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FRONTEIRA: ESPAO DE REFERNCIA IDENTITRIA ? BORDER-LINE AND TERRITORIAL IDENTITYRicardo Jos Batista Nogueira Universidade Federal do Amazonas-Departamento de Geografia Rua Vila Amazonas, 488, ap. 304. bl. B Manaus/Am cep. 69057240 [email protected] Resumo A tradio indica pelo menos duas concepes para o conceito de fronteira: o primeiro, fundado na poltica, diz respeito ao limite territorial de um estado-nacional; o segundo, com um significado mais acadmico, por isso mesmo mais restrito, fundado na economia, procura identificar processos de expanso territorial interna com a incorporao de reas atividade produtiva. Ambas, contudo, sempre tiveram como referncia espacial uma centralidade dada seja pelo lugar do centro poltico, ou do centro econmico, colocando a fronteira numa condio de periferia. A proposta deste trabalho apresentar uma discusso sobre a fronteira que a coloque numa posio de centralidade, ou seja, enquanto regio que apresenta uma identidade territorial para os seus habitantes, que tome por referncia os aspectos deste lugar, que apresenta singularidades frente aos territrios nacionais dos quais fazem parte. Mais do que dados objetivos (gnese, extenso), apontar-se- referncias empricas que constituem elementos subjetivos e participam da vida cotidiana fronteiria no Brasil com a Colmbia e da Repblica Dominicana com o Haiti. Palavras-chaves: Fronteira, Identidade e Cultura.

Abstract At least two concepts are given for the meaning of border-line: the first is political based, related to the territorial limit of a nation; the second has an academic meaning, it is more restrict and refers to the economy of a state(front) in order to identify the processes of the * territorial expansion creating a relation with the productive areas of the local. However, both have always been guided by as the political centre as the economic centre, which means that while the area presents a territorial identity for its people who take as reference different aspects of the place, which make it unique compeering to the general characteristics of the nation where they live. More than just data (genesis, extension) empirical references constitute abstracts elements which is part of the everyday life on the border-lines of Brazil with Colombia and Dominican Republic with Haiti. Key- words: border-line, identity, culture

Introduo

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De um conceito muito bem compreendido no senso comum, que no deixa margem a dvidas, visto que impera o seu significado poltico, como definidor de Estadosnacionais, toda uma metaforizao criada em torno dela, a fronteira retorna cena nos ltimos anos em virtude das discusses em torno da globalizao, da mudana do carter dos Estados, da ampliao dos fluxos de diversas ordens que, geralmente, desconhecem a sua funo de mediao entre soberanias e inclusive a partir de discursos que apregoam o seu fim. Apresentaremos, inicialmente, algumas noes j institudas sobre este conceito para em seguida apontar algumas questes sobre a fronteira enquanto espao de referncia identitria, objetivando dar uma contribuio compreenso da mesma. Historicamente pensado a partir do Estado, e de sua regio central, tentar-se- apresentar uma discusso sobre fronteira cuja origem seja a sociedade civil. Todavia, para atingir tal objetivo necessrio deixar claro que o referencial metodolgico trabalhado bem diverso daquele que tradicionalmente serve de base. Como um conceito poltico a fronteira surge a partir de um pensamento positivista e que entra na Geografia ratzeliana sendo parte de um organismo maior que o Estado. A fronteira, no caso, a membrana da clula que limita, confronta com outra; a parte mais sensvel do Estado. Com a emergncia do pensamento crtico na Geografia e a incorporao de uma leitura marxista que privilegiou a instncia econmica, o espao passou a ser explicado como resultado daquela instncia e a fronteira, agora econmica, por sua vez, aparece como um espao a ser envolvido e transformado pela forma hegemnica de organizao produtiva a partir da explorao econmica das terras. Esta ltima abordagem possui todo um repertrio conceitual prprio, at porque a explicao do processo tem por origem as grandes estruturas de organizao produtiva da sociedade. Neste sentido, o elenco discursivo composto por conceitos como modo de produo, reproduo, relao social, contradio, explorao, apropriao, valorizao, alienao, dentre outros. De outro lado, para pensar a fronteira como lugar de referncia identitria, como um dado da cultura, tomando, enfim, como base os pressupostos da geografia humanista, exige-se um outro repertrio conceitual, visto que a coerncia metodolgica no contempla o trnsito dos conceitos. Assim, teramos como subsdio os seguintes conceitos: existir, identificar, significar, simbolizar, compreender, experienciar, perceber, habitar, ser, viver, etc.Ateli Geogrfico Goinia-GO v. 1, n. 2 dez/2007 p.27-41 pgina 28

