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Fundação Armando Alvares Penteado
Faculdade de Economia
Curso de Relações Internacionais
O caso das Crianças-Soldado em Serra Leoa
Stephanie Alessandra Cox Monteiro
Professor Orientador: Raquel Rocha
Junho, 2011
2
INTRODUÇÃO
O objetivo deste trabalho é investigar a utilização de crianças como soldados em
conflitos armados e a eficácia dos programas de reabilitação, numa etapa posterior à guerra.
Segundo estimativa do Child Soldiers Global Report (2001), existem no mundo 300 000
crianças-soldados (WESSELS, 2006). Embora este seja um fenômeno recorrente na história
da humanidade, circunscrevemos nossa análise ao território de Serra Leoa. Este país africano,
por mais de uma década, foi palco de embates de extrema violência com incontáveis
exemplos de atrocidades. Uma das características desse conflito foi a intensa utilização de
crianças como elementos de combate ou em outras tarefas, por todos os grupos envolvidos no
episódio. Constatamos que esses programas de reabilitação possuem falhas que atingem,
sobretudo, os ex-combatentes do sexo feminino, cuja participação nas batalhas não é
devidamente reconhecida e valorizada.
Levantamentos feitos indicam que, entre as crianças que tomaram parte nos conflitos
em Serra Leoa, haviam muitas meninas que foram aliciadas ou mesmo sequestradas para
serem utilizadas como combatentes. Por razões sobre as quais vamos discorrer no corpo deste
trabalho, sempre houve interesses em mantê-las envoltas em certo grau de invisibilidade. Isto
fez com que a participação feminina no episódio fosse relegada a um segundo plano,
impedindo que o fato recebesse a atenção merecida.
A intenção desta pesquisa é examinar particularmente a participação de meninas-
soldados no conflito que marcou a história recente de Serra Leoa. Ao enveredarmos pelos
meandros das questões que afligiram e até hoje afligem essas jovens, queremos demonstrar a
existência de deficiências das ações de desarmamento, desmobilização e reintegração (DDR),
em amenizar o sofrimento delas.
No primeiro capítulo discutiremos a evolução dos direitos humanos e dos direitos das
crianças; procuramos demonstrar as principais características de uma criança-soldado, assim
como as peculiaridades inerentes às meninas, em especial. Foi também objeto da pesquisa,
sob a ótica das relações internacionais, a busca de conceitos para melhor compreendermos os
aspectos desenvolvidos no transcorrer deste trabalho. Finalmente, levantamos os conceitos
filosóficos que permitiram a elaboração do programa de DDR.
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No segundo capítulo descrevemos a história de Serra Leoa, desde o seu período
colonial até o desenrolar da guerra civil, evidenciando a implantação do programa de DDR no
país durante o período de transição entre a guerra e a paz. Expusemos também a quantidade
de meninas-soldados que participaram do conflito e a porcentagem destas que tomaram parte
dos programas de DDR.
Descrevemos o que foi realizado com as meninas-soldado em termos de programas de
DDR. Suas experiências diferem das dos meninos. Procuramos evidenciar os motivos pelos
quais elas merecem atenção especial, devido às agressões que sofrem.
Procuramos mostrar as dificuldades para elaboração e implementação destes
programas, quando a meta que se busca é a inclusão destas meninas, auxiliando-as nas suas
necessidades, sempre considerando suas experiências singulares.
O terceiro e último capítulo propõe uma análise do programa de DDR de Serra Leoa
sobre a ótica das meninas-soldado, considerando como este processo define quem está apto a
receber o benefício e quais são os grupos que não podem participar. Em relação aos
participantes, verificamos se todas as necessidades são supridas. Finalmente discutimos quais
são os fatores essenciais para a reintegração na sociedade de uma jovem, após participar de
uma guerra. Examinamos também as dificuldades enfrentadas por aquelas que foram
excluídas dos programas.
A conclusão propõe uma reflexão sobre os programas de DDR em relação a sua
abrangência e efetividade. Sugerimos assim uma modificação no processo de elaboração e
implementação dos programas de forma que estes sejam elaborados de acordo com as
peculiaridades de cada caso. Para que, uma vez implantados, permitam uma maior eficiência,
possibilitando um considerável aumento na conquista de seus objetivos.
Para a realização do trabalho, lançamos mão de uma série de publicações
especializadas sobre o assunto, tanto na forma impressa quanto digital. Ao final, tornaram-se
claras, para nós, as deficiências dos programas de reabilitação e inserção social desses ex-
combatentes, fato que se revela ainda mais dramático em relação às meninas, que embora
tendo tomado parte ativa nos conflitos são consideradas apenas como dependentes ou
“esposas” dos soldados do sexo masculino. Esperamos que este estudo, na medida em que
detecta e discute as falhas desse programa de reabilitação aplicado em Serra Leoa, possa
4
contribuir, de algum modo, para o aprimoramento de iniciativas semelhantes em outros países
do mundo.
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CAPÍTULO 1 – A EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE DIREITOS
HUMANOS E OS DIREITOS DAS CRIANÇAS NA QUESTÃO DA
UTILIZAÇÃO DE CRIANÇAS-SOLDADOS EM CONFLITOS
ARMADOS
Este capítulo pretende demonstrar, através da explanação de conceitos-base das
relações internacionais, quais são os pontos comuns entre a evolução do conceito de direitos
humanos e os direitos das crianças. Além de definir conceitos essenciais para a compreensão
deste trabalho, tais como a definição de crianças, conflitos armados, refugiados, internaly
displaced persons, entre outros.
1.1 Direitos humanos
Antes da Segunda Guerra Mundial, a questão dos direitos humanos não era um tópico
presente na agenda política internacional, e grande parte dos Estados os violava, muitas vezes
mantendo colônias de exploração na África e em outros continentes. Durante muito tempo o
tema foi visto apenas como um assunto de relevância doméstica, que deveria ser discutido
internamente. Assim, os direitos humanos, que envolvem a forma como o Estado considera
seus cidadãos em seu território, não detinha a importância devida na agenda internacional.
Somente a partir de 1945, ao final da Segunda Guerra, passou a existir uma
preocupação com os direitos dos cidadãos. Segundo Donnelly (1993), muitas vezes um
problema só começa a fazer parte da agenda internacional depois que algum fato dramático
põe a questão em evidência. Desta forma, na Segunda Guerra, a ocorrência do Holocausto
impôs ao mundo discussões sobre direitos humanos. Criaram-se as condições necessárias para
que as Nações Unidas rapidamente se mobilizasse para elaborar normas internacionais
sólidas, que garantissem direitos básicos de convivência para toda humanidade.
Os principais propósitos e princípios contidos na Carta das Nações Unidas são os do
desenvolvimento de relações amistosas entre as nações, baseadas no respeito pelos princípios
da igualdade de direitos e da autodeterminação dos povos. Além de alcançar a cooperação
internacional, para solucionar problemas de caráter econômico, social, cultural e humanitário,
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das nações que se mostrem carentes em qualquer um desses aspectos. Encorajando sempre o
respeito pelos direitos humanos e pelas liberdades fundamentais (ONU Brasil, s/d).
Em 1946, a partir da Carta das Nações Unidas, foi criada a Comissão de Direitos
Humanos (CDH) das Nações Unidas e sua primeira tarefa foi a elaboração da Declaração
Universal de Direitos Humanos (DUDH). Esta foi outorgada em 1948, estabelecendo padrões
internacionais de convivência humana. A Declaração Universal de Direitos Humanos de
1948, juntamente com o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, de 1966, e o
Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos e Sociais constituem a International Bill of
Rights.
“Os direitos humanos são universais, indivisíveis, interligados, interdependentes e
devem ser tratados de forma justa e equitativa, em pé de igualdade e com a mesma ênfase”
(ONU Brasil, s/d). Sem nunca se esquecer que existem particularidades nacionais e regionais,
diversos antecedentes históricos, culturais e religiosos, mas todos os Estados,
independentemente de seus sistemas políticos, econômicos e culturais, têm o dever de
promover e proteger todos os direitos de seus cidadãos e as liberdades fundamentais (ONU
Brasil, s/d).
