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542 Disponível em: www.u nivali.br/periodicos Doi: 10.14210/contrapontos.v14n3.p542-568 JUVENTUDES NA ESCOLA: VOZES E SIGNIFICAÇÕES DOCENTES YOUTH AT SCHOOL: TEACHERS’ VOICES AND MEANINGS JUVENTUDES EN LA ESCUELA: VOCES Y SIGNIFICACIONES DOCENTES Dóris Maria Luzzardi Fiss Doutora em Edução pela UFRGS. Lucas Carboni Vieira Licenciando em Pedagogia pela UFRGS. Bolsista de Iniciação Científica vinculado ao Projeto de Pesquisa “Formação de professores, tecnologias de informação e comunicação e autoria” (UFRGS). Faculdade de Educação Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Porto Alegre – RS – Brasil Endereços: Rua Cel. Massot, n o 214/ap. 408 Cristal – Porto Alegre – RS CEP: 91910-530 Rua Manoel Santana, n. 843 Viamão – RS

FISS, D.M.L.; VIEIRA, L.C. Juventudes Na Escola - Vozes e Significações Docentes

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Este artigo refere pesquisa relacionada à compreensão docente sobre as culturas juvenis. Buscaram-se subsídios teóricos em Juarez Dayrell, Paulo Carrano, Geraldo Leão e Boaventura de Sousa Santos. A metodologia de trabalho com os dados foi a Análise de Discurso segundo Michel Pêcheux. Foram evidenciados efeitos de sentidos de sujeito sociocultural, conhecimento-como-regulação, sensocomunização e estranhamento. Eles revelam movimentos instaurados pelos docentes entre lugares de sentidos, e de autoria, vários a partir dos quais as identidades são constituídas de modo intervalar e híbrido, tanto significando o estudante como sujeito sociocultural quanto reproduzindo uma lógica de ensino disciplinar.

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    Doi: 10.14210/contrapontos.v14n3.p542-568

    JUVENTUDES NA ESCOLA: VOZES

    E SIGNIFICAES DOCENTES

    YOUTH AT SCHOOL: TEACHERS VOICES AND MEANINGS

    JUVENTUDES EN LA ESCUELA: VOCES Y SIGNIFICACIONES DOCENTES

    Dris Maria Luzzardi Fiss

    Doutora em Eduo pela UFRGS.

    Lucas Carboni Vieira

    Licenciando em Pedagogia pela UFRGS. Bolsista de Iniciao Cientfica vinculado ao Projeto de Pesquisa Formao de professores,

    tecnologias de informao e comunicao e autoria (UFRGS).

    Faculdade de Educao

    Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

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    Rua Cel. Massot, no 214/ap. 408

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    Resumo: Este artigo refere pesquisa relacionada compreenso docente sobre as culturas juvenis. Buscaram-se subsdios tericos em Juarez Dayrell, Paulo Carrano, Geraldo Leo e Boaventura de Sousa Santos. A metodologia de trabalho com os dados foi a Anlise de Discurso segundo Michel Pcheux. Foram evidenciados efeitos de sentidos de sujeito sociocultural, conhecimento-como-regulao, sensocomunizao e estranhamento. Eles revelam movimentos instaurados pelos docentes entre lugares de sentidos, e de autoria, vrios a partir dos quais as identidades so constitudas de modo intervalar e hbrido, tanto significando o estudante como sujeito sociocultural quanto reproduzindo uma lgica de ensino disciplinar.

    Palavras-chave: Cultura juvenil. Currculo. Ao Pedaggica.

    Abstract: This article reports on a study related to teachers understanding of youth cultures. It seeks theoretical support in the works of Juarez Dayrell, Paulo Carrano, Geraldo Leo and Boaventura de Sousa Santos. The methodology used was Discourse Analysis, according to Michel Pcheux. Effects of meanings of the sociocultural subject were revealed, as well as knowledge as a means of regulation, the production of common sense, and distancing. These reveal several movements instituted by teachers between places of meanings and authorships, based on which the identities are constituted

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    in an intervalic and hybrid manner, meaning both the student as sociocultural subject and the reproduction of a disciplinary teaching logic.

    Keywords: Youth Culture. Curriculum. Pedagogic Activity.

    Resumen: Este artculo informa acerca de una investigacin relacionada a la comprensin docente sobre las culturas juveniles. Se buscaron fundamentos tericos en Juarez Dayrell, Paulo Carrano, Geraldo Leo y Boaventura de Sousa Santos. La metodologa de trabajo con los datos fue el Anlisis del Discurso segn Michel Pcheux. Se evidenciaron efectos de sentidos del sujeto sociocultural, conocimiento como regulacin, sensocomunicacin y extraamiento. Los mismos revelan movimientos instaurados por los docentes entre lugares de sentidos y de autora; a partir de varios de ellos las identidades son constituidas de modo intervalar e hbrido, tanto significando al estudiante como sujeto sociocultural como reproduciendo una lgica de enseanza disciplinaria.

    Palabras clave: Cultura juvenil. Currculo. Accin Pedaggica.

    Em 2013 foi realizada pesquisa pelos autores deste artigo, com a finalidade de compreender as percepes docentes acerca da juventude e do papel da escola desde a perspectiva dos jovens. Anlises das respostas de professores da Educao Bsica que atuam em escolas da rede pblica municipal e estadual, como tambm da rede particular, localizadas em Porto Alegre, em algumas cidades da Regio Metropolitana (Cachoeirinha, Gravata, Canoas e Alvorada) ou em Caxias do Sul, Eldorado do Sul, Charqueadas e Porto, derivaram desta investigao,

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    que apresenta carter qualitativo. Neste artigo, enfocou-se apenas uma parte dos dados produzidos ao longo de uma pesquisa que se estendeu de maro a dezembro de 2013. Se se considerar a totalidade do trabalho realizado, foram entrevistados 46 professores da Educao Bsica (18 homens e 28 mulheres) para os quais se fez 10 perguntas, tendo se obtido 460 depoimentos que discorrem sobre: escola e juventudes, escola e violncia, escola e identidades docentes, respectivamente.

    Em funo dos objetivos pretendidos aqui, enfocou-se o tema escola e juventudes na expectativa de adensar o estudo e as reflexes de tal modo que os demais assuntos possam ser sistematizados em textos posteriores a este, concentrando as anlises em 33 depoimentos. Primeiramente, analisaram-se depoimentos dos professores sobre a juventude e suas matrizes culturais, baseando-se na compreenso do jovem como um sujeito sociocultural atravessado por particularidades e experincias singulares (DAYRELL, 2008, 2007a, 2007b, 2007c; CARRANO, 1999; CARRANO; MARTINS, 2007, 2011; LEO, 2011) e questionador/transformador do seu momento scio-histrico (PERALVA, 1997). Posteriormente, com a ideia de que essencial escola ser partcipe e estar preocupada em contribuir para que os jovens possam [...] realizar escolhas conscientes sobre suas trajetrias pessoais e constituir os seus prprios acervos de valores e conhecimentos [...] (CARRANO; MARTINS, 2011, p. 44), analisaram-se as opinies docentes no que tange s funes e aos papis da escola para os jovens. As questes endereadas aos professores, por meio de entrevistas semiestruturadas presenciais ou de contato por e-mail, foram trs: 1) Na sua prtica docente, voc pensa nos repertrios culturais que o jovem traz para sala de aula? Se sim, como voc trabalha isto? Se no, por qu? 2) O que voc entende por juventude? 3) Qual (Quais) (so) a(s) influncia(s) da escola na elaborao dos projetos pessoais dos jovens?