Conceitos e Tipologias

Confins, limites, margens, periferia, e outras referncias espaciais que se contrapem a um centro, uma centralidade construda a partir de um domnio territorial, na sua origem o conceito de fronteira remete ao latim front, in front, as margens.

Essencialmente relacional, a fronteira , regra geral, um espao definido pelo outro que est num centro (etnocntrico), sendo portanto, subordinado. As origens polticas do conceito esto associadas a prpria formao dos Estadosnacionais, que no seu processo de consolidao tiveram, e ainda tem, que demarcar claramente as linhas divisrias, visto implicar no limite da ordem, da norma e do poder institudo. Encontramos diversos trabalhos de gegrafos, cientistas polticos e militares que procuraram investigar a temtica da fronteira. Em sua maioria tratam da fronteira como o limite poltico entre os Estados-nacionais, e, basicamente, a raiz da discusso encontra-se presente em F.Ratzel, precursor da Geografia Poltica. Ratzel compreendia a fronteira como o invlucro do Estado-nacional dentro do qual o mesmo se desenvolveria; ela retrataria, tambm, apenas um momento do desenvolvimento do Estado, podendo ser alterada no decurso do tempo, sendo, portanto, mvel. Considerava o mar como a mais perfeita das fronteiras. A partir dele, as reflexes sobre fronteira ampliaram-se substancialmente, sendo as guerras na Europa o combustvel, o estmulo para isto, em virtude das disputas e mudanas dos traados. Etimologicamente, a palavra fronteira derivada do antigo latim fronteria ou frontaria, e indicava inicialmente a parte do territrio situado in fronte, ou seja, nas margens, consignando portanto uma qualidade e no uma entidade. Foucher (1990), mais recentemente, vai afirmar que a origem do nome fronteira deriva de front, la ligne de front, ou seja, da guerra. Resultado de sua construo histrica como divisor de soberanias; de disputa de poder; defesa do territrio do Estado-nacional, limite das leis do Estado para proteo/punio de seus cidados e at mesmo de sua produo, a fronteira no poderia ter outra imagem seno a de lugar em que vicejam as contravenes, o contrabando, a rota de fuga, a sada ou entrada daqueles que infringem a lei e a ordem em seus respectivos

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Estados. Imagem cada vez mais prxima do real quanto mais fechado for o Estadonao. Deve-se ter a compreenso de que os conceitos so histricos e, por isso mesmo sua adaptao e resignificao decorrem das mudanas produzidas pelo movimento da sociedade, portanto um processo. Desse modo, percebe-se que o conceito de fronteira poltica nos ltimos anos vem sendo posto em questo justamente pela presso exercida pela economia, que fora a liberdade de movimento de determinados fatores, principalmente mercadorias e capitais. Isto seria o resultado das mudanas inerentes ao prprio estado-nacional para ajustar-se ao mundo globalizado. O fim das fronteiras atenderia assim aos objetivos da produo e da circulao realizados por grandes corporaes presentes em diversos pases do mundo, tirando de cada um deles pequenas ou grandes vantagens comparativas frente a outros lugares. Limite do territrio nacional, a fronteira pressupe um centro de controle, que pode ser geogrfico ou no, de onde partem as ordens, na forma de polticas que variam em virtude do relacionamento que se estabelece com o vizinho. Tais polticas podem ter um sentido de estreitamento de relaes exigindo uma menor vigilncia por parte do Estado no que diz respeito segurana do territrio, ou ao contrrio, quando fortificaes militares so estabelecidas para garantir o patrimnio territorial. Aqui importante destacar, antecipadamente, a extenso territorial do Estado-nacional, pois como afirma Claval(1979), difcil uma poltica econmica num Estado pequeno no interferir no seu vizinho. Observa-se, assim, que a fronteira no pode ser pensada como um absoluto, pois mesmo sendo percebida como periferia do Estado-nacional, a sua essncia s pode ser apreendida a partir dela e da relao que mantm com outros espaos no apenas o exterior a ela como tambm com os espaos interiores do estado-nacional. Bem afirma Martin(1993:77) que devido diversidade de condies em que a mesma se encontra, perdeu sua qualidade de substncia para ser concebida com adjetivos que lhe qualificam. De modo simples, porm bastante esclarecedor, Guhl(1991:153), estudioso da formao das fronteiras colombianas, fala que es obvio que la frontera es vista de modo diferente por el colono, el capitalista extranjero, el gegrafo o el poltico; y el experto militar lo evala diferente que el contrabandista o el patriota de buena f; pero todos