A Comissão dos Direitos Humanos se extinguiu em 2006, quando surgiram críticas
que a acusavam de não ser um órgão imparcial, e que as resoluções eram seletivas, partindo
da tabulação de uma questão. Outra crítica era em relação a sua hiper-politização, pois a
tabulação ocorria de acordo com o interesse político por trás da questão, assim a comissão
seria contraria e seu próprio princípio de os direitos serem inalienáveis.
Foi então que a Assembléia Geral das Nações Unidas criou o Conselho de Direitos
Humanos, órgão dentro do sistema ONU que reúne 47 países, responsáveis pela a promoção e
proteção dos direitos humanos em todo o mundo. O Conselho surgiu como uma proposta de
chamar atenção para a situação da violação dos direitos humanos e fazer recomendações a
respeito (ONU Brasil, s/d). O reconhecimento dos direitos humanos somente muito
recentemente passou a ser uma preocupação entre as nações, e tem evoluído na medida em
que se detecta cada vez mais a violação destes direitos.
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1.1.1 Direitos das crianças
Em 1989 as Nações Unidas adotaram a Convenção sobre os Direitos das Crianças
(CDC), que estabelece um conjunto de direitos fundamentais, tais como os direitos civil,
político, econômico, social e cultural; bem como as disposições para que estes sejam
aplicados (UNICEF, Direitos da Criança, s/d).
Um total de 192 Estados ratificaram o tratado. Eles tiveram que adequar seu conjunto
de normas de direito interno às da Convenção, para a proteção e promoção dos direitos nela
consagrados (UNICEF, Direitos da Criança, s/d). Além da CDC existem dois Protocolos
Adicionais, sendo que um deles é relativo ao envolvimento das crianças em conflitos. Este
considera ser necessário aumentar a proteção às crianças para evitar que estas tenham
qualquer envolvimento em conflitos armados (UNICEF. Protocolo.., 2003).
Foram adotados os princípios do Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional,
que determina que o recrutamento e alistamento de crianças, menores de 15 anos, nas forças
nacionais, e a obrigatoriedade de participar ativamente de hostilidades, configuram-se como
crimes de guerra (UNICEF. Protocolo.., 2003). O artigo 1 do Protocolo determina que:
“Os grupos armados distintos das forças armadas de um Estado não devem, em
circunstância alguma, recrutar ou usar pessoas com idades abaixo de 18 anos” (UNICEF.
Protocolo.., 2003).
O Conselho de Segurança divulgou uma série de resoluções que fazem recomendações
a respeito da participação de crianças em conflitos armados; o que demonstra que a ONU vem
tomando medidas no sentido de aumentar a preocupação com crianças.
1.1.2 Serra Leoa
Ao longo das duas últimas décadas, Serra Leoa enfrentou uma série de obstáculos para
promover e proteger os direitos de suas crianças. “Conflitos, pobreza e desigualdade de
gênero somam-se para ameaçar os direitos da criança” (UNICEF. Situação Mundial da
Infância, 2009).
Segundo a UNICEF (2009), Serra Leoa vem “apresentando progressos regulares em
relação à segurança e à estabilidade política no país”, porém ainda há um longo caminho a ser
percorrido para assegurar os direitos das crianças.
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Serra Leoa vem avançando na direção da proteção e participação da criança. A
Comissão da Verdade e Reconciliação de Serra Leoa, que visa fazer um levantamento da
documentação sobre a violação aos direitos humanos ocorrida no país, envolveu crianças
diretamente afetadas pelo conflito civil (UNICEF. Situação Mundial da Infância, 2009).
Em 2001, o governo de Serra Leoa constituiu a Rede Fórum da Criança, uma
organização de defesa da criança comprometida com a criação de conexões e com a
divulgação dos direitos da criança e suas responsabilidades. A Rede Fórum da Criança
trabalha atualmente nos 13 distritos de Serra Leoa (UNICEF. Situação Mundial da Infância,
2009).
Constata-se que houve uma evolução dos direitos das crianças em Serra Leoa, desde
1990, quando uma série de compromissos foram assumidos (UNICEF. Situação Mundial da
Infância, 2009):
Junho 1990: Convenção sobre os Direitos da Criança
Setembro 2001: Protocolo Facultativo sobre a Venda de Crianças, Prostituição
Infantil e Pornografia Infantil;
Maio 2002: ratificação do Protocolo Facultativo sobre o Envolvimento de
Crianças em Conflitos Armados.
Posteriormente, em 2007, esses compromissos foram incluídos na legislação nacional,
por meio do Estatuto dos Direitos da Criança, que substitui todas as outras leis nacionais e é
considerado compatível com a Convenção e com a Carta Africana sobre os Direitos e o Bem-
Estar da Criança (UNICEF. Situação Mundial da Infância, 2009).
Esta evolução demonstra um considerável avanço nas preocupações voltadas para
oferecer segurança, promover oportunidades e proporcionar bem estar para as crianças,
possibilitando assim um crescimento sadio e a formação de cidadãos comprometidos com
suas comunidades.
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1.2 Direito Internacional Humanitário
O Direito Internacional Humanitário (DIH) consiste de um conjunto de normas que
visa a proteger as pessoas que não estão diretamente envolvidas no conflito ou deixaram de
participar das hostilidades, assim como criar limites aos meios e métodos de guerra. Os
Estados se comprometem a respeitar essas normas, que têm como base o costume
internacional, de forma que sua violação é rejeitada por todos (CIVC, s/d).
O DIH é um ramo do Direito Internacional Público. Suas regras foram se
desenvolvendo progressivamente na medida em que as formas de combate foram se tornando
mais sofisticadas e agressivas, colocando em risco cada vez mais a população civil.
O Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) é o organismo humanitário que,
com a anuência do DIH, tem livre acesso às vítimas dos conflitos, de forma a protegê-las e, na
medida do possível, suprir suas necessidades. Foi o CICV que, em 1864, primeiro tomou a
iniciativa para que fosse adotado um tratado internacional que estabelecesse regras para
futuros combates, a Convenção de Genebra, para dar alguma forma de suporte aos militares
feridos (CIVC, s/d).
Quanto às restrições ao conflito, todas as partes envolvidas devem respeitar as regras
estabelecidas pelo DIH, ou seja, atacar somente objetivos militares, respeitando áreas civis,
dar assistência aos feridos e tratar com humanidade os adversários que se rendem ou são
capturados, preservar o pessoal médico, inclusive o pessoal da Cruz Vermelha, e as
instalações destinadas ao atendimento médico (CIVC, s/d).
Desta forma, o Direito Internacional Humanitário é o direito humano aplicado em
tempos de conflito. Conhecido também como Direito dos Conflitos Armados, aplicável em
circunstâncias de conflito armado internacional, situações de hostilidade entre Estados com
ocupação total ou parcial; conflito armado não-internacional, conflito armado por tempo
prolongado dentro de um Estado e conflito armado misto, onde existe uma participação
estrangeira em um conflito interno (CIVC, s/d). Vale ressaltar que tal direito não se refere ao
uso legítimo da força, pois este é regulado pelo direito internacional, através da Carta das
Nações Unidas.
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O Direito Internacional Humanitário encontra-se nas quatro Convenções de Genebra
desenvolvidas em 1949 e depois complementadas por dois Protocolos Adicionais em 1977. A
primeira Convenção de Genebra trata da assistência aos militares que adoecem ou se ferem
durante o conflito; a segunda trata da assistência de militares feridos, doentes e náufragos; a
terceira convenção regula o tratamento de prisioneiros de guerra; a quarta e última é destinada
à sociedade civil em situação de conflito. O Protocolo I assegura a proteção da sociedade civil
em conflitos armados internacionais; já o Protocolo II trata de conflitos internos e estabelece
regras detalhadas para estes casos (CIVC, s/d).
