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8/19/2019 [FLUSSER, Vilém] Da Religiosidade
1/87
A COLEÇÃO ENSAIOS TRANSVERSAIS
trata
de temas ~ue articulam reflexões teóricas e aÇões
cotidiana~, em busca do que se poderia caracterizar
co.mo uma Scientia ctiva Os textôs representam
vozes que procuram um debate aberto,
8/19/2019 [FLUSSER, Vilém] Da Religiosidade
2/87
© by Edita Flusser
Vilém lusser
Todos os direitos desta edição reservados
Escrituras Editora e Distribuidora de Livros Ltda.
Rua Maestro Callia, 123 Vila Mariana 04012-100
São Paulo, SP - Telefax: (11) 5082-4190
e-mail: [email protected]
site: www.escrirura:s.com.br
Coordenação editorial
Nilson José Machado
Capa
VeraAndrade
Sistema Alexandria
A.L. : 1528677
Tombo: 31458
a Religiosidade
A literatura e o senso de realidade
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Editoração eletrônica
Ricardo Siqueira
Ilustração da capa
Mikhail Aleksandrovitch Vrubel
La Perla, 1904
Galeria Tretiakov, Moscou
Fotolitos
Binhos
1. Ensaios brasileros
r.
Título. 11.Tí tulo: A li teratura e o senso de real i
dade.
m.
Série.
ISBN 85-7531-060-7
Impressão
Banira Gráfica
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, Sp' Brasil)
Flusser, Vilém, 1920-1991.
Da religiosidade: a literatura e o senso de realidade/Vilém Flusser.
São Paulo: Escrituras Editora, 2002. - (Coleção ensaios transversais)
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02-5687
CDD- 869.94
Índices para catálogo sistemático:
1.Ensaios: Literatura brasi leira 869.94
Impresso no Brasil
Printed in Brazil
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escrituras
São Paulo, 2002
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umár o
Apresentação .IX
Introdução 13
(1) Da religiosidade 15
(2) Por que e para quê? 23
(3) Coincidência incrível... 31
(4) Pensamento e reflexão 37
(5) Da dúvida 47
(6) Praga, a cidade de Kafka 63
(7) Esperando por Kafl
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present ção
A trajetória do filósofo Vilém Flusser é um exemplo de
engajamento intelectual que se tornou raro nos dias de
hoje. Da cidade de Praga onde nasceu em 1920 Flusser e
sua mulher Edith emigram para o Brasil depois de uma
breve permanência em Londres fugindo da máquina de
extermínio nazista que avançava sobre a Europa no início
dos anos 40. Em São Paulo ele inicia sua carreira como filó-
sofo ao publicar seus primeiros livros e artigos nos anos 60
e atuando como professor de uma geração dejovens entusias-
mados pelo seu estilo de pensar falar e escrever sobre temas
que segundo ele estavam remodelando toda a história do
ocidente.
Em suas palestras que o tornaram conhecido como
um homem polêmico e intelectualmente sedutor eram
especialmente os jovens que se sentiam atraídos pela sua
maneira elástica de pensar cheia de sutilezas e nuances
cristalinos. Como orador influente Flusser transcendia a
condição temporal da fala despertando para o vislumbre de
certas dimensões atemporais do pensamento. Ele sabia que
o arrebatamento era a condição essencial para a percepção
do fluxo das coisas e talvez isso possa explicar a influência
que exerceu sobre muitos artistas para quem ele parecia
falar desde cedo. A sua não ortodoxia acadêmica aliada a
uma vasta cultura histórica despertavam tanto o prazer de
IX
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pensar, quanto os várlOs ataques que sua forma de ver
filosofia nos jornais recebeu. Seu hábito de encerrar
ensaios e até mesmo livros sem notas de rodapé parece ter
sempre afrontado aquela ordem magistral de manipulação
do saber, incomodada com as performances filosóficas e
com a objetividade comunicativa de um pensador lInico
entre nós.
No Brasil, Flusser irá exercer seu engajamel1to por
meio de publicações, cursos, palestras e projetos culturais
que, segundo sua forma de entender, poderiam servir dc
modelos para o resto mundo. Ao retornar para a Europa no
início dos anos 70, ele dará início
à
fasemais robusta dc sua
obra, cujo marco fundamental será a publicação do livro
Für einen Philosophie der Fotografie
Por uma Filosofia da
Fotografia ), editado primeiramente na Alemanha cm
1983
e dois anos depois no Brasil, com o título
A
Filosofia
da Caixa Preta. Essa obra será responsável pela imagcm
associada ao filósofo de um profeta da era tecnológica ,
um premonitor do avanço de uma sociedade cujos va
lores estariam sendo transferidos da produção de objctos
para a produção de informações.
Em suas freqüentes viagens entre a Europa e o Brasil ,
Flusser construiu uma rede transoceânica de debates em
torno de três pontos axiais básicos: a invenção do alfabeto,
a invenção da tipografia e a invenção da fotografia. Para o
filósofo, a fotografia, o primeiro meio de produção
automática da imagem, irá marcar o advento de um novo
período da história humana, pois a história da
humanidade é a história do homem com seu instrumento
e, por isso, é possível falar de uma mentalidade da pedra
lascada, uma mentalidade do bronze e do ferro, assim como
o de uma mentalidade digital .
Mas o tema de Da religiosidade , de Vilém Flusser,
não é o da emergência de uma nova capacidade para fazere
decifrar imagens imagens técnicas), e sim a literatura. Ela é
x
o lugar no qual se articula o senso de realidade. E senso de
realidade é, sob certos aspectos, sinônimo de religiosidade.
Para os interessados em sua obra, a reedição desse livro vem
nos oferecer um fecundo campo de estudos da filosofia que
se articulava no autor por volta dos anos 60. Além de nos
apresentar uma via de acesso a seu pensamento, SOlnos
ainda apresentados à filosofia de Vicente Ferreira da Silva,
figura de grande importância na formação intelectual de
Vilém Flusser em São Paulo. Em vários dos ensaios aqui
reunidos encontraremos as primeiras formulações que
serão, décadas mais tarde, retomadas na Filosofia da Caixa
Preta como no ns Universum der Technischen ilder No
universo das Imagens Técnicas ), livro de
1985
e ainda
inédito em português, no qual ele aprofunda os argumen
tos lançados na Filosofia.
Além dos ensaios sobre Kafka, a poesia concreta
paulista e Guimarães Rosa, Flusser aborda também um
tema que parece pontuar toda a sua obra, que é o tema da
morte. Ao tratar desse tema exclusivo da vida , o filósofo
nos ensina que, Toda frase de obra de pensador vivo apon
ta, ...) em sua busca de perfeição, o intelecto que a gerou, e
toda frase de obra de pensador morto aponta o intelecto
que a recebe. E a obra, como um todo, esta ligada ao in
telecto que a originou como por cordão umbilical, enquan
to vivo o seu autor. A morte corta esse cordão e a obra
emite pseudópodes em direção aos intelectos abertos para
recebê-Ia. O último significado da obra é deslocado, pela
morte, do intelecto do autor para os intelectos dos seus
interlocutores. ...) De receptor e de ponto de ressonância
transforma-se o interlocutor em guardião e realizador da
obra. A responsabilidade ... ) passa do autor para o inter
locutor, e o destino da obra depende doravante dele .
Quanto a nós, os provisoriamente pouco numerosos
interlocutores da obra , podemos dizer também que temos
o privilégio e a responsabilidade de acolhê-Ia em nosso ínti-
XI
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mo para que continue a realizar-se. Não seremos dignos
desse privilégio nem estaremos à altura dessa responsabili
dade se a ternura e plasticidade da obra for pretexto para
uma inibição de nossa parte em atacá-Ia. Embora tenra e
plástica dispõe essa obra de força suficiente para resistir a
nossos golpes.
debaixo dos golpes que ela se formar
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o Renascimento.
o
quarto e o quinto representam um
esforço de formular um novo senso de realidade tomando
como real a língua. Representam portanto a minha filoso
fia. Os ensaios 6 7 e 8 tratam da realidade como aparece
em Kafka. Os números 9 e 10 tentam articular a realidade
do existencialismo e mais especialmente a camusiana. A
partir daí focalizo a cena da literatura brasileira. Os ensaios
11 12 13 e 14 se batem com e contra a filosofia de Vicen
te Ferreira da Silva que é uma filosofia em busca de uma
realidade. O ensaio nO 15 trata da poesia concreta que é
uma técnica de criar nova língua portanto nova realidade.
Os últimos dois ensaios têm por tema a obra de Guimarães
Rosa que alia a técnica realizadora do concretismo com
uma religiosidade transcendente. A presente coleção de
ensaios procura portanto mostrar como a tendência ociden
tal em direção de uma nova religiosidade se manifesta pro
dutivamente na cultura brasileira.
neste sentido que pode
ser tomada como um esforço em prol da elaboração de uma
filosofia da literatura brasileira.
Reunir estes ensaios sob a forma de um livro é tentar
salvá-Ios do efêmero que é próprio de toda Revista. Espero
que esta contribuição modesta seja útil
à
discussão geral do
que é a civilização brasileira.
São Paulo setembro de 1965.
ilém lusser
14
religiosid de
Há pessoas incapazes de repetir a mais simples melo
dia. Outras se tornam lânguidas ao ouvir um tango argenti
no. Há os que transpõem com os últimos acordes da Flau
ta mágica a porta celeste. Para outros o Cravo bem
temperado representa o próprio intelecto humano transfor
mado em fenômeno audível. São exemplos de diversos
tipos de musicalidade. Há paralelamente diversos tipos de
criação musical cuja gama se estende desde o empenho
comercial dos compositores de Hollywood até o empenho
religioso de um Palestrina. E há finalmente o exército de
críticos que explicam a música e de virtuosos que a apli
cam . Os virtuosos são aplaudidos e venerados os críticos
têm existências um tanto mais reclusas. Essa é em termos
gerais a cena da música se desconsiderarmos fenômenos
marginais como empresários editores musicais fabricantes
e lojas de discos. A forma da cena é mutável mas a música
como tal é digamos eterna. O propósito do presente artigo
é forçar um paralelo entre música e religião e entre musica
lidade e religiosidade. A comparação é sempre um método
de estudo fértil não tanto pelos seus resultados mas pela
distância que pode proporcionar ao espírito contemplativo.