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estos puntos de vista son fuerzas activas- de diferente intensidad- que influyen sobre el espacio y sus fronteras polticas de acuerdo con el tiempo Enfim, num trabalho mais recente, Michel Foucher, talvez diante dos acontecimentos que pode vivenciar na Europa do final da dcada de 1980, na advertncia que faz segunda edio de sua principal obra, aponta uma caracterstica para a fronteira cujo carter de subjetividade demonstra o sentido da fronteira vivida. Mostra que com a queda do muro de Berlim, o que era uma fronteira triste, passou a ser uma fronteira alegre. a partir da obra de F.Turner sobre a expanso americana para o oeste que a noo de fronteira econmica se estabeleceu, servindo de referncia para inmeros outros estudos sobre a expanso territorial interna de diversos Estados-nacionais. Num breve resumo da obra daquele autor americano, professor em Wisconsin, no final do sculo XIX, podemos dizer que, segundo ele, a fronteira aparece como o limite da zona povoada; o ponto de encontro entre a civilizao e os selvagens. Afirmava, tambm, que a fronteira, enquanto significado de terras livres a serem ocupadas era o salvaguarda da democracia americana, servindo como vlvula de escape para as populaes pobres do leste dos Estados Unidos e da Europa. Enfim, Turner buscava dar uma explicao para o papel que o avano para o oeste teve no desenvolvimento norte americano. Neste caso fica evidente que o conceito de fronteira diz respeito exclusivamente a um processo econmico de incorporao de novas terras atividade produtiva, em que a expresso fronteira agrcola a que melhor explica tal processo. No Brasil, a gradativa expanso da agricultura do sul ao norte do pas, gerou toda uma reflexo da academia sobre o assunto. A regio amaznica, fracamente habitada, era vista como uma fronteira a ser vencida, ocupada, at mesmo para proteger a fronteira poltica. Estas duas tipologias de fronteira poltica e econmica esto consolidadas no apenas no senso comum como no campo acadmico, sendo objeto de estudo dos mais diversos ramos disciplinares. Embora partam de concepes distintas, ambas possuem em comum o fato de tomarem como referncia explicativa um outro lugar, ou seja, a fronteira a outra face do centro. O que pretendemos discutir a possibilidade de compreender a fronteira, e principalmente a fronteira poltica, como centro, ou seja, tomar como referncia de compreenso deste lugar ela prpria. Mais ainda, levantar questes sobre a existncia de uma identidade territorial fronteiria.Ateli Geogrfico Goinia-GO v. 1, n. 2 dez/2007 p.27-41 pgina 31