1.3 Conflito Armado
Um conflito armado é uma contestável incompatibilidade que envolve governo e uma
organização opositora. Onde haja o uso de força armada entre pelo menos dois grupos, em
que resultem um mínimo de 25 mortes relacionadas à batalha (UPPSALA UNIVERSITET,
2011).
Por grupos envolvidos se define:
a. Governo: O grupo controlador da capital do estado.
b. Organização opositora: qualquer grupo não governamental, que divulgue um nome
para seu grupo e use a força armada
1.4 Crianças-soldados
O uso de crianças em combates não é um fenômeno novo. Crianças estavam
envolvidas em combates desde as Cruzadas; participaram também do exército de Napoleão,
lutaram a favor dos nazistas e depois contra, durante a Segunda Guerra Mundial. (PARK,
2006: 320)
Apesar de se tratar de um fenômeno histórico, o uso de crianças em guerras se
intensificou no pós-guerra fria, quando ocorreu a proliferação de armas baratas, de pequeno
porte, que poderiam facilmente serem utilizadas por elas.
Não é simples definir quem são as crianças-soldados, já que a concepção de criança é
culturalmente construída, variando de acordo com a sociedade. Segundo Michael Wessells
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(2006), os países ocidentais consideram que um indivíduo menor de 18 anos é uma criança; já
em países da África Sub-Sahriana, são considerados adultos aqueles que passam por rituais de
iniciação ou de passagem para a vida adulta. Este processo independe da idade dos
indivíduos, mas geralmente acontece em torno dos 14 anos de idade.
Em certas circunstâncias o que prevalece não é a idade, e sim a real capacidade de
compreensão do jovem, e isso então determinará se este está ou não apto a realizar
determinada atividade. Segundo Cohn e Goodwin-Gill (1994), em diversos Estados a
participação de seus indivíduos na política, quanto à possibilidade de votar, é um momento
que a sociedade, como um corpo político, reconhece a maturidade intelectual de um
indivíduo.
Para fins do presente trabalho utilizaremos a definição de criança de acordo com a
Convenção das Nações Unidas de 1989 para os Direitos das Crianças (CRC), que assim
classifica qualquer indivíduo com idade inferior a 18 anos, a não ser que este seja
emancipado.
Popularmente acredita-se que os país detêm a responsabilidade de cuidar de seus filhos
e a sociedade de protegê-los. A maioria dos países possui leis para proteger as crianças e
ratificaram tratados que impõem padrões internacionais como a CRC. Porém existe uma
distância entre estes padrões internacionais e a realidade das crianças que vivem em países em
situação de conflito.
Consideraremos como criança-soldado qualquer jovem, menino ou menina, menor de
18 anos, que tenha sido recrutado forçadamente, compulsoriamente ou voluntariamente, como
combatentes, mensageiros, escravos sexuais ou “esposas” forçadas. Prestando serviços para
forças armadas, forças paramilitares, unidades da defesa civil e outros grupos armados
(MACHEL,1996).
Segundo o Child Soldiers Global Report (2001), estima-se que, em todo mundo,
existam 300 mil crianças nessa situação. Wessells (2006) explica que muitas pessoas e grupos
se beneficiam explorando as crianças como soldados, mas, ao contrário do que se possa
imaginar, o uso das crianças não é uma medida de última instância; na realidade isso acontece
por motivos básicos: conveniência e baixo custo. Ou seja, o grande número de crianças nas
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regiões de conflito se deve ao fato de sua manutenção e sobrevivência custar menos do que
manter adultos nas mesmas condições.
Quando crianças estão servindo como soldados, elas passam o período em que
deveriam estar recebendo uma formação educacional, que auxiliaria na formação de seus
valores e caráter, participando de repetitivas ações violentas, ou mesmo apenas as
testemunhando. Constroem assim suas prioridades e identidades, guiados por seus líderes nos
grupos armados. Desta forma, transformam-se em agentes geradores de mais violência, em
vez de cidadãos que buscam e promovem a paz (WESSELLS, 2006).
O recrutamento destas crianças nem sempre é forçado. Muitas delas que cresceram
num contexto de guerra civil, e devido à falta de acesso aos estudos, sentem-se alienados e
sem poder. Acreditam que a violência é um meio para mudar a ordem social existente. Isto
cria condições para que sejam aliciados ou voluntariamente se juntem a um grupo armado. Ao
ingressarem para um destes grupos, estas crianças sentem-se respeitadas e têm a sensação de
pertencerem a uma família, além de obterem privilégios que não seriam possíveis se fossem
cidadãos comuns, como proteção, comida e assistência médica (WESSELLS, 2006). Desta
forma passa a ser uma opção de sobrevivência do menor.
Porém, segundo Graça Machel (1996), é ilusório acreditar que estas crianças
realmente se candidatam para tais fins voluntariamente, existem pressões culturais, sociais,
econômicas e políticas envolvidas. Após o recrutamento as crianças, em muitos casos, são
expostas a situações horrendas, para embrutecê-las. Há relatos que dão conta de que ao
passarem por um ritual de iniciação, foram obrigadas a matar alguém.
Em Serra Leoa, novos recrutas eram muitas vezes obrigados a cometer
atos hediondos contra algum membro de sua família ou comunidade a
fim de fortalecê-los e iniciar seu vínculo com o grupo armado
(FURLEY, 1995: 33; THOMPSON, 1999: 193; MAXED, 2003: 63;
apud PARK, 2006: 320).1
1 Tradução nossa: In Sierra Leone, as in other conflicts (...) new recruits were often forced to commit heinous
acts against their own families and communities in order to harden the children and to bind children to the armed
group ” (FURLEY, 1995: 33; THOMPSON, 1999: 193; MAXED, 2003: 63; apud PARK, 2006: 320).
13
1.5 Meninas-soldados
As representações simplistas de meninos carregando armas AK-47 são as mais
comuns quando tratamos de crianças-soldados, mas existe um grupo que fica totalmente
subrepresentado por esta imagem, que são as meninas-soldados. Embora boa parte da atuação
de meninas em conflitos armados não tenha feito parte dos registros históricos, elas
desempenharam um papel importante em conflitos, que remonta a 1429, quando uma muito
jovem Joanna D'Arc liderou um exército a vitória na expulsão dos ingleses (Mazurana et al.,
2002:1001-2, apub Park, 2006: 320).
A questão das meninas-soldados é pouco documentada, e a literatura existente sobre
esta matéria reflete em grande parte a experiência de meninos-soldados, não se aprofundando
nas experiências singulares das meninas. Elas merecem atenção especial, pois são um grupo
que sofre opressão de gênero por ser de um sexo marginalizado, e ainda sofrem opressão por
sua idade (PARK, 2006: 316).
As crianças-soldados executam uma serie de tarefas, atuando como combatentes,
cozinheiros, menssageiros, espiões, entre outros. Apesar de existirem muitas experiências em
que meninas e meninos compartilham como soldados, as meninas além de realizarem uma
série de tarefas iguais aos meninos, realizam tarefas adicionais (Park, 2006: 320).
1.6 Gênero
Gênero refere-se a um termo socialmente construido, ao contrário das identidades
biologicamente determinadas de homens e mulheres. Gênero não é igual a sexo, e as
diferenças de gênero não são as mesmas diferenças de sexo. Por exemplo, a capacidade de
uma mulher ter filhos é uma diferença, biologicamente determinada, considerada uma
diferenças de sexo. Já a responsabilidade de mulheres em grande parte das sociedades de
preparar refeições e fazer tarefas domésticas é uma diferença de gênero, ou uma diferença
socialmente construída (MAZURANA e CARLSON, 2004: 8).
Os papéis de cada gênero são atribuidos no início da socialização. Eles atravessam as
esferas pública e privada, são específicos para uma determinada cultura em um determinado
momento, são afetados por outras formas de diferenciação, tais como raça, etnia e classe, e
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podem mudar de acordo com diferentes contextos sócio-políticos e econômicos dentro de uma
sociedade (MAZURANA e CARLSON, 2004: 8).
