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101 MATRIZes DOI: http://dx.doi.org/10.11606/issn.1982-8160.v8i2p101-116 V. 8 - N º 1 jan./jun. 2014 São Paulo - Brasil VERA VEIGA FRANçA p. 101-116 VERA VEIGA FRANçA** Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Departamento de Comunicação Social. Belo Horizonte-MG, Brasil Crítica e metacrítica: contribuição e responsabilidade das teorias da comunicação * Criticism and metacritique: contribution and responsibility of the communication theories * Uma primeira versão deste texto foi apresentada no GT Epistemologia da Comunicação do XXII Encontro Anual da Compós, na Universidade Federal da Bahia, Salvador, de 04 a 07 de junho de 2013. ** Professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFMG. Coordenadora do GRIS (Grupo de Pesquisa em Imagem e Sociabilidade da FAFICH/UFMG), atua nas áreas de Teorias da Comunicação, Comunicação e Cultura Midiática e Metodologia de Pesquisa em Comunicação. E-mail: [email protected] RESUMO Este artigo discute o caráter cíclico das abordagens críticas da comunicação no Brasil nos últimos 40 anos. Os anos 1970, 1980 se caracterizaram por teorias de diferentes matrizes que denunciaram a mercantilização da cultura, o esvaziamento do simbólico, as disputas por hegemonia na interpretação da realidade. Os 20 anos seguintes foram marcados por certo abandono do viés crítico, em favor do tratamento de aspectos mais recortados do processo e do produto comunicativo. A partir das discussões recentes de Boltanski, situando os conceitos de crítica e metacrítica, apontamos, ao final, a importância do resgate de olhares mais abrangentes nas análises comunicacionais. Palavras-chave: Teorias da comunicação, teoria crítica, crítica e metacrítica ABSTRACT is paper discusses the cyclical nature of the critical approaches of communication in Brazil in the last 40 years. e 1970’s, 1980’s were characterized by theories of differ- ent hues who denounced the culture’s commodification, the symbolic’s deflation, the disputes over hegemony in the interpretation of reality. e next 20 years were marked by abandonment of certain critical bias, in favor of the treatment of most indented aspects of communicative process and product. From recent discussions of Boltanski, placing the concepts of critical and metacritique, highlighting to the importance of the redemption of embracing looks in the communicational analysis. Keywords: Communication theories, critical theory, criticism and metacritique

FRANÇA,V_Crítica e Metacrítica

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  • 101MATRIZesDOI: http://dx.doi.org/10.11606/issn.1982-8160.v8i2p101-116

    V. 8 - N 1 jan./jun. 2014 So Paulo - Brasil Vera Veiga FraNa p. 101-116

    V e r a V e i g a F r a N a**

    Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas, Departamento de Comunicao Social. Belo Horizonte-MG, Brasil

    Crtica e metacrtica: contribuio e responsabilidade das teorias da comunicao*Criticism and metacritique: contribution and responsibility of the communication theories

    * Uma primeira verso deste texto foi apresentada no GT Epistemologia da Comunicao do XXII Encontro Anual da Comps, na Universidade Federal da Bahia, Salvador, de 04 a 07 de junho de 2013.

    ** Professora do Programa de Ps-Graduao em Comunicao da UFMG. Coordenadora do GRIS (Grupo de Pesquisa em Imagem e Sociabilidade da FAFICH/UFMG), atua nas reas de Teorias da Comunicao, Comunicao e Cultura Miditica e Metodologia de Pesquisa em Comunicao. E-mail: [email protected]

    RESUMOEste artigo discute o carter cclico das abordagens crticas da comunicao no Brasil nos ltimos 40 anos. Os anos 1970, 1980 se caracterizaram por teorias de diferentes matrizes que denunciaram a mercantilizao da cultura, o esvaziamento do simblico, as disputas por hegemonia na interpretao da realidade. Os 20 anos seguintes foram marcados por certo abandono do vis crtico, em favor do tratamento de aspectos mais recortados do processo e do produto comunicativo. A partir das discusses recentes de Boltanski, situando os conceitos de crtica e metacrtica, apontamos, ao final, a importncia do resgate de olhares mais abrangentes nas anlises comunicacionais. Palavras-chave: Teorias da comunicao, teoria crtica, crtica e metacrtica

    ABSTRACTThis paper discusses the cyclical nature of the critical approaches of communication in Brazil in the last 40 years. The 1970s, 1980s were characterized by theories of differ-ent hues who denounced the cultures commodification, the symbolics deflation, the disputes over hegemony in the interpretation of reality. The next 20 years were marked by abandonment of certain critical bias, in favor of the treatment of most indented aspects of communicative process and product. From recent discussions of Boltanski, placing the concepts of critical and metacritique, highlighting to the importance of the redemption of embracing looks in the communicational analysis.Keywords: Communication theories, critical theory, criticism and metacritique

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    as teorias, conceitos e autores que se agrupam sob a gide de Teorias da Comunicao no constituem um conjunto homogneo e consensual dentro da rea, inclusive variam conforme a poca. Em determinados momentos, alguns autores e conceitos esto em alta; em outros, so abandonados e substitudos. Nesse panorama mvel que evidencia os modismos e idiossincrasias que constituem o campo de estudos da comunicao interessante perceber que tambm o vis crtico , de certa maneira, cclico. Algumas pocas se evidenciam pelo forte teor denuncista das reflexes; na sequncia, acontece, s vezes, uma mudana de tom e as crticas so deixadas de lado.