Fronteira, Cultura e Identidade

Seja em sua acepo poltica ou econmica, h um consenso de que a fronteira um lugar de demarcao de diferenas, onde normas, leis e soberanias possuem um limite fsico, o limite do prprio Estado-nacional, e onde a dinmica das atividades produtivas, de formas de organizao social, de temporalidades, etc. se defrontam no interior de um mesmo Estado-nacional. Pensar a fronteira como centro implica, inicialmente, numa mudana metodolgica, em que a fronteira deva ser compreendida como um lugar de moradia e de existncia de seus habitantes. Ser da fronteira o dado primordial para a discusso que queremos fazer. Ser de algum lugar implica, tambm, uma relao de pertencimento e/ou identificao com o lugar. Desse modo, deixa-se evidente a necessidade de pensar a fronteira como um lugar, um lugar que como qualquer outro possui seu dado particular. O dado particular fundamental da fronteira justamente o fato da convivncia, regra geral aproximada, com o outro, com a diferena nacional, que remete aos smbolos prprios a cada nao, a histria, a cultura, ao nacionalismo. Na verdade a fronteira poltica impe, por necessidade do Estado, uma disjuno histrica, um corte que institui uma diferena, que dificulta uma identidade fronteiria, e que a sociedade fronteiria procura romper. Em trabalho anterior apontamos (Nogueira, 2002) que a fronteira poderia ser compreendida a partir de outras referncias que no as clssicas tipologias de quentes/frias, vivas/mortas, naturais/humanas, polticas/econmicas, interna/externa, dentre outras, todas pautadas por uma objetividade. Procuramos compreender a fronteira tomando por base referenciais subjetivos e trabalhamos com conceitos de fronteira percebida e fronteira vivida. Do primeiro dissemos que ela constituda de percepes, e seu aspecto aparente (Silva, 1988), que so construdas pelo Estado sobre o seu vizinho lindeiro, a partir da prpria histria de formao da fronteira. Uma fronteira definida a partir de uma negociao possui uma representao para as sociedades nacionais bem distinta daquela formada, definida, a partir de conflitos e guerras. Assim, a percepo da fronteira, principalmente para aqueles que esto localizados fora dela, no interior do Estado-nacional, carregada de imagens

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depreciativas, pois pela fronteira que ingressam no pas as diversas mazelas, mercadorias ilegais, mo-de-obra ilegal e toda sorte de contraveno. Sobre o conceito de fronteira vivida procuramos dar nfase ao sujeito na sua relao como o lugar. Isto significa que a fronteira deve ser interpretada a partir da compreenso que seus habitantes tm dela e de como se relacionam, quando se relacionam, com seus vizinhos e mesmo com seus compatriotas das regies centrais. A fronteira vivida busca compreender o cotidiano deste lugar nos seus mais variados aspectos, lazer, trabalho, contraveno, consumo, defesa, disputas, - reconhecendo ainda que o outro lado tem outra lei. Assim, acreditamos que a fronteira seja capaz de refletir o grau de interao ou ruptura entre sociedades fronteirias. Como esta perspectiva da fronteira vivida nos remete para a relao entre o ser e o lugar, no poderamos passar ao largo da questo da identidade com o lugar, pensar na fronteira como espao de referncia identitria, ou seja, uma identidade territorial cuja manifestao emprica a prpria experincia de habitar este lugar. A identidade territorial pode ser interpretada como algo dado, decorrente da naturalidade (local de nascimento), da vivncia (experincia dentro das fronteiras da regio) e da cultura (prticas culturais de identidade territorial), como tambm pode ser vista como algo construdo, uma auto-atribuio, quando os indivduos se reconhecem como gachos, nordestinos, mineiros, etc(Penna (1992) apud Haesbaert, 1999). Ser da fronteira, assim, pode se constituir numa identidade territorial que construda a partir da

vivncia neste lugar. Porm, como a fronteira poltica um espao de transio do poder institudo, a sociedade fronteiria pode se constituir de uma identidade nacional ou multinacional, ou seja, uma identidade fronteiria que seja dada por habitantes de ambos os lados da fronteira. Porm, um ponto que importante refletir sobre a identidade fronteiria, diz respeito particularidade de cada dade, isto , de cada linha fronteiria, at porque a existncia ou no de interao entre as sociedades fronteirias resultado da histria de relacionamento entre elas, da relao de dependncia mtua, da porosidade para o movimento, e tambm das relaes bilaterais entre os Estados, que podem controlar o movimento. Cuisinier-Raynal (2001, apud Brasil, 2005) identificou algumas tipologias de interao fronteirias que podem servir de referncia para compreender a relao da fronteira com a sociedade civil, mediada ou no pelo Estado-nacional. Um primeiro tipo o margem,Ateli Geogrfico Goinia-GO v. 1, n. 2 dez/2007 p.27-41 pgina 33