Faz parte das aspirações deste trabalho, examinar como as questões de genero são
importântes para o planejamento e implementação de programas de desarmamento,
desmobilização e reintegração.
1.7 Internally Displaced Persons (IDPs)
Internaly displaced persons, ou "pessoas deslocadas internamente", são pessoas que
foram forçadas a fugir ou a deixar suas casas/locais de residência habitual e que, ao contrário
dos refugiados, permanecem dentro de seus próprios países, ou seja, dentro de seus limites
territoriais. No mundo, hoje, há uma estimativa de que 27,1 milhões de pessoas sejam
internamente deslocadas em consequência da conflitos armados e que pelo menos metade
destas pessoas são crianças (IDMC,2010)
Uma criança deslocada internamente por conflitos armados fica extrememente
vulnerável, visto que esta é forçada a sair de casa e deixar sua comunidade para trás. Muitas
vezes, durante o caos da guerra, as crianças se separaram de suas familias e acabam sozinhas,
correndo alto risco de sofrerem abusos de diversos tipos, tornando-se vítimas de violência
sexual ou sendo recrutadas para servirem como soldados.
1.8 Desarmamento, Desmobilização e Reintegração (DDR)
Segundo o próprio site das Nações Unidas, o envolvimento da entidade no processo de
desarmamento, desmobilização e reintegração (DDR) de ex-combatentes em situações pós-
conflito acontece há mais de quinze anos. Juntamente com os parceiros bilaterais e não-
governamentais, seus departamentos, programas, fundos e agências estão funcionando em
dezenas de países ao redor do mundo.
As atividades de DDR são componentes cruciais de estabilização inicial das
sociedades que vivem a situação de pós conflito, bem como o seu desenvolvimento a longo
prazo. Assim, as ações de desarmamento, desmobilização e reintegração devem ser integradas
ao processo de pacificação, desde as negociações iniciais até a manutenção e
acompanhamento das atividades de construção e consolidação da paz.
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O DDR de ex-combatentes é um processo complexo, com dimensões políticas,
militares, humanitárias e sócio-econômicas. Destina-se a lidar com o problema de segurança
no pós-conflito que surge quando os ex-combatentes ficam sem meios de subsistência ou de
redes de apoio, durante o período crucial de transição do conflito para a paz (ONU. DDR,
2009).
O objetivo do processo de DDR é contribuir para a segurança e estabilidade em
ambientes de pós-conflito, para que a recuperação e o desenvolvimento dos ex-combatentes
possa começar. O processo se inicia com o desligamento total de quaisquer estruturas
militares, auxiliando-os a integrar-se socialmente e economicamente à sociedade ao mesmo
tempo em que os apoia para que eventualmente possam tornar-se participantes ativos do
processo de paz e da sociedade como um todo (ONU. DDR, 2009).
O DDR é um dos passos mais importantes em qualquer processo de paz, considerado a
chave para uma transição efetiva da guerra para a paz. Embora cada um dos três elementos de
DDR tem claramente objetivos diferentes e requerem planejamento independentes, as fases se
sobrepõem e são dependentes umas das outras (MAZURANA e CARLSON, 2004: 8).
Ações de DDR de forma isoladas não são suficientes para evitar a violência ou
solucionar o conflito, no entanto, podem ajudar a estabelecer um ambiente seguro para que
outros elementos de recuperação, construção e consolidação da paz possam avançar.
A ONU define que o desarmamento consiste no recolhimento, documentação, controle
e eliminação de armas de baixo calibre, munições, explosivos e armas leves e pesadas da área
de conflito. Ex-combatentes são reunidos em áreas de apoio para o desenvolvimento dos
programas de DDR e entregam suas armas que serão armazenadas em local seguro até que
sejam destruidas. Os indivíduos então recebem apoio na forma de alimentos, moradia,
vestuário, assistência médica, educação básica e programas de orientação (MAZURANA e
CARLSON, 2004: 8).
Outra etapa fundamental é a desmobilização que cuida da dissolução formal e
controlada dos combatentes ativos das forças armadas ou de outros grupos combatentes. A
primeira fase de desmobilização consiste no tratamento individual de combatentes em centros
temporários ou pode prolongar-se em acampamentos com uma concentração grande de ex-
combatentes, estruturados para lidar com as necessidades e tratamentos destes indivíduos
16
(ONU. DDR, 2009). A dispensa destes ex-combatentes muitas vezes acontece durante uma
segunda fase da desmobilização, onde eles voltam para suas comunidades, com um auxilio
para o transporte até suas comunidades, para então dar início ao próximo passo que é
reinserção (MAZURANA e CARLSON, 2004: 8).
A reintegração pode ser dividida em duas fases, a reinserção inicial e a reintegração.
Enquanto a reintegração é um processo a longo prazo de desenvolvimento social e econômico
contínuo, o processo de reinserção é de curto prazo e visa atender às necessidades imediatas,
podendo ter duração de até um ano (ONU. DDR, 2009).
Ao final, a reinserção é a assistência prestada durante a desmobilização, quando ex-
combatantes voltam para suas comunidades. Trata-se uma forma de apoio transitório para
auxiliar a suprir suas necessidades básicas e de suas famílias durante o período inicial de
adaptação. Este apoio inclui alimentos, roupas, abrigo, serviços médicos, treinamento,
emprego, entre outros.
Por consequência, a reintegração é um processo a longo prazo que consiste em auxiliar
ex-combatantes na transição para a vida civil. A assistência durante este período envolve:
auxilio de agências de emprego, cursos profissionalizantes, sistemas de crédito e bolsas de
estudo para que os ex-combatentes possam obter colocação no mercado de trabalho de forma
duradoura e com ganhos suficientes para se manter, o que faz da reintegração um processo
essencialmente social e economico de responsabilidade nacional, mas que muitas vezes
necessita de auxílio externo (ONU. DDR, 2009).
A comunidade internacional muitas vezes se refere a mais um „R‟ no DDR, que
representa a reabilitação. Este conceito engloba um série de questões delicadas como a
necessidade de se tratar dos aspectos psicológico e emocional de ex-combatantes,
principalmente durante a reinserção em suas famílias e comunidades. Grande parte dos
programas de DDR tratam da questão da reabilitação durante o processo, mas a sigla utilizada
é DDR (MAZURANA e CARLSON, 2004: 8).
As ações de DDR no caso das crianças necessitam de uma abordagem diferenciada,
uma vez que menores de 18 anos não podem legalmente ser recrutados, portanto, medidas que
visam impedir o seu recrutamento, ou a tentativa de reintegrá-los em suas comunidades, não
devem ser vistas como uma ação rotineira de DDR, mas de prevenir ou reparar uma violação
17
dos direitos humanos das crianças. Isso significa que DDR para criança não é a mesma que
para adultos. Pelo contrário, é um processo específico, com suas próprias exigências, algumas
das quais são fundamentalmente diferentes dos programas de desmobilização de adultos
(ONU. DDR, 2009).
Existem alguns princípios e práticas ideais (principles and best practices) no que diz
respeito a prevenção do recrutamento de crianças e as ações de DDR específicas para
crianças. Em 1997 foram criados os princípios e comportamentos da Cidade do Cabo, na
África do Sul, para a prevenção do recrutamento de crianças às forças armadas e na
desmobilização e integração social de crianças na África2. Essas normas serviram de
referência para outras que vieram depois. O Paris Commitments ou Comprometimento de
Paris chegou a definir metas para que os países se comprometessem a encontrar e aplicar
soluções para o recrutamento e utilização de crianças em conflitos armados (Paris Principles,
2007).
Em fevereiro de 2007 ministros e representantes de diversos países reuniram-se em
Paris para tratar de crianças envolvidas em conflitos armados, e para reafirmar a preocupação
coletiva destes para com os problemas que estas crianças enfrentam quando inseridos num
contexto de conflito armado. Problemas físicos, de desenvolvimento emocional e mental,
social e espiritual. Todos os presentes se comprometeram a identificar e implementar soluções
duradouras para o problema do recrutamento e utilização de crianças em conflitos armados
(Paris Principles, 2007).