    H quase cinquenta anos, Umberto Eco (1979 [1964]) escreveu Apocalpticos e integrados, fazendo uma reviso lcida das teorias, que se dividiam, na po-ca, entre os estudos americanos e estudos europeus ambos refns do con-ceito fetiche de massa. A obra consagrou a etiqueta com a qual se agrupou e nomeou dois blocos opostos: a pesquisa administrativa americana (Mass Communication Research) e a Escola de Frankfurt, com os respectivos con-ceitos de cultura de massa (supostamente acrtico) e indstria cultural (este, raivosamente crtico).

    Os estudos comunicacionais (assim nomeados) tiveram incio, no Brasil, nos anos 1970, com a mudana dos cursos de Jornalismo para cursos de Comunicao1. interessante registrar que, no contexto daquela poca, a dis-tino apocalpticos e integrados e a diviso entre estudos (e grupos) crticos x descritivos faziam pleno sentido. A Teoria Crtica da Escola de Frankfurt estava na moda, assim como a rejeio aos estudos norte-americanos e escola funcionalista, numa diviso que, grosso modo, reproduzia no campo acad-mico a oposio esquerda/direita no cenrio poltico. Os conceitos de classe e ideologia, no mbito da perspectiva crtica, eram centrais.

    Ao longo destes quarenta anos, teorias e conceitos sofreram reacomodaes e mudanas, e perspectivas crticas, hoje, assim como o conceito de ideologia, ocupam um lugar obscuro e pouco expressivo. De forma grosseira, poder-se--ia, talvez, dividir esse perodo em dois blocos de 20 anos: o perodo 1970-1980, marcado pela chegada e disseminao da Teoria Crtica e outras de matriz marxista; o perodo 1990-2000, em que se opera um distanciamento, crtica e abandono dessas perspectivas.

    Este o tema que ocupa a presente reflexo, organizada em alguns tpi-cos: uma breve reviso das matrizes crticas; o abandono dessas matrizes e a constituio de um novo cenrio terico-conceitual. Ao final, indagaes sobre onde estamos e o que se delineia frente.

    1. Em 1969, o Conselho Federal de Educao (CFE-MEC), atravs

    da Resoluo n 11/69, transformou os cursos de Jornalismo em cursos de

    Comunicao Social.

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    AS MATRIZES CRTICASUma reviso aprofundada das matrizes crticas que alimentaram o pensamento comunicacional nas dcadas de 1970 e 1980 do sculo passado ultrapassaria largamente as possibilidades deste texto, que se limita a uma breve recuperao de algumas referncias que foram centrais no perodo.

    a) Teoria Crtica De acordo com o programa interdisciplinar formulado por Max Horkheimer

    em 1931, era propsito do Instituto de Pesquisa Social de Frankfurt fazer uma anlise global da sociedade de sua infraestrutura econmica s suas bases ideacionais. Por uma srie de razes e conflitos, a produo do Instituto acabou centrada no campo da cultura e das ideias, compondo o que se pode identificar como uma trplice crtica: ao projeto da sociedade capitalista avanada; cultura dessa sociedade; cincia positivista.

    Rememorando o teor dessas crticas, destaca-se como trao central a denn-cia da mercantilizao da sociedade e a onipresente motivao do lucro, que contamina a cultura e provoca sua degradao e subservincia. Em tal contexto, a cultura se v reduzida ideologia e inscrita numa lgica de alienao; a cin-cia se curva e se submete aos objetivos produtivistas e mercantis da sociedade capitalista. Para Adorno, cultura verdadeira aquela implicitamente crtica; o fermento da verdade da cultura a negao. Convertida em bens culturais, atrelada a um sistema de mercantilizao, a cultura nega sua prpria razo de ser.

    Conforme ressalta Voirol (2011), o termo indstria cultural, cunhado por Adorno e Horkheimer para nomear a cultura submetida lgica mercan-til, tem um carter crtico e provocador ao associar numa mesma palavra Kulturindustrie, em alemo dois termos que em tudo se opem. indstria se associam a economia, a racionalidade, a planificao, o interesse estratgico; j cultura evoca criao, originalidade, autonomia, liberdade. O termo indstria cultural constitui, segundo esse autor, um oxmoro e um conceito denncia: Atravs da associao de universos semnticos antitticos, ele visa fazer ver o que no vemos, a saber, a degradao da cultura na sociedade capitalista moderna (Voirol, 2011: 127).

    Vale dizer que a influncia de Adorno foi muito forte na formao dos pes-quisadores brasileiros nos anos 1970 e ocupou um lugar marcante na produo acadmica daquela dcada.

    b) A teoria da hegemoniaA influncia de Gramsci no Brasil, por sua vez, foi de certa forma

    sufocada pelo peso da perspectiva frankfurtiana e chega mais tardiamente,

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    j em torno dos anos 1980, atravs do trabalho de pesquisadores latino-americanos e dos primeiros ecos dos Estudos Culturais. Importa aqui chamar a ateno para a perspectiva relacional que marca a abordagem gramsciana da cultura, atravs do binmio cultura hegemnica cultura subalterna (Lopes, 1990: 52). A cultura, para o autor, um campo de lutas e negociaes; culturas subalternas no constituem mero resultado das imposies da cultura hegemnica nem pura resistncia; ela no se reduz a um todo homogneo, mas atravessada por ambiguidades e contradies, contm elementos transclassistas e traz as marcas da experincia e da histria. Assim, importa para Gramsci uma anlise concreta das prticas culturais, bem como de seu uso, suas transformaes.

