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Foucault. Cinema
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FOUCAULT E O CINEMA:
PARA UMA BREVE ARQUEOLOGIA DAS IMAGENS EM MOVIMENTO
Nilton Milanez
Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia – UESB
Foucault nas revistas de cinema: microfísica do poder e arqueologia
Vamos nos vestir, então, para sair ao encontro com oFoucault do cinema. Quero, neste
momento, compreender as circunstâncias enunciativas que cercaram e empurraram Foucault a falar de
cinema. A esse tipo de circunstâncias da enunciação cabem perguntas como: a) o que autoriza Foucault
a falar de cinema?; b) para quem se fala e de que lugar ele fala?; c) em que condições essas falas são
enunciadas? O lugar mais próximo de nós no qual podemos verificar essas materialidades são, num
primeiro momento, os textos de Foucault reunidos nos Ditos e Escritos III e VII, da tradução brasileira
organizada por Manoel Barros da Motta. Trata-se de nove textos, que compreendem o período de 1974
a 1982. Desses nove textos, sete foram, inicialmente, veiculados em revistas de cinema, cujas
capas1apresento a seguir em ordem cronológica de publicação, não obviamente como ilustração, mas
para reafirmar e que para possamos visualizar o lugar do qual se produziram os discursos foucaultianos
acerca do cinema.
1 O Arquivo de Imagens do Labedisco está disponível para domínio público no sitewww.uesb.br/labedisco.
Como podemos ver, a discussão cinematográfica de Foucault teve espaço nas revistas francesas
de cinema dos anos 1970: os CahiersduCinéma, Cahiers Renaud-Barrault, o Cinématographe, e La
RevueduCinéma. Para além das revistas, houve uma publicação no Le Monde, em 23 de março de 1977
e, ainda, uma entrevista com Foucault e o diretor alemão Werner Schroeter, Conversa com Werner
Schroeter, em 3 de dezembro de 1981, que foi publicada em livro pelo Goethe Institute, em 1982.
É bastante importante compreender onde as enunciações de Foucault circularam, considerando
que seus posicionamentos foram publicados, sobretudo, em revistas e jornais de grande circulação na
França, representando posicionamentos de autoridade quando o assunto é cinema. Além disso, esse
pequeno leque, mas não menos significativo da ótica-histórica cinematográfica de Foucault, apresenta
um tipo de gênero exclusivo nas nove publicações: tratam-se todas de entrevistas. O lugar do diálogo é
Figura 4. Sobre História de Paul, jan. 1976. Arquivo de Imagens do Labedisco.
Figura 2. Sobre Marguerite Duras, out. 1975. Arquivo de Imagens do Labedisco.
Figura 1. Anti-retro, jul-ago, 1974. Arquivo de Imagens do Labedisco.
Figura 3. Sade, o sargento do sexo, dez. 1975-jan. 1976. Arquivo de Imagens do Labedisco.
Figura 6. O retorno de Pierre Rivière, dez. 1976. Arquivo de Imagens do Labedisco.
Figura 7. Os Quatro cavaleiros do Apocalipse e os Vermes Cotidianos, fev. 1980. Arquivo de Imagens do Labedisco.
Figura 5. Entrevista com Michel Foucault, nov. 1976. Arquivo de Imagens do Labedisco.
marcado às vezes até por mais de dois interlocutores presentes, sejam eles críticos, pensadores ou
diretores de cinema. Com quem Foucault falou de cinema também é um dos pontos relevantes para se
compreender esse lugar de enunciação na rede cinematográfica de discursos imagéticos em
movimento. Acredito, por isso, ser importante pontuar e reproduzir as referências dos textos originais,
mesmo que elas já estejam reproduzidas nos textos das entrevistas nos Ditos e Escritos de nossa
tradução brasileira. Focalizá-las juntas e cronologicamente estabelece um tipo de quadro importante
para um trabalho inicial de análise como este que pretendo encetar.
1. “Anti-retro” (entrevista com Paul Bonitzer e Serge Toubiana), CahiersduCinéma, nºs 251-
252, julho-agosto, 1974, pp. 6-15.
2. “Sobre Marguerite Duras” (entrevista com HélèneCixous). Cahiers Renaud-Barrault, nº 89,
outubro de 1975, pp. 8-22.
3. “Sade, o sargento do sexo” (entrevista com G. Dupont), Cinématographe, nº 16, dezembro
de 1975 - janeiro de 1976, pp. 3-5.
4. “Sobre História de Paul” (entrevista com René Féret). CahiersduCinéma, nº. 262-263,
janeiro de 1976, p. 63-65.
5. “Entrevista com Michel Foucault” (entrevista com Paul Kané), CahiersduCinéma, nº 271,
novembro de 1976, p. 52-53. (Transcrição de uma entrevista com P. Kané em um curta-
metragem realizada por este último sobre o filme de R. AllioMoi, Pierre Rivière,
ayantégorgémamère, masoeuretmonfrère, 1976).
6. “O retorno de Pierre Rivière” (entrevista com G. Gauthier), La RevueduCinéma, nº b312,
dezembro de 1976, p. 37-42 (Sobre o filme Moi, Pierre Rivière, ayantégorgémamère,
masoeur et monfrère, de R. Allio, 1976.)