Comprometeram-se também a utilizar todos e quaisquer instrumentos internacionais
que auxiliem na prevenção do recrutamento de menores de 18 anos à forças militares e na
utilização de crianças nos conflitos, assegurar o desligamento destes das forças militares, a
proteção e o suporte para a reintegração das crianças em suas comunidades (Paris Principles,
2007).
Reconheceram que os Estados são responsáveis por prover segurança a seus
indivíduos e assegurar a proteção às crianças, além de serem responsáveis pela reintegração
daquelas que estiveram de alguma forma inseridas em conflitos armados.
2 “Cape town principles and Best practices on the prevention of recruitment of children into the armed forces and
on demobilization and social reintegration of child soldiers in Africa”(Cape Town Principles, 1997)
18
Assim, por meio da execução destas medidas, poderia se assegurar que os direitos das
crianças, que vivem em países cuja situação é de conflito, e naturalmente são mais suscetíveis
ao recrutamento, estejam mais protegidos.
19
CAPÍTULO 2 – O CONTEXTO HISTÓRICO DO CONFLITO DE SERRA LEOA
Veremos aqui um pouco sobre a história de Serra Leoa, o caso particular que aqui nos
interessa, para tentar compreender melhor o pano de fundo desse fenômeno mais recente da
incorporação das meninas-soldados aos conflitos armados e na posterior ações de DDR. Neste
capítulo, utilizaremos como fonte os estudos a obra de Mazurana e Carlson (2004) por se
mostrar a mais completa.
2.1 Contexto histórico
Anteriormente à colonização não existia uma tribo que dominasse o território hoje
conhecido como Serra Leoa. Os dois maiores grupos étnicos da região eram os Mende e os
Temne, localizados ao sul e norte, respectivamente. No começo de 1800, Serra Leoa ficou sob
controle inglês. Durante os anos em que se intensificou o movimento pela abolição da
escravatura, os ingleses permitiram que ex-escravos migrassem para regiões sob seu controle
no norte da África. Essa migração trouxe diversos novos grupos étnicos para a região, tais
como ao Kono, Limba, Kissi e Krio, com sua chegada houve uma mudança na composição
demográfica de Serra Leoa (MAZURANA e CARLSON, 2004).
Reformas democráticas pós-segunda guerra mundial estabeleceram que uma
assembleia seria constituída a fim de representar as diferentes regiões do território nacional.
Ao invés de possuírem representantes de bairros ou cidades, possuem representantes de
distritos, e estes deveriam presidir a assembleia. Com temor de que esta assembleia os
tornasse marginalizados, a elite Krio, em conjunto com alguns outros chefes, criaram o Sierra
Leone People’s Party (SLPP), liderado por Milton Margai, um Mende.
Em 1957, surgiu um partido primordialmente Temne, o All People’s Congress (APC),
que dividiu a assembleia etnicamente entre os Mendes (SLPP) do sul e os Temnes (APC) do
norte. Logo em 1960, após acordos com a Inglaterra, Margai foi eleito primeiro-ministro e no
ano seguinte Serra Leoa tornou-se independente, com um sistema parlamentar estabelecido
dentro do Commonwealth britânico. Nos anos subsequentes à independência, os dois partidos
passaram por prolongados embates políticos até que em 1967 a APC ganhou eleições
democráticas (MAZURANA e CARLSON, 2004).
Durante a Guerra Fria, o governo manteve a prática colonial com ênfase nas
exportações de matéria prima, ao invés da produção industrial e da mineração. Ouro e
20
diamentes eram responsáveis por 80% das exportações de Serra Leoa. Já no início dos anos
1970, a APC, liderada por Siaka Stevens, controlava 52 por cento da indústria de diamantes
local. Ele destruiu muitas instituições políticas estabelecidas pelo sistema parlamentar
britânico, pois as considerava ineficientes.
A economia do país entrou em declínio nos anos 1980, este momento trouxe
insatisfação aos jovens e estudantes, que não mais poderiam sustentar suas famílias, criando
uma situação de bastante instabilidade, para a população e para o governo.
Em 1985, Joseph Saiu Momoh sucedeu Stevens como presidente do partido APC, que
depois de anos de declínio econômico, corrupção e cortes nos programas sociais, deixaram o
país em situação instável. Momoh tentou re-estabelecer um governo multipartidário
convocando eleições em 1991, porem o movimento rebelde liderado por Sankoh, denominado
Revolutionary United Front (RUF), com apoio da National Patriotic Front of Liberia (NPFL)
acaba por atacar Serra Leoa (MAZURANA e CARLSON, 2004).
Foday Sankoh, um fotógrafo e ex-membro do Sierra Leone Army (SLA) conheceu
Charles Taylor do (NPFL) em 1987, quando os dois se aliaram num esforço mutuo para
derrubar seus governos, de Serra Leoa e Libéria respectivamente (MAZURANA; CARLSON,
2004). Os combatentes da Libéria juntaram-se a Sankoh em retaliação ao apoio de Momoh à
Economic Community of West Africa States’ Monitoring Group (ECOMOG), que havia
impedido que a NPFL ocupasse Monrovia, a capital e maior cidade da Libéria (ONU. DDR.
Country Programmes, s/d).
Os rebeldes então ocuparam os territórios do leste, ricos em diamantes. Em troca de
armas, drogas e abastecimento, os diamantes de Serra Leoa eram contrabandeados até a
Libéria para serem vendidos depois no mercado internacional, gerando milhões de dólares por
ano. O controle dos diamantes deu a Sankoh o poder de recrutar, forçada ou
“voluntariamente”, crianças que trabalhavam nas minas para fazer parte de suas forças
armadas. Em 1992, Momoh fugiu do país e o Capitão Valentim Strassy assumiu a
presidência.
Nos anos 1990 a exploração dos chamados “diamantes de sangue” teve repercussão
mundial e a exportação e venda destes passou por uma série de investigações da Organização
das Nações Unidas (ONU).
21
Desta forma, durante os 18 primeiros meses, os ataques da RUF geraram mais de 400
000 IDPs, e outros muitos refugiados. Rapidamente a guerra se espalhou até países vizinhos.
Além da Libéria, países como a Guiné e Costa do Marfim foram atingidos pelo conflito
(MAZURANA e CARLSON, 2004).
Os grupos armados cometeram atrocidades durante a guerra. A violência era
incentivada pelos líderes dos grupos e assim a rebelião tomou conta do país rapidamente. Os
rebeldes começaram a forçar a população civil a disponibilizar comida, abastecimento e mão
de obra. Sujeitos a violência oriunda tanto da RUF quanto da SLA, milícias locais foram
formadas, denominando-se Civil Defence Forces (CDF).
Com a escalada do conflito e a RUF ganhando cada vez mais espaço, o governo
forneceu armas, ajuda financeira e logística para o CDF. Em 1995 o governo contratou o
Executives Outcomes (EO), um exército mercenário, que com seus 2000 combatentes auxiliou
as forças do governo na guerra (MAZURANA e CARLSON, 2004).
A primeira tentativa de cessar-fogo foi em 1996, quando o governo iniciou
negociações com a RUF. Houve pressão para que eleições democráticas fossem convocadas, e
Ahmed Tejan Kabbah da SLPP ganhou. A primeira iniciativa para estabelecer um plano de
paz foi com o Abidjan Peace Accord, um acordo de paz redigido pelo governo de Serra Leoa
com participação da RUF. Foi então definido que não haveria mais atos violentos por
nenhuma das partes envolvidas no conflito e por exigência da RUF, as tropas do EO deveriam
deixar o país, além de a RUF transformar-se em um partido político, que assim poderia
participar das assembléias.
Com a assinatura do acordo de paz, meninas aprisionadas pela RUF foram liberadas,
como um gesto de benevolência. No entanto, havia desconfiança por ambas as partes no que
se referia à execução do que foi estabelecido no tratado. A RUF relutou em depor as armas
quando uma porcentagem dos combatentes da EO não saiu do país, e assim o acordo não foi
adiante (MAZURANA e CARLSON, 2004).