    Nas respostas geradas, pde-se observar, no que concerne cultura juvenil, juventude e ao papel da Escola na formao destes indivduos, um desenvolvimento, mesmo que tmido, do paradigma emergente (SANTOS, 1988; 1996; 2001; 2006; 2008), contrapondo-se lgica do cientificismo moderno. Ou, como assinala Santos (2008), contrapondo-se a um modelo de racionalidade que se distingue por ser global e totalitrio, negando o carter racional a todas as formas de conhecimento que no se pautarem pelos seus princpios metodolgicos e promovendo a total:

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    [...] separao entre a natureza e o ser humano. A natureza to-s extenso e movimento; passiva, eterna e reversvel, mecanismo cujos elementos se podem desmontar e depois relacionar sob a forma de leis; no tem qualquer outra qualidade ou dignidade que nos impea de desvendar os seus mistrios, desvendamento que no contemplativo, mas antes activo, j que visa conhecer a natureza para a dominar e controlar (p. 25).

    As leis da cincia moderna so um tipo de causa formal que privilegia o como funciona das coisas em detrimento de qual o agente ou qual o fim das coisas. por esta via que o conhecimento cientfico rompe com o conhecimento do senso comum (p. 30). (grifos do autor).

    Dito de outra forma e recorrendo mais uma vez a Santos (1996) quando aborda o conhecimento-como-regulao e o conhecimento-como-emancipao1, a cincia moderna foi se constituindo amparada por pilares que estabeleceram a dicotomia sujeito-objeto e a concepo da natureza como entidade separada da sociedade e da cultura de que derivou excessiva confiana epistemolgica nas normas e leis por ela definidas. Tais engrenagens tornaram o conhecimento-como-regulao hegemnico, permitindo a este recodificar o conhecimento-como-emancipao nos seus prprios termos medida que a cincia moderna foi conquistando espaos maiores e se transformando em fora produtiva do capitalismo. Soma-se a isto, consoante Dayrell (2008), Leo (2011) e Peralva (1997), o fato de que tal viso homogeneizante tende a repercutir tambm na noo de aluno, retirando ou, no mnimo, tentando silenciar sua historicidade, suas vises de mundo, seus sentimentos, desejos e projetos.

    VOZES DA ACADEMIA

    Diante das mltiplas possibilidades do sentido de ser jovem e ser escola, das muitas vozes que produzem ecos a respeito destes temas, optou-se por se apoiar Juarez Dayrell (2008, 2007a, 2007b, 2007c), Paulo Carrano e Carlos Henrique Martins (2007, 2011) e Geraldo Leo (2011) no que tange abordagem dos espaos e das funes escolares bem como da juventude. Em Michael Apple (1989, 2005), Boaventura de Sousa Santos (1988; 1996; 2000; 2001; 2006; 2008) e Tomaz Tadeu da Silva (1992; 1999; 2005) para discorrer acerca de questes vinculadas ao currculo e ao conhecimento. Por fim, em Angelina Peralva (1997) e Zygmunt Bauman (2013); para refletir sobre a conjuntura da contemporaneidade e as leituras do jovem nesse contexto. Peralva (1997) traz interessantes consideraes sobre o tensionamento gerado a partir da relao entre jovens e adultos, o que

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    a autora coloca como um embate entre a tradio e a renovao. Baumann (2013), citando Henry Giroux em A Juventude na Era da Dispensabilidade, descortina, na sua concepo de liquidez cultural nada eterno, constante, mas est em transformao contnua2 , que o jovem encontra-se em precria situao, sendo entendido:

    [...] cada vez mais como outro encargo social, os jovens no esto mais includos na promessa de um futuro melhor. Em lugar disso, agora so considerados parte de uma populao dispensvel, cuja presena ameaa evocar memrias coletivas reprimidas da responsabilidade dos adultos. (p. 52)

    Analisar o ambiente escolar e compreend-lo como lugar de produo de saberes e de vivncias significa reconhecer o carter constitutivo dos sujeitos que nele esto, protagonistas neste espao e autores dele, os quais inscrevem a suas marcas. necessrio [...] resgatar o papel dos sujeitos na trama social que a constitui (a escola), enquanto instituio (DAYRELL, 2008, p. 136). Viso que se aproxima de concepes de Boaventura (1988) segundo as quais o paradigma emergente provoca o educador a perceber o aluno como parte indispensvel na gnese social escolar. Em outras palavras, o estudante sujeito influente e constituidor com suas subjetividades da comunidade em que est inserido. A sua presena age sobre o tecido social da instituio de ensino que frequenta.

    Consoante adverte o autor portugus, [...] a sala de aula tem de transformar-se ela prpria em campo de possibilidades de conhecimento dentro do qual h que optar. Optam os alunos tanto quanto os professores e as opes de uns e de outros no tm de coincidir nem so irreversveis (SANTOS, 1996, p. 18), implicando estes movimentos a assuno tanto do aluno quanto do professor a uma posio de autores de conhecimento e das histrias a partir das quais os espaos escolares so significados. Opes responsveis que reivindicam de uns e de outros a [...] capacidade de iniciativa e de opo para conhecer e avaliar as consequncias das opes tomadas e das que o podiam ter sido e no foram (op. cit., p. 23) num territrio de negociaes entre modos de pensar/fazer a escola que esto assentes em perspectivas antagnicas que consideram de modo diferente os projetos dos educandos.

    Angelina Peralva (1997) destaca que a especificidade da [...] educao do mundo moderno que ela e deve ser intrinsecamente conservadora (p. 18) (grifo da autora). Isso porque, para conservar a forma de vida conquistada,

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    necessrio ensinar queles que chegam como ser, perceber e relacionar-se social e culturalmente. Dayrell (2008), fazendo coro a Santos (1996) e a Peralva (1997), concebe a escola como espao constitudo por mais de uma dimenso e dividido, de modo tenso, entre a institucionalidade regras e normas condicionadoras e a [...] complexa trama de relaes sociais entre os sujeitos envolvidos [...] (p. 137) que, quando chegam instituio, desde sempre so sujeitos socioculturais. A escola, nesse sentido, produzida como local hibridizado pela presena de vrios grupos e, tambm, pelas expresses e mesclas culturais de espaos urbanos carregados de contradies e que se expressam no espao escolar (CARRANO; MARTINS, 2011, p. 46). Essa trama relacional complexa, viva, metamorfsica, dada exatamente diversidade cultural dos jovens que ali esto, sinal de uma cultura externa escola que compe os indivduos de forma peculiar (DAYRELL, 2008; LEO, 2011; CARRANO; MARTINS, 2007; 2011) e se traduz como experincia vivida dos jovens.

    Ainda que por caminhos diferentes, Dayrell, Carrano, Martins, Leo, Santos, Peralva e Bauman fazem apostas semelhantes numa escola que deixe falar os educandos tanto em suas identidades mltiplas quanto a partir das redes de relacionamento que os grupos estabelecem no tempo e no espao. Identificam estas escolhas com o que denominam de conhecimento-como-emancipao ou paradigma emergente (SANTOS, 1988; 1996; 2001; 2006; 2008) e perspectiva curricular cultural (DAYRELL, 2008). Eles ponderam que os sujeitos que ali esto, todos sob o mesmo rtulo de alunos, no so exclusivamente alunos posto que manifestam particularidades e experincias diferentes, expectativas diversas, concepes de vida variadas, o que torna incoerente a pretenso da escola de massificar o significado do termo aluno.

    Geraldo Leo (2011) afirma que no possvel a compreenso do processo escolar sem a compreenso dos processos no escolares, por meio dos quais os alunos se fazem alunos de maneiras variadas, sendo fundamental, portanto, o resgate dos sujeitos em suas caractersticas e nos modos a partir dos quais estabelecem relaes. Agregam-se a este argumento os de Paulo Carrano e Carlos Henrique Martins (2011) quando assinalam que modos diversos de ser jovem e, por extenso, de ser aluno, sero configurados em decorrncia das diferentes realidades econmicas e polticas que precarizam, ou no, o acesso aos bens culturais e insero social destes sujeitos.