7. “As manhãs cinzentas da tolerância”, Le Monde, nº 9.998, 23 de março de 1977, p. 24
(Sobre o filme de P. P. Pasolini, Comizi d’Amore, filmado em 1963 e apresentado na Itália
em 1965).
8. “Os Quatro cavaleiros do Apocalipse e os Vermes Cotidianos” (entrevista com B. Sobel),
CahiersduCinéma, nº 6, fora de série: Syberberg, fevereiro de 1980, p. 95-96. (sobre o
filme de H-J. Syberberg. Hitler, UnFilm d’Allemagne, 1977).
9. “Conversa com Werner Schroeter” (entrevista com G. Courtant. W. Schoreter, em 3 de
dezembro de 1981), in Courant (G.), Werner Schoreter, Paris, Goethe Institute, 1982, p. 39-
47.
Para efeito didático, vou citar apenas um caso, o da primeira publicação, Anti-
retro, em 1974, entrevista de Foucault concedida a Paul Bonitzer - na época crítico de
cinema dos Cahiers de cinéma e, hoje, também roteirista, diretor e ator – e Serge
Toubiana - redator chefe dos Cahiersnaquele momento e, atualmente, diretor da
CinémathèqueFrançaise de Paris2. Para tanto, acrescento na lista sobre os trabalhos de
Foucault com o cinema o belo texto-depoimento de Serge Toubiana, de 2004, Michel
Foucault etlecinéma, sobre a primeira entrevista com Foucault sobre cinema, realizada
na “rua de Vaugirard, em seu apartamento moderno, branco, muito iluminado,
invadido por livros.”, como nos declara Toubiana3. Mas, quais condições de possibilidade levaram
estudiosos de cinema a querer ouvir Foucault sobre o tema? É preciso que entendamos que os
Cahiersestavam passando por uma grande reformulação de posições ideológicas e que a nova direção,
encabeçada por Toubiana, queria romper com o dogmatismo teórico marxista que reinava nos últimos
três anos na revista. Segundo Toubiana4, “Esse encontro com Foucault ia ser uma virada decisiva, o
signo de uma abertura em direção a um novo tipo de questionamento crítico, operando um desvio pela
História, que deveria, em retorno, enriquecer nossa visão nova do cinema”.
Portanto, ao discutir os filmes de O porteiro da noite, da italiana Liliana Cavani e Lacombe
Lucien, do francês Louis Malle, ambos de 1974, sobre a temática erótico-nazista, Foucault destacará as
relações entre amor e poder no interior do quadro de uma memória coletiva dos operários e de homens
ordinários, sem enquadrá-las em visões marxistas que poderiam restringir os discursos em torno do
2 Cf. Ver também DANEY, Serge. In: Cahiers du Cinéma. Anti-rétro (suíte)/Fonction critique (fin). Nº 253, octobre-
novembre, 1974, p. 30-36. 3 TOUBIANA (2004, p. 187) 4 TOUBIANA (2004, p. 187)
Figura 8. Michel Foucault, la littératureet les arts. Org. Philippe Artières, ÉditionsKimé, 2004). Arquivo de Imagens do Labedisco.
desejo desses filmes a uma intervenção do poder ao mesmo tempo restritiva e mecânica, de caráter
eminentemente econômico. Enfim, é do lugar sobre o qual Foucault discorre acerca de filmes de
grande sucesso junto ao público francês, ao lado de quem fez e faz história de cinema hoje na França.
“Gostaria de dizer para concluir”, diz Toubiana5,
[...] que Foucault nos ajudou enormemente, em um época de virada da história dos
CahiersduCinéma, a sair do dogmatismo marxista, obrigando-nos a reformular, no
território do cinema, certas questões pertinentes e essenciais: aquela da palavra e do
discurso, aquela do lugar do espectador, aquela da enunciação etc. Foucault nos
ajudou largamente a nos livrarmos de um certo maniqueísmo vindo direto de
pressupostos ideológicos. Por isso, como por muitas outras coisas, nós lhe fomos
muito gratos.
Nessa escada rolante é que entendo a entrevista de Foucault à Toubiana e Bonitzer. De um
lado, temos por Foucault a revisão do posicionamento dos lugares de força e exercícios de poder, que
se deslocam da veia econômica e dos aparelhos ideológicos do Estado para se pulverizarem na
sociedade, multifacedos nos espaços e intercambiado pelos indivíduos em relações institucionais e
domésticas. É a microfísica do poder fazendo-se valer de práticas como a descrita por Serge Toubiana,
querendo escapar à empreitada marxista dos Cahiers. Não obstante, esse enfrentamento parece se
sustentar na noção de história enquanto descontinuidade e dispersão. Ao colocar o filósofo de frente
com a política nazista e o desejo, Toubiana e Bonitzer colocam M. Foucault na berlinda para “detectar
a incidência das interrupções”, a fim de identificar “um novo tipo de racionalidade e de seus efeitos
múltiplos”6, por meio de deslocamentos de conceitos já cristalizados sobre a guerra e suas formas de
subjugação. Multiplicando as rupturas dos discursos dos filmes que ilustram essa conversa,
entrevistadores e entrevistados reorganizam a questão da história segundo as mutações, cortes e
rupturas nas práticas fílmicas. É um período de efervescência de transformação de conceitos. Assim,
5 TOUBIANA (2004, p. 194). 6 FOUCAULT (2000, p. 4).
quem lê Anti-retro está na ordem do discurso das ideias da Microfísica do Poder e da Arqueologia do
Saber.