    O conceito de hegemonia central no pensamento gramsciano e de suma importncia para os estudos comunicacionais. O conceito vem de Lnin (relacionado ditadura do proletariado); empregado por Gramsci, ele ganha um desenvolvimento original e vem substituir, e s vezes complemen-tar, o conceito de dominao. Est ligado coero exercida por uma classe dominante sobre os grupos dominados e acrescenta a esta a ideia de direo intelectual e moral: cada relao de hegemonia necessariamente uma relao pedaggica (Gramsci, 1974: 69). Nesse aspecto positivo de direo, o conceito orienta a anlise das relaes de fora entre grupos, classes, naes e diz respeito, para alm da esfera poltico-econmica, ao terreno das ideias, das crenas e representaes.

    c) A teoria da dominao de P. Bourdieu A teoria de Bourdieu teve uma penetrao fraca no Brasil no terreno dos

    estudos comunicacionais (ao contrrio de sua forte presena no campo da Educao). Trata-se, no entanto, de uma sociologia da cultura centrada nas relaes de dominao de classe que operam atravs do simblico portanto, de forte incidncia no campo comunicacional. Bourdieu, porm, no se interessou pelo estudo da mdia2 e criticou de forma virulenta os massmdiologues que, atravs de um sincretismo conceitual, estavam fazendo uma sociologia fantstica, ou uma mitologia: nem sociologia, (pela falta de referncias empricas adequa-das) nem teoria pura (pela incapacidade de deduo), a cultura miditica uma metafsica no sentido kantiano que funciona mal (Bourdieu; Passeron, 1963: 1007, traduo nossa).

    Se Bourdieu desclassificou totalmente as teorias da mdia de sua poca, por que no estud-la corretamente, ou apresentar a maneira adequada de faz-lo? Na sua crtica, ele apontava o equvoco metodolgico dessa mitologia dos socilogos, de se ocupar do objeto errado e se ater (sucumbir) sintaxe do

    2. Uma exceo foi um pequeno livro publicado

    por Bourdieu em 1996, Sur la television, suivi de Lemprise du journalisme

    que, no entanto, teve pequena expresso.

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    discurso proftico dos meios. A questo central, apontava o eminente socilogo, no se localizaria no formato ou contedo dos discursos miditicos, mas no sistema de dominao simblica, atravs de um modelo de reproduo, de tipo gerativo, capaz de correlacionar o domnio das estruturas ao domnio das prticas atravs do habitus (Miceli, 1974: 39).

    O poder das palavras, para o autor, no est nas palavras, mas no processo que as legitima, bem como queles que as pronunciam3. Classes e fraes de classe se enfrentam numa luta simblica para impor uma definio de mundo conforme seus interesses, para disseminar e legitimar um quadro de posies ideolgicas que reproduz em forma transfigurada o campo das posies sociais. Os sistemas simblicos cumprem sua funo poltica de instrumentos de imposio e legitimao da dominao, atuando como instrumentos estruturados e estruturantes de comunicao (Bourdieu, 1989: 11). Trata-se, portanto, de uma luta pelo controle das instituies que garantem e perpetuam seu poder simblico.

    Dessa maneira, para Bourdieu, o estudo da mdia pouco acrescenta em si (seu discurso, j se sabe qual ); a verdadeira questo o que a mdia se alcana atravs da anlise da propriedade dos meios, do sistema de produo das representaes simblicas.

    d) Reificao e esvaziamento do simblicoEmbora no se trate aqui de um quadro terico articulado, possvel, como

    quarto ponto, agrupar um conjunto heterclito de autores que partilharam um olhar pessimista e forte niilismo na anlise da sociedade contempornea, sociedade esta marcada pela lgica do consumo, pela presena avassaladora dos meios de comunicao, pela avalanche das informaes e proliferao das imagens.

    Lembramos primeiramente de Guy Debord e sua obra (e epteto) de refe-rncia, a sociedade do espetculo, publicada pela primeira vez em 1967 numa antecipao do discurso libertrio que eclodiu para o mundo em maio de 68. Filsofo, agitador social, um dos criadores da Internacional Situacionista, Debord denuncia a sociedade capitalista e o reinado da mercadoria, bem como a banalizao e esvaziamento da vida por eles provocados:

    O mundo presente e ausente que o espetculo faz ver mundo da mercadoria dominando tudo o que vivido. E o mundo da mercadoria assim mostrado como ele , pois seu movimento idntico ao afastamento dos homens entre si e em relao a tudo que produzem (Debord, 1997: 28, grifo do autor).

    3. O que faz o poder das palavras e das palavras de ordem, poder de manter a ordem ou de a subverter, a crena na legitimidade das palavras e daquele que as pronuncia, crena cuja produo no da competncia das palavras (Bourdieu, 1989: 15, grifo nosso).

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    O mundo que foi ocupado totalmente pela forma mercadoria a sociedade do espetculo e esta a forma contempornea da dominao4. Nessa sociedade, o agente do espetculo o oposto do indivduo, renunciando a toda quali-dade autnoma; a vedete objeto de identificao com a vida aparente sem profundidade, que deve compensar e ocultar o estilhaamento da vida vivida (Debord, 1997: 40).