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    A dimenso dominante na leitura feita sobre os educandos pela escola, na tica dos rtulos a respeito da qual fala Dayrell (2008), a cognitiva: [...] o conhecimento visto como produto, sendo enfatizados os resultados da aprendizagem e no o processo (p. 140). O saber assume funes e caractersticas prprias lgica instrumental. A mesma compreenso homogeneizadora que orienta o olhar sobre o aluno e as juventudes se manifesta, tambm, quando a escola ocupa o centro das atenes. O pensamento de Dayrell (2008) segue direo oposta, pontuando que:

    [...] a experincia vivida matria-prima a partir da qual os jovens articulam sua prpria cultura, aqui entendida enquanto conjunto de crenas, valores, viso de mundo, rede de significados: expresses simblicas da insero dos indivduos em determinado nvel da totalidade social, que terminam por definir a prpria natureza humana3. (p. 140-141).

    Carrano e Martins (2011) reforam as ideias de Dayrell, apontando que a cultura institucionalizada, ou seja, aquilo que aceito socialmente e consequentemente na escola como produo cultural, age no sentido de desmerecer as construes culturais juvenis que, entretanto, atravessam a sociedade com formas diversas de manifestao4 (CARRANO, 1999). Desmerecimento produzido pelo carter de autopreservao da tradio que busca se perpetuar, padronizando os indivduos, no sentido da homogeneizao cultural. Aqueles jovens que no respondem conforme o esperado, produzem um efeito de receio nos adultos.

    Assim, o temor suscitado pelo jovem, o sentimento de insegurana a ele frequentemente associado no imaginrio adulto, constituem a outra face dessa moeda. J no se trata a do jovem cujo desvio necessrio prevenir ou mesmo punir, mas daquele que ameaa o adulto indefeso, encarnando tudo aquilo que, em sua vida, este j no consegue controlar. (PERALVA, 1997, p. 19).

    Somado a isso, segundo Carrano e Martins (2011), a escola [...] conta com mecanismos de silenciamento que promovem a invisibilidade das prticas que no se encaixam nos cotidianos escolares institucionalizados e pouco abertos para as expressividades das culturas juvenis (p. 45). Destacam, todavia, o quanto as culturas5 juvenis pois h mais de uma forma de ser jovem (CARRANO; MARTINS, 2011; LEO, 2011) so paradoxalmente presentes e relevantes na sociedade, a ponto de se tornarem mercantilizadas e referncias de ideal a ser perseguido, objeto de desejo das classes consumidoras. Tais constataes assinalam relaes tensas que se estabelecem entre as instituies sociais e os jovens: ora eles no so considerados produtores de manifestaes culturais legtimas, ora so tomados como referncia de consumo a ser valorizada e perseguida6.

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    Estes autores trazem a questo do demrito com que as instituies sociais criterizam a juventude, alertando para o olhar de imperfeio com que, muitas vezes, este jovem percebido, tomando-o como sujeito em formao, em transio para a plenitude da fase adulta. Fica subentendido, nesta perspectiva, que o jovem no produtor de conhecimento ou de cultura, cabendo a ele, como indivduo incompleto, absorver os saberes que lhe so apresentados, para ento atingir alguma plenitude. Outras vises da juventude caminham pelos conceitos de crise, traduzindo as ideias de instabilidade emocional, revoltas sem motivo e desinteresse pelos estudos como caractersticas intrnsecas ao ser jovem.

    O problema inerente a essas vises, quando se fala de escola, reside no enfrentamento das imposies/demandas feitas pela instituio face s suas prprias necessidades como sujeito. Estabelece-se uma relao de cabo de guerra. A escola pretende impor-se ao aluno, concretizando ao homogeneizadora, e o aluno deseja evadir desse sistema, querendo se fazer ver como sujeito com particularidades, sonhos e vontades. O risco que a escola corre de, sem construir significaes efetivas e afetivas, se tornar obrigao. O processo educativo se limitar, assim, a prticas de emparedamento da palavra do outro-professor e do outro-aluno (TAVARES, 2001)7.

    Refletir sobre o sujeito jovem, e sobre como a escola se relaciona com ele, esbarra em questes curriculares. Tomaz Tadeu da Silva (1992; 2005), ao retomar concepes trabalhadas por Michael Apple (1989; 2005), se refere ao currculo considerando duas dimenses: a do currculo explcito e a do currculo oculto. Em Educao e Poder (1989), Michael Apple rel estudo anterior Ideologia e Currculo (2006), retomando as trs esferas a partir das quais buscava compreender o currculo: a experincia escolar e o ensino ideolgico dissimulado (o currculo oculto), o contedo ideolgico do currculo e a atuao do educador.

    Em um nvel mximo de sutileza, como diz Silva (1992), a subordinao social tramada de tal forma que as classes operrias so treinadas para serem submissas, enquanto aqueles que ocupam elevado estrato social so treinados para a dominao. Observa-se, ento, que, [...] sob um mesmo rtulo, a escola oferece um produto diferente aos diferentes grupos e classes sociais (SILVA, 1992, p. 83), fato que atinge diretamente a juventude. A escola, como tem se apresentado, ao que parece, no est preparada para receber os jovens de camadas populares, tambm no conseguiu tornar-se local de transformao,

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    falhando terrivelmente em cumprir a promessa de ascenso social (LEO, 2011). Em verdade, no apenas falhou, mas agiu (e ainda age) comprometida com preservar e consolidar as desigualdades sociais (SILVA, 1992; LEO, 2011). A extenso desse fazer pedaggico, que refora a desigualdade, no se opera apenas nas aes diretas dos docentes. A prpria estrutura escolar, sua arquitetura, sua organicidade, sua lgica de funcionamento, seus rituais apontam o valor que dado (ou no) aos sujeitos que fazem a escola. Esse currculo oculto pode ser entendido, ento, como uma espcie de porta-voz discreto de:

    [...] uma pedagogia da precariedade em dois sentidos: primeiro porque na sua materialidade a escola precria em si, mas tambm porque alimenta entre os jovens estudantes o sentimento de que seus projetos de vida tm que ser curtos, moldados na provisoriedade8 e na incerteza, principalmente entre os jovens com menos recursos econmicos. (LEO, 2011, p. 106).

    Essa forma de leitura dos projetos de vida dos educandos pela escola remete ao avesso da liquidez contempornea sobre a qual fala o socilogo polons Zygmund Bauman e, tambm, da juventude tomada como perodo fluido. Fenmeno a que faz referncia Geraldo Leo (2011, p. 103) quando, ao mencionar a diversidade de bens culturais, sociais e de consumo disponveis hoje, assinala o quanto tal oferta [...] confere s juventudes contemporneas uma grande fluidez, uma capacidade de transitar por diferentes espaos e tempos, uma plasticidade identitria [...]. Tais movimentos terminam por significar um desafio para a escola: falar com tais realidades e, tambm, se colocar escuta delas.

    O jovem se v encarregado de preservar algo que no foi por ele edificado e do qual no tem oportunidade aberta de discordar. Sua expresso est ancorada s nuances que lhe foram foradamente conferidas. O currculo oculto se manifesta no sentido de garantir a absoro dessas nuances culturais, demarcando claramente o lcus que cada sujeito deve ocupar. No entanto, apesar de cenrios to pouco animadores, as escolas:

    [...] no so meramente instituies de reproduo, instituies em que o conhecimento explcito e implcito ensinado molda os estudantes como seres passivos que estaro ento aptos e ansiosos para adaptar-se a uma sociedade injusta. Esta interpretao falha sob dois aspectos centrais. Primeiramente, ela v os estudantes como internalizadores passivos de mensagens sociais pr-fabricadas. Qualquer coisa que a instituio transmita, seja no currculo formal ou no currculo oculto, absorvida, no intervindo a modificaes introduzidas por culturas de classe ou pela rejeio feita pela classe (ou raa ou gnero) dominada das mensagens sociais dominantes. Qualquer um que tenha ensinado em escolas de classe trabalhadora, ou escolas localizadas nas periferias, sabe que no assim que as coisas se passam. O que mais provvel que ocorra a reinterpretao por parte do estudante, ou na melhor das hipteses, somente

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    uma aceitao parcial, e muitas vezes a rejeio pura e simples dos significados intencionais e no intencionais das escolas. (APPLE, 1989, p. 30-31).