Depreendemos, também, da enunciação de Serge Toubiana a questão
da organização de uma memória do povo, determinada pelo seu lugar no
presente com seus contornos históricos fílmicos, que vai ser corroborada,
depois da entrevista de 1974, dois anos depois, na primavera de 1976, pelo
LesCahiers de La Cinémathèque, no número intitulado Mémoire d’une
nation, assinado por François de laBretèque, hoje professeur-pesquisador de
estudos cinematográficos na Université Paul Valéry Montpellier 3. Nesse
documento, o fio que tece a composição de um sistema para a intervenção da
memória fílmica passa pela memória histórica, recitando Foucault, mas que estabelecerá seu nome
apenas ao final do artigo. O subtítulo do artigo Archéologiedesdeuxmémories [Arqueologia de duas
memórias] retoma o caráter baseado sobre os preceitos arqueológicos de Foucault, evidenciando o
papel do arqueólogo ao escavar da camada superficial à mais profunda, com vistas a pensar, primeiro,
o monumento e, depois, a especificidade do presente, segundo as tessituras foucaultianas. Bretèque irá
sinceramente registrar seu desapego à ideia de tomar o cinema como um documento:
Entendamos bem isso: não podemos inocentemente acreditar que se pode, graças ao
cinema, “reconstituir”. Essa, sim, seria a tarefa dos historiadores, se é que eles ainda
acreditam que ela seja possível: temos mais a impressão que, de agora” o passado do
qual ele emana, ao se tratar o filme como “documento em diante, saibamos realmente
do que isso se trata, segundo a forte expressão de Michel Foucault, que fala do
“divertimento dos historiadores de calças curtas”.7
E continua para frisar o lugar do qual fala junto com Foucault nessa proposta de integrar o
cinema ao presente:
7 BRETÈQUE (1976, p. 8). Tradução nossa.
Figura 9.Mémoired'une Nation.Printemps 1976.Numérodouble. Arquivo de Imagens do Labedisco.
Mas esse é o campo de pesquisas do historiador. Para ele, o cinema continua
efetivamente a ser um “documento”. O próprio historiador se situa no interior do fato
cinematográfico; sua posição específica face ao objeto o leva a operar uma reviravolta
de perspectiva, trabalhando sobre os filmes que ele tratará, segundo os termos de Michel
Foucault, de “monumento”8
O mais tocante, no final de tudo, é a interpelação de Bretèque na citação de uma fala de
Foucault. Refiro-me ao momento da Arqueologia do saber em que Foucault se preocupa em dizer
sobre o desligamento que devemos efetuar da história como memória milenar e coletiva. Bretèque por
sua vez vai operar uma transcrição desgarrada da fala de Foucault e ainda por cima vai interferir na
citação, cortando-a: “ela é o trabalho e a utilização de uma materialidade documental, livros, textos (eu
acrescentaria filmes que apresenta sempre e em toda parte”9.
Romper com a ordem do discurso científico, tão bem pesado por nós, (“Ler é maçada, estudar é
nada”, como já nos contadisse Fernando Pessoa), é nesse caso libertar-se de amarras que encerram a
força criativa (esse acredito realmente ser um exemplo daqueles em que a teoria não é usada para
repetir e conferir padrões). É dessa maneira que Bretèque não fica apenas a repetir Foucault, mas se
retoma-se o pensamento de J-J- Courtine10
, o que ele faz é “Pensar com Foucault”. Bretèque, já nos
anos 1970, simplesmente servia-se da teoriaem vez de servir à teoria.
Da maneira como compreendo, sob a perspectiva foucaultiana, Bretèque está inquieto com o
fato de pensar o cinema enquanto tradição e tomá-lo como um modelo de memorização para os
acontecimentos. Sabemos bem com Foucault 11
, que “O documento não é o feliz instrumento de uma
história que seria em si mesma, e de pleno direito, memória”. Entendemos, por outro lado, que a
história é a transformação desses documentos em monumentos. Ao deslocar o olhar foucaultiano para
8 BRETÈQUE (1976, p. 8). Tradução nossa.
9 BRETÈQUE apud FOUCAULT (1976, p. 8-9), tradução nossa. Cf. A versão ipsis litteris da tradução brasileira é “ela é o
trabalho e a utilização deuma materialidade documental (livro, textos, narrações, registos, atas, edifícios, instituições,
regulamentos, técnicas, objetos, costumes etc) que apresenta sempre e em toda parte, em qualquer sociedade, formas de
permanência, quer organizadas, quer espontâneas” (FOUCAULT, 2000, p.7-8). 10COURTINE, 2012. 11 FOUCAULT (2000, p. 8).