caracterizado pela primazia da dinmica local ou nacional, sendo interna a cada pas, sendo, portanto difcil uma circulao entre os pases. Um segundo tipo a zonatampo, cuja histria j mostrou sua manifestao em diversos lugares, no passado a chamada cortina de ferro, constituda pelos pases que constituam o antigo bloco socialista, separando a Unio Sovitica da Europa Ocidental. Neste tipo de fronteira existe a uma clara tenso militar, uma dificuldade em adensar o povoamento. No Brasil alguns historiadores indicaram que esta era a posio do Uruguai, separando-o da Argentina. Hoje, v-se a criao de reservas indgenas e ecolgicas no Norte do pas para impedir o avano da ocupao civil do territrio. O terceiro tipo so as frentes, marcadamente voltadas para o processo de ocupao, podendo ser civil ou militar. O quarto tipo estabelecido por Raynal a interao capilar, onde h pouca atuao do estado, uma interao local e essencialmente espontnea. Enfim, o ltimo tipo denominado de sinapse, onde existe um alto grau de interao entre as populaes fronteirias. Portanto, a partir destes conceitos torna-se possvel compreender como cada dade elabora suas interaes e com isto definir o grau de interao e, por conseguinte a constituio de identidades fronteirias unicamente nacional ou binacional. A fronteira pode se constituir num espao de identidade territorial a partir de

basicamente duas formas: 1) quando o ser da fronteira diz respeito a um contraponto s regies centrais, sendo essencialmente nacional. Aqui a fronteira um espao de referncia identitria exclusivamente nacional ; e 2) quando o ser da fronteira diz respeito a uma interao de identidade binacional, em que os dois lados se reconhecem como fronteirios e com tal identidade e forma de relacionamento frente aos respectivos estados nacionais. Ser da fronteira aqui significa uma superao dos limites formais do Estado Nacional, sendo a sociedade civil o principal agente da interao.

Na linha de fronteira: Brasil/Colmbia e Haiti/Repblica Dominicana A partir daqui apresentaremos dois exemplos completamente distintos de

relacionamento fronteirio para demonstrar como esta regio capaz de comportar as mais diversas anlises, at porque, como dissemos anteriormente, cada dade uma histria, uma geografia, podendo, portanto, expressar as diversas tipificaes apontadas por Raynal e como decorrncia expressar sentimentos, vivncia, percepes e

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experincias distintas entre seus habitantes sobre si e sobre o outro. Assim, demonstraremos duas situaes de cidades fronteirias, em pases completamente distintos, em que num a fronteira se revela como sinapse e o outro se revela como margem, comeando com uma exposio sobre a trplice fronteira Brasil, Colmbia e Peru. Tabatinga, cidade fronteiria do estado do Amazonas brasileiro e Letcia, cidade do estado do Amazonas colombiano, esto na mesma margem do rio Solimes, tendo o igarap de Santo Antnio como parte da linha divisria. Desde o incio do povoamento da rea que a populao brasileira, colombiana e peruana, tambm, ocupa no s ambas as margens do referido igarap, como o prprio leito do mesmo, facilmente transitvel nos perodos secos, em meio aos marcos de concreto que demarcam a fronteira. Esta convivncia centenria estremecida na dcada de 1930 quando Colmbia e Peru entraram em guerra sobre a posse do territrio no poderia deixar de criar uma cultura e uma identidade fronteiria pautada na solidariedade em vista das condies locacionais das cidades: distantes e isoladas de grandes centros urbanos. O movimento mtuo dos fronteirios consolidou laos que hoje se revelam no parentesco binacional, com a constituio de famlias pertencentes a nacionalidades distintas, tendo como resultado disso o necessrio domnio mnimo das lnguas para a busca do lazer, do trabalho, dos servios, dos empregos diversos que nem sempre esto a disposio em ambos os lados; nas ligaes com outros pontos da rede urbana Bogot, Iquitos, Manaus assim como amizades, visitas, compras de abastecimento rotineiro, etc. Composta majoritariamente por ndios tikunas e seus descendentes, por Uitotos e outros povos indgenas, esta populao fronteiria se faz presente em todos os cantos das cidades, como feiras, mercados, portos, cmara de vereadores, etc. A forte presena indgena , na verdade, anterior a constituio dos Estados-nacionais. Para esta populao a disjuno fronteiria criada pelos Estados-nacionais pouco significa, pois os mitos fundadores de sua nao em nada se assemelham a um ou outro. No entanto, estar envolvido por Estados- nacionais terminou por criar os tikunas brasileiros, tikunas peruanos e tikunas da Colmbia.