    Pensar do modo como Apple prope enderea a uma escola que no corresponde apenas a funes ligadas reproduo, preservao do formato social existente com seus mecanismos de subordinao dos estudantes s suas normas e aos seus modos de apreenso da realidade. A escola se traduz como espao tenso de negociao entre muitas vozes com sotaques sociais diferentes, s vezes antagnicos, s vezes complementares. Sendo assim, nela habitam prticas comprometidas com a reproduo de certo modelo social desigual, que se mantm por meio de um modo precrio de diviso no s do trabalho como tambm da autoria, ou seja, da possibilidade de o sujeito historicizar o seu dizer e reconhecer sua palavra como legtima. Igualmente habitam movimentos de resistncia e de insubordinao a partir dos quais os sujeitos deixam suas marcas e seus significados impressos nos textos e contextos pedaggicos. Se verdade, como props Althusser (1983), em seu ensaio Ideologia e Aparelhos Ideolgicos de Estado, publicado pela primeira vez em 1970, que a educao um dos principais dispositivos por meio do qual a classe dominante transmitiria suas ideias sobre o mundo social, garantindo assim a reproduo da estrutura social existente, tambm verdade o que pontua Bauman (2013), quando destaca que as realidades sociais contm um tanto de conformismo e um tanto de rebeldia. Portanto, ao modo de sntese dessas ideias, faz-se coro a Apple (2005) quando alerta que: [...] a reproduo cultural e econmica no o nico fenmeno que est ocorrendo em nossas instituies educacionais (p. 47), haja vista que [...] tendncias contraditrias, resistncias e conflitos em torno dessas foras ideolgicas [...] (id. ibid.) tambm se manifestam nos espaos escolares lquido-modernos (BAUMAN, 2001; 2013).9

    Faz-se notar tambm, neste tempo de conflito e de repetio (SANTOS, 1996, p. 15), gradativas mudanas nas cincias, alterando a lgica do paradigma dominante (SANTOS, 1988). Esse conceito, desenvolvido por Boaventura, refere-se a toda a lgica cientificista que inicia no sculo XVI e ganha corpo e fora com o advento do Iluminismo no sculo XVIII. Esse paradigma, entretanto, no se restringiu s cincias. Ele enraizou-se na nossa estrutura social, atingindo profundamente a forma como o homem tratado e com a qual se relaciona com o outro, consigo mesmo e com a natureza. Essa forma de pensar/relacionar-se/viver guiada pela razo, eleita como grande qualidade humana no Sculo

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    das Luzes. Seguindo a lgica do pensamento matemtico, conhecer significa dividir, quantificar e, com isso, as [...] qualidades intrnsecas do objeto so [...] desqualificadas e em seu lugar passam a imperar as quantidades em que eventualmente se podem traduzir (SANTOS, 1992, p. 50).

    O paradigma dominante influi diretamente na formulao das cincias sociais emergentes no sculo XIX, operando sobre as correntes que buscavam se estruturar na poca. Sobre elas atuaram os impositivos da adequao consoante esse paradigma, agindo em uma lgica que [...] privilegia o como funciona das coisas em detrimento de qual o agente ou qual o fim das coisas (SANTOS, 1988, p. 51) (grifos do autor). Em funo dessa forma de ver o mundo, a cincia rompe com o senso comum, gerando rupturas profundas na valorao de saberes e na distribuio dos mesmos. Na busca das cincias sociais pela ruptura em relao aos pressupostos estabelecidos pelas cincias exatas, tem origem o processo de crise do paradigma dominante segundo Santos (1988; 1996), irreversvel. Surge, ento, o paradigma emergente que prope [...] um conhecimento prudente para uma vida decente (SANTOS, 1988, p. 60). Irrompendo no seio de uma sociedade cunhada pelo paradigma dominante, os desafios com que o emergente se depara envolvem mais do que uma reestruturao de carter cientfico; elas tocam a pele da sociedade. Trata-se de estender a reflexo proposta a respeito da transio paradigmtica epistemolgica para o campo dos paradigmas societais (SANTOS, 2000). Cincia e sociedade passam a unir-se, estruturando um conhecimento que supera dicotomias. O paradigma emergente age no sentido de reunificar o ser humano, estando cincia e subjetividades entrelaadas. Com isso, todo conhecimento passa a ser compreendido como autoconhecimento, j que conhecer o mundo sua volta permitir ao homem conhecer a si mesmo, munindo-o de mecanismos diversos para a realizao desta leitura pessoal. Esse carter essencialmente cotidiano e plural do paradigma emergente pretende aproximar os saberes cientficos e de senso comum, estando disponveis a todos como forma de vida (SANTOS, 1988).

    As ideias de Boaventura esto intrinsecamente atravessadas nas ideias de Dayrell, Carrano, Martins e Leo, assim como conversam com concepes propostas por Apple e, tambm, por Peralva e Bauman. Estes pensadores olham para educandos e educadores, para jovens, para espaos escolares de forma a buscar a valorizao do ser humano, o viver bem. Esto todos comprometidos e

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    preocupados com o sujeito, com sua relao com a vida e consigo mesmo. Da mesma forma, todos convergem para uma crena segundo a qual, no processo crtico da escolaridade e na significao da cultura juvenil, o paradigma dominante no serve como medida. necessrio produzir uma leitura interessada das/nas relaes humanas, um outro modo de pensar o homem em suas dimenses epistemolgicas e societais.

    VOZES DA ESCOLA

    Essa leitura inquieta, inspirada pelo paradigma emergente, implica um esforo de compreenso das situaes encontradas no ambiente escolar. Os embates entre a viso que a escola tem de si mesma, dos jovens e que estes tm de si mesmos e do ambiente escolar so potentes (e nem um pouco recentes) e esto demandando respostas. As consequncias para todos os envolvidos nos processos educativos so diversas esgotamento docente10, processos de excluso escolar, desvalorizao das culturas juvenis, violncia na escola e, em decorrncia desse modos operandi da escola, a sociedade se ressente. As desigualdades sociais atreladas, tambm, s prticas escolares (LEO, 2011; CARRANO; MARTINS, 2011) demandam intervenes sensveis s diferenas.

    Neste estudo, o trabalho de interpretao dos depoimentos de 46 professores da Educao Bsica entrevistados em 2013 se deu a partir da Anlise de Discurso (AD) francesa desde a perspectiva de Michel Pcheux que, como esclarece Eni Orlandi (2012), [...] considera que a linguagem no transparente. Desse modo, ela no procura atravessar o texto para encontrar um sentido do outro lado. A questo que ela coloca : como este texto significa? (p. 17). Sua principal finalidade envolve o entendimento sobre o modo como um objeto simblico produz sentidos. Dito de outro forma, todos os j-ditos (interdiscurso ou memria discursiva), em algum tempo, em algum espao, por algum sujeito, habitam o dito e produzem efeitos sobre ele: As palavras no so s nossas. Elas significam pela histria e pela lngua. O que dito em outro lugar tambm significa nas nossas palavras (op. cit., p. 32) e essas palavras, que esto no nvel da formulao, correspondem ao intradiscurso ou materialidade lingustica. Tais peculiaridades da AD pechetiana comprometem com determinado modo de interpretar o trabalho dos sentidos sobre os sentidos que passa da superfcie lingustica (os depoimentos produzidos em decorrncia de entrevistas feitas)

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    para o objeto discursivo (os depoimentos considerados desde suas condies de produo) e, ento, para o processo discursivo (os depoimentos considerados desde o modo como os dizeres j-ditos trabalham sobre os dizeres ditos, produzindo sentidos).