O governo frequentemente deixava de remunerar e auxiliar seus soldados, mas ao
mesmo tempo pagava um preço alto para manter o contrato com o exercito mercenário, EO.
Estes fatores contribuíram para a revolta dos membros da SLA que então migraram para
outros grupos armados, como a RUF. Outros fundaram um novo grupo rebelde chamado de
22
Armed Forces Revolutionary Council (AFRC) presidido pelo Comandante do exército Johnny
Koroma, que acabou unindo-se à RUF.
Em 1997, a AFRC, liderada pelo Koroma derrubou o regime de Kabbah, alimentando
a preocupação que um governo conjunto da AFRC e RUF poderia tomar o poder. Para isso
não ocorrer, a Economic Community of the West African States (ECOWAS) interveio.
Em 1998 um ataque conjunto da AFRC e as RUF resultou na morte de mais de 5 000
civis, e outros 5 000 foram sequestrados, mutilados e estuprados, em sua maioria mulheres e
meninas. Ao reconhecer a improbabilidade de sucesso, o governo solicitou um novo acordo
de paz, chamado Lomé Accord, que oficialmente encerraria a guerra (MAZURANA e
CARLSON, 2004).
O acordo proporcionou à RUF a oportunidade de participar de um governo conjunto,
garantindo anistia total para violadores dos direitos humanos e perdoou o líder da RUF,
Sankoh, além de instituí-lo como chefe da comissão de gestão de recursos estratégicos.
Com a autorização do Conselho de Segurança das Nações Unidas através da
Resolução 1181 a ECOMOG, ala militar da ECOWAS, atacou a capital e reconduziu Kabbah
ao poder. Após o retorno de Kabbah a Freetown, o Governo de Serra Leoa apoiado pela
ECOWAS e a ONU (Organizações das Nações Unidas), iniciou um movimento político para
pôr fim ao conflito, buscar a paz e a reconciliação, e realizar o DDR dos combatentes do, SLA
RUF, CDF e AFRC (ONU. DDR. Country Programmes, s/d).
Antes da resolução do conflito em Serra Leoa, outros três acordos de paz haviam sido
assinados: o Abidjan Acordo de Paz de 30 de novembro de 1996, o Plano de Paz de Conacri
23 de outubro de 1997, e o Acordo de Paz de Lomé de 7 de julho de 1999. O Acordo de Paz
de Lomé tornou-se o documento operacional para o processo de paz na Serra Leoa (ONU.
DDR. Country Programmes, s/d).
Ao fim de 1998, formou-se a United Nations Assitance Mission to Sierra Leone
(UNAMSIL), uma missão de paz das Nações Unidas para auxiliar o pós-conflito em Serra
Leoa. Chegaram tropas para auxiliar a implementação do Lomé Accord e os programas de
DDR. Mesmo com a presença da UNAMSIL, a RUF continuava atacando regiões ricas em
diamante, buscando controlar tais áreas.
23
Dia 8 de maio de 2000, foi um marco no conflito pois nesta data famílias, crianças,
adultos, organizações religiosas e sindicatos protestaram na busca da paz. Mas foi apenas em
Janeiro de 2002 que a guerra foi oficialmente declarada encerrada, quando as hostilidades
entre CDF e RUF nas regiões de diamantes terminaram. (MAZURANA e CARLSON, 2004).
2.2 DDR: Construção e implementação em Serra Leoa
O programa de DDR foi uma iniciativa do governo da Serra Leoa, para ajudar a
consolidar a paz e iniciar o processo de reconstrução do país após uma década de guerra civil.
Durante o período entre setembro de 1998 e janeiro de 2002, o desarmamento e a
desmobilização dos combatentes passou por três fases distintas mencionadas abaixo (ONU.
DDR. Country Programmes, s/d).
Resolução do Conselho de Segurança 1181 (1998) de 13 de Julho de 1998
(Peacekeeping Missions, s/d), declarou que UNAMSIL deveria:
Monitorar a situação militar e de segurança no país como um todo, fornecer ao
representante especial do secretário-geral informações regularmente, assim
possibilitando que este determine um momento suficientemente seguro para
permitir que observadores militares possam ser enviados, além da primeira fase;
Monitorar o desarmamento e desmobilização dos ex-combatentes concentrados
em áreas seguras do país, incluindo a monitorização da função do ECOMOG e
da ECOWAS na manutenção da segurança e no recolhimento e destruição de
armas nas áreas seguras;
Auxiliar na fiscalização do respeito pelo direito humanitário internacional,
incluindo o desarmamento e a desmobilização, onde as condições de segurança o
permitam;
Monitorar o desarmamento e desmobilização voluntária de membros da Defesa
Civil Forces (CDF), quando as condições de segurança permitam.
O principal intuito do programa DDR era ajudar o governo na estabilização da região e
assegurar a paz na nação. Pretendia-se desarmar os combatentes e reintegrá-los de volta à
sociedade para garantir a paz e desenvolvimento da nação. Para participar no programa de
24
DDR na Serra Leoa, cada combatente, adulto ou criança, foi obrigado a provar a participação
como combatente em um dos seguintes grupos armados (ONU. DDR. Country Programmes,
s/d):
- RUF/ Grupos Paramilitares
- AFSL
- CDF
E posteriormente:
Apresentar provas aceitáveis de ter participado do conflito armado como um
membro combatente de pelo menos um dos grupos acima citados, incluindo:
- Uma arma aproveitável por combatente;
- Um grupo de duas a três pessoas pode apresentar uma arma com rodadas
de munições, contanto que sejam aproveitaveis e que possuam um
número válido dado pela SLA.
Ou então:
Ser um combatente menor de idade, apresentando-se na recepção de qualquer
centro de apoio com qualquer dos grupos acima mencionados.
Centros de apoio foram montados para o processo de desarmamento e desmobilização
em diversas regiões do país. Os combatentes voluntariamente se apresentavam para entregar
suas armas e munições e faziam um teste para participar do programa. Os oficiais
responsáveis pelo DDR consideravam que um meio eficaz para se determinar quais
indivíduos participaram ativamente do combate. Um teste avaliava a performance do
indivíduo na montagem e desmontagem de uma arma AK-47, a mais utilizada durante o
conflito (MAZURANA e CARLSON, 2004: 18).
Oficialmente, menores de 18 anos não precisavam entregar uma arma para participar
do programa, porém, de acordo MAZURANA e CARLSON (2004), crianças eram
submetidas ao teste das armas para analisar se seriam admitidos ou não aos programas.
25
Segundo Graça Machel (1996), é necessário que estas crianças sejam afastadas
imediatamente de soldados adultos e das zonas de conflito, para não correrem risco de serem
recrutadas novamente. Assim, aquelas crianças que se qualificavam para participar do DDR
eram encaminhadas para centros especiais, Interim Care Centers (ICCs), e poderiam
inscrever-se em programas educacionais ou em cursos profissionalizantes (MAZURANA e
CARLSON, 2004: 18).
O programa de DDR em Serra Leoa foi dividido em três fases:
Fase 1 (setembro-dezembro 1998)
Fase 2 (outubro de 1999 a abril de 2000)
Fase 3 (maio de 2001 a janeiro de 2002)
Fase 1:
O programa inicial de DDR foi preparado em 1998 pelo governo com a ajuda da
ECOMOG e a United Nations Development Programe (UNDP); juntos criaram uma comissão
de DDR, National Commission for Reconstruction, Resettlement and Rehabilatation
(NCRRR). Após sua reestruturação, passou a chamar-se National Committee for
Disarmament, Demobilisation and Reintegration (NCDDR) e possuía três objetivos
(MAZURANA e CARLSON, 2004: 18):
1- Coletar, registrar e destruir todo e qualquer armamento e munição entregue por
combatentes,
2- Desmobilizar os combatentes pertencentes aos grupos SLA, RUF, AFRC e
CDF,
3- Auxiliar no processo de desmobilização dos ex-combatentes para prepará-los
para a reintegração em suas comunidades.