o cinema, isso consiste em ver nos filmes não os rastros e traços dos passados deixados pelos sujeitos
na história, mas se trata de um trabalho de reconhecimento das camadas históricas e do desdobramento
de elementos que, metodologicamente, devem dizer sobre o nosso lugar no mundo, por meio de um
retalhamento do estudo fílmico que leve em consideração o isolamento, o agrupamento, a inter-
relação, descrevendo, dessa forma, a organização de conjuntos que atribuem aos filmes o seu lugar de
monumentos. Em resumo, tratar o filme como documento é dizer que ele tem uma memória que conta
sobre o passado, enquanto problematizá-lo como monumento significa dar-lhe o reconhecimento de
suas condições de possibilidade e de fio discursivo dentro de uma rede com outros filmes e outros
sujeitos. Esse nível de associações se estabelece para compreender os mecanismos de um
funcionamento histórico fílmico, a fim de refletir sobre os tipos de relações possíveis do sujeito no seu
tempo em referência aos acontecimentos, instituições e práticas que administram os tipos de posições
sócio históricas que ocupam/ocupamos na vida.
Quase finalizando, nos anos 1970, evidenciava-se, então, a força criativa de tirar o cinema da
discussão do “real” para pensá-la como objeto do presente. A inquietação muito maior era pensar o
hoje de bases foucaultianas, que trabalhava a articulação entre passado e seu efeito sobre o presente. É
essa linha de raciocínio seguida por Bretèque. “Ler o presente”12
seria considerar uma reflexão sobre a
memória fílmica no que concernem “todas as operações críticas necessárias ao espírito lúcido que
deseja compreender o presente e espera, assim, agir sobre o futuro” (Bretèque, 1976, p. 8).
Terei a oportunidade de falar mais sobre isso adiante. Por ora, é intenso notar que a reflexão do
estudioso do cinema nesse momento vai ressaltar a importância da consideração do arquivo na
constituição da história dos sujeitos como também antecipar resultados dos trabalhos de Foucault sobre
a questão da atualidade e de nossa existência no mundo em um momento específico da história por
meio da discussão do hoje e do agora. Sem dúvida, juntamente com a entrevista de Toubiana e
Bonitzer, em Anti-retro, estamos diante de textos seminais sobre as materialidades que compõem os
estudos cinematográficos como espaço do presente histórico e dos desenhos do devir para nós sujeitos.
Assim, apenas a título de fechamento do tópico, digo que - seja a partir das relações de poder seja dos
estudos arqueológicos sobre história, memória, rupturas e mudanças - Foucault está presente na
12 BRETÈQUE (1976, p. 8).
reviravolta do cinema pela qual parece passar os anos 1970, colocando em evidência o seu espectro de
arquivista para a arqueologia de um sujeito do presente.
Os filmes por Foucault: a arqueologia, o arquivo e o arquivista
Foucault conversou, debateu, citou, rebateu, se chocou com filmes que eram trazidos por ele
enquanto entrevistado, por seus entrevistadores, por seus amigos, por diretores que entrevistou. O
quadro que apresento abaixo é uma tentativa de sistematização de dados para que possamos visualizar
alguns elementos importantes para a discussão da produção cinematográfica tocada por Foucault e
tratada por ele como um arquivista, resultado das relações entre a arqueologia e o arquivo, das quais
falarei do quadro de filmes que apresento a seguir.
Introduzo as nove entrevistas em ordem cronológica e situo quem nessas entrevistas citou que
título de filme. Muitas vezes os títulos dos filmes foram citados em sua versão original, mas quando
tínhamos uma tradução brasileira para eles, tomei essa opção, pois, de certa maneira, facilita a nossa
procura pelos filmes. A origem da produção fílmica também tem uma singularidade importante para
nós, mostrando o espaço geográfico sobre o qual se disserta, da mesma forma que o nome de seus
diretores, cuja assinatura funciona como a marca de autoria da produção cinematográfica, e até mesmo
o ano de sua produção, que me ajudaram a delimitar um espaço-tempo importante para o
estabelecimento desse arquivo fílmico. Esses dados vão ser por mim compreendidos como a fita que
vai fazer rodar os planos discursivos das relações de Foucault com o cinema.