O fenômeno que corresponde
à
crítica musical é no
campo da religião um certo tipo de filosofia. Mas devemos
confessar desde logo que a crítica musical é infinitamente
15
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mais competente que a maioria da filosofia do tipo mencio
nado. Dou como exemplo o marxismo. Essa filosofia,
tomada como crítica de religião, considera os empresários,
os editores musicais, e os fabricantes e lojas de discos como
os fenômenos centrais da cena da música isto é, natural
mente, transpondo de religião para música , e acredita que
a religião pode e deve ser explicada a partir dos empresários
e dos fabricantes. Como é possível tamanha excentricidade?
É que os filósofos marxistas dispõem de uma religiosidade
que corresponde à musicalidade daquele que não sabe repe
tir a mais simples melodia. Algo como a crítica marxista da
religião é inconcebível no campo da música, já que a esco
lha da profissão de crítico musical pressupõe uma certa afi
nidade entre o crítico e a música, perfeitamente dispensável
no campo da religião e da filosofia. Dou, como outro exem
plo, o freudianismo. Essa psicologia filosofizante, tomada
como crítica de religião, considera o crítico como figura
central da cena, e crê que a crítica pode acabar com a músi
ca, libertando assim o ouvinte da necessidade de sujeitar-se
a ela. É que, provavelmente, o freudiano dispõe de uma
religiosidade que corresponde à musicalidade daquele que
soluça ouvindo tangos. Não é portanto, a meu ver, da críti
ca da religião que devemos esperar um esclarecimento do
fenômeno religioso, pelo menos não no início do nosso
esforço. Somos, creio, nesse esforço, remetidos a nossa
vivência interna,
à
religiosidade. É ela, embora tão variável
e insegura, a nossa única avenida de acesso ao fenômeno
religioso. Todas as demais aproximações são secuncLíriase
auxiliares. A ela pretendo recorrer, portanto, no presente
artigo.
Chamarei de religiosidade nossa capacidade para cap
tar a dimensão sacra do mundo. Embora não seja ela uma
capacidade que é comum a todos os homens, é, não obstan
te, uma capacidade tipicamente humana. Certas pessoas,
certas épocas e certas sociedades dispõem de um talento
16
especialmente marcado para a religiosidade. Há pessoas
religiosamente surdas, mas não há época nem sociedade
inteiramente isentas de religiosidade. Pessoas religiosamen
te surdas vivem em mundos rasos e chatos, movimentam-se
entre coisas transparentes porque em tese inteiramente
explicáveis , e dirigem-se para a morte que torna absurdos
os mundos, as coisas e a própria vida. A capacidade religio
sa torna profundo o mundo, opacas as coisas porque
nunca inteiramente explicáveis , e torna problemática a
morte. A capacidade religiosa torna portanto obscura a
visão antes clara do mundo, como a contemplação da paisa
gem torna obscura a visão clara do mapa. O pintor aquele
que procura captar a visão da paisagem é portanto um obs
curantista do ponto de vista do cartógrafo aquele que
reduz a paisagem à sua clareza plana e chata . E o homem
religioso é um obscurantista do ponto de vista daquele que
não é incomodado pela dimensão sacra do mundo. Como a
clareza é desejável, há pessoas que abafam dentro de si a voz
da religiosidade e vivem como que com óculos escuros para
ver mais claramente. Mas como a clareza é chata, há pessoas
que fingem um sentimento religioso para o qual não têm
capacidade, e vivem enganando-se a si mesmos. Essas duas
inautenticidades opostas complicam o fenômeno da reli
giosidade.
Épocas e sociedades religiosamente férteis educam e
fortalecem a capacidade individual para a religiosidade.
Épocas e sociedades religiosamente pobres, como a época
que está para encerrar-se e a sociedade tecnológica, repri
mem e abafam a capacidade individual para a religiosidade.
Uma conseqüência dessa repressão é a deformação da reli
giosidade, que assume formas grotescas e monstruosas como
o zen-budismo nos Estados Unidos ou o paganismo atroz da
Alemanha hitlerista. Outra conseqüência dessa repressão é o
desvio do ardor religioso da dimensão sacra para a profani
dade chata do mundo e resulta em pseudo-religiosidades
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como o endeusamento do dinheiro ou do Estado. Estas
deformações e perversões da capacidade religiosa marcam a
cena da atualidade e dificultam, portanto, a contemplação
do fenômeno da religiosidade.
Feita abstração das formas inautênticas e das formas
perversas, resta-nos a capacidade genuína para captar a
dimensão sacra do mundo. Essacapacidade revelao mundo
e nossa vida dentro dele como realidade significativa, isto é,
como realidade que aponta para fora de simesma. Essesig
nificado que o mundo e nossa vida dentro dele têm é cha
mado o sacro . A profundidade do significado, a extensão
do sacro, dependem da nossa capacidade para a religiosida
de. O significado da vida pode ser, por exemplo, simples
mente a preparação para uma outra vida, em tudo igual a
esta, mas mais feliz, e eterna.
Este tipo de significado é conferido à vida por um tipo
de religiosidade comparável à musicalidade do apreciador
do tango. E o significado da vida pode ser a superação do
Eu e sua diluição na imensidão do sacro. A intensidade da
nossa capacidade religiosa é portanto variada. Mas sua
estrutura, sua Gestalt é nos imposta. Os grandes gênios
religiosos da nossa civilização a impuseram sobre as nossas
mentes. O sacro é, para nós ocidentais, prefigurado e proje
tado por esses gênios, como a música é para nós prefigurada
e projetada pelos grandes compositores. Mas aí a compara
ção entre música e religião setorna insuficiente. Os grandes
compositores estão no mesmo plano ontológico como nós,
são gente como nós, embora certamente de proporções
muito maiores. Mas os grandes gênios religiosos, esses seres
míticos como Abrão e Jacó, Moisés e, de maneira ainda
mais acentuada, Jesus, são revelados, pela nossa capacidade
religiosa, como participando de outro plano de realidade.
Em outras palavras: a nossa religiosidade
é
limitada
à
reali
zação de um único projeto: aquele que f )iinspirado, in i lo
tempore
ao povo de Israel para realizar-se na civilização do
18
Ocidente. Em suma: o sacro é, para nós, exclusivamente
Deus. Sabemos intelectualmente de outros tipos de projeto,
de outros tipos de religiosidade, e de outros tipos de sacro.
Mas este conhecimento intelectual é intraduzível para a
camada da vivência religiosa, e as tentativas nesta direção
são fadadas ao malogro da inautenticidade. Somos, como
seres religiosos, prisioneiros da revelação sinaica, por mais
que nos rebelemos contra essasgrades. esseo projeto den
tro do qual fomos jogados e é essa, no fundo, nossa defini
ção de ocidentais dentro da qual existimos.
Nosso tipo de religiosidade nos define como exis
tentes, e estabelece o mundo dentro do qual existimos.
verdade que no curso da nossa história elementos da reli
giosidade grega, e em grau menor das religiosidades latinas,
germânicas e eslavas, infiltraram-se na nossa experiência
religiosa para enriquecê-Ia e aprofundá-Ia. Mas não altera
ram sua estrutura básica, que pode ser caracterizada pelos
conceitos de fé e obras . A fé é a fidelidade ao significa
do transcendente do mundo e da vida dentro dele, fidelida
de essamantida em desafio a toda evidência em contrário; é
portanto absurda. As obras são resultado do nosso esforço
em prol desse significado transcendente, esforço esse que
transforma o mundo profano em mundo sacro pelo sacrifí
cio; são portanto absurdas. Nossa religiosidade oscila entre
o pólo absurdo da fé e o pólo absurdo das obras. De certa
forma é a história do Ocidente idêntica com a oscilação do
pêndulo da religiosidade entre os seus dois pólos. Agosti
nho e S. Tomás, Calvino e Marx marcam-lhe o compasso.
A absurdidade de nossa religiosidade é nossa resposta ao
absurdo do mundo profano. Essa revolta escandalosa con
tra a absurdidade pela absurdidade para utilizar, embora
em contexto diferente, um pensamento kiekegardiano),
marca a religiosidade do Ocidente.
Nossas religiões tradicionais são o ambiente dentro do
qual nossa religiosidade funciona. Para voltar ao paralelo
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com a música, são as religiões tradicionais as organizações
que nos fornecem as orquestras e as salas de concerto, e os
seus sacerdotes são nossos grandes virtuosos. Mas seria
insincera a tentativa de negar que as religiões tradicionais
estão em crise. Não satisfazem mais a nossa religiosidade. A
crise das religiões não é resultado dos ataques empreendidos
pelos
soit dis nt
materialistas ateus , mas os materialistas
ateus são resultado da crise das religiões do Ocidente. Os
esforços ecumênicos, que são tentativas de formar uma
única religião ocidental para enfrentar a irreligiosidade, são,
portanto, a meu ver, contraproducentes. A união das reli
giões só pode ser conseguida pela diluição da religiosidade,
e essa diluição apressará a decadência das religiões, já que
deixará ainda mais insatisfeita a nossa religiosidade. O pre
sente momento pode ser portanto caracterizado pela tenta
tiva, consciente ou não, de darmos novo campo a nossa
religiosidade. Como indivíduos e como sociedade estamos
à
procura de um veículo novo para substituir as religiões
tradicionais e abrir campo a nossa religiosidade latente.