A primeira fase era direcionada a todas as pessoas que pertenciam a qualquer um dos
grupos armados que participaram na guerra civil após 1997. Em 1998 com a assistência do
Banco Mundial o programa foi reestruturado, porém esta fase foi interrompida pelo
26
agravamento da violência com o ataque a Freetown em 1999 (ONU. DDR. Country
Programmes, s/d).
Fase 2:
A segunda fase foi implementada com base no Lomé Peace Agreement, que em seu
artigo XVI apelou para que todos os combatantes dos grupos armados que participaram da
guerra civil em Serra Leoa fossem desarmados. Em 1999, deu-se a segunda fase do processo,
conduzida pela NCDDR e a United Nations Observer Mission to Sierra Leone (UNOMSIL)
ainda auxiliando o desarmamento e monitorando o processo de desmobilização.
Durante esta fase, através da resolução 1270 (22 de outubro 1999), a ONU reforçou
sua presença enviando tropas da United Nations Mission in Sierra Leone (UNAMSIL), uma
missão de peacekeeping de dimensões consideravelmente maiores substituindo a UNOMSIL
(ONU. DDR. Country Programmes, s/d).
Modificações foram feitas ao programa, que passou a contar com os esforços de um
grupo de agentes. Estes envolviam o governo de Serra Leoa, ECOMOG, UNAMSIL, United
Nations Children’s Fund (UNICEF), o World Food Programa e algumas outras agências.
Porém esta fase também foi interrompida com a volta das atividades hostis que causaram uma
série de complicações, tanto na política, com a detenção de Sankoh, quanto nos programas de
DDR, com o rearmamento de ex-combatentes que participavam de dos programas (ONU.
DDR. Country Programmes, s/d).
Fase 3:
A terceira fase contou com os esforços da ECOWAS e da ONU para restabelecer a
ordem e colocar o processo de paz de volta nos trilhos. Posteriormente um cessar-fogo foi
assinado em 2000, e um acordo entre o governo de Serra Leoa e a RUF para retomar o
desarmamento, em 2001.
A última fase do DDR foi bem-sucedida em grande parte porque as partes envolvidas
no conflito perceberam que uma vitória militar não seria possível. O governo de Serra Leoa
compreendeu que não podia eliminar a insurgência e não podia contar com a fidelidade de seu
próprio exército. Já os rebeldes perceberam que a situação na vizinha Libéria não era
favorável por conta da intervenção militar britânica (ONU. DDR. Country Programmes, s/d).
27
Estas considerações, juntamente com a mudança da liderança da RUF, resultaram num
maior compromisso para a resolução pacífica do conflito. O compromisso de todas as partes
do processo de paz se aprofundou, e os programas de DDR se tornaram um meio para
alcançar a paz ao invés de uma manobra táctica destinada a ganhar tempo.
Em 18 de janeiro de 2002, o Presidente Kabbah declarou terminada a guerra civil com
a conclusão do processo de DDR dos ex-combatentes em todos os 12 distritos do país (ONU.
DDR. Country Programmes, s/d).
2.3 Crianças-soldados em Serra Leoa
Todos os grupos armados que participaram da guerra civil de Serra Leoa cometeram
atos hediondos. Esta guerra ficou marcada por suas atrocidades. Atos estes como o uso
indiscriminado de crianças-soldados, atos de violência sexual e a prática de “casamentos
forçados”. Segundo a Anistia Internacional (2000), no ano de 1999, durante uma invasão à
capital, Freetown, centenas de mulheres e meninas foram estupradas; dois mil civis foram
mortos e pelo menos quinhentos indivíduos tiveram membros amputados (PARK, 2006).
O recrutamento e uso de crianças como soldados, atuando tanto nos grupos rebeldes
quanto nas forças do governo, também marcaram significantemente este conflito. Segundo
Park (2006), muitas crianças foram recrutadas forçadamente, sendo sequestradas ou
pressionadas a aliar-se a grupos armados, mas muitas outras se juntaram “voluntariamente”,
conforme já foi referido no capítulo 1. No caso do conflito de Serra Leoa, as crianças
associavam-se a esses grupos para poderem ter acesso a comida e medicamentos. Muito
outros temiam perseguição e juntavam-se a grupos armados como um meio de proteção a si e
às suas famílias (McCALLING, 1998:62-6; MACHEL, 2001: 8-12 apud: PARK, 2006: 319).
2.3.1 Meninas-soldados
A literatura existente sobre crianças-soldados reflete em grande parte a experiência de
meninos. Costuma-se apenas apenas citar a existência de meninas-soldados em conflitos
armados, sem aprofundar a experiência deste grupo. Muitas vezes as meninas são incluídas na
categoria “crianças”, o que não reflete as experiências singulares das meninas. Isto ocorre
mesmo diante da constatação de que um grande número de meninas foi envolvido em forças
armadas, sendo que muitas delas ativamente no combate.
28
Elas também não devem ser inseridas na categoria de “mulheres”, já que suas
experiências não são as mesmas de mulheres adultas em conflitos armados. Tanto mulheres
como meninas sofrem a opressão de gênero, mas as meninas constituem um caso especial.
(PARK, 2006: 316).
Uma prática que marcou esta guerra foi a do “casamento forçado” caracterizado pelo
sequestro de meninas para tornarem-se “esposas” de combatentes adultos. Cerca de sessenta
por cento de meninas envolvidas com forças armadas em Serra Leoa estiveram em situações
desse tipo. (McKAY e MAZURANA, 2004: 92 apud, PARK, 2006: 316) A prática
denominada “casamento forçado” na realidade é uma escravidão sexual e doméstica.
Pesquisas apontam que as “esposas” de todos os membros de grupos armados
envolvidos na guerra de Serra Leoa não eram tipicamente mulheres adultas, sendo que suas
idades variavam entre 9 e 19 anos (MAZURANA e McKAY, 2004: 93). Segundo Park
(2006), uma possível explicação para este fenômeno é a maior vulnerabilidade de crianças a
sequestros e pressões por parte de membros dos grupos armados.
O relatório The State of the Worlds Children Report (UNICEF, 2005) afirmou que
meninas são alvos primários de sequestros durante conflitos armados, com o objetivo de
forçá-las e serem soldados, ajudantes domésticas e “esposas”. (UNICEF, 2005: 52 apud,
PARK, 2006: 323).
Meninas, em especial, são bastante vulneráveis à violência sexual, pois caso os
violentadores tiverem preocupação com HIV/AIDS ou outras doenças sexualmente
transmissíveis, poderão dar preferência a meninas, crendo que estas possuem menores
chances de serem infectadas, já que são jovens e ainda não iniciaram sua vida sexual, ou então
teriam tido, supostamente, um número pequeno de parceiros (McCALLIN, 1998: 68;
MACHEL, 2001:55 UNICEF, 2005: 55 abud, PARK, 2006: 323).
As meninas também não sabem lidar com as complicações de ordem emocional e
social que são obrigadas a vivenciar neste contexto de guerra. Levando em consideração que
se tornam crianças-soldados, com tarefas muitas vezes extremamente duras, por exemplo,
atuar como combatentes, “esposa” ou qualquer outra função dentro de grupos armados, estas
meninas são obrigadas a lidar com pressões, por parte de seus líderes, que não correspondem
às pressões desta mesma idade fora do contexto de guerra e de um grupo armado.
29
Por estes e outros motivos devemos nos atentar as necessidades particulares deste
grupo marginalizado que passou por experiências tão particulares devido à questão de gênero
e idade. Entre 1990 e 2003 meninas faziam parte de forças armadas em 55 países e
participavam de conflitos armados em 38 países (McKAY and MAZURANA, 2004:18 Apud:
PARK, 2006: 321) e em Serra Leoa entre 1992 e 1996, crianças constituíam oitenta por cento
das forças complementares da RUF, sendo que trinta por cento eram meninas (PARK, 2006).