    Outro grande pensador crtico niilista do final do sculo XX, represen-tando a verso trgica da teoria ps-moderna, foi J. Baudrillard, que anunciou (profetizou) a impossibilidade da comunicao na era miditica, a esteriliza-o do sentido na sociedade da imagem (as imagens que j no dizem nada, a extino do simblico, diludo no reino do simulacro), a consumao do sujeito na sociedade de consumo. Para o autor, o consumo cultural pode ser definido como o tempo e o lugar da ressurreio caricatural, da evocao pardica daquilo que no mais (Baudrillard, 1970: 147). Retomando a famosa frase de McLuhan (Medium is the message), ele acrescenta: a verdadeira men-sagem dos meios no o contedo de sons e imagens que eles veiculam, mas o esquema condicionante, ligado sua essncia tcnica, de desarticulao do real em signos sucessivos e equivalentes sobre a base de uma denegao das coisas e do real.

    A verdade dos media de massa , assim, esta: eles tm por funo neutralizar o carter vivido, nico, acontecimental do mundo, para substituir um universo mltiplo por meios que se assemelham uns aos outros, se repetem e se reenviam uns aos outros. No limite, eles se tornam o contedo recproco uns dos outros e esta a mensagem totalitria de uma sociedade de consumo (Baudrillard, 1972: 189, grifo do autor).

    Descrente tanto das contribuies das teorias da comunicao5 como da natureza dos meios, ele vaticina: ilusrio acreditar numa outra possibilidade de uso dos meios: o que caracteriza os media de massa que eles so antime-diadores, intransitivos, fabricam no comunicao (Ibid.: 217, grifo nosso).

    A CRTICA DA CRTICAA partir de matrizes epistmicas e fundamentos tericos muito distintos, essas teorias e autores se aproximam atravs de seu vis crtico e forte teor denuncista. A crtica dirigida ao capitalismo, sua lgica da dominao, ao carter mercantil que rege no apenas as relaes econmicas stricto sensu, mas que impregna o conjunto das relaes sociais e compromete inclusive a constituio dos sujeitos a sua humanidade, autonomia e capacidade de agenciamento. A comunicao, a tecnologia comunicacional, a mdia e

    4. A sociedade portadora do espetculo no domina

    as regies subdesenvolvidas apenas pela hegemonia econmica. Domina-as

    como sociedade do espetculo (Debord,

    1997: 38, grifo do autor).

    5. Parodiando Bourdieu, ele diz: No existe teoria

    dos media. A revoluo dos media permaneceu at

    aqui emprica e mstica, tanto em McLuhan como

    naqueles que o contestam (Baudrillard, 1972: 209).

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    os produtos miditicos so vistos como instrumentos da dominao, como prticas alienantes, ideolgicas no seu contedo e na relao que estabele-cem. No horizonte dessas crticas horizonte, no entanto, longnquo e quase inalcanvel se coloca a busca ou o ideal da emancipao.

    Como j mencionado inicialmente, essas teorias e autores, que tiveram grande repercusso e impacto nos anos 1970 e 1980, paulatinamente foram abandonados, sofreram crticas, alguns caram quase no descrdito. A Teoria Crtica e a perspectiva adorniana, particularmente, no terreno dos estudos comunicacionais, sofreu forte rejeio.

    Coloca-se ento a pergunta: por que esse abandono, se tais teorias, em sua grande maioria, se mostraram consistentes, fundadas em pressupostos legtimos e articuladas em slidas argumentaes? Qual a razo da indiferena com que so lembradas, se seus propsitos crtica ao capitalismo, denncia da opresso, busca da justia social e da autonomia dos sujeitos so ainda hoje considerados corretos e necessrios?

    Nenhuma teoria eternamente vlida. Algumas so abandonadas por terem sido suplantadas por outras mais completas, ou por terem se mostrado equivocadas e se verem desmentidas pelo desenrolar dos fatos. Mas, sobretudo, importante lembrar que as teorias atendem a questes e problemas que so colocados historicamente, dentro de determinado contexto, face a determi-nada conjuntura. A mudana da realidade muda o cenrio de reflexo e o eixo das indagaes. Esta , assim, uma das respostas ao relativo abandono ou ostracismo das teorias acima discutidas. O mundo que adentra o sculo XXI no exatamente o mesmo das ltimas dcadas do sculo XX.

    Alm disso, essas teorias, passando pelo crivo da crtica epistemolgica, confrontadas com novas reflexes, apresentaram fragilidades e inconsistncias.

    A dominao, a alienao so processos que no podem ser apreendidos empiricamente. Tm que ser desvelados a partir de indicadores e surgir como construes analticas do pesquisador. So processos abstratos, resultado de snteses analticas. No caso de algumas dessas teorias, houve questionamentos tanto por sua abstrao e distncia da realidade (falta de evidncia emprica) como pelo peso que imputaram iluso, noo de inconsciente. As snteses teriam se mostrado falhas pela incapacidade ou miopia na leitura da realidade, na interpretao de indicadores (ou mesmo na falta deles).

    Todas essas teorias analisadas compartilhavam esse tipo de abordagem: eram teorias totalizadoras, tratando a realidade como um todo homogneo, pouco atentas s diferenas e contradies. Esse aspecto totalizador suscitou um conjunto de crticas, conhecidas e partilhadas por todos ns, pesquisadores da rea:

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    a subestimao dos sujeitos, de seu esprito crtico e capacidade criativa, bem como de sua fora de resistncia;

    seu tom monoltico, insensvel s diferenas; a incapacidade para tratar das singularidades, para dar conta do particular;

    a simplificao (quando no anulao) do potencial das linguagens e dos processos de semiose;

    a falta de ateno e mesmo a incompreenso dos processos operatrios das diferentes mdias e de seu poder de agenciamento.