    Nesta anlise, foi considerada a produo de sentidos a partir do funcionamento discursivo parafrstico e polissmico respectivamente. Pcheux (1997), ao falar sobre um deslocamento realizado pelos estudos da lingustica, menciona a diviso discursiva entre dois espaos que parecem remeter parfrase e polissemia respectivamente: o espao da manipulao de significaes estabilizadas, normatizadas por uma higiene pedaggica do pensamento e o de transformaes do sentido, escapando a qualquer norma estabelecida a priori (p. 51). Orlandi (2007) traduz polissemia como multiplicidade de sentidos e parfrase como o mesmo sentido que adquire formas diversas, sendo impossvel ignorar a importncia da primeira por nela se fundamentar a atividade do dizer. Quanto parfrase, ela corresponde ao da instituio, da regra, da lei, e nela que se sustenta a afirmao de que a linguagem convencional (p. 86). Em outro trabalho, Orlandi (2004) adverte que a separao entre parfrase e polissemia no evidente nem permanente [...] onde est o mesmo, est o diferente (p. 93). Fenmeno que decorre do modo de funcionamento discursivo da mudana que, ao promover rupturas, o faz a partir de uma relao com o mesmo e se constitui, ento, como retorno e interpretao do mesmo, do j dito.

    No exagerado concluir que o lugar do movimento , tambm, o lugar do trabalho de estabilizao dos sentidos e vice-versa. Esses elementos todos alavancam a anlise dos depoimentos selecionados que correspondem a um recorte de nosso extenso corpus. As condies de produo dos enunciados dos professores so descritas por eles prprios quando, em suas respostas, referem-se escola multicultural que est propondo tantos desafios trazidos por um jovem marcado por inscries identitrias afetadas pelo meio do seu convvio, pelo seu bairro e por suas amizades, como destacou Paulo. Os docentes falam, portanto, sobre um jovem para o qual a escola precisa garantir que tenha voz a partir de seu cotidiano (Ana) face sua realidade11 (Laura, Lilian, Rodrigo, Mariane, Paulo, Emlia e Jean) marcada pela diversidade cultural (Mauro) e por inmeras experincias anteriores escola (Emlia), estimulando a docncia como inveno de trabalhos autorais por parte dos educandos. As

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    descobertas foram organizadas em grupos de sentidos, os quais auxiliam a compreender o que o professor entende por repertrio cultural e de que modo essas concepes dialogam com a prtica docente.

    PROFESSORES FALANDO SOBRE JOVENS... SENTIDO DE SUJEITO SOCIOCULTURAL

    Das respostas selecionadas, em 17 ressoa o sentido de sujeito sociocultural. O educando visto para alm da categoria aluno, que tende a homogeneizar a coletividade estudantil e circunscrev-la a caractersticas tomadas (e tornadas) como fixas (DAYRELL, 2008; CARRANO; MARTINS, 2011; LEO, 2011). O professor enxerga o sujeito que vive para alm dos muros da escola, que interage em uma sociedade e com uma cultura pulsante, sendo por ela atravessado, o que leva a sua metamorfose constante e, por isso mesmo, a formas outras de produo da subjetividade. Ele o reconhece nas suas particularidades. Nos depoimentos de Amanda, Lilian, Vanessa e Isis esse sentido ecoa:

    Amanda: [...] tem-se que considerar que o aluno passa apenas 4 horas das 24 horas dirias na escola, e o que se vive nesse tempo todo no pode ser ignorado ou deixado pra trs quando se entra em uma sala de aula.

    Lilian: Para que seja possvel interagir com o aluno imprescindvel reconhecer a carga cultural que o jovem traz.

    Vanessa: [...] se tu no considerar o que o aluno traz, a bagagem que ele tem e s ir tocando contedo, tu acaba meio que fazendo o trabalho de um livro, sabe? [...] Eu acho que o aluno s consegue se aproximar do contedo, achar aquilo importante se estiver de alguma forma relacionado a ele.

    Isis: Com certeza, cada aluno tem um modo de ver o mundo e isso vem da vivncia que ele teve no seu cotidiano, em casa e com os amigos do bairro e da rua. Cada cabea uma forma diferente de ver o mundo, e sem buscar entender que cada aluno especial e diferente me parece impossvel trabalhar pois s lidando com cada individualidade podemos entend-la e aprender com isso.

    Dayrell (2008) lana o debate sobre o papel que a instituio educativa deve assumir diante da juventude, tendo em vista a pluralidade de alunos que nela habitam. No apenas um aluno, uma nica identidade, mas sim vrios alunos com diversos pontos de vista e que, por isso, devem ser tratados de formas diferentes. Por um lado, desde uma concepo pedaggica na qual o sujeito borrado em favor de uma figura de aluno estabilizada, a instituio escolar se presta apenas para [...] Consagrar a desigualdade e as injustias das origens

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    sociais dos alunos (DAYRELL, 2008, p. 140). Por outro lado, dando visibilidade s diferenas, a escola se predispe a ser colaboradora na construo dos projetos dos estudantes como tambm na edificao de uma sociedade mais justa, visto que valoriza os sujeitos que a habitam mais do que a gramtica institucional por ela estabelecida, reconhecendo a tenso que se cria entre as duas dimenses que nela se revelam:

    [...] institucionalmente, por um conjunto de normas e regras, que buscam unificar e delimitar a ao de seus sujeitos. Cotidianamente, por uma complexa trama de relaes sociais entre os sujeitos envolvidos, que incluem alianas e conflitos, imposio de normas e estratgias individuais, ou coletivas, de transgresses e acordos. (DAYRELL, 2008, p. 137).

    Nos depoimentos dos educadores, percebem-se os efeitos/o papel dessa valorizao do mundo vivido dos educandos tanto nas relaes que se estabelecem entre professor e aluno quanto naquelas que so institudas entre os educadores e as suas prticas de planejamento da ao docente:

    Cssio: A primeira coisa que devemos fazer quando ganhamos uma turma procurar conhecer cada aluno que a compe. preciso deix-los apresentar o que eles sabem e conhecem e, a partir disso, preparar as aulas que sero dadas a eles.

    Bruno: [...] isso [utilizar em aula a carga cultural] legal, eles se aproximam mais de ns professores, se sentem valorizados e demonstram carinho.

    Lilian: Para que seja possvel interagir com o aluno imprescindvel reconhecer a carga cultural que o jovem traz; busco sempre reconhecer a realidade e a vivncia do aluno resgatando suas experincias, quer sejam positivas ou negativas, inserindo suas vivncias no contexto [...].

    Carlos: Com certeza, o que os educandos trazem de sua cultura vem enriquecer o trabalho em sala de aula, onde, atravs da interao, tudo pode ser partilhado e valorizado.

    A partir desses depoimentos, percebe-se que necessrio construir uma viso pedaggica mais conectada com a realidade social contempornea a partir da qual o educando se diz e faz, mais do que aluno, sujeito que toma sua histria com as prprias mos e a transforma mediado pelo dilogo entre saberes escolares e no escolares.

    SENTIDO DE CONHECIMENTO-COMO-REGULAO

    O sentido de conhecimento-como-regulao evidencia ressonncias do paradigma dominante, assim como abordado por Santos (1988; 1996), na postura

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    pedaggica dos docentes. Os professores se compreendem como epicentro do saber. Nos depoimentos de Bruno e Rosa, pode-se observar o carter de chancela que est conferido ao papel do professor. Criam-se distncias entre os sujeitos que esto no ambiente da sala de aula: entre aquele que supostamente sabe o docente e aqueles que supostamente no sabem os alunos, remetendo a uma escola em que as discusses sobre saberes e culturas juvenis no so feitas, a escuta desses saberes no faz parte da agenda de trabalho.