Quero, com isso, destacar as relações entre as partes que delimitam as fronteiras dessa
formação fílmica e sua composição discursiva dada pelo entrelaçamento desses dados. Eis, então, um
breve quadro de organização dessas informações, construída a partir das referências dos textos dos
Ditos e Escritos III e VII, versão brasileira.13
13 Buscando sempre respeitar a economia de tempo de fala nas mesas-redondas, produzi dois vídeos que condesassem a
produção dos filmes que foram citados nos textos de Foucault sobre cinema. O resultado pode ser buscado no youtube pelo
título “Labedisco - Os filmes por Foucault” ou pelo link de acesso no canal do
Labediscohttps://www.youtube.com/watch?v=6qvd5KJDctg e “Labedisco: A herança fílmica de Michel Foucault” ou pelo
acesso no link https://www.youtube.com/watch?v=5CMjROtU8_Q
Entrevista/ano Quem citou Filme Diretor Origem Ano
Anti-retro/1974 P.Bonitzer e
S. Toubiana
Toda uma vida Gustav
Ucicky
Alemanha 1940
Anti-retro/1974 P.Bonitzer e
S. Toubiana
Glória feita de
Sangue
Stanley
Kubrick
EUA 1957
Anti-retro/1974 Foucault A tristeza e a
piedade
Marcel
Ophüls
França 1969
Anti-retro/1974 P.Bonitzer e
S. Toubiana
A tristeza e a
piedade
Marcel
Ophüls
França 1969
Anti-retro/1974 P.Bonitzer e
S. Toubiana
El Coraje del
Pueblo
Jorge
Sanjínes
Bolívia 1971
Anti-retro/1974 P.Bonitzer e
S. Toubiana
Les Camisards René Allio França 1972
Anti-retro/1974 P.Bonitzer e
S. Toubiana
Français si
vous saviez
André Harris
e Alain de
Sedouy
França 1972
Anti-retro/1974 Foucault O porteiro da
noite
Liliana
Cavani
Itália 1974
Anti-retro/1974 P.Bonitzer e
S. Toubiana
O porteiro da
noite
Liliana
Cavani
Itália 1974
Sobre Marguerite
Duras/1975
H.Cixous Destruir, disse
ela
Marguerite
Duras
França 1969
Sobre Marguerite
Duras/1975
H.Cixous India Song Marguerite
Duras
França 1975
Sobre Marguerite
Duras/1975
Foucault India Song Marguerite
Duras
França 1975
Sade Sargento do
Sexo/1976-76
G. Dupont Quanto mais
quente melhor
Billy Wilder EUA 1959
Sade, Sargento do
Sexo/1975-76
G.Dupont El Topo Alejandro
Jodorowsky
México 1970
Sade, Sargento do
Sexo/1975-76
G. Dupont O porteiro da
noite
Liliana
Cavani
Itália 1974
Sade, Sargento do
Sexo/1975-76
G.Dupont Saló Pier Paolo
Pasoloni
Itália 1975
Sade, Sargento do
Sexo/1975-76
Foucault A Morte de
Maria
Malibran
Werner
Schroeter
Alemanha 1976
Sade, Sargento do
Sexo/1975-76
G.Dupont Snuff Movies
(gênero
citado)
- EUA -
Sobre História de
Paul/1976
Foucault e
René Feret
História de
Paul
René Féret França 1975
Entrevista com
Michel Foucault/
1976
P.Kané Eu, Pierre
Riviere..
René Allio França 1976
O Retorno de
PierreRivière/
1976
Foucault Blow-up
depois daquele
beijo
Michelangelo
Antonioni
Itália 1966
O Retorno de
Pierre Rivière/
1976
G.Gauthier Les Camisards René Allio França 1972
O Retorno de
Pierre
Rivière/1976
Foucault Les Camisards René Allio França 1972
O Retorno de
Pierre
Riviere/1976
Foucault Le Pain Noir
(minissérie
TV)
Moatti França 1974
O Retorno de
Pierre Rivière/
1976
G. Gauthier Eu, Pierre
Riviere...
René Allio França 1976
O Retorno de
Pierre
Riviere/1976
Foucault Eu, Pierre
Riviere...
René Allio França 1976
As Manhãs
Cinzentas da
Tolerância/1977
Foucault Mamma Roma Pier Paolo
Pasolini
Itália 1962
As Manhãs
Cinzentas da
Tolerância/1977
Foucault Comizi
d'amore
Pier Paolo
Pasolini
Itália 1964
Os Quatro
Cavaleiros do
Apocalipse.../1980
Foucault Eva Braun Yukio
Mishima
Japão 1970
As entrevistas. Os textos que lemos nos Ditos e Escritos sobre cinema têm todos eles o formato
de entrevistas. Mas deles fazem parte também a participação ativa na construção de roteiros de filmes
originados de seus estudos e até mesmo de sua presença nos sets de filmagens como é o caso,
inclusive, da entrevista concedida a Paul Kané durante as filmagens do curta-metragem desse diretor
acerca do filme de René Allio, que dirigiu o filme homônimo do livro assinado por Foucault, Moi,
Pierre Riviére... Entrevistas com diretores de cinema como René Féret, sobre o filme Histoire de Paul,
que rediscute as lições foucaultianas sobre a loucura e o aprisionamento asilar. Ou ainda, conversas
com sua amiga HélèneCixous em torno dos filmes a partir da obra de Marguerite Duras). Essas
Os Quatro
Cavaleiros do
Apocalipse.../1980
Foucault Hitler: um
filme da
Alemanha
Hans-Jürgen
Syberberg
Alemanha 1978
Os Quatro
Cavaleiros do
Apocalipse.../1980
B.Sobel Hitler: um
filme da
Alemanha
Hans-Jürgen
Syberberg
Alemanha 1978
Conversa com
Werner
Schroeter1982
Werner
Schroeter
Willow
Springs
Werner
Schroeter
Alemanha 1973
Conversa com
Werner
Schroeter/1982
Foucault Willow
Springs
Werner
Schroeter
Alemanha 1973
Conversa com
Werner
Schroeter/1982
1982
Foucault A Morte de
Maria
Malibran
Werner
Schroeter
Alemanha 1976
Conversa com
Werner
Schroeter/1982
Werner
Schroeter
A Morte de
Maria
Malibran
Werner
Schroeter
Alemanha 1976
Conversa com
Werner
Schroeter/1982
Werner
Schroeter
O dia dos
idiotas
Werner
Schroeter
Alemanha 1981
diferentes maneiras de reagir às possibilidades de instaurações cinematográficas tanto nas entrevistas,
nas conversas ou artigo de jornal, presenças nas gravações de filmes a partir de seus livros não
compreendem o escopo do que Foucault tinha trabalhado até o momento dentro da sua maneira de
tratar o arquivo.