As inautenticidades e perversões de nossa religiosida
de, das quais falei mais acima, são sintomas da procura. Na
falta de um novo veículo autêntico, a religiosidade abre
canais frustrados como partidos políticos ou seitas extrava
gantes. Mas em si é a procura de um sinal de renovação e de
saúde. A Idade Moderna era, no campo da religiosidade,
uma época decadente. Começou pelas guerras religiosas,
portanto por uma exacerbação religiosa que é sinal de deca
dência interna. Culminou no Iluminismo, portanto numa
religiosidade pervertida, já que desviada do transcendente e
fixada sobre os dois conceitos para-religiosos razão e
naturezà . E acabou na profanação total e enfadonha da
tecnologia. A procura de um novo veículo para nossa reli
giosidade, que marca a meu ver a atualidade, é uma supera
ção da Idade Moderna. Com efeito, todas as nossas ativida
des criadoras, inclusive as científicas e as artísticas, estão
dedicadas ao esforço de abrir campo novo
à
religiosidade.
Com nosso intelecto ainda somos modernos, mas com
nossa religiosidade já participamos de uma época vindoura.
O que eqüivale a dizer que somos seres de transição e em
busca do futuro. Se as religiões tradicionais são inaceitáveis
para essa nova religiosidade, se as religiões exóticas são des
vendadas como fugas, e se o desvio da religiosidade para a
política, a economia, a tecnologia decepciona, ficamos com
a fome religiosa insatisfeita. Invejamos os que a satisfazem
na forma tradicional ou nas formas substitutivas, mas
simultaneamente sentimos desprezo por eles. Essa mistura
de inveja e desprezo, de humildade e blasfêmia, caracteriza
a religiosidade insatisfeita.
essa religiosidade não compro
metida e portanto faminta de compromisso que construirá,
a meu ver, o futuro.
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8/19/2019 [FLUSSER, Vilém] Da Religiosidade
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or que e para quê
Considerem os leitores as perguntas seguintes: Por
que pássaros constroem ninhos? Para que pássaros cons
troem ninhos? e Por que tem Marte dois satélites? Para
que tem Marte dois satélites? óbvio que o primeiro
grupo de perguntas aquele que tem pássaros e ninhos por
tema é plenamente significativo no sentido de deixar
entrever a possibilidade de respostas significativas. Por
exemplo: Pássaros constroem ninhos porque o seu instinto
os condiciona para tanto e Pássaros constroem ninhos
para neles botarem os ovos . Essas respostas são problemáti
cas e provocam toda uma série de novas perguntas mas são
juízos significativos. Servem de base para uma conversação
sistemática digamos para a conversação da biologia. Mas o
segundo grupo de perguntas aquele que tem Marte e saté
lites por tema parece conter uma pergunta sem significado.
Tentemos formular respostas. Por exemplo: Marte tem
dois satélites porque ao ser expelido do sol destacou-se em
três pedaços e Marte tem dois satélites para ser agradável
aos astrônomos que o observam .
A primeira resposta é significativa no sentido já men
cionado embora seja provavelmente resposta falsa . O
propósito do presente artigo é discutir se é significativa a
segunda resposta. um problema inquietante e tem a ver
com a própria estrutura daquilo que chamamos realidade .
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Espero poder transmitir aos leitores um pouco do fascínio
que sobre mim exerce no curso deste artigo.
Não pretendo discutir o aspecto lingüística do proble
ma. A lógica formal e a análise de símbolos demonstrará
que os termos por que e para que envolvem dois tipos
diferentes de relações entre classes. Nem pretendo discutir
diretamente o aspecto do problema que a teoria do conhe
cimento ilumina. Essa teoria talvez afirmará que o termo
por que procura articular o aspecto teleológico das coisas.
O que procurarei fazer é evocar o clima existencial no qual
esses dois tipos de pergunta se formulam.
Para tanto esboçarei, muito sumariamente, duas cos
movisões, duas descrições do mundo que nos cerca. E para
restringir o escopo dessa tarefa titânica limitarei essasdes
crições ao cosmos da astronomia.
I - O mundo dos astros, aquilo portanto que se nos
apresenta, nas noites claras, como céu estrelado para inspi
rar nossos poetas e amantes, e nos telescópios para inspirar
os cosmonautas, não tem, no fundo, nem poetas, nem
amantes, nem cosmonautas por finalidade. É, pelo contrá
rio, um conjunto de fenômenos que resultaram de um pro
cesso causal e que tendem a transformar-se nesse processo.
Esse aspecto do mundo dos astros é relativamente recente.
Antigamente era considerado esse mundo como o exemplo
por excelência da imutabilidade e da eternidade. Mudanças
e transformações só as havia no mundo sublunar, mas nas
esferas acima da luà reinava a harmonia eterna, uma ilus
tração do puro Ser , um símbolo da Divindade. Hoje ten
demos mais para uma interpretação diabólica do Inundo
dos astros. Houve, no início , uma explosão, comparável,
em sua estrutura, com as nossas explosões atômicas, mas
cujas dimensões são incomparáveis. O que explodiu? Um
ponto infinitamente pesado. O ponto
é
algo que não tem
24
dimensão, que não ocupa espaço. O ponto é a maneira
geométrica de articular o nada. O peso infinito é algo que
abrange todas as coisas. uma maneira um tanto materia
lista de dizer-se tudo . O mundo dos astros teve início na
explosão de tudo que era nada. Essaexplosão pôs em movi
mento uma cadeia de causas e efeitos. Tratava-se de uma
transformação progressiva e violenta de matéria em ener
già . O peso infinito tornou-se, em virtude dessa transfor
mação, peso finito. A dimensão zero tornou-se, em virtude
dessa explosão, dimensão finita. O mundo dos astros tem,
no seu estágio atual e fugaz, peso e dimensão finitos e deter
mináveis.
um algo esse mundo. Esse algo chama-se
espaço-tempo . Consiste de grande número de entalhos,
de rugas, de vales, que se chamam campos . O fundo des
sesvalesé formado pela matéria , e as paredes dos vales são
formadas por energià . A matéria é energia condensada, a
energia é matéria diluída. O processo explosivo dilui maté
ria, diminui seu peso e aumenta a dimensão do campo. Esse
processo é irreversÍvel (ou pelo menos parece sê-Io). Suas
diversas fases são, em tese, reversíveis, mas esgota esse pro
cesso as virtualidades contidas na explosão inicial, pelo
princípio da entropia .
As rugas formam bolsas dentro de rugas maiores, que
por sua vez formam bolsas em rugas ainda maiores. As
rugas-mães, os campos maiores, são chamados sistemas
galácticos e são os pedaços que compõem o mundo dos
astros. Esses pedaços (se
é
que podemos recorrer a um
termo tão arcaicamente materialista) fogem em corrida
desenfreada a partir de um centro. Distanciam-se, a cada
segundo que passa, desse centro e uns dos outros. O
mundo se expande . Fogem em direção ao nada, e o que os
separa, uns dos outros, é nada. O mundo dos astros consis
te de pedaços que flutuam no nada, tendem para o nada, e
perdem peso e ganham dimensão nesse processo. O estágio
final será um mundo de dimensões infinitamente grandes,
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e com o peso zero. Dimensões infinitamente grandes é a
maneira geométrica de articular tudo . Peso zero é uma
maneira de dizer-se nada . O mundo dos astros tende para
um estágio final no qual tudo será nada. Trata-se de um
processo que se inicia com o tudo que é nada, e que se com
pleta com o nada que é tudo. O algo atual do mundo dos
astros é um estágio efêmero desse processo.
É óbvio que num mundo assim a pergunta para que
tudo isto não cabe. O mundo dos astros é pura absurdida
de. A contemplação do céu estrelado, longe de inspirar a
visão do puro Ser , da Divindade, ilustra a ilusão absurda e
diabólica do mundo que nos cerca. Em momentos de reco
lhimento podemos admirar-lhe o rigor e a beleza da sua
estrutura, articulável em poucas proposições matemáticas
simples. Podemos admirar o mundo dos astros como obra
de arte, mas como obra de arte inteiramente inútil. É o
maior exemplo imaginável da arte pela arte . As perguntas
que esse mundo impõe começam, todas elas, pelo termo
como? inquisitivo, ou pelo termo por quê? inquisitivo
ou indignado. O clima desta cosmovisão foi expresso
magistralmente pela seguinte poesia de Omar Khayyam:
And that invertedbowltheycallthe sky,
whereunderwealicrawlingliveand die,
liftnot thine eyesto it, for it
movesimpotentlyjust as thou and
E aquela tigela invertida que chamam de céu , debai
xo da qual nós todos nos arrastamos para viver e morrer,
não eleves os teus olhos até ela, pois ela se move tão impo
tente quanto tu e eu.)
II - Limitemos um pouco a visão colossal que nos tem
preocupado até agora, e contemplemos o sistema galáctico
do qual a nossa Terra modesta é parte. É constituído de
astros, isto é, de campos gravitacionais que têm bolas mate
riais por centro. Essas bolas ilustram as fases reversíveis do
processo irreversível que tentei descrever, tão ingenuamen
te, acima. São bolas incandescentes em diversos estágios de
desintegração, estão perdendo peso e emitindo energia.
Algumas dentre essas bolas estão esgotadas. Mas poderão
explodir novamente, serão estrelas novas . As dimensões
dessas bolas variam, mas são consideráveis. Um exemplo
modesto delas é o sol que nos aquece. Mas será tão modes
to assim esse exemplo?
O sol não está só e perdido no nada. Está acompanha
do de planetas , de rugas que formam bolsas dentro da sua
ruga. Talvez existam outros sistemas planetários dentro do
nosso sistema galáctico, mas não temos certeza disto. Essa
descoberta, se feita, seria existencialmente desinteressante.
As distâncias entre os astros são de dimensões existencial
mente proibitivas. Os planetas que acompanham o nosso
sol são de dois tipos, internos e externos. Os externos estão
afastados do sol e giram em seu redor envoltos em frio ini
maginavelmente rigoroso. Praticamente não pode haver
reação química nesses corpos. Os planetas internos são
Mercúrio, Vênus, Terra e Marte. Mercúrio é um corpo fer
vente e fervoroso. Se há reações químicas nele, devem ser
simples e rápidas e extremamente voláteis. Vênus e Marte
são Terras frustradas. Não conseguem estabelecer o equilí
brio precioso e incrivelmente complexo no qual seencontra
a Terra. Consideremos portanto essa nossa Mãe amorosa
que é a Terra.