    Bruno: s vezes penso [na carga cultural do aluno] e outras vezes acho irrelevante. Quando acho que proveitoso, busco explorar essa bagagem de maneira simples.

    Rosa: As aulas partem do que o professor pensa que os alunos sabem sobre o que est sendo trabalhado.

    O professor, responsabilizado que est pelo processo de educao, visto, por Bruno e por Rosa, como a fonte de saber legtimo, a ligao exclusiva com a cincia e, por isso, conhecedor daquilo que deve ou no deve ser considerado o que pode remeter a uma concepo prxima de particularidades a partir das quais o conhecimento-como-regulao definido: uma [...] trajetria entre um ponto de ignorncia designado por caos e um ponto de conhecimento, designado por ordem (SANTOS, 1996, p. 24). De tal forma isto se manifesta que, por meio dos dois depoimentos apresentados, percebe-se que fica sob a guarda desses docentes as decises a respeito tanto da relevncia das culturas juvenis quanto da incorporao ou no dessas matrizes nos trabalhos propostos, promovendo uma espcie de corte entre os saberes da ordem do conhecimento cientfico e os rudos do cotidiano de que esto repletos os saberes de senso comum. Pelo que se pode depreender, ressoam nestes enunciados concepes que, ao modo de parfrase, retornam e retomam certa confiana didtico-pedaggica na constituio do trabalho docente a partir de diretrizes que propem um professor-epicentro numa escola silenciosa quanto s matrizes culturais a partir das quais os educandos se significam.

    SENTIDO DE SENSOCOMUNIZAO

    Neste sentido encontra-se um dos pressupostos do paradigma emergente (SANTOS, 1988): o saber cientfico amalgamado ao senso comum, ou seja, a cincia est a servio do indivduo e no o indivduo a servio da cincia. Isso porque as experincias do senso comum, junto das experincias dos

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    saberes cientficos, se tornam mecanismos de melhor viver, o entendimento da realidade no est desconexo do sujeito e do local onde este sujeito se forma. Nos depoimentos de Alexandre, Joo, Paulo, Mauro e Diego, encontra-se esta concepo: o repertrio cultural do aluno, suas experincias, gostos e/ou vivncias se aliam aos saberes cientficos, os docentes ficam atentos valorizao destas realidades e buscam a compreenso do seu meio.

    Alexandre: Mas a questo que interessante como tu lida com a cultura que o jovem traz. Eles gostam, por exemplo, de reggae, de rock, e eu peo pra eles: Me tragam uma msica pra trabalhar com a Guerra da Secesso nos EUA. A eles trazem Buffalo Soldier, do Bob Marley. Todos eles conhecem [a msica], mas no sabem o que t por trs daquilo, quem o Buffalo Soldier. E essa leitura que legal, tem uma insero dentro do contedo de Histria que fica legal. Depois peo pro cara que gosta de rock n roll: Traz a msica The Trooper, do Iron Maiden. Ele traz a msica, o clipe, a traduo, e depois v que isso t inserido no contexto do imperialismo, da Guerra da Crimia, o cara [o artista] t falando de um poema do sculo XIX... Essa coisa legal de fazer com eles: a partir do que eles gostam, tu consegue fazer com que aquilo tenha um sentido.

    Joo: Isto [o repertrio cultural do estudante] deve ser trabalhado de forma no apenas respeitosa, mas tambm problematizadora, no sentido de procurar compreender como a bagagem cultural prvia de cada um dos alunos relaciona-se com a dicotomia classista de nossa sociedade.

    Paulo: Todas as atividades so voltadas para que o jovem tenha voz a partir do seu cotidiano, da sua realidade e sua faixa etria. Trabalha-se com o que o jovem traz e oportuniza-se outros conhecimentos tanto na disposio por parte da professora quanto no contato com a produo de outros alunos. Exemplo: No contato com obras de um artista, o aluno conhece o que o motivou a realizar seus trabalhos, memrias de infncia, de lugar, a partir disso prope-se que o aluno tambm realize seu trabalho com base no que foi estudado, em sua prpria vida.

    Mauro: Na minha rea, por exemplo, temos a etnomatemtica, definindo seu prefixo etno como um grupo de pessoas da mesma cultura e caractersticas culturais bem delimitadas para que possamos caracteriz-los como um grupo. Sendo assim, cada etnia tem os seus costumes, suas maneiras de aprender e tcnicas particulares para classificar, ordenar, contar e medir. Neste sentido, a etnomatemtica visa valorizar os saberes matemticos que os alunos constroem fora do mbito escolar, trazendo tambm para a sala de aula, as maneiras pelas quais diferentes culturas aprendem matemtica.

    Diego: [...] estou fazendo agora com os Terceiros Anos, uma coisa que eu nunca fiz, que Seminrio, e t sendo bem bacana, mas acredito que com o tempo a temtica no v se consolidar, porque acredito que tu tenha que trazer uma carga cultural pra convidar a galera pra refletir n? No uma aula expositiva. O Seminrio uma maneira de articular a carga cultural do aluno com a sala de aula, de trabalhar temas que se aproximam mais do estudante do que o currculo engessado que a gente tem que trabalhar de contedo, e acho que fomenta neles que vo atrs daquilo como cultura, e no s como conhecimento por conhecimento.

    Nestes exemplos, o foco de valorizao o sujeito que vive e produz a sociedade, como tambm o meio e a sociedade em que ele vive, pois o conhecimento cientfico

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    versa sobre o mundo destes estudantes, deste professor, desta comunidade. Aqui v-se, com clareza, que, na cincia ps-moderna, o salto mais importante o que dado do conhecimento cientfico para o conhecimento do senso comum. O conhecimento cientfico ps-moderno s se realiza enquanto tal na medida em que se converte em senso comum (SANTOS, 2008, p. 90). Como destacado no depoimento de Alexandre: a partir do que eles gostam, tu consegue fazer com que aquilo tenha um sentido, o que se converte objetivamente na construo de significados sobre a realidade vivida por estes estudantes, que ressignificam suas vivncias a partir de um novo prisma: o da cincia.

    Esse processo de ressignificao, de transformao dos saberes, parte do pressuposto de que a cincia, [...] ao sensocomunizar-se, [...] entende que, tal como o conhecimento se deve traduzir em autoconhecimento, o desenvolvimento tecnolgico deve traduzir-se em sabedoria de vida (SANTOS, 2008, p. 91). A sensocomunizao est intrinsecamente atrelada ao sentido de sujeito sociocultural, j que reconhece no aluno matrizes culturais diversas. No depoimento de Bruno, encontra-se referncia ao benefcio deste processo de valorizao do sujeito: um melhor relacionamento entre professores e alunos [...] E isso legal, eles se aproximam mais de ns professores, se sentem valorizados e demonstram carinho.

    A sensocomunizao no processo da educao envolve proposta de transformao do sujeito que est em sociedade, dada a potencializao escolar proporcionada pela discusso da realidade vivida por meio de diversos pontos de vista, sejam cientficos ou no. Nesta construo da cincia sensocomunizada, o ganho maior retorna para a sociedade que se v pensada por indivduos sensibilizados para a sua forma de vida e para a sua realidade, para a sua comunidade.

    SENTIDO DE ESTRANHAMENTO

    A sala de aula espao de encontro de culturas e de realidades diversas. No apenas em razo da riqueza que os estudantes trazem para a escola, reverberando sobre ela as suas subjetividades, mas tambm do encontro entre docentes e discentes. Um docente que, tal como o aluno, sujeito de particularidades, vivncias, histrias, experincias plurais. Com frequncia se tenta esquecer este

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    fato, ou deliberadamente negligenci-lo, em favor de um dito profissionalismo neutro. V-se, ento, o surgimento de duas personas estranhas a si habitando um mesmo corpo: uma associada ao mundo da escola e outra, ao mundo da vida. Ocorre uma espcie de desdobramento da homogeneizao da escola para os territrios e contextos de tessitura da docncia.