    NOVAS PERSPECTIVASBuscando superar tais fragilidades e inconsistncias, e instigados por novos acontecimentos e novas questes, os anos 1990 e 2000 evidenciaram a busca de outros horizontes tericos e conceituais. Tal mudana bem expressa na trajetria de um renomado socilogo francs, L. Boltanski. Ex-aluno e discpulo de Bourdieu, sob cuja orientao trabalhou durante muito tempo, Boltanski, por essa poca (anos 1990), se distancia e se posiciona criticamente face teoria bourdiesiana, propondo e desenvolvendo uma sociologia pragmatista da crtica, voltada para a observao da ao cotidiana dos atores, de seus discursos crticos, de sua conscincia quanto s suas prprias necessidades e escolhas.

    Assumindo mais nitidamente uma perspectiva pragmatista, de ateno prtica, ele se afasta das leituras abrangentes para se ocupar dos atores em situao de trabalho, procurando descrever suas operaes, as situaes de disputa, seu desempenho e produo discursiva. Em suas palavras,

    Parecia-nos necessrio, para esse propsito [captar e descrever a atividade dos atores em situao] colocar entre parnteses um dispositivo explicativo muito forte, cuja utilizao mecnica ameaava sufocar os dados (como se o socilogo conhecesse com antecedncia aquilo que iria descobrir) para observar, de certa forma ingenuamente, aquilo que os atores fazem, a maneira como eles interpretam os outros, a maneira como argumentam sobre sua situao etc. Nosso movimento consistiu assim, para dizer rapidamente, em nos reposicionar, de uma orientao crtica em direo busca de uma melhor abordagem descritiva (). (Boltanski, 2009: 46, traduo nossa).

    O movimento apontado pelo autor, em nome de uma maior ateno e sensibilidade aos dados da realidade, foi ento de abandonar ou substituir os aparatos tericos fortes em busca de uma abordagem mais descritiva do objeto de estudo. A dmarche sociolgica em que ele se lana substitui a anlise das relaes verticais pela anlise das relaes horizontais; troca a nfase nas estruturas para a ateno aos sujeitos suas aes, seus discursos.

    Crtica e metacrtica: contribuio e responsabilidade das teorias da comunicao

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    Um movimento semelhante pde ser observado tambm em nosso ter-reno e nos estudos mais propriamente comunicacionais. As anlises ideol-gicas e a crtica da dominao cultural foram substitudas por estudos mais pontuais e atentos diversidade e pluralidade das prticas comunicativas, dos discursos, das intervenes dos sujeitos. Um quadro estrutural mais amplo onde se situam (e em relao com o qual atuam) os meios de comunicao foi deixado de lado, em nome da busca das particularidades, da complexidade, enfim, dos processos comunicativos, bem como dos elementos e dinmicas que os constituem.

    Nesse movimento, a ateno dos pesquisadores se dirigiu e se abriu a dife-rentes frentes: ateno ao sujeito e aos processos de subjetivao; constituio de grupos, redes e comunidades; configurao de novos formatos miditicos, convergncia de mdias, aos processos transmiditicos. Estudos voltaram-se para a anlise da performance dos sujeitos e sua luta pelo sucesso e pelos 15 minutos de fama. Os Estudos Culturais abriram as portas para as diferentes formas de uso dos produtos culturais, resgataram a legitimidade da satisfao e prazer advindos do consumo de produtos triviais, ressaltaram as lutas e pro-cessos identitrios.

    Novos objetos, enfim, ocuparam a pesquisa em comunicao no Brasil nesses ltimos 20 anos; as referncias tericas se abriram, outros conceitos e uma grande diversidade de autores vieram enriquecer e instrumentar as anlises. Pode-se constatar, nessa mudana, o esvaziamento do interesse pelos aparatos tericos fortes e pelas anlises de cunho mais abrangente.

    No momento atual, a perspectiva da cultura que ganha um papel central e articulador do conhecimento na rea da comunicao. Cultura miditica, ou cultura das mdias, substitui a velha nomeao de cultura de massa, ou indstria cultural e temas como diversidade cultural, pluralismo cultural esto na ordem do dia. O conceito de cultura miditica diz respeito ao panorama cultural da sociedade contempornea, marcado pela centralidade da mdia, na qual vivncia cotidiana e produo miditica se interpenetram, conformando um quadro cultural compsito, marcado por tenses, embates, mixagens, repro-dues, imposies6. Esse novo conceito tem como eixo definidor o cenrio e o funcionamento das prprias mdias: revela-nos um processo de duplicao e reproduo de acontecimentos e narrativas atravessando diferentes meios, num movimento em que o mundo e a realidade se veem conformados por uma nova dinmica que tem sido chamada de transmiditica.

    Tambm a expresso meios de comunicao j caiu em desuso, substi-tuda por media, ou mdia. A mudana para o termo mdia, para alm da questo tecnolgica (surgimento e diversificao dos aparatos tecnolgicos)

    6. Lcia Santaella reivindica a introduo (ou criao) do termo Cultura das mdias no Brasil. Distinguindo-se do conceito da cultura de massa, ele se refere cultura resultante da convergncia miditica, das mdias interativas. O trao fundamental da cultura das mdias a mobilidade, a capacidade de trnsito da informao de uma mdia a outra, acompanhada de leves modificaes na aparncia. Esses dados de comunicao tendem a durar pouco no tempo, mas, enquanto duram, multiplicam-se em diversas aparies (Santaella, 1996: 36).