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Tabatinga, em seu processo de expanso urbana, juntou-se terra indgena denominada Umariau, dando a aparncia hoje de um bairro indgena. Os tikunas respondem por uma parte do abastecimento urbano com produtos da floresta, dos rios e do trabalho agrcola. Participam tambm da economia fronteiria vendendo artesanato e realizando pequenos servios. Continuam, porm, sendo vistos com estranhamento e desconfiana. Sendo ponto de encontro de nacionalidades, Tabatinga no poderia ficar imune a migrao. Ela possui no conjunto de sua populao um contingente de peruanos, principalmente, que, oriundos de todas as partes da Amaznia peruana, Iquitos, Pucalpa, etc, vem em Tabatinga uma possibilidade de melhor condio de vida. Esto presentes nas escolas, no comrcio formal e informal, alm de solicitarem servios pblicos diversos. Como tantas outras cidades amaznicas, a relao de dependncia econmica da extrao de recursos naturais comum a ambas cidades, a relao com a natureza apresenta praticamente as mesmas mitologias independente do lado fronteirio, ou seja, a formao cultural d uma identidade a esta populao. Os mitos e ritos associados fauna, flora e a gua no reconhecem fronteira. Outra referncia que importante situar neste processo de constituio da identidade fronteiria diz respeito integrao fsica das cidades. Tabatinga, com 23 mil habitantes , possivelmente, uma das nicas cidades do interior do Amazonas que possui transporte coletivo urbano. O fato de apresentar contigidade espacial com Letcia, com contingente populacional semelhante, fez com que a organizao do transporte coletivo urbano, servisse ambas as cidades. Sendo, portanto, internacional, regulamentado pelas respectivas prefeituras, que definem rotas, tarifas, operadores e frota, onde cada cidade entra com a metade do total de 40 veculos. Cruzando a fronteira, aceitando como pagamento de tarifa o real ou o peso, atendendo os passageiros em espanhol ou portugus, este transporte urbano simultaneamente a afirmao da fronteira, quando cobra tarifa internacional se o passageiro vai de uma cidade a outra; como a prpria negao da fronteira, dada a cotidianidade do movimento, da circulao internacional livre, da indiferena.