Conversavam e o público de cinema os ouvia nessas entrevistas. Falavam, porque tinha um
público ávido para escutar isso. Fato é que o trabalho de Michel Foucault influenciou a noção de autor
no cinema e alimentou direta ou indiretamente vários críticos e diretores na esteira das revistas críticas
e de estudo de cinema no início dos anos 1970. Dessa forma, palavras e ditos em formas de entrevistas
ultrapassam o limite de um gênero textual para atingir sua produção discursiva. Essa visada
arqueológica no cinema tem como forma interrogativa a questão do saber que os problemas oriundos
do cinema daquele tempo trouxeram para compreender aquela própria época e, hoje, a nossa, por meio
dos fragmentos de histórias em seus planos, enquadramentos e movimentos de câmera.
Arquivo fílmico. Um dos modos que me auxiliam a entender o grupo de filmes aos quais
Foucault se debruçou e considerá-los em suas formas de descrição foi a de maneira tão feliz de o
cinema ter sido recuperado por Toubiana, Bonitzer e Bretèque, apresentados anteriormente. Retomar a
Arqueologia do Saber é relevante pelo fato da proposta de Foucault defendida aparentemente de forma
um pouco descompromissada, pelo menos da maneira como ele fala do título da obra tanto em
entrevista a J. – J. Brochier, em 1929, texto intitulado MichelFoucault explica seu último livro14
,
quanto no áudio disponível no youtube, em entrevista a Georges Charbonnier. Nessas duas
oportunidades, Foucault simpaticamente declara ter roubado a palavra dos arqueólogos.15
Explica,
entretanto, que a ideia de escavar, desenterrar ossos do passado não dizem respeito a coisas secretas,
silenciosas ou escondidas da consciência humana. Seu objetivo é claro, ele busca definições para as
relações que constituem a superfície própria dos discursos. Foucault mesmo traça essa relação direta da
arqueologia com a descrição do arquivo.
14 FOUCAULT, 2001. 15 Essa entrevista pode ser ouvida em francês, mas também tem o recurso tradutor do youtube. Ela pode se acessada na
busca pelo título “Archéologiedusavoir, de Michel Foucault” ou pelo acesso no link
http://www.youtube.com/watch?v=Wzjw6LGQtMw
Dito isso, tratar os filmes sob o viés da arqueologia é tomá-lo na sua acepção de arquivo,
colocando em evidência as formas de discursos que tornam visível não aquilo que era invisível a
nossos olhos, mas pelo fato de estarem tão arraigados a essa superfície que nos impede a sua percepção
senão diante de um polimento das palavras e das imagens com óleo da história. É desse contato direto
do pesquisador com o objeto fílmico que será possível refletir sobre os discursos e tipos de saberes que
deles se depreendem do processo arqueológico.
Portanto, o rol de filmes, apresentados acima, com os quais Foucault esteve envolvido, baseia-
se nas suas formas de descrição de tratamento do arquivo, ou seja, estabelecer “diferentes séries, para
constituir, assim, séries de séries”, ou como chamou Foucault, “quadros” 16
. Deslocando essa ideia
para um deslizamento do arquivo fílmico, vejo os filmes listados enquanto quadros de constituição do
cinema em força visual de uma série de investimentos de questões históricas e do sujeito: substrato
discursivo que sedimenta o estudo de um arquivo fílmico no quadro da arqueologia dos saberes.
Discursos e filmes. Com esses filmes incitados à discussão naquele período, que tipos de
quadros foi possível instaurar? Vou de forma bastante sintética propor alguns quadros discursivos
materializados nesse arquivo fílmico. Dentro desses quadros Foucault reafirmou o lugar do sujeito
ordinário e as memórias que determinavam suas formações no cotidiano, no desejo, na moralidade,
mostrando essas marcas ao falar do cotidiano e da pequena história do filme Moi Pierre, Rivière, de
Allio, e as marcas do excesso das paixões em Blowup, de Antonioni. Foucault apontará também uma
memória histórica que vai ser evidenciada pela intervenção de uma memória fílmica, de uma
mentalidade coletiva nacional no cinema por meio de uma minissérie em episódios veiculada na TV
francesa, que contava a história da França no período de 1880 a 1936. Uma memória da arqueologia
das imagens vai se reafirmar por meio da reconstituição da passagem do filme como documento da
memória francesa para um monumento sobre o sujeito, apontando o discurso de uma história sobre as
guerras, ora descritas com banalidade e criticada pelos estudiosos da época como Eva Braun, sua vida
com Adolph Hitler, ora narrada sob o viés do horror como em Hitler, um filme da Alemanha. Trouxe a
questão da memória popular francesa em A tristeza e a piedade e a memória como lugar de repressão
na Bolívia com El corajedel Pueblo. Evidentemente as posições de Foucault não eram de julgamento
16FOUCAULT, 2000, p. 9
dessas lutas, mas andavam no sentido da compreensão dessas relações de poder e de desejo. E mostrou
para além do horror do holocausto um discurso de poder, resistência e desejo nas lutas de resistência
em Lacombe Lucien e até mesmo problematizou a imagem erótica dos nazistas no imaginário erótico
envolto por seus chicotes do poder em O Porteiro da Noite descrevendo esse monumento, colocando-o
em séries, multiplicando seus estratos.