É
ela um corpo a um tempo conservador e altamente
mutável. Tudo nela é moderado. As temperaturas variam
constantemente, mas dentro de limites muito modestos. Há
uma pressão quase constante, mas maleável, que sua atmosfe
ra gasosa exerce sobre a solidez fluida da sua crosta. Suas
substâncias se encontram em todos os estágios de agregado.
São sólidas, viscosas, líquidas, emulsões e gases.A mais ínfi
ma variação de temperatura ou pressão ínfima secomparada
com os externos que regem o cosmos) transforma sólidos em
27
8/19/2019 [FLUSSER, Vilém] Da Religiosidade
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gases ou comprime gases. E, como estágio intermediário,
incrivelmente improvável e incrivelmente fugaz, correm,
fluem e derramam-se os líquidos em busca da vida.
Nossos ventos assopram nossas nuvens, nossos rios
modelam nossas montanhas, nossos oceanos, inspirados
por nossa Lua, retocam constantemente nossos continen
tes. Fazem-no para produzir praias ensolaradas, para criar o
ambiente daquele milagre indescritível que é o surgir da
primeira gota daquele polímero viscoso chamado proto
plasma , da primeira gota da vida. Como se deu essa cons
piração gigantesca? Como se constelaram galáxias e astros,
como se conjugaram influências físicas, térmicas,
l tro-
magnéticas, óticas, químicas, e incontáveis outras, para
produzir esse milagre? Como se contorceu esse cosmos
gigantesco todo, para dar à luz essa ínfima gotinha? E qual
é a estrutura dessa gotinha? Ela contém, em sua organiza
ção, o projeto de toda aquela evolução que passa pelos pro
tozoários, resulta na incrível riqueza de formas das espécies
vegetais e animais, produz o homem com sua capacidade de
abranger, de maneira misteriosa, o
osmos
inteiro pela sua
força articuladora, pela língua, e passa, quiçá, além do
homem para criar seres ainda mais divinos e diahólicos que
ele. E tudo isto estava contido, em projeto, naquda primei
ra gotinha? Não podemos crer, por instante scqucr, que
tudo é resultado de um acaso . Seria uma explicação ,
cuja inautencidade existencial grita para os céus. Mas, afi
nal, acaso não é sinônimo de milagre ? Não, o ll1undo
dos astros tem uma finalidade, e sentimo-Ia dentro da pró
pria medula dos nossos ossos.Todo esseprocesso aparente
mente absurdo tem por finalidade produzir o Sol, e a Icrra,
e a vida, e o homem, e aquele espírito humano que indaga
por sua finalidade.
O mundo dos astros tem um propósito, e esse propósi
to somos nós, são as nossasmentes. com esta il1l en
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oincidênci incrível
Quando abro o rádio jorram anúncios; quando abro a
torneira jorra água. Se amanhã a torneira jorrasse anún-
cios a minha reação seria surpresa. Vivo em expectativa
constante: espero constantemente que torneiras jorrem
água pura água toda a água e nada mais que água. Essa
minha expectativa não é confirmada pela experiência que
meus sentidos fornecem. Torneiras jorram água suja ou
pouca água ou nada. Mas a evidência dos meus sentidos
não destrói a minha fé nas torneiras. Explicam o compor-
tamento das torneiras por fatores externos como a hipótese
da falta de chuva ou a hipótese do encanador ou a hipóte-
se da Municipalidade. Essas hipóteses provam que elimi-
nados os fatores externos torneiras jorram água. A evidên-
cia dos meus sentidos embora prim f ie contrária à
minha fé nas torneiras fortalece em virtude das hipóteses
a minha expectativa de água. Pois é este exatamente o cará-
ter da fé: é uma esperança que transforma evidência contrá-
na em prova.
Mas o caso da torneira jorradora de anúncios seria
diferente. Seria não o inesperado mas o inesperável. Cau-
saria surpresa. Poderei superar essa surpresa com hipóteses
ousadas. Pela hipótese da alucinação ou pela hipótese do
rádio portátil escondido na torneira por exemplo. Mas por
um instante pelo menos a minha fé ficará abalada.
31
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17/87
---~
Casos como o da torneira jorradora de anúncios ocor
rem. Antigamente eram chamados milagres. Hipóteses
ousadas reintegravam os milagres no tecido da fé, a qual
continuava fortalecida por eles. Das Wunder ist des Glau
bens schoenstes Kind (o milagre é o filho mais belo da fé)
diz Goethe. Tão forte era a fé, que os antigos esperavam
pelo inesperável, pelo milagre. Atualmente, embora conti
nuem ocorrendo casos surpreendentes, não ocorrem mila
gres. Evoluímos um mecanismo que sufoca automatica
mente surpresas. É o mecanismo do faça-de-conta .
Quando algo inesperável ocorre, fazemos de conta que era
esperado. É graças a este mecanismo que nada nos sur
preende. Tudo é corriqueiro. Torneiras jorradoras de anún
cios: nada mais corriqueiro, nada mais banal que isto.
Que ocorram. O choque de surpresa que causarão não
passará de vestígio de uma ingenuidade superada. A tese do
presente artigo será que este nosso mecanismo é sintoma de
fé profunda. Que somos uma época que espera por mila
gres. E que nossa fé na torneira é parte da nossa fé funda
mental na tecnologia. De uma esperança portanto que é
fortalecida por evidências contrárias, e que cresce com tor
neiras jorradoras de anúncios, com milagres portanto.
Se digo: Amanhã nascerá, em vez do sol, um queijo de
Minas para iluminar a Terrà , terei dito uma absurdidade.
Mas sedigo: Ontem nasceu um queijo deMinas e iluminou
a Terra , e se milhares confirmam esta minha observação,
terei articulado uma banalidade.
É
óbvio que o queijo de
Minas nasceu. As teorias astronômicas esperavampelo nascer
do Sol, mas essas teorias são apenas sistemas hipotéticos
incompletos. Comportam uma reformulação progressiva. Se
reformuladas
à
luz dos acontecimentos de ontem, provam
essasteorias que o nascer do queijo de Minas era um aconte
cimento necessário, ou, pelo menos, altamente provável. O
queijo de Minas, longe de abalar a astronomia, prova, pelo
contrário, a eficiência do método científico como captação
j
da realidade . Todo fenômeno novo se enquadra nesse
método por simples modificação da teoria. Esta é, a meu ver,
a forma como funciona a féna atualidade.
É a fé na coincidência do pensamento de um determi
nado tipo com o mundo que nos cerca. O primeiro artigo
dessa fé reza: O pensamento lógico coincide com a reali
dade . O segundo artigo reza: A expressão mais perfeita
do pensamento lógico são os enunciados da matemática
pura . O credo conclui: A realidade tem a estrutura da
matemática pura . Isto não é, como parece, racionalismo
puro. A tecnologia prova, empiricamente, que nossa fé é a
fé verdadeira. Nossas máquinas e nossos instrumentos são
fé aplicada, são obras no significado teológico do termo.
E nossas máquinas e instrumentos funcionam. Provam
nossa fé empiricamente. Funcionam como funciona, por
exemplo, a torneira. Jorram água, e isto prova, também,
que nossa fé é verdadeira. Ou jorram anúncios, e isto
prova, de maneira concludente, que nossa fé é verdadeira.
Nossa fé tem um aspecto racional, e um aspecto empÍrico:
é uma fé completa.
A coincidência entre pensamento lógico e realidade é
incrível. Não pode ser acreditada. Nossa vivênciado mundo a
desmente a todo passo. No entanto, nossa fé aceita essacoin
cidência como fato indubitável. É uma fé autêntica, porque
crê qui bsurdum Mas ao dizer que a coincidência é incrível,
coloquei o presente argumento em terreno estranho
à
fé da
atualidade. A nossà fé não é a fé do presente argumento.
Como consegui essaironia? Evidentemente porque nossa fé
permite, em seu estágio atual, que seja abandonada. Abriu
fendas. Por uma dessas fendas escapou-lhe o presente argu
mento. Uma fé que abre fendas é uma moradia incômoda e
perigosa.
É
incômoda, porque ventos gélidos invadem os seus
aposentos e fazem tremer os que nela se abrigam. E é perigo
sa, porque ameaça ruir e soterrar os habitantes em sua ruína.
[)uas são as possibilidades que uma situação destas oferece:
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procurar fechar as fendas, ou procurar construir uma fé nova.
Com efeito, é o que estamos fazendo todos.
E, como somos seres confusos, estamos tentando as
duas possibilidades simultaneamente. A mente humana é
construída assim: não pode existir desabrigada. As tentati
vas de reconstrução e as de construção nova têm uma coisa
em comum: procuram ambas descobrir os fundamentos do
edifício ameaçado. a pergunta: Como surgiu a fé da qual
todos participamos ainda, embora precariamente?
Jaspers publicou um livro que muito bem poderá ser o
seu último: Nikolaus Cusanus (Cusano). uma análise
existencial desse pensador que se coloca entre a Idade Média
e a Moderna (1401-1464). Obviamente Jaspers procura des
cobrir um dos fundamentos da fé moderna. Não pretendo
seguir-lhe os passos no livro mencionado. Chamarei, no
entanto, a atenção dos leitores para um conceito fundamen
tal de Cusano:
coincidentia oppositorum
A coincidência
pressupõe uma oposição, e essaoposição é o fundamento do
pensamento moderno.
uma cosmovisão inteiramente
diferente da medieval a moderna. Houve, no Renascimento,
uma virada fatídica, pela qual o homem se colocou em opo
sição ao mundo. O homem tornou-se sujeito , e o mundo
seu objeto . Desde então o homem encara o mundo. por
tanto absolutamente necessário que haja coincidência, entre
homem e mundo, por incrível que seja. Do contrário, seria
o homem um ser totalmente alienado. Esta é, em resumo, a
explicação históricà da nossa fé periclitante.