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    expressa tambm um alargamento da compreenso de sua natureza, de seu potencial transformador. Mdia vem assim englobar um significado maior, que inclui tecnologia, linguagem, conformao das relaes (do modelo da interao). E tanta coisa se incluiu nesse novo objeto que o termo mdia se transformou no nome genrico e a ele foi agregado o termo dispositivo. Mdia diz do conjunto; ao tratar de um, especificamente, olhamos para esse meio enquanto um dispositivo. A anlise, nesse momento (e a despeito da extrao foucaultiana do conceito de dispositivo7), se torna mais descritivo--operacional, buscando estudar as distines e especificidades de cada meio, seu tipo de linguagem, formas de operao e conformao de um modelo de relao (ou de sociabilidade).

    Esses conceitos (mdia, cultura das mdias) se mostram mais sensveis e permeveis anlise da especificidade dos aparatos e dispositivos produtores de representaes e bens simblicos, assim como diversidade de formas e discursos que circulam nesse novo universo, pluralidade de cenrios e circui-tos culturais. No existe cultura no singular no terreno da cultura das mdias. As anlises desenvolvidas, no entanto, descuidam das relaes entre produtos miditicos e relaes de poder, mdia e estrutura da sociedade, tendendo a circunscrever a dinmica cultural relao entre os diferentes objetos.

    Nessa configurao mais contempornea de nosso campo de estudos, e ao lado do surgimento de inmeros novos conceitos, registra-se ainda o abandono de outros como ideologia, classe, dominao que haviam sido centrais nas dcadas anteriores.

    PERSPECTIVASO movimento das teorias cclico: fases mais crticas so amortizadas num perodo seguinte; o abandono do pensamento crtico suscita seu retorno numa fase posterior. Assim que assistimos, em nossos dias, vozes inquietas que apontam a necessidade de resgate de um olhar mais abrangente, que no negligencie dinmicas de dominao que persistem e a perspectiva de mudanas.

    Em seu estilo irreverente, o filsofo ingls T. Eagleton aponta o descompas-so sofrido pela teoria cultural a partir dos anos 1980; tendo se desgarrado de seu momento de origem (fundado numa visada crtica da diferena e dominao de classe), ela busca identificar a continuao da poltica em outros espaos e meios. A emancipao que no havia sido conquistada nas ruas e fbricas podia ser alcanada, em vez disso, em intensidades erticas ou no significante flutuante (Eagleton, 2005: 51), ele ironiza. Novas teorias do discurso, do desvio e do desejo transformam-se em alternativas para um esquerdismo poltico

    7. A respeito, veja-se Agamben, 2009.

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    fracassado, diz o autor, trazendo de volta aquilo que a esquerda tradicional havia menosprezado: arte, prazer, gnero, poder, sexualidade, linguagem, lou-cura, desejo, espiritualidade, a famlia, o corpo, o ecossistema, o inconsciente, etnicidade, estilo de vida, hegemonia (Eagleton, 2005: 52). Recupera-se o que havia sido abandonado, abandona-se aquilo que havia sido priorizado, numa curiosa transformao (ou deturpao) que atinge inclusive a leitura dos cls-sicos: para os sucessores dos Estudos Culturais, pontua Eagleton, pensadores como Antonio Gramsci vieram a significar teorias da subjetividade, em vez de revoluo operria (Ibid.: 53).

    Num estilo ensastico e sem qualquer formalismo acadmico, o pensa-dor ingls aponta os caminhos e tendncias diversas abertas pelo pensamento contemporneo como resultado da falncia poltica dos projetos postos em marcha nos anos anteriores. Na mesma perspectiva, o filsofo americano R. Rorty (1998) critica a esquerda cultural americana por dissolver a ao poltica no jogo das diferenas subjetivas, num desvio terico que promove o distan-ciamento e rejeio de qualquer forma de participao efetiva nas mudanas reais da sociedade8.

    Nas palavras do autor, esse debate, aparentemente distante da questo bem mais recortada que se est discutindo aqui, na verdade incide no pon-to central para o qual se dirige esta reflexo e para aquilo que existe de inquietante no percurso das novas teorias, a includas as teorias e pesqui-sas comunicacionais. Frente ao quadro multifacetado de preocupaes que orientam os trabalhos e a escolha do aparato conceitual; frente abertura de temas e referncias, alguma coisa, no entanto, se perde pelo caminho a crtica da desigualdade e sofrimento no mundo, bem como o ideal de um projeto coletivo.

    Retornando a Boltanski, muito ilustrativo registrar a mais recente revi-ravolta na trajetria do socilogo francs que, tendo efetuado um afastamento da matriz bourdiesiana e do dispositivo explicativo forte que representava a sua sociologia nos anos 1990, conforme mencionado anteriormente, rev novamente seu aparato terico-metodolgico de pesquisa, na perspectiva de recuperao de parte da tradio abandonada.

    Estabelecendo uma aproximao entre a sociologia crtica e a sociologia pragmtica da crtica (entre a perspectiva de Bourdieu e a perspectiva desenvol-vida por ele prprio), Boltanski ressalta a mtua dependncia e a complementa-ridade que pode ser estabelecida entre elas, apontando ainda os limites (e riscos) da sociologia pragmtica da crtica (a sua): ela perde a noo de totalidade, ele diz, e no capaz de passar da crtica fragmentada e particular dos atores a uma visada crtica global da sociedade.