E falava dos sujeitos do desejo de sua época, nos mostrava quem éramos nós naquele momento
e fez com que nos lançássemos a quem somos nós hoje. Mostrou que o corpo e as imagens fílmicas
centradas nos órgãos sexuais eram nada mais do que um retorno às normas de conduta controladas do
corpo, em Salò, desbancando o lugar de Sade como transgressor para colocá-lo como serviçal do
restabelecimento da norma e abrindo nossos olhos para um erotismo do tipo disciplinar. Ensinou que a
câmera no cinema desliza sobre o corpo com prazer ao se deleitar com suas conjecturas ao lado de
HélèneCixous sobre a literatura de Marguerite Duras transportada para o cinema, no qual elegem as
formas do olhar e sua relação em India Song. Surpreendeu-se com a anarquização do corpo e suas
hierarquias no filme alemão a Morte de Maria Malibran, que coloca em imagens a descoberta e a
exploração do corpo no cinema a partir da própria câmera. Não se surpreendeu com o corpo heróico de
Marilyn Monroe caindo aos pés de Tony Curtis em Quanto mais quente melhor: nada de transgressão
ou submissão, apenas a reiteração novamente de mais um lugar comum. Apresentou o sujeito moral,
em A história de Paul, personagem que se torna um monstro ao fugir das hierarquias e seleções sociais
do que se entende por normal. Mostrou que o corpo e sua paixão tem materialidades e circulam nas
imagens do cinema e dentro de nós.
Por uma economia dos espaços livrescos não posso me estender mais. De qualquer maneira,
acredito que pude levantar um ponto importante: os quadros que montam o arquivo da história naquele
momento giram em torno de duas grandes questões: um, a história do cotidiano, tão remarcada e
discutida por Foucault em relação a sua descontinuidade, sua atualidade e relações pulverizadas de
poder e resistência; outro, as dimensões do corpo que emolduram essa história em suas formas
disciplinares, normativas, ditadas pelo olhar e pelos pequenos modos que os calores e as paixões
atravessam os corpos. Enfim, dois quadros que se entrelaçam entre história e corpos para compor o
sistema e conjunto de discursos das imagens que foram criadas naquela época, cujas regras,
funcionamentos e práticas que delimitam o campo da memória e da apropriação dos corpos da maneira
como era possível dizer sobre eles.
O arqueólogo-arquivista. Como podemos verificar, o conjunto de filmes discutidos por
Foucault são muito significativos. Primeiro, eles registram a história de uma época bem recente para
aquele período. Segundo, investem no exame dos efeitos de atualidade que as imagens
cinematográficas dos corpos gerenciam. História e corpo, portanto, instauram séries dentro de um
espaço de dispersão de filmes citados, que constituem microacontecimentos histórico-corpóreos.
De um lado, Foucault explica que esses acontecimentos podem sim ser “breves” 17
, o
importante é que eles se organizem em séries “daí a possibilidade de fazer com que apareçam séries
com limites amplos, constituídas de acontecimentos raros ou de acontecimentos repetitivos” 18
. Não
podemos deixar de lembrar aqui que a Nova História, postulados assumidos por Foucault na
Introdução da Arqueologia, faz irromper em seu bojo as micro-histórias de sujeitos ordinários. A parte
de grandes domínios de memória investigados por Foucault em torno da loucura, da prisão e da
sexualidade, não poderemos jamais deixar de lado as micro-histórias que decorrem desses domínios
memoriais como o dossier de Pierre Rivière e de Alexina Barbin.
De outro, Foucault realça os investimentos políticos em torno do corpo. No que se refere aos
filmes que recuperam a memória das guerras e as lutas de resistência ou o lugar das rebeliões e seus
documentos históricos, Foucault está discutindo os meios pelos quais o corpo é utilizado como
estratégias e práticas de poder a fim de se tornarem um modelo memorial do passado para modelar a
vida dos sujeitos do tempo em que viveu, submetendo o corpo, agora, o corpo social para atender ao
gerenciamento de um certo tipo de política de vida. As dimensões corporais das quais fala sobre os
filmes que lhe são lançados pelo seu tempo edificam uma estrutura administrativa na qual teríamos o
dever de nos reconhecer e a ela nos render.
É claro que no meio desse jogo biopolítico, o corpo vai se tornar um chafariz de resistências,
que por vezes fazem o alarde necessário, lavando a cara daqueles que se pintam com a física, a
17 FOUCAULT, 2000, p. 9. 18 FOUCAULT, 2000, p. 9.
anatomia e a política de forças que se impõem aos indíviduos que estrebucham diante do
enclausuramento de suas ideias e do esquadrinhamento moral de seus corpos. Por isso, a meu ver,
levantar uma breve tabela categorizante e hierarquizante como a que mostrei, faz dizer que, no total,
Foucault problematizou as condições do sujeito, da história e de seus corpos em 25 filmes, franceses,
italianos, alemães, americanos, boliviano e mexicano, segundo os registros de seus Ditos e escritos
durante o período de 1974 a 1982.