Em virtude da virada contra o mundo tornou-se o
homem, na palavra de Cusano, o segundo Deus Ainda havia
um primeiro. Em Cusano a fémedieval emDeus ainda secon
fundia com a fémoderna. Mas já em Descartes essafémedie
val empalidecia. A função do primeiro Deus era a de ajudar o
segundo Deus a estabelecera coincidência incrívelentre elee o
mundo.
graçasao concursusDei que o pensamento humano
se adequa às coisas extensas. A fé moderna conseguiu, mais
34
tarde, superar essanoção pálida do primeiro Deus. Transferiu
separa a coincidência mesma.Tanto racionalistascomo empi
ristas colaboraram nessa transferência que é, com efeito, o
endeusamento do pensamento humano de um tipo determi
nado. Se, no curso do pensamento moderno, a noção de Deus
parece acompanhar parte do argumento filosófico, é, no
entanto, uma noção organicamente alheia. O pensamento
moderno pode passar, perfeitamente, sem essa hipótese de
Deus. Dispõe de inúmeras outras. Mas da coincidência entre
pensamento e mundo não pode passar, e esta não é hipótese,
mas artigo de féportanto. redo in coincidentiam unam
A conseqüência deste tipo de féé a tecnologia. Os nos
sos instrumentos estão contidos, em germe, já no projeto
de Cusano. Os instrumentos são produtos da oposição
entre homem e mundo. Surgiram pela graça da coincidên
cia entre ambos. Por coincidir o pensamento lógico com o
mundo extenso, surgem instrumentos. Instrumentos são
obras da graça. pelos instrumentos que o homem se inte
gra na totalidade da graça. por eles que se realiza . O
mundo dos instrumentos que nos cerca testemunha a pro
cura da graça da humanidade moderna.
A torneira é o equivalente do Ídolo de épocas passadas.
Ídolos podem ser vorazes.O Moloch devora os fiéis que
o adoram. Isto prova que funciona. Confirma e fortalece a fé
dos fiéis portanto. A bomba H fortalece a fé moderna. De
certa forma prova, ao destruir a humanidade, que o homem é
Deus. Não é por este aspecto ético da tecnologia que nossa fé
periclita. Os que pensam assim, estão enganados. A razão
disto é outra. Está no próprio fundo da nossa féna coincidên
cia incrível. Não acreditamos mais tão firmemente que nossos
pensamentos lógicos coincidem com a realidade .
Não o acreditamos mais tão firmemente, a despeito de
evidências tão palpáveis como o é a bomba H (ou a tornei
ra), porque somos incapazes de sorver a vivência da graça
nos instrumentos. Já nos causam tédio e nojo. Não nos
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causam mais admiração e medo, e se o fazem, fazem-no de
forma tediosa. É, com efeito, um círculo o pensamento
moderno, um círculo que sefecha atualmente. O círculo se
abre com a oposição entre homem e mundo, e fecha-se ao
começarmos a perceber que ambos não coincidem. E que,
com efeito, a coincidência é incrível.
Essa sensação que os instrumentos nos causam é talvez
o sintoma do despertar de um novo senso de realidade.
Começamos a perceber que a realidade com a qual o pen
samento supostamente coincide, não é mais a nossa realida
de. Trata-se de um novo tipo de dúvida que surge. Uma
dúvida eguivalente
à
cartesiana, talvez, mas com intenção
inversa. E a tentativa de superar a oposição que a dúvida
cartesiana estabelece. A tentativa de reintegração portanto.
É
cedo ainda querer articulá-Ia rigorosamente. A arte
moderna e a filosofia da língua por serem análises do pen
samento e da realidade) são as primeiras articulações tenta
tivas.
Ainda participamos todos, com a grande maioria dos
nossos pensamentos e atos, da fé moderna. Ainda acredita
mos todos na torneira. Weizsaecker cita, em die Tragweite
der Wissenschaft O âmbito da ciência), o seguinte exemplo:
Um autor de livro anti-tecnológico telefona ao seu editor
para saber do manuscrito. O exemplo é significativo. Exem
plifica a fé do autor na tecnologia telefone), e exemplifica a
tentativa de superá-Ia livro). A transição na qual estamos é
um processo difícil, penoso, e cheio de contradições inter
nas. Não era outra, no entanto, a situação dos pré-renas
centistas. ]aspers é talvez nosso Cusano. Ao tornar incrível a
coincidência entre pensamento e realidade , talvez torne
crível, ele e os que lhe seguirão os passos, uma realidade
nova. A esta fé está dedicado o presente artigo.
36
i
1
r
ens mento e reflexão
O Instituto Brasileiro de Filosofia, tendo me honrado
com o convite de proferir esta conferência de encerramenro
do seu ano letivo, proporciona-me a oportunidade de expor
algumas considerações um tanto heterodoxas em torno
daquele processo chamado pensamento . Agradeço a opor
tunidade e proponho, como ponto de partida dessas consi
derações, a distinção cartesiana entre
res cogitans
coisa pen
sante) e res extensae coisas extensas). Podemos duvidar das
coisasextensas, mas a coisa pensante é indubitável. E a rela
ção entre esses dois mundos, entre o mundo duvidoso da
matéria e o mundo indubitável do pensamento, pode ser
estabelecida somente com o concursus ei com a ajuda divi
na. A cosmovisão cartesiana, opondo o pensamento ao
mundo dos corpos, estabelecendo portanto uma relação de
sujeito-objeto entre eles, e relegando essa relação à fé em
Deus, é uma das fontes, senão a fonte principal, da civiliza
ção ocidental tal como a conhecemos. De certa forma pode
mos dizer que a Idade Moderna, essa época do triunfo do
Ocidente, não passa de uma realização progressiva da visão
cartesiana. A coisa pensante, o sujeito, investe durante essa
época contra o mundo dos corpos que é o seu objeto, com a
dupla finalidade misteriosa de compreendê-Io e modificá-lo.
A ciência é o método pelo qual o pensamento se precipita
sobre os corpos para compreendê-Ios, e a tecnologia é o
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método pelo qual o pensamento se agarra às cOIsas para
modificá-ias.
O próprio êxito desses dois métodos (que é o triunfo do
Ocidente) e também, a meu ver, o começo do fim da Idade
Moderna, e, talvez, por isto mesmo, o começo do fim do Oci
dente. Porque o conhecimento do mundo dos corpos que a
ciência proporciona ao pensamento revela progressivamente a
dubiedade desse mesmo mundo, e a modificação nele opera
da pela tecnologia é portanto fútil .
Em outras palavras: as conquistas epistemológicas e éti
cas do pensamento ocidental em seu avanço contra o mundo
dos corpos revelam progressivamente que falta, a esses méto
dos, o concursus Dei Há algo fundamentalmente errado na
visão cartesiana da qual brotaram. Se a física moderna revela.
progressivamente e de muitas maneiras que o fundamento da
matéria é o pensamento, já que os elementos da matéria se
revelam como sendo mais símbolos do pensamento que outra
coisa (nêutrons, mésons etc), e já que em certos processos hm
damentais não é possível fazer-se a distinção entre observador
e observado, isto é, entre sujeito e objeto, há algo errado na
física como método do conhecimento. E se a tecnologia
modificou o mundo dos corpos a ponto de tornar perfeita
mente imaginável um estágio de fartura e de lazer, sem que
com isto diminua a angústia e o tédio humano, há algo erra
do na tecnologia como busca de felicidade. Esse erro funda
mental devemos buscá-Io, ao meu ver, no conceito do pensa
mento tal como foi projetado pela visão cartesiana, e realizado
pelo Ocidente no curso da Idade Moderna.
A dicotomia que Descartes estabelece entre matéria e
pensamento, entre corpo e alma, entre o duvidoso e o indubi
tável, é, ao meu ver, uma dicotomia nefasta. Mas confesso ser
ela de superação muito difícil. Porque essa dicotomia, longe
de ter surgido no sistema cartesiano, já está contida nos mitos
primordiais que deram origem à civilização ocidental e que
encontraram a sua expressão ritualizada no cristianismo.
38
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I
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1I
fi
11
Descartes não passa, deste ponto de vista, de uma explicitação
do cristianismo. Já o cristianismo distingue, para falarmos
com Vicente Ferreira da Silva, entre o salvável (que é a alma) e
o sacrificável (que é o corpo). A dicotomia pensamento-maté
ria não é portanto fruto de uma distinção epistemológica,
como parece ser se a formos considerar a partir de Descartes,
mas é fruto de todo um conjunto ético-religioso do qual par
ticipamos. Já que fomos projetados por esse conjunto, já que
existimos nele e graças a ele, é tremendamente difícil imagi
narmos outro projeto existencial, no qual a nefasta divisão
matéria-espírito não seria o caso. Embora saibamos de outras
civilizações, como a indiana (que desconhece a divisão a
ponto de conceber espíritos materializados), e de culturas cha
madas primitivas (que vivem em mundos pré-Iógicos, isto é,
anteriores a essa divisão), é-nos impossível sorvermos existen
cialmente esses projetos alheios ao nosso.
Mas é necessário pelo menos tentarmos esse salto para
fora do nosso projeto, se é que tenho alguma razão ao afirmar
que a divisão matéria-pensamento ameaça a nossa civil ização
com o mergulho no abismo do tédio e da futilidade, justa
mente pelo êxito da ciência e da tecnologia. E creio ser possí
vel esse salto, até certo ponto. Não pelo ultrapassar do nosso
projeto, mas graças ao poder reflexivo do qual dispomos e o
qual nos poderá conduzir até perto das nossas origens, daque
las origens nas quais se deu, in illo tempore a divisão entre pen
samento e matéria, entre alma e corpo. A reflexão, portanto,
para a qual convido os senhores, deve conduzir-nos até aquele
ponto (para recorrer a um mito) no qual se deu a expulsão do
paraíso, isto é, a alienação que é o nosso pensamento.