    8. Os tericos da esquerda pensam que dissolver a agncia poltica em jogos de diferenas subjetivas, ou que dissolver as iniciativas polticas em buscas do impossvel objeto de desejo, conforme Lacan, ajuda a subverter a ordem estabelecida. , dizem eles, problematizando os conceitos familiares que operamos a subverso (Rorty, 1998: 93, traduo nossa).

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    O principal reparo que fizemos sociologia crtica , em poucas palavras, seu carter enrijecido e a distncia na qual ela se mantm com relao capacidade crtica desenvolvida pelos atores nas situaes da vida cotidiana. A sociologia pragmtica da crtica, ao contrrio, reconhece plenamente a capacidade crtica dos atores e a criatividade com a qual eles se engajam na interpretao e na ao em situao. Mas parece difcil, seguindo seu programa, completar todas as ambies solidrias de uma orientao metacrtica. Ns nos encontramos, assim, confron-tados, do lado da sociologia crtica, a uma construo aberta s possibilidades claramente crticas, mas que apresenta agentes assujeitados a estruturas que lhes escapam, e que menospreza a capacidade crtica dos atores. Do lado da sociologia pragmtica da crtica, [confrontados] a uma sociologia verdadeiramente atenta s aes crticas desenvolvidas pelos atores, mas de quem as potencialidades crticas prprias parecem limitadas (Boltanski, 2009: 74-75, traduo nossa).

    Sem essa noo (sem uma ideia do todo, e da ordem social que nos con-grega enquanto sociedade), como edificar, ou em que apoiar um projeto de emancipao dos indivduos? Tal projeto no pode se sustentar em crticas e insatisfaes pessoais porque emancipao no um processo que se vive individualmente, mas resultado de um projeto de sociedade e de uma dinmica social coletiva.

    Para enfocar o papel da crtica na teoria, e ressaltar a importncia de uma teoria crtica, Boltanski desenvolve e apresenta dois pares de conceito crtica e metacrtica; exterioridade simples e exterioridade complexa.

    A crtica dos indivduos e a crtica social configuram, para o autor, dois conceitos distintos, que ele nomeia crtica e metacrtica. O conceito de crti-ca se refere s crticas isoladas, desenvolvidas por indivduos a partir de sua prpria experincia; ela localizada e especfica. J a metacrtica uma crtica de segundo grau, que se apoia nas crticas individuais, se alimenta delas e as rene, constituindo-se e elevando-se enquanto uma crtica da ordem social. Ela , assim, uma construo terica e objetiva desvelar a opresso, a explorao, a dominao de uma sociedade ou grupos sociais.

    A esses dois conceitos ele agrega um novo par, que exterioridade simples e exterioridade complexa. Para fazer uma leitura da realidade (para apreend--la), necessrio se situar fora dela, alcanar uma exterioridade. O trabalho de descrio de uma realidade (realizado pelo pesquisador ou pelo indivduo comum) s pode ser feito a partir de um ponto de vista exterior; o que ele chama exterioridade simples. J a exterioridade complexa tambm um movimento externo de leitura da realidade, que se apoia na exterioridade simples, porm, porta ou acrescenta um julgamento de valor sobre a ordem social ela convoca uma metacrtica.

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    A sociologia descritiva (aquela mesma que Boltanski estava fazendo) se situa no nvel de uma exterioridade simples; ela capta a crtica dos indivduos, mas no se prope a tratar a ordem social. No desenvolve uma metacrtica, ele diz. Numa corajosa reviso de seu prprio trabalho, ele se pergunta ento: qual o papel dessa sociologia? O conhecimento pelo conhecimento? Ela no teria outro objetivo alm de sua realizao enquanto campo de saber?

    O mesmo podemos nos perguntar a propsito dos estudos comunicacio-nais. O abandono dos referenciais tericos mais amplos e das teorias crticas foi seguido por anlises setorizadas, estudos descritivos mais detalhados de dispositivos, linguagens, audincias, sujeitos ordinrios e subjetividades sin-gulares. Qual nosso objetivo ao promover essa mudana? E, mais ainda, quais os objetivos visados por nossas pesquisas? Por que e para que pesquisamos (para alm de alimentar nossos lattes e aumentar a bibliografia da rea)? Esse conhecimento que se busca dos objetos e prticas da comunicao serve a qu, e a quem?

    Tais indagaes almejam chamar a ateno para a dimenso poltica que reveste nossas escolhas tericas e para a responsabilidade que pesa sobre nos-sa interpretao pois elas incidem de volta na realidade. Nossa produo forma profissionais e vai no apenas direcionar sua atuao como, atravs deles e do processo natural de difuso de conhecimento, alimentar de volta o senso comum. Esse conhecimento que produzimos, ao retornar esfera da vida cotidiana da sociedade, alcana que tipo de resultado e mudana? Sendo interpretao da realidade, e considerando que agimos no mundo orienta-dos pelas interpretaes partilhadas, que tipo de ao e de comportamento o conhecimento sobre a mdia difundido pelos pesquisadores brasileiros sugere/estimula junto sociedade?