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A cidade de Tabatinga, assim como Letcia, uma tpica cidade ribeirinha da Amaznia e a principal forma espacial dessas cidades a existncia de um porto, que muitas vezes apenas um lugar onde concentra a atracao de barcos e canoas num pequeno flutuante ou trapiche que serve como apoio para carga e descarga de produtos agrcolas ou extrativos, e embarque e desembarque de passageiros e moradores da zona rural. , portanto, um lugar de trocas: do ambiente rural para o urbano, onde os cdigos so distintos, a mobilidade exige outro conhecimento, onde a linguagem e neste caso a prpria lngua diferente, e de troca de escala, da local para a regional. A condio locacional fronteiria da cidade de Tabatinga e sua insero como ponto na extensa rede fluvial amaznica, d, necessariamente, uma importncia para o porto porque ele aparece como o primeiro lugar de entrada dos fluxos externos vindos do Peru e da Colmbia, e a porta de sada do territrio brasileiro. O Tratado de Limites, ainda do incio do sculo XX, assegurou ampla liberdade de navegao queles pases. Como fruto da mobilidade, a diversidade cultural encontrada no porto de Tabatinga est presente pela convivncia histrica de lnguas distintas. O legado colonial espanhol e portugus cruza com a resistncia da lngua dos tikunas. Agricultores peruanos que habitam a outra margem do rio, assim como os agricultores brasileiros e as comunidades indgenas dirigem-se at o porto para levar sua produo e adquirir mercadorias hoje fundamentais sua reproduo: linha de pesca, chumbo e plvora, fsforo, gasolina, acar e sal, assim como alimentos e bebidas, que adquirem nos armazns de estivas pertencentes a peruanos, colombianos e brasileiros, com produtos vindos do Peru, da Colmbia e do Brasil. Os bares da zona porturia tocando vallenato (ritmo popular colombiano), brega (ritmo popular do norte do Brasil) e salsa (ritmo popular peruano) para agradar os clientes, constituem um cenrio plenamente absorvido pela populao local, pois que algo constantemente experienciado por quem nasceu, cresceu e vive nesta fronteira, demonstrando o alto grau de permeabilidade cultural. A outra fronteira que ser apresentada tem, do ponto de vista terico, uma aproximao com a tipologia margem estabelecida por Raynal. Trata-se da regio fronteiria entre o Haiti e a Repblica Dominicana, pases que dividem uma pequena ilha no Caribe, tendo uma linha de fronteira de apenas 300 quilmetros. Na parte Norte da fronteira est a maior concentrao de populao: nas cidades de Dajabon ( cidade dominicana), comAteli Geogrfico Goinia-GO v. 1, n. 2 dez/2007 p.27-41 pgina 37

30 mil habitantes, e Ouanaminthe (haitiana), com 45 mil habitantes. Estas cidades so divididas por um pequeno rio, que permite, inclusive, sua travessia a p. Esta fronteira , na mais pura expresso da palavra, uma fronteira. A curta experincia vivida nesta regio, mesmo o autor no sendo um habitante dela, foi suficiente para repensar a questo da fronteira e referendar a idia da disjuno histrica, onde o outro lado no apenas diferente, mas toda e qualquer forma de relacionamento recusada pelo Estado e tambm pela sociedade civil. Remete idia clssica de fronteira fria. Este estranhamento e frieza no relacionamento resultado, como dissemos anteriormente, da forma de constituio desta fronteira. As relaes entre os dois pases, oriundos de processos de colonizao distintos Haiti (Frana) e Republica Dominicana (Espanha) sempre foram conflituosas, principalmente aps a independncia, quando o Haiti, ao sair do domnio francs ocupa toda a ilha. A Repblica Dominicana surge como pas saindo do domnio haitiano em meados do sculo XIX. As linhas de fronteiras mal definidas sero o estopim para o grave conflito ocorrido na dcada de 1930, no governo de Trujillo, quando este ordenou o massacre de mais de 6.000 haitianos que, segundo ele, estava em territrio dominicano. Este fato vai marcar profundamente as relaes futuras entre os dois pases. A fronteira de tipo margem definida por Cuisinier-Raynal marcada por um baixo nvel de relacionamento fronteirio internacional, onde as populaes desta rea esto mais voltadas para o seu pas, havendo uma primazia da dinmica local, e uma dificuldade de circulao entre os pases. Porm, na regio em foco, importante descrever a origem deste processo para que possamos compreender o porqu da frieza do relacionamento fronteirio atual. A construo ideolgica da diferena tem sua origem, no estado dominicano, a partir do governo Trujillo, quando se comea a dar ao povo deste pas uma raiz distinta de seu vizinho. Embora ambos tenham sido colonizados, no Haiti, a implantao da produo canavieira pelos franceses exigiu uma grande quantidade de mo de obra trazida da frica. No lado oeste da ilha, esta atividade se deu em menor proporo, portanto, menos necessidade dessa mo de obra. A partir disso, a identidade do povo