Essa questão do período temporal nos é importante, porque ela é o registro arqueológico do
tempo de uma breve história cotidiana, em sua maioria em países europeus, vide a origem da produção
dos filmes e a nacionalidade de seus diretores, com reverberações, é claro, nas américas do norte e sul-
americana. O arquivo de filmes elencados para discussão faz ecoar recortes bem precisos da história
em espaços geográficos estratégicos, que tem o objetivo não apenas de demonstrar saberes locais, mas
evidenciar “como eles se relacionam entre si e desenham de maneira horizontal uma configuração
epistêmica coerente”19
.
O final sem fim: poucas palavras para muitas imagens
Esse tipo de atitude foucaultiana elaborada sobre um conjunto de saberes de uma época é que o
liga à ideia de arqueologia, não obstante do papel de arquivista, pois é Foucault ele mesmo que opera a
organização do efeito de raridade e das leis que comandam as regras e os funcionamentos das imagens
em movimento de sua época. Ao Foucault arquivista coube muito menos separar e hierarquizar uma
gama de filmes do que uma postura que problematizasse seu próprio tempo. A relação entre a
produção cinematográfica e a descrição arqueológica requalificam por meio do arquivista os saberes
do domínio fílmico. O projeto cinematográfico, seu canteiro arqueológico e sua posição arquivista é
que estabelecem a ligação com diversas passagens discursivas das obras de Foucault. “Parece que o
cinema está fortemente em consonância com o projeto arqueológico, quer dizer, que ele participa com
seus próprios meios, sem que se torne um pretexto arbritário para o arquivista, da elaboração de uma
série e do exame do acontecimento do qual fazemos parte” 20
. O Foucault “novo arquivista” do qual
19 REVEL, 2005, p.16. 20 MANIGLIER ET ZABUNYAN, 2011, p. 39.
falo junto com Deleuze21
, não é o arquivista que fazia como seus predecedentes, tomando as
proposições, as frases e os atos perfomativos. Não falo daqui de um Foucault em torno do enunciado
das construções linguísticas, mas do Foucault que faz deflagrar discursos cujas formações estão além
do conjunto de uma série de letras, ou como diria Deleuze, “Os enunciados de Foucault são como
sonhos: cada um tem seu objeto próprio”22
e, como pude traçar até aqui, estou muito bem
acompanhado por autores, diretores, revista, livros e filmes que fazem esse sonho do objeto discursivo
cinematográfico tomar corpo e reassegurar seu espaço histórico-corpóreo-social.
Ainda assim, levando em consideração a especificidade das formas de intervenção fílmica de
Foucault durante o período de oito anos, Maniglier e Zabunyan, no livro Foucault vaaucinéma,
chamam isso tudo de “o lugar discreto do cinema na produção foucaultiana”23
, sobretudo se
comparado, daí entendemos, a seus estudos sobre literatura e pintura. Mas, a nós o que nos interessa é
realmente esse momento de ruptura, que faz Foucault escapar de suas empreitadas com os arquivos de
longos períodos, diverso de nossa atualidade, ao qual podemos olhar com distância as bordas daquilo
que nós não somos mais. A força com que a problematização cinematográfica tocou Foucault
promoveu em seu olhar naquelas entrevistas um “vetor para o estabelecimento de um diagnóstico
sobre vários aspectos da história contemporânea”. Isso faz com o que o Foucault arquivista em suas
palavras e escritos pudesse determinar uma postura sobre o seu próprio tempo, descrevendo-o.
Portanto, Foucault coloca lado a lado as discussões epistemológicas dos discursos que marcam os
filmes de sua época, assegurando a junção entre um cinema do cotidiano com o arquivo de uma época,
enquanto arquivista de sua história presente.
Referências
BRETÈQUE, François de la. Memoires d’une Nation.In: Les Cahiers de la Cinémathèque. Printemps
1976.Numéro double 18-19. Perpignan, 1976, p. 1-8.
COURTINE, Jean-Jacques.Déchiffrer le corps. Grenoble: JéromeMillon, 2011.
21 DELEUZE, 2004, p.11. 22 DELEUZE, 2004, p.17. 23 MANIGLIER ET ZABUNYAN, 2011.
FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do Saber. Trad. Luiz Felipe Baeta Neves. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2000.
FOUCAULT, Michel. Michel Foucault explique son dernier livre. In: _______. DEFERT, Daniel;
EWALD, François (orgs).Ditsetécrits. 1954-1975, 2011, p. 799-807.
MANIGLIER, Patrice; ZABUNYAN, Dork.Foucault va au cinéma. Paris: Bayard, 2011.
REVEL, Judith. Foucault. Conceitos essenciais. Trad. Nilton Milanez e Carlos Piovezani. São Carlos:
Claraluz, 2005.
TOUBIANA, Serge. Foucault etle cinema. In: ARTIÈRES, Philippe (org). Michel Foucault, la
literature et les arts. Paris: ÉditionsKimé, 2004.
DELEUZE, Gilles. Foucault. Paris: LesÉditions de Minuit, 2004.