    Tais processos ecoaram nas falas docentes sob a forma de um sentido de estranhamento entre professores e alunos que surpreendem, chocam uns aos outros, dadas as suas formas distintas e, por vezes, distantes uma da outra, de entender e sentir a vida. Parece ocorrer o estranhamento do professor em relao ao aluno (estranhamento diante da matriz cultural, do modo de ser jovem) e, talvez, tambm do aluno em relao ao professor (estranhamento diante da falta de sentido do que o professor trabalha, estranhamento porque o aluno no se reconhece como parte do trabalho do professor). Trata-se de um encontro de geraes que viveram e produziram cultura de formas diferentes, por vezes dissonantes. O docente, para alm do seu papel de educador, est marcado por maior que seja a presso daquele dito profissionalismo escolar que se supe neutro pela sua cultura, pelas suas experincias, pela sua vida. Nesse caso, os estranhamentos so fenmenos naturais de um modo de se fazer professor, aluno, adulto, jovem. A consistncia das relaes estabelecidas entre professores e alunos que pode imprimir sentidos produtivos a um estranhamento que, talvez, seja produzido social e discursivamente na medida em que no os provoca a se perceberem como igualmente protagonistas da cena escolar.

    A este respeito, posturas diferentes podem ser referidas. Uma delas est em ligao direta com o sentido de conhecimento-como-regulao: slida, intransigente, aponta ao papel social do adulto de conservao (PERALVA, 1997). O professor se condensa na funo do adulto que suprime o novo, manifesto e concretizado na figura do jovem, para que a tradio se preserve. As transformaes que surgem no causam apenas estranhamento, mas, com frequncia, enfrentamentos, modulando a relao entre professores e alunos por meio de uma leitura especfica, qui reducionista, da juventude: O velho

    se impe sobre o novo, o passado informa o futuro e essa definio cultural da ordem moderna define tambm as relaes entre adultos e jovens, definindo o lugar no mundo de cada idade da vida (PERALVA, 1997, p. 18). Essa relao pode ser percebida nos depoimentos de Alexandre, Vanessa, Lcia e Gustavo:

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    Alexandre: Eu diria que pra juventude atual tudo muito esparso, ela no tem muita noo de tempo, de um todo. [...] uma coisa que me incomoda, escutar uma msica de um, uma msica de outro, a fica uma miscelnea de msicas, e eles nunca tm uma ideia do todo, do conjunto. No sei se isso bom ou ruim, mas uma coisa que pra mim causa estranhamento.

    Vanessa: Eu acho que o aluno s consegue se aproximar do contedo, achar aquilo importante se estiver de alguma forma relacionado a ele. Ento, o nico jeito de fazer isso considerando o que ele tem, e no tem como dar a mesma aula em dois lugares diferentes, nem pra turmas diferentes, porque cada turma tem suas dificuldades, coisas que do certo, coisas que no do certo, as caractersticas. Cada aluno, s vezes cada aluno, individualmente, eles so diferentes e tem que considerar isso... ah. Eu conheo muitos professores que no fazem isso e... e acaba perdendo pra todos os lados, porque o professor fica frustrado porque os alunos no fazem o que ele pede, o aluno fica frustrado porque o professor no leva em considerao o que ele traz e...ningum aprende nada.

    Lcia: complicado de fazer essa ligao por que assim , tem muita questo com drogas, muita questo de gravidez indesejada. No ano passado eu consegui fazer um trabalho com eles puxando pra esse lado, fazendo um gancho, mas fazer esse trabalho tu te sente at s vezes desmotivada por que eles acham tudo engraado. Mesmo eles indo procurar alguma coisa sobre isso, mesmo eles indo se informar sobre o assunto, eles acham tudo bobagem.

    Gustavo: Um mau que hoje est acontecendo na escola isso: a referncia que eles trazem da famlia e da rua, e pensam que podem agir da mesma maneira na escola, hbitos ruins e errados, que muitas vezes na casa deles comum e eles pensam que na escola preciso que os professores aceitem... falta de educao, baguna, querem dominar o ambiente, porque em casa assim.

    A diferena entre matrizes culturais de professores e alunos, por vezes, motivo de inconformidade e dificuldades. No ambiente de sala de aula, observa-se o conflito de foras que buscam anular uma a outra; no, colaborarem entre

    si. Este embate na relao adulto e jovem, apontado por Peralva (1997), acaba por se reproduzir na instituio escolar, podendo comprometer a fundamental busca por provocar os sujeitos a se deslocarem por diferentes pontos de vista, se colocando na posio de aprendizes do outro que reconhecem, e buscam conhecer, nas suas diferenas.

    O outro lado do estranhamento professor-aluno uma leitura mais lquida das particularidades geracionais como se surpreendeu nos depoimentos de Amanda, Fernando e Diego. Esta viso mais lquida das diferenas entre professores e alunos se encaminha para o sentido de sujeito sociocultural, pois reconhece, na subjetividade, um indivduo produtor/consumidor de culturas singulares e relevantes.

    Amanda: [...] Acredito que o trabalho com isso deve ser direcionado prtica de trazer diferentes opinies para discusso, [...] tem-se que considerar que o aluno passa apenas

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    4 horas das 24 horas dirias na escola, e o que se vive nesse tempo todo no pode ser ignorado ou deixado pra trs quando se entra em uma sala da aula.

    Fernando: necessrio que os alunos possam expressar sua carga cultural na sala de aula. Para que eles se reconheam parte importante da sua prpria aprendizagem.

    Diego: [...] eu tenho percebido que a cultural juvenil, de uns trs anos pra c, mudou completamente. [...] com a gurizada de hoje em dia tem muito mais dificuldade porque a cultura deles t muito baseada na questo virtual, ou ento na questo de deturpao de valores, coisas que me assustam um pouco. No d pra negar que uma cultura um pouco mais pobre, sabe? [...] O seminrio uma maneira de articular a carga cultural do aluno com a sala de aula, de trabalhar temas que se aproximam mais do estudante do que o currculo engessado que a gente tem que trabalhar de contedo, e acho que fomenta neles que vo atrs daquilo como cultura, e no s como conhecimento por conhecimento

    A sala de aula atinge, nesse caso, o papel de local da cultura (BHABHA, 1998), de confraternizao de saberes, de trocas, vivncias e encontro com o outro/outro sem embate que intenta a homogeneizao de estudantes, de professores e da prpria instituio.

    PARA NO DIZER QUE NO SE FALOU

    Os conceitos de juventude, educao e escola, considerados neste estudo, remetem a realidades de carter notadamente curricular e, por isso, necessitam de reflexo docente que venha acompanhada pela releitura da instituio educativa (SILVA, 1992; 1999; 2005; SANTOS, 2008) de modo a reconsiderar, inclusive, certas escolhas relativamente s rotinas de sala de aula, organizao dos trabalhos e compreenso das geografias e das histrias das juventudes e do modo como os jovens esto sendo jovens nos espaos escolares e no escolares. Reconhece-se, em funo disso, a necessidade de um currculo que [...] possibilite aos estudantes uma crtica poltica articulada dos arranjos existentes [...] (SILVA, 1992, p. 92), capacitando o estudante a viver em sociedade de tal modo que tome a frente no direcionamento e na construo dos seus valores e projetos pessoais. Igualmente, entende-se como importante a produo de uma prtica a partir da qual o educando possa refletir sobre o currculo implcito e explcito no/do fazer docente.

