; tambm a imensa

    ameaa. Parece-me que o estranho oscila entre paraso e inferno; atrao erepulsa (penso especialmente emNove noites). Incorporando o fazer etnogr-co nesse jogo de representaes, os romances abordados chamam a atenopara o que h de co na etnograa, seu carter artefatual, maneira dogesto de James Clifford:

    A nova tendncia de nomear e citar os informantes de forma mais completa ede introduzir elementos pessoais no texto est alterando a estratgia discursiva

    da etnograa e seu modo de autoridade. Muito de nosso conhecimento sobreoutras culturas deve agora ser visto como contingente, o resultado problemticodo dilogo intersubjetivo, da traduo e da projeo. (CLIFFORD, 1998, p. 73)

    Os romances que abordei sugerem um caminho. Seja na co romanes-ca seja no fazer etnogrco, h necessidade de explicitar os lugares de fala,abrindo-se espaos. O encontro entre os domnios da antropologia e da lite-ratura no levaria a um abandono de critrios ( idia infantil de que tudo naverdade mentira), mas a maior responsabilidade mais na capacidade de

    escuta, e de representao. Torna-se, por conseqncia, um gesto tico-po-ltico, alm de esttico ou cientco, a construo de representaes plurais,multvocas e incompletas.

    Referncias bibliogrcas

    CARVALHO, Bernardo. A co hesitante (Resenha de Os papis do ingls, de Ruy Du-arte de Carvalho). InFolha de So Paulo, 06 de janeiro de 2001.

    __________.Nove noites. So Paulo: Cia. das Letras, 2006.CARVALHO, Ruy Duarte de. Os papis do inglsSo Paulo: Cia. das Letras, 2007.CLIFFORD, James.A experincia etnogrfca: Antropologia e literatura no sculo XX.

    Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1998.GEERTZ, Clifford.A interpretao das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989.SIMES, Luiz.Manyama: Recordaes de um Caador em Angola. Luanda/Porto:

    Lello, s/d.

    Recebido em 10 de fevereiro de 2012 e aprovado em 18 de maio de 2012.