Que poder é esse, que acabo de mencionar e que chamei
de reflexivo? Para iluminá-Io, voltemos por um instante a con
siderar o processo do pensamento tal como o descrevi há
pouco. Disse que o pensamento se precipita sobre os corpos
para compreendê-Ios, e que se agarra a eles para modificá-Ios.
O pensamento é portanto um processo explosivo que se
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expande para dentro do mundo dos corpos para devorá-Ios.
O método desse devorar é a ciência e a tecnologia. Mas existe
outro movimento do pensamento, um movimento oposto.
Nesse movimento contrário o pensamento se vira contra si
mesmo para compreender e devorar-se a si mesmo. A palavra
reflexão indica a direção desse movimento, já que denota
um recuo em direção oposto ao avanço. A palavra correspon
dente alemã Nachdenken pensar atrás ou depois) indica a
função desse movimento, já que denota controle .
E a palavra correspondente tcheca rozmyslení pensar
analít ico) indica o resultado desse movimento, já que denota
a decomposição do pensamento. A reflexão é portanto o
movimento inverno do pensamento, que o controla e o
decompõe em seus elementos. O método desse compreender
se e modificar-se do pensamento é a filosofia. A filosofia é
portanto exatamente o contrário da ciência e da tecnologia.
As tentativas empreendidas de diversos lados, por exemplo
pelos marxistas, por Dilthey e por Husserl, de tornar cient ífi
ca a filosofia, denotam, ao meu ver, uma incompreensão total
do processo do pensamento. Se afirmei que, em nossa tentati
va de evitar a queda da nossa civilização no abismo do tédio e
da futil idade, devemos recorrer à reflexão, t inha eu em mente
exatamente essa oposição entre filosofia de um lado, e ciência
e tecnologia do outro. Não é com mais ciência e mais tecnolo
gia que sairemos da situação angustiada na qual nos encontra
mos mas com mais filosofia se é que sairemos).
verdade
que na descrição que acabo de lhes oferecer a ciência e a tec
nologia aparecem como as tendências progressivas do pensa
mento, e a filosofia como a sua tendência regressiva. E é ver
dade que a grande maioria continua valorizando
positivamente o progresso como herança dos dois séculos pas
sados e a despeito de muitos sintomas inquietantes. Mas exis
tem situações, reconhecidas mesmo por aqueles que põem sua
fé no progresso, nas quais uma expansão excessiva exige um
recuo para consolidação e descanso. Creio que devemos
40
caracterizar assim a nossa situação, mesmo se formos otimis
tas. A minha proposta de substituirmos a ciência e a tecnolo
gia pela fi losofia pode ser portanto encarada como um
ré uler
pour mieux s uter
mesmo por aqueles que não crêem, como
eu, estar o nosso progresso dirigido rumo ao abismo.
Disse que a reflexão metódica, a filosofia portanto, deve
conduzir-nos até perto das nossas origens, em profundidades
portanto que caracterizei pelo mito da expulsão do paraíso.
Esse mito nos conta, conforme creio, em sua linguagem densa
e poética, que caracteriza todo mito, o mistério do surgir do
pensamento. Conta-nos esse mito que fomos expulsos e lan
çados para cá porque comemos do fruto proibido da dist inção
entre o bem e o mal, do fruto da divisão e da dúvida portan
to. Modernizando um pouco, poderei chamar esse fruto de
antimescalina . A expulsão do paraíso, o qual pode ser descri
to como o estado da não-divisão e da não-dúvida, a expulsão
para cá, que pode ser descrito como o estado da divisão e da
dúvida, não é um acontecimento de um passado histórico
remoto, mas é um acontecimento mítico, isto é, um aconteci
mento que a todos nós aconteceu e sempre acontece de novo.
Estamos sendo expulsos do paraíso toda vez que distingui
mos, toda vez que duvidamos. Aliás, duvidar é sinônimo de
distinguir e de estar expulso, já que etimologicamente parente
de dividir e de dois. Em alemão isto se torna ainda mais claro,
já que zweifeln duvidar) conduz ao verzweifeln perduvi
dar), isto é, ao desespero. A nossa expulsão desesperada do
paraíso é portanto a própria dúvida, que é por sua vez um dis
tinguir , um dividir , um ordenar portanto.
Fomos expulsos do paraíso em direção da ordem e do
progresso. Deixamos para trás, sem esperança, o caos da indis
t inção e da ingenuidade, e estam os sendo lançados, impiedo
samente, em direção do cosmos da clareza distinta, que é,
como diz o mito, a morte. Esta me parece ser a mensagem do
mito, que foi reformulada, em sua versão mais moderna, por
Heidegger na frase: fomos lançados para cá e estamos aqui
41
8/19/2019 [FLUSSER, Vilém] Da Religiosidade
22/87
para a morte . Mas esse duvidar, que é um distinguir e um
ordenar, e que o mito chama de expulsão, esse duvidar é o
próprio pensamento. Com efeito, duvidar e pensar são sinô
nimos, e Descartes é, todo ele, resultado desse sinonimato. A
coisa pensante cartesiana é indubitável, justamente porque ela
é a coisa que duvida. De acordo com Descartes a dúvida não
pode duvidar de si mesma. A dúvida, portanto o pensamento,
distingue e ordena o duvidoso, submete o duvidoso a uma
ordem, a fim de que o duvidoso deixe de sê-Io e se torne indu
bitável. O pensamento é portanto um processo absurdo.
Duvida para deixar de duvidar, e transforma, nessa tentativa,
o duvidoso em dúvida. O processo é absurdo em dois aspec
tos: é absurdo porque a meta do pensamento é acabar consigo
mesmo, e é absurdo porque o pensamento pretende alcançar
essa meta pela transformação de tudo em dúvida. O pensa
mento em sua absurdidade é comparável à sede que pretende
matar-se bebendo o mar: porque é absurdo querer beber o
mar, e porque com cada gota bebida a sede aumenta. Quanto
mais progride o pensamento, tanto mais evidente se torna a
sua absurdidade dupla, tanto mais evidente se torna ser o pen
samento a expulsão do paraíso.
Duas perguntas se impõem ao contemplarmos a imagem
do pensamento que acabo de lhe propor: de que duvida o
pensamento? e como duvida o pensamento? Reformulando: o
que é duvidoso? e qual é a ordem à qual o pensamento o sub
mete? A primeira pergunta me parece ser uma típica pergunta
falsa, e o problema por ela posto um típico pseudoproblema.
Porque toda resposta que a ela possamos dar por exemplo a
resposta cartesiana: o duvidoso são as coisas externas ) já será
uma transformação do duvidoso em pensamento, portanto
em dúvida indubitável. Não se pode definir o duvidoso, por
que a definição acaba com ele. A definição do duvidoso é jus
tamente a meta de todo o processo do pensamento, uma meta
absurda. Porque se fosse alcançada essa definição, não somen
te acabaria o duvidoso, mas a própria dúvida acabaria, o
42
r
I
I
pensamento acabaria, já que não teria mais assunto. Estaría
mos de volta ao paraíso. Devemos portanto simplesmente
dizer que o duvidoso é a direção na qual o pensamento se
expande. Como o pensamento se expande em todas as dire
ções, tal qual o cosmos da astronomia, devemos dizer que o
duvidoso é o horizonte do pensamento. É a situação fronteiri
ça do pensamento, na qual este se expande para chocar-se
com o nada e abrir-se para ele. Pensar a respeito do duvidoso
é expandir os horizontes do pensamento, e a dicotomia carte
siana entre pensamento e coisa extensa é falsa.
A segunda pergunta: qual a ordem à qual o pensamento
submete o duvidoso? deve ser portanto reformulada como
segue: qual a ordem na qual o pensamento se expande? Esta
sim é uma pergunta autêntica e admite resposta clara. O pen
samento se expande de acordo com as regras da língua. Com
efeito, o pensamento é uma corrente de frases que seformulam
de acordo com as regras lingüísticas e seguem, uma à outra, de
acordo com essas regras. O pensamento, sendo um distinguir e
um ordenar, é um articular do duvidoso de acordo com as
regras da língua. Devemos imaginar o pensamento como teia
que seexpande em todas as direções, cujos fios são as regras lin
güísticas, e em cujas malhas impera o indizível. A teia não é
uniforme. Em certos lugares ela se apresenta densa, como por
exemplo na física moderna, em outros lugares ela é frouxa. Na
física, as regras da língua, em forma de matemática, encobrem
quase totalmente o indizível, e é justamente por isto que nessa
região o pensamento se revela aquilo que
é:
transformador do
duvidoso em língua. Em outros lugares esse caráter puramente
lingüístico do pensamento não é tão evidente. Nesses lugares
ainda persiste a esperança, desesperada conforme creio, que o
conhecimento não é uma simples f çon de p rier
Voltemos, para interpretar a teia lingüística que é o pen
samento, ao mito da expulsão do paraíso. Essa expulsão é por
tanto equivalente a uma expressão, a um grito. Cada palavra é
um grito assim, e com cada palavra que pensamos, com cada
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conceito que formulamos, estamos sendo expulsos do paraíso.
A corrente das palavras, a conversação, é o rio que nos arrasta
das nossas origens, e pelo indizível que se esconde entre as
palavras estamos sempre nas proximidades das nossas origens.
Desse indizível, dessas aberturas que a língua conserva para o
nada, é que brotam sempre novas. palavras, novos pensamen
tos. Estamos emergindo sempre do silêncio primordial e ingê
nuo que é o paraíso. Com efeito, essas nossas aberturas para o
silêncio ingênuo, essa nossa capacidade para o espanto ante o
nada, essa nossa capacidade de gritar o nosso espanto, é sinal
da nossa autenticidade. É sinal que ainda estamos na proximi
dade misteriosa do nada. Somente quando a teia da língua se
fechar inteiramente em nosso redor, quando se tornar tão
densa e não permitir mais aberturas, é que perderemos essa
capacidade para o espanto. Então não poderão surgir palavras
novas nem pensamentos novos. Estaremos presos da conversa
fiada repetitiva e decairemos, inautenticamente, rumo à
morte. Essa decadência tem aspectos individuais e coletivos.