    Evidenciam-se, no trabalho analtico, alguns sentidos que se revelam importantes para a compreenso do educador e das suas concepes, dessa escrita de si inerente s artes do ofcio docente. Nesse encontro nosso com

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    as vozes dos educadores surpreendeu a liquidez ambgua (BAUMAN, 2001) e intervalar (BHABHA, 1998) do ser contemporneo, que ora se posiciona num lugar de sentido mais conservador e tradicional, ora em outro mais inovador, transgredindo as fronteiras de si mesmo e, ao mesmo tempo, deslizando por entre lugares de parfrase e lugares de polissemia dos sentidos pedaggicos.

    Vislumbram-se polissemia e parfrase habitando o mesmo indivduo, s vezes, a mesma resposta. Observa-se o enfrentamento do presente que pretende construir a si mesmo e do passado que busca se preservar em sentidos cujas relaes podem ser assim representadas:

    Os educadores revelaram no apenas sua viso pedaggica sobre os educandos, sobre a juventude e as suas formas de expresso, mas tambm todas as vozes que ecoam na sua prtica pedaggica e, assim, os sentidos que lhes constituem. Ao falar sobre seus alunos, falavam sobre si mesmos. Ao falarem sobre a docncia capturada pelas vozes dos educandos, engendravam uma escrita de si desde lugares de autoria, por vezes, antagnicos, rivais. Surpreende-se, a partir dos depoimentos, um modo de ser educador que, ao tomar as juventudes na escola de modo ambguo, no significa o jovem de maneira nica: por vezes, parece apoiar a transformao desse jovem numa categoria universal, por estranhamento face s tradies distintas daquelas a partir das quais os adultos aprenderam a ser adultos; outras vezes, reconhece a importncia de estabelecer dilogos ampliados com os muitos tons que cingem o sujeito e o seu jeito de se fazer jovem, de se fazer aluno jovem.

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    Nos tempos de hoje, nesta escola do sculo XXI, na qual se fazem ouvir as vozes de tantas culturas, as identidades dos alunos jovens e as dos docentes se produzem de modo intervalar, ou seja, no intervalo entre entendimentos que se relacionam de forma tensa por representarem tanto um compromisso parafrstico de manuteno de certas memrias discursivas quanto uma filiao a possibilidades polissmicas de atualizao dessa memria. Exatamente porque o professor-epicentro se conflita com o aluno sociocultural que novos desafios se constituem para a educao e para a docncia que, conforme lembra Arroyo (2002), precisa sempre mais assumir a forma de um dilogo, de aprendizagem com as diferenas, de humana docncia.

    REFERNCIAS

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    NOTAS

    1 Segundo Santos (1996), o [...] conhecimento-como-regulao consiste numa trajetria entre um ponto de ignorncia designado por caos e um ponto de conhecimento, designado por ordem. O conhecimento-como-emancipao consiste numa trajetria entre um ponto de ignorncia chamado colonialismo e um ponto de conhecimento chamado solidariedade (p. 24).

    2 [...] os lquidos, diferentemente dos slidos, no mantm sua forma com facilidade. Os fluidos, por assim dizer, no fixam o espao nem prendem o tempo. Enquanto os slidos tm dimenses espaciais claras, mas neutralizam o impacto e, portanto, diminuem a significao do tempo (resistem efetivamente a seu fluxo ou o tornam irrelevante), os fluidos no se atm muito a qualquer forma e esto constantemente prontos (e pro-pensos) a mud-la; assim, para eles, o que conta o tempo, mais do que o espao que lhes toca ocupar; espao que, afinal, preenchem apenas por um momento. Em certo sentido, os slidos suprimem o tempo; para os lquidos, ao contrrio, o tempo o que importa. Ao descrever os slidos, podemos ignorar inteiramente o tempo; ao descrever os fluidos, deixar o tempo de fora seria um grave erro. Descries de lquidos so fotos instantneas, mas precisam ser datadas. Os fluidos se movem facilmente. Eles fluem, escorrem, esvaem-se, respingam, transbordam, vazam, inundam, borrifam, pingam, so filtrados, destilados; diferentemente dos slidos, no so facilmente contidos contornam certos obstculos, dissolvem outros e invadem ou inundam seu caminho. Do encontro com slidos emergem intactos, enquanto os slidos que encontra-ram, se permanecerem slidos, so alterados ficam molhados ou encharcados. [...]. Es-sas so razes para considerar fluidez ou liquidez como metforas adequadas quando queremos captar a natureza da presente fase, nova de muitas maneiras, na histria da humanidade (BAUMAN, 2001, p. 8-9).

  • 568 Disponvel em: www.univali.br/periodicos

    Doi: 10.14210/contrapontos.v14n3.p542-568

    3 Cumpre destacar que, neste ponto em especfico, Juarez Dayrell se subsidia de discusses relativamente ao conceito de cultura propostas por Gilberto Velho na obra Projeto e meta-morfose: antropologia das sociedades complexas (1994) o que o prprio pesquisador destaca em alguns de seus textos.

    4 A este respeito, conferir CARRANO, Paulo C.R. Angra de tantos reis: prticas educativas e jovens tra(n)ados da cidade. Niteri, 1999. Programa de Ps-Graduao em Educao, Universidade Federal Fluminense. Tese de Doutorado. Neste trabalho, o autor amplia o conceito de educao para a dinmica da vida cultural, incorporando assim os relaciona-mentos sociais que ocorrem para alm das prticas concebidas para gerar aprendiza-gens.

    5 Neste texto, sempre que for referida a categoria cultura, ela estar remetendo ao entendi-mento assumido pelos autores com os quais as redes de reflexo foram aqui constitudas, sobretudo Juarez Dayrell, Paulo Carrano e Carlos Henrique Martins. Para eles, a cultura compreendida como [...] um conjunto de contribuies, trocas simblicas (muitas vezes conflituosas) e resistncias ativas em que cada grupo se faz presente (CARRANO; MAR-TINS, 2011, p. 45-46). Ao se ampliar tais consideraes, incluindo os movimentos a partir dos quais a cultura se transforma e se apresenta na diversidade, no fluxo e nas mais vari-adas redes identitrias constitudas pelos sujeitos, perceberemos que a cultura d lugar s culturas que se mestiam no entrelaamento desses sujeitos socioculturais que habitam os espaos sociais.

    6 Convm referir, quanto a este tema, ponderaes feitas por Bauman (2013) no texto O jovem como lata de lixo da indstria de consumo as quais ainda avanam no que tange s relaes evidenciadas entre a juventude e o mercado do consumo. Segundo o autor, [...] os jovens no so plena e inequivocamente dispensveis. O que os salva da dispen-sabilidade total embora por pouco e lhes garante certo grau de ateno dos adultos sua real e, mais ainda, potencial contribuio demanda de consumo: a existncia de sucessivos escales de jovens significa o eterno suprimento de terras virgens, inexplo-radas e prontas para cultivo, sem o qual a simples reproduo da economia capitalista, para no mencionar o crescimento econmico, seria quase inconcebvel. Pensa-se sobre a juventude e logo se presta ateno a ela como um novo mercado a ser comodificado e explorado (p. 52) (grifos do autor).

    7 Jos Vicente Tavares discute esta categoria em produes como o artigo A violncia na escola: conflitualidade social e aes civilizatrias (2001), explicando que se trata de uma srie de atitudes caracterizadas pelo enclausuramento do gesto e da palavra do outro (p. 111).

    8 Geraldo Leo (2011), ao criticar a viso provisria da escola, refere-se ao desinteresse da mesma pelos projetos de vida dos alunos, enquanto Bauman (2013), ao se referir provisoriedade, estende essa crtica compreenso da escola sobre o conhecimento, que associado a um universo logicamente estabilizado, no em transformao, fluido e incon-stante. Portanto, seus argumentos se somam um ao outro.

    9 Cf. SILVA e MOREIRA, 1999 e 2005.

    10 Cf. ESTEVE, 1984 e 1994.

    11 Segundo os professores, a realidade dos educandos se relaciona com suas individuali-dades, vivncias, experincias anteriores escola, dados de suas vidas, situaes do co-tidiano e saberes seus.