dominicano passou a ser elaborada tendo como base as seguintes dimenses: como

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descendente de indgenas, que habitavam a ilha no perodo colonial, e espanhis, e no negros como os haitianos; so majoritariamente catlicos, ao contrrio dos haitianos que herdaram rituais religiosos africanos, onde se destaca a prtica do vudu. A instituio desta viso do povo dominicano sobre seu vizinho fronteirio Haiti, ter na fronteira uma clara expresso da rejeio de qualquer relacionamento. A breve descrio abaixo permitir ter uma noo da vida nesta regio. Uma pequena ponte de aproximadamente 70 metros sobre o rio Massacre a nica ligao entre as cidades de Dajabon e Ouanaminthe. Do lado dominicano uma representao do governo, vigiada por soldados para controlar a passagem, antecede um porto de ferro; do lado haitiano, outro porto de ferro, controlado pelas foras da ONU desde que o pas passou por uma guerra civil e desestabilizao do Estado. Os portes s abrem dois dias na semana para permitir a realizao de uma feira no lado dominicano que assegura o abastecimento de inmeros produtos deste pas para o Haiti. Os minutos que antecedem a abertura dos portes marcado por uma grande expectativa, pois que a avidez da travessia cria uma grande aglomerao de pessoas apenas de um dos lados da ponte, j indicando o desequilbrio entre os pases. Atravessam a ponte a p, ou arrastando suas carroas, aproximadamente cinco mil haitianos, homens mulheres e crianas, para adquirir os mais diversos produtos, desde gelo, ovos, produtos plsticos e alimentcios. No sentido inverso s h fluxo dos prprios haitianos, ao final do dia, aps o comrcio. Nos outros dias, portes fechados, pessoas no circulam, veculos no circulam, restringindo toda e qualquer possibilidade de integrao fronteiria. Embora fisicamente as duas cidades dividam as margens opostas do rio que as separa; embora haja uma ponte que permite o trnsito entre elas, no h, porm, nenhuma possibilidade de consider-las como cidades-gmeas, visto que seus habitantes no podem circular livremente entre as mesmas; no h nenhuma forma de interao seja partindo do Estado, seja da sociedade civil. A fronteira cerrada e controlada demonstra que no apenas o Estado dominicano, mas a sociedade civil da fronteira e do restante do Estado nacional, no esto dispostos a ampliar o relacionamento com o seu nico vizinho. Da cidade fronteiria de Dajabon

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at a capital Santo Domingo so duzentos quilmetros de distncia com oito postos de vigilncia para impedir o ingresso de haitianos no pas, apesar de residirem na capital cerca de quinhentos mil deles trabalhando como pedreiros, vigilantes, domsticas, etc. Portanto, nesta fronteira, se existe a possibilidade de constituio de uma identidade territorial ela apenas parcial, ou seja, de cada um dos lados, nacional somente, visto que tudo o que foi construdo e elaborado pelos estados impediu uma permeabilidade scio-cultural. Aos dominicanos permite-se tudo, menos casar-se com haitianos.

CONCLUSO

Uma das mais espetaculares invenes dos grupos de poder numa sociedade foi saber apropriar-se do sentimento de apego e afetividade que as pessoas tem com os seus lugares de vida para transformar este sentimento em algo comum a um grupo. O sentido de territrio comum, que se manifesta empiricamente em extenso para o Estado, a regio, o bairro, passou a ser a identidade territorial, utilizada como identidade nacional, transferindo a afetividade aos lugares para a afetividade nao. Procuramos ao longo do artigo compreender como este sentimento de apego e afetividade territorial se d numa regio de fronteira, lugar que, juridicamente, marca o fim do Estado, portanto de uma identidade, a nacional. Tomamos como referncia emprica situaes bem distintas para demonstrar como a fronteira pode se constituir num lugar de identidades que se manifestam de maneira diferenciada, referendando, em parte, as reflexes de Cuisinier-Raynal sobre as interaes fronteirias.

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Recebido para publicao outubro de 2007 Aprovado para publicao dezembro de 2007

Ateli Geogrfico

Goinia-GO

v. 1, n. 2

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