Os aspectos individuais são por demais conhecidos para
serem mencionados. Um exemplo do aspecto coletivo de con
versa fiada é a física moderna. Tão afastada está ela das origens
do pensamento, tão densa é nela a rede da língua, que está se
aproximando rapidamente do círculo vicioso e tedioso das
equações reduzíveis a zero. Está adquirindo, rapidamente, o
clima existencial da inautenticidade, e os próprios físicos são
os primeiros a confessar esse fato.
O pensamento é portanto um processo lingüístico que se
expande, a partir do silêncio paradisíaco, em direção de sua
própria superação, de um novo silêncio portanto. O pensa
mento é a expulsão do paraíso em busca de outro.
Mas o paraíso secundário que o pensamento busca
começa a revelar o seu caráter no estágio atual do desenvolvi
mento. Demonstra ser inautêntico e tedioso.
A soma dos conhecimentos que o pensamento está acu
mulando está se revelando como sendo reduzível a zero. E a
44
t
~I
civilização tecnológica perfeita que será o resultado desses
conhecimentos está se revelando, já muito antes de ser alcan
çada, como sendo tediosa. O paraíso em direção do qual o
pensamento nos impele será indistinguível do inferno. Com
efeito, será o fim da dúvida, o fim do pensamento, será a
morte. E aí o pensamento revela o seu aspecto mais absurdo.
O pensamento é empolgante, é exuberante, é aventuroso,
enquanto aberto para o nada, enquanto imperfeito. O pensa
mento perfeito, o pensamento bem sucedido, seria o tédio
mortal, o círculo nojento do
i em per i em
Mas, dirão os
senhores, esse pensamento perfeito não representa perigo, já
que nunca será alcançado. O paraíso secundário não represen
ta perigo, já que nunca será realizado. Não posso concordar
com esse argumento.
Defini o pensamento como processo lingüístico. A civili
zação ocidental, tal como se apresenta atualmente, reduz esse
processo a umas poucas camadas lingüísticas, caracterizadas
pelas palavras ciêncià e tecnologià , que são, por sua vez,
reduzíveis à camada da matemática e da linguagem do simbo
lismo lógico. Essas poucas camadas pobres são perfeitamente
realizáveis, como o nosso progresso o prova. Pelo empobreci
mento da conversação ocidental esta se aproxima, rapidamen
te, do estágio da conversa fiada. Dentro em breve não terá mais
assunto. Graças a esse empobrecimento, o Ocidente terá reali
zado, dentro em breve, o paraíso na terra. Trata-se a meu ver,
de um perigo real e quase iminente, um perigo que pode ser
evitado somente com a abertura de novas conversações, mais
próximas da origem, e portanto mais capazes do espanto ante
o mistério do nada. Essas aberturas são possíveis, estão previs
tas no projeto que nos lançou para cá, porque esse projeto é
inesgotável. Mas é somente, a reflexão metódica, é somente a
filosofia, que pode abrir para nós essas aberturas novas, é
somente a filosofia que pode mudar o rumo do progresso.
Disse que, além da expansão, conhece o pensamento
também a fase reflexiva, na qual procura conhecer-se a si
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mesmo, e modificar-se a si mesmo. A dúvida que é o pensa
mento pode duvidar também de si mesma, pode, ela própria,
tornar-se duvidosa. Neste ponto discordo, como vêem os
senhores, da análise cartesiana da dúvida, que me parece pecar
por insuficiente radicalidade. Essa dúvida da dúvida, esse
refluir do pensamento sobre si mesmo, esta é, ao meu ver, a
definição de filosofia. E, tendo identificado pensamento com
processo lingüístico, posso definir a filosofia como reflexão da
língua sobre si mesma. Nessa reflexão a língua revelará a sua
força produtiva e a riqueza inesgotável dos seus temas. O
papel da filosofia na conversação que é a história) sempre era
este: descobrir reflexivamente os temas projetados na conver
sação e propô-Ios à realização pela conversação em progresso.
Foi assim que surgiram as ciências a partir da filosofia, e será
assim que devem surgir, a partir da mesma filosofia, novos
temas a formar novas conversações e novas realizações por ora
inimagináveis. E é assim que se me afigura evitável a queda da
nossa conversação no abismo do silêncio inautêntico que a
ameaça.
O processo do pensamento é absurdo. Pensamos para
não pensar mais, falamos para podermos calar-nos. Mas é essa
absurdidade do pensamento que faz com que sejamos
homens. Ser homem é ser absurdo.
É
inalcançável para nós a
ingenuidade paradisíaca, o estado anterior à dúvida, a integra
ção portanto. Somos, como homens, seres alienados, seres
expulsos. Aceitemos a absurdidade do desterro. Duvidemos o
mais possível, e duvidemos num máximo de camadas possí
veis. Ao expulsar-nos do seu seio, nossa origem nos arriscou
Rilke). Aceitemos esse risco. Não nos deixemos enjaular pelas
poucas camadas agora em vias de realização pela conversação
do Ocidente. Não tenhamos medo de novas palavras e de
novos pensamentos. Abramos novas aberturas e experimente
mos novos espantos. Assim, e somente assim, seremos dignos
de sermos homens, isto é, res cogit ntes coisas pensantes.
46
dúvid
A dúvida é polivalente. Significa o fim de uma certeza.
Significa a procura de certeza. Significa ainda, se levada ao
extremo, ceticismo, isto é, certeza invertida. Em doses
moderadas estimula o pensamento. Em doses excessivas
paralisa o intelecto. Como experiência intelectual é um dos
prazeres puros. Como experiência moral é tortura. O ponto
de partida da dúvida é a fé. A fé como aceitação ingênua
dos dados Wahrnehmen ) é o estado intelectual primor
dial e primitivo. A dúvida destrói essa ingenuidade de
forma irrevogável.
As certezas que o método da dúvida fornece nunca
serão tão autênticas quanto o é a certeza primitiva. Conser
varão sempre a marca da dúvida que lhes era parteira. A
dúvida é um método que procura criar certezas inautênticas
pela destruição de certezas genuínas. A dúvida como méto
do é absurda. Surge a pergunta: Por que duvido?
É
mais
fundamental que a outra: De que duvido? Subentende a
pergunta: Duvido mesmo? Trata-se de duvidar da dúvida
portanto. Trata-se de um último passo.
Descartes e com ele quase todo pensamento moder
no) aceita a dúvida como indubitável. Essa fé ingênua na
dúvida caracteriza, com efeito, a Idade Moderna cujos últi
mos instantes presenciamos. A fé na dúvida cabe, durante a
Idade Moderna, o papel desempenhado pela fé em Deus
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em épocas anteriores. Essa fé resultou em mentalidade e
civilização idealista . Em meio de um mundo duvidoso a
dúvida indubitável. A dúvida como núcleo e como último
refúgio da realidade.
O intelecto como única realidade portanto. A dúvida
da dúvida seria um assalto a esse último reduto da realida
de. Seria o fim da Idade Moderna.
A dúvida da dúvida é um movimento do intelecto difí
cil. Oscila entre dois pólos: Tudo pode ser posto em dúvi
da, inclusive a dúvida mesma e Nada pode ser duvidado
autenticamente . Oscila entre um ceticismo radical e um
positivismo extremo. Kant afirma que o ceticismo é um
descanso para a razão, embora não sejalugar de moradia. O
mesmo pode ser afirmado quanto ao positivismo. A dúvida
da dúvida impede o descanso. ela uma indecisão funda
mental que a análise de Sísifo feita por Camus ilustra. A
dúvida da dúvida, se mantida, lança a mente na situação
sisífica da pura absurdidade.
Duvido = penso. Penso: sou cadeia de pensamentos.
Um pensamento segue outro. Por quê? Porque um pensa
mento não basta a si mesmo. Exige outro para certificar-se.
Duvida de si mesmo. Sou cadeia de pensamentos que duvi
dam de si mesmo. Duvido, portanto sou. Duvido que sou,
portanto confirmo que sou. Duvido que duvido, portanto
torno duvidoso que sou. Por que sou? Porque duvido. Por
que duvido? Porque sou. Portanto duvido que sou. Portan
to duvido que duvido.
É
um beco sem saída.
É,
com efeito, o beco reservado
a Sísifo pelos Antigos. uma forma de loucura. o suicí
dio do intelecto.
Somos a primeira ou segunda geração que experimen
ta esse tipo de niilismo vivencialmente. a perda total da
fé, a loucura do nada todo-envolvente. Os sintomas abun
dam. a lógica formal que reduz os pensamentos à tautolo
gia.
a clara noite da angústia do nada do existencialismo.
48
a manipulação consciente de conceitos divorciados da
realidade pela ciência pura. a produção de instrumentos
destruidores da humanidade, portanto autodestruidores,
pela ciência aplicada. a arte que se significa a simesma.
o rpe diem individual e coletivo, fruto do esvaziamento
dos valores. O clima da absurdidade é resultado dessa
dúvida extrema. Nada tem significado. Poderá ser supera
do esse clima? Poderá sobreviver a nossa civilização
à
Idade
Moderna.
I - o intelecto Certos exercícios do Ioga ultrapas
sam, em radicalidade, as meditações cartesianas. Revelam
vivencialmente, não que penso, mas que tenho pensamen
tos. Posso, nesses exercícios, eliminar os pensamentos, mas
continuarei sendo. Com efeito, o método cartesiano prova
a existência de pensamentos, não do eu que pensa. Há uma
fé humanista no eu que se infiltra, sub-repticiamente, no
argumento cartesiano, sem jamais ser duvidada. Os exercí
cios do Ioga interessam, neste contexto, apenas enquanto
proporcionam um ponto de vista sobre os pensamentos.
o ponto de vista de dentro para fora. Os pensamentos se
apresentam como tecido entreposto entre o eu e o mundo
dos fenômenos externos. Esse tecido tapa, apresenta e
representa vorstellt na palavra de Schopenhauer) o
mundo externo. Chamemos esse tecido de intelecto .