    Reforando a ideia desse retorno, dessa dinmica de mtua alimentao que acontece entre a produo de conhecimento sobre a realidade e a prpria realidade, vale resgatar outra questo-conceito tratada ainda por Boltanski: o grau de realidade da realidade. Fazendo uma distino entre realidade e mundo (a realidade como as selees que fazemos num mundo que em grande medida excede nossa capacidade de interveno), ele diz que a realidade sofre de uma espcie de fragilidade intrnseca, de maneira que a realidade da realidade deve ser reforada permanentemente para perdurar (Boltanski, 2009: 65, traduo nossa). Esse reforo seu grau de generalizao o quanto ela partilhada por muitos, por uma coletividade. A realidade de alguns, de uns poucos, no se impe com fora de realidade; sua ascenso em generalidade (a criao de compar-tilhamentos e consensos em torno dela) que a fortalece enquanto realidade de todos, que refora o sentido de pertencimento e impulsiona a ao dos sujeitos.

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    Ora, o que isto tem a ver conosco, pesquisadores da comunicao, e de que maneira essa questo serve de gancho para pensarmos o resgate da crtica em nossos quadros tericos atuais sem perda daquilo que eles trouxeram como abertura e enriquecimento na compreenso dos processos comunicativos?

    Conforme dito acima, alimentar o senso comum, participar do processo de seleo, interpretao e generalizao da realidade, do que a realidade da realidade, tarefa de grande responsabilidade. resultado de nossas escolhas generalizar leituras que constatam uma realidade vivida ou que a ultrapassam; que referendam-na ou fazem sua crtica. Ora, por este caminho possvel falar da insuficincia de estudos meramente descritivos, que no conseguem ou no ousam ir alm das constataes, bem como resgatar o papel de uma cincia comprometida com a mudana e com a melhoria, preocupada em ir alm do existente, e capaz de produzir metacrticas.

    Para ns, pesquisadores da comunicao, mais do que recolher e constatar o olhar singular de sujeitos ordinrios e seus possveis discursos contestatrios, bem como ressaltar diferenas e falar em pluralidade, no nos cabe tambm unificar essas crticas e contribuir para a constituio de um discurso crtico na sociedade? De um novo olhar sobre a realidade comunicacional e atravs dele, da realidade como um todo?

    No se trata, obviamente, de retornar s velhas teorias da dominao (embora se trate, sim, de recuperar e manter delas aquilo que trouxeram de revelador e de incontornvel). No se trata de defender esta ou aquela filiao. Trata-se (e o ponto em que esta reflexo quis chegar) de advogar uma perma-nente visada crtica nos estudos comunicacionais; uma perspectiva que, atenta ao especfico e ao singular, no se feche em objetos e raciocnios autossuficientes e possa sempre reenviar esses objetos ao contexto maior no qual eles existem, atuam, condicionam e sofrem condicionamentos.

    P. Ricoeur, examinando dois fenmenos fundamentais para a existncia da vida social, dois lados opostos e duas funes complementares que tipificam a imaginao social e cultural a ideologia e a utopia , destaca um trao comum entre eles, que a ambiguidade: cada um tem um lado positivo e um negativo, um papel construtivo e um destrutivo, uma dimenso constitutiva e outra patolgica (Ricoeur, 1991: 66).

    A ideologia, ele diz, comporta dois traos antagnicos, que so a distoro (cf. a concepo marxista de dominao de classe) e a integrao (cf. a discusso da ao simblica por Geertz). Esse trao da integrao necessrio para a prpria constituio da vida social:

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    onde existem seres humanos, no pode j subsistir um modo de existncia no--simblico, e menos ainda um tipo de aco no-simblica. A aco imediata-mente regida por padres culturais que fornecem matrizes para a organizao de processos sociais e psicolgicos, talvez exactamente como os cdigos genticos () fornecem modelos para a organizao dos processos orgnicos. () A nossa ateno ao funcionamento da ideologia a este nvel extremante bsico e simb-lico demonstra o papel constitutivo real que a ideologia tem na existncia social (Ricoeur, 1991 : 83).

    Assim, a ideologia necessria e positiva na sua funo de integrao; ela atinge um nvel patolgico quando provoca a distoro para garantir o domnio de um grupo sobre outro. Ora, tambm a utopia apresenta seus dois lados: seu lado negativo a irrealidade, a fragmentao, o desvio; o positivo estender a explorao do campo do possvel:

    A utopia introduz variaes imaginativas sobre os tpicos da sociedade, do poder, do governo, da famlia. O tipo de neutralizao que constitui a imaginao como fico encontra-se em aco na utopia. Proponho pois que a utopia, tomada a este nvel radical como funo do nenhures na constituio da aco social ou simblica, seja a contrapartida do nosso primeiro conceito de ideologia [como distoro]. Podemos dizer que no h integrao social sem subverso social (Ibid.: 89).

    A sugesto trazida por Ricoeur o cruzamento entre ideologia e utopia, a existncia de seus dois lados nos abre pistas de como, na anlise dos pro-dutos miditicos (que so produtos simblicos), possvel perceber as tenses integrao/distoro, irrealidade/novas possibilidades. Nosso objeto de estudo a matria-prima na qual acontece o trabalho da ideologia e da utopia na cons-truo da imaginao cultural e sua incidncia na ao dos sujeitos sociais. No nos cabe, enquanto comunicadores, fazer grandes anlises da sociedade, porm a leitura crtica que somos capazes de fazer dos sistemas simblicos de coeso e ruptura, de cristalizao e tensionamento da realidade nos coloca num lugar privilegiado para compreender a nossa contemporaneidade. Qui, produzir e generalizar interpretaes que fomentem aes em direo ao alargamento de nossos horizontes.

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    Artigo recebido em 07 de maro de 2014 e aprovado em 04 de setembro de 2014.

    Crtica e metacrtica: contribuio e responsabilidade das teorias da comunicao