Podemos definir o intelecto como o campo no qual ocor
rem pensamentos. Esse campo está ligado, de certa forma,
com o eu que tem pensamentos, e com o mundo a quem
os pensamentos representam. Pelo menos essa é nossa fé
ingênua, sem a qual o intelecto não teria significado. Essas
ligações são justamente o significado do intelecto. Mas essas
ligações não podem ser pensamentos, dada a nossa defini
ção do intelecto. Do contrário, eu e mundo externo
seriam parte do intelecto. As ligações que unem o intelecto
ao eu e ao mundo externo não são, portanto, pensa
mentos. Eu e mundo externo são impensáveis. Sendo
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impensáveis são paradoxalmente indubitáveis. Serão em
conseqüência eliminados do presente argumento.
O intelecto definido como campo no qual ocorrem
pensamentos é uma visão que resultou de um ponto de
vista. um ponto de vista externo ao intelecto. O intelecto
é deste ponto de vista objeto. Pode ser investigado objeti
vamente . Tornou-se despsicologizado. Os pensamentos
que compõem o intelecto não são vivências mas objetos de
conhecimento. Uma dificuldade ontológica se esconde
neste ponto de vista. Pensamentos se tornam objetos de
pensamentos. Essa dificuldade é conseqüência da dúvida da
dúvida que fundamenta o ponto de vista.
Passemos relutantes por Cimadessa dificuldade.
O intelecto como campo no qual ocorrem pensamen
tos torna a pergunta o que é intelecto? pergunta sem sig
nificado. Um campo não é um algo. um como algo se dá.
O campo gravitacional da Terra é como se comportam cor
pos na vizinhança da Terra. O intelecto é como pensamen
tos ocorrem. Para ocorrerem os pensamentos devem ocor
rer de uma forma ou outra. O intelecto é essa forma ou
outra . Tendo negado dignidade ontológica ao intelecto
dedicaremos a nossa atenção aos pensamentos.
Os pensamentos como objetos são formações comple
xas. Consistem de elementos chamados conceitos ligados
entre sipor elos chamados regras . Pelo menos é assim que
pensamentos ocorrem em campos chamados intelectos do
nosso tipo .
Outros tipos de intelectos podem ser imaginados. Por
exemplo: intelectos do tipo chinês ou kwakiutl Nesses
intelectos os pensamentos talvez não consistam de concei
tos. Restringiremos o argumento ao nosso tipo de intelecto.
Os pensamentos como conceitos ligados por regras
são processos. Discorrem. Dirigem-se para uma meta. A
meta é chamada significado . Um pensamento significati
vo é um pensamento que alcançou sua meta. Pensamentos
50
incompletos são insignificativos. Alcançado o significado
surge pensamento novo. Pensamentos significativos são
produtores de pensamentos novos. O significado do pen
samento é outro pensamento. Pensamentos sem significa
do não produzem pensamentos novos. O critério do signi
ficado é a capacidade para a produção de pensamentos.
Um pensamento significativo pode produzir mais que um
pensamento novo.
Quanto mais significativo o pensamento tanto maior o
número de pensamentos novos por ele produzidos. For
mam-se assim cadeias de pensamentos chamadas argu
mentos . Estes discorrem por sua vez em busca de signifi
cado do qual o significado do pensamento individual é
apenas um aspecto subalterno. A soma dos argumentos
forma a totalidade do discurso. Este flui por sua vez em
direção de um significado. Pelo próprio caráter do processo
esse significado é inalcançável. Está ele naquele eu e
mundo externo que eliminamos do nosso argumento. Pelo
seu próprio caráter portanto é o discurso um processo frus
trado; Carece de ulterior significado. Isto não invalida no
entanto os significados parciais dos pensamentos e dos
argumentos. O seu significado está no discurso e não no
além dele. Somente aqueles que não seconformam com essa
limitação imposta pelo campo que é o intelecto decaem no
antiintelectualismo. No silêncio wittgensteiniano.
A procura de significado é sinônimo de dúvida e a
dúvida
é
portanto o declive do discurso.
a força que pro
pele o discurso. O significado parcial é a superação parcial
da dúvida e o significado total inalcançável é a garantia de
ser a dúvida inesgotável. a garantia da continuidade do
discurso. Ao discorrer propelido pela dúvida o discurso se
ramifica e amplia. O número dos significados parciais
alcançados cresce. Podemos portanto resumir o resultado
até aqui alcançado: O intelecto é o campo crescente da
dúvida em discurso.
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11 -
a frase
O que é conceito? Temos a tentação de
responder que conceito é aquilo que dá origem à palavra.
Palavra seria símbolo de conceito. Mas seria significativa
esta resposta? Não representa simplesmente a introdução de
um termo novo, em tudo idêntico ao antigo, de um sinôni
mo com efeito? Podemos argumentar que há conceitos sem
palavras, e palavras sem conceitos. Que os dois termos não
são idênticos portanto. Mas o argumento não pode ser
mantido. Conceitos sem palavras é uma contradição de ter
mos, porque um conceito sem palavra, um conceito inarti
culado, não poderia participar do pensamento discursivo.
Não seria portanto conceito. E palavra sem conceito é,
igualmente, contradição de termos, porque toda palavra,
por ser palavra, participa do discurso. O termo palavra
sem conceito exprime apenas a desconfiança na função de
uma determinada palavra, no conjunto do pensamento, e
não, como aparentemente faz, a confiança em duas cama
das ontológicas: palavra e conceito. Os termos palavra e
conceito são sinônimos para todos os efeitos formais,
embora possivelmente não o sejam para a psicologia. O
ponto de vista deste argumento é despsicologizante, isto é,
objetivo . Usará os dois termos como sinônimos portanto.
E eliminará, pela regra da navalha de Occam, o termo con
ceito . Redefinirá o pensamento como complexo de pala
vras organizadas por regras. E redefinirá o intelecto como
campo no qual ocorrem palavras organizadas por regras.
Com esta reformulação deslocamos o argumento de
terreno. Localizamos a consideração do pensamento no ter
reno da língua. No terreno adequado. A preocupação com
o pensamento é uma disclplina da língua. O pensamento
passa a ser um fenômeno lingüístico chamado frase . As
regras que ordenam as palavras na frase passam a ser gra
mática
sensu ato
Intelecto como campo no qual ocorrem
pensamentos passa a ser língua como campo no qual ocor
rem frases.
52
Uma palavra de cautela: as ciências que investigam a
língua estão empenhadas na análise das línguas faladas e
escritas. A língua na concepção do presente argumento é o
falar baixo . Línguas faladas e escritas são articulações
secundárias da língua pura . As ciências da língua não dis
tinguem rigorosamente entre língua pura e aplicada .
Por exemplo: tratam ora de problemas de gramática aspec
to de língua pura ), ora de problemas fonéticos aspecto de
língua aplicada ). A distinção rigorosa urge. Investigações
da língua aplicada pertencem ao campo das ciências da
natureza ou da sociedade. Investigações da língua pura
constituem o fundamento da ciência do espírito Geistes
wissenschaft), no sentido Diltheyano, embora de uma ciên
cia do espírito despsicologizada. O presente argumento se
enquadra no segundo contexto.
A frase consiste, grosso modo, de cinco partes: 1)
sujeito, 2) objeto, 3) predicado, 4) atributo, e 5) advér
bio. Atributo e advérbio são complementos. Serão descon
siderados no presente argumento. Sujeito é o grupo de
palavras no qual o processo da frase se inicia. Objeto é o
grupo de palavras para o qual o processo da frase se dirige.
Predicado é o grupo de palavras que une sujeito e objeto.
Esta descrição é de uma frase padrão, sobre a qual todas as
frases podem ser, em tese, reduzidas. Nessa frase padrão
sujeito e objeto são os horizontes, entre os quais o predica
dos se projeto. A frase é um processo do tipo chamado
projeto . Tem a forma Gestalt ) do tiro ao alvo. Sujeito é
o fuzil, objeto é o alvo, predicado é a bala.
Esta forma da frase é a estrutura do nosso tipo de lín
guas, portanto do nosso tipo de intelecto. Tudo que nos
ocorre, ocorre nesta forma. A filosofia tradicional comete o
erro de projetar essa forma sobre o mundo externo . Crê
que a estrutura da língua do intelecto) espelha a estrutura de
uma realidade externa. Mas existem línguas de estrutura
inteiramente diversa. Se podemos dizer algo com referência
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ao mundo externo , é isto: dada a diversidade de tipos de
língua, a estrutura da língua não espelha a estrutura do
mundo externo . A soit dis nt estrutura do mundo externo
é chamada por Wittgenstein de Sachverhalt , isto é, relação
entre coisas. Mas o próprio termo revelaque o Sachverhalt
não passa da estrutura das nossas frases. Estrutura da frase e
relação entre coisas são sinônimos, e o resto é tentativa
metafísica e desesperada de romper as limitações do intelec
to. De romper as grades da língua. O que não pode ser fala
do, deve ser calado. A análise gramatical da frase é, de manei
ra categórica, a análise ontológica da realidade.
Sujeito, objeto e predicado são as formas de ser que
perfazem a nossa realidade. Mais exatamente: as virtualida
des que se realizam na frase. O sujeito se realiza ao emitir
predicado. O objeto se realiza ao ser atingido pelo predica
do. O predicado, ao relacionar sujeito com objeto, estabele
ce um Sachverhalt , isto é, uma situação de realidade. O
sujeito, considerado isoladamente, é a procura e a demanda
da realidade. Subjaz sub-jectum ) ao projeto da realidade.
O objeto, considerado isoladamente, é a oposição a esse
projeto ob-jectum ).
Mas sujeito e objeto, considerados isoladamente, não
são seres realizados. Adquirem realidade efetiva Wirldich
keit ) na situação da frase. O predicado, que estabelece a
situação, comfere realidade ao sujeito e objeto. Sujeito e
objeto transcendem a situação, na medida em que não são