Apesar das muitas experiências que meninas e meninos compartilham como soldados,
existe a necessidade de prestar especial atenção às meninas, obrigadas a realizar tarefas
adicionais. Durante o período de guerra meninas lutavam, como meninos, mas também
cozinhavam, limpavam e eram obrigadas e servir como escravas sexuais.
As tarefas adicionais reservadas às meninas remontam aos primórdios da civilização:
cozinhar, limpar, cuidar de crianças. Isso faz parte de uma construção social (MAZURANA e
CARLSON, 2004: 8). Não foi diferente para as meninas que participavam de grupos armados
em Serra Leoa. Essas possuíam tarefas definidas socialmente como femininas. Algumas
relataram que suas tarefas principais eram de combatentes, cozinheiras, empregadas,
“esposas”, entre outras, mas a maioria possuía tarefas adicionais (MAZURANA e McKAY,
2003).
A experiência delas é dura. Um exemplo dado por Park (2006) de uma situação vivida
exclusivamente por meninas soldado é lidar com a menstruação, quando atuando em
conflitos. Meninas menstruadas durante este período precisam preocupar-se com possíveis
infecções por terem dificuldade de higienizarem-se adequadamente e de manterem sua
privacidade; a exposição da menstruação perante um grupo armado pode ser uma fonte de
angústia e constrangimento (MAZURANA et al., 2002:114 apud, PARK, 2006: 322).
Meninas merecem atenção também por sua experiência física e social em relação à
gravidez. Muitas delas sofrem abusos sexuais por meninos e homens dos grupos armados,
gerando até uma situação de escravidão sexual, quando as meninas são forçadas a tornarem-se
“esposas” destes meninos e homens. Em muitos casos elas acabam engravidando de seus
“maridos”. Como se trata de uma situação de conflito armado, essas meninas grávidas não
recebem adequados tratamentos pré e pós-parto, além de serem submetidas a práticas nada
convencionais durante a gravidez.
30
Existem relatos de meninas da RUF que eram vítimas de práticas bastante perigosas,
como pular na barriga das meninas grávidas para estimular o nascimento do bebê, ou amarrar
as pernas delas para adiar o nascimento. Muitas vezes após o parto as meninas não tinham
tempo suficiente para se recuperaram, sendo obrigadas a voltar a suas tarefas imediatamente,
tendo que levar seus bebê para o campo de batalha (ALFREDSON, 2001: 2,5; MAZURANA
et al., 2002: 114-115 apud, PARK, 2006: 322).
Por não terem acesso aos tratamentos adequados durante a gravidez e não possuírem
habilidades na criação de bebês, as meninas acabavam induzindo abortos, rejeitando seus
filhos e em alguns casos cometendo infanticídio (MAZURANA et al ,2002: 115 apud, PARK,
2006: 322).
Ao final da guerra, e quando reconciliadas com suas famílias, muitas dessas meninas
que sofreram abusos sexuais ou que foram “esposas” de combatentes e possuíam filhos,
acabavam sendo rejeitadas por suas próprias famílias. Sendo muitas vezes estigmatizadas por
terem sido “usadas”.
Durante o processo de reintegração em Serra Leoa, consta que em muitos casos, era
mais fácil um menino ser aceito novamente por familiares e por outros moradores, depois de
ter amputado a mão de diversas pessoas, muitas vezes de seu próprio vilarejo, do que meninas
serem aceitas e integradas novamente depois de terem sido vítimas de estupro (MAZURANA
e McKAY, 2004: 37, apud, PARK, 2006: 322).
O relatório Paris Commitments and Paris Principles on Children Associated with
Armed Forces or Armed Groups, 2009, afirma que a integração social de mães que eram
apenas meninas quando entraram nos conflitos, e que retornaram com bebes para as suas
comunidades, é especialmente difícil. As vezes elas não são bem vindas devido ao estigma
associado ao estupro ou, à crianças nascidas fora do casamento, cujo pai seja possivelmente
de um dos grupos rebeldes. Consequentemente estas meninas e suas crianças sofrem
discriminação, rejeição, e ostracismo, e frequentemente têm dificuldade para ter acesso aos
programas de educação devido, por exemplo, falta de creches, ou com quem a deixar as
crianças.
31
2.4 A presença e a atuação de meninas em grupos armados
O estudo intitulado “Girls in Militaries, Paramilitaries, Militias and Armed
Opposition Groups”3 do International Center for Human Rights and Democratic
Development (ICHRDD) examinou a presença e a experiência de meninas associadas a
grupos armados em alguns países africanos, incluindo Serra Leoa. O estudo buscava entender
os efeitos físicos e psicológicos nos participantes em conflitos armados, incluindo todos os
desafios que estas meninas enfrentam quando se dissociam dos grupos armados e tentam
voltar às suas vidas dentro das suas comunidades.
Segundo cálculos feitos pela Anistia Internacional (2000b), mais de cinco mil crianças
atuaram como soldados durante a guerra de Serra Leoa e outras cinco mil crianças-soldados
participaram de atividades ligadas ao conflito, mas não como combatentes (PARK, 2006).
Considerado que de trinta a quarenta por cento do número total de crianças-soldados eram do
sexo feminino (MAZURANA et al., 2002: 105, apud PARK, 2006), pode-se estimar o
número de meninas entre 3 e 4 mil.
Análises quantitativas e qualitativas foram utilizadas durante o processo de pesquisa
do ICHRDD e concluiu-se que o uso de crianças e principalmente de meninas, que são o foco
deste trabalho, em conflitos armados foi muito maior do que primeiramente estimado e
divulgado como mostra a tabela abaixo:
Tabela 1: Número estimado de pessoas em cada grupo armado, crianças soldado em cada
grupo e meninas soldado em cada grupo.
Grupo Total no grupo Total de crianças
dentro do grupo
Total de meninas
dentro do grupo
RUF 45.000 22.500 7.500
AFRC 10.000 5.000 1.667
SLA 14.000 3.500 1.167
CDF 68.865 17.216 1.722
Total 137.865 48.216 12.056 Fonte: ICHRDD: Girls in Militaries, Paramilitaries, Militias and Armed Opposition Groups.
3 A população utilizada no estudo foi de N=50.
32
2.4.1 Presença de meninas em programas de DDR
Uma das características mais marcantes do processo de paz em Serra Leoa foi o
programa de DDR em Serra Leoa, conhecido como uma história de sucesso, sendo
considerado um exemplo de boas práticas em todo o mundo por seu processo de
desarmamento, desmobilização e reintegração (ONU. UNAMISIL, 2005).
Porém dados disponibilizados pelo estudo de ICHRDD demonstram que existe uma
disparidade entre o número de meninas em grupos armados e o número de meninas que
participaram efetivamente dos programas de DDR de Serra Leoa.
A tabela a seguir indica a participação geral de meninas nos programas de DDR de
Serra Leoa:
Tabela 2: Meninas-soldados e a presença delas em programas de DDR em Serra Leoa.
Grupo
Número de
neninas no
grupo
Meninas em DDR Porcentagem do
grupo em DDR
Porcentagem de
meninas em DDR
RUF 7.500 436 54 6
AFRC 1.667 41 89 2
SLA 1.167 22 nd 2
CDF 1.722 7 54 0,4
Total 12.056 506 nd nd Fonte: ICHRDD: Girls in Militaries, Paramilitaries, Militias and Armed Opposition Groups.
O número de meninas participantes do DDR é muito pequeno quando comparado com
o número total de meninas-soldados. Existe uma série de fatores que dificultaram ou
impossibilitaram a elas participarem dos programas. Eles serão discutidos a seguir.
Segundo as meninas que participaram de programas de DDR em Serra Leoa, existiam
diversas falhas. Daquele pequeno grupo de meninas que participaram dos programas “43%
relatou não ter recebido roupas apropriadas, 54% não receberam matérias de higiene, tais
como sabonete, xampu e absorventes. E ainda 23% relataram que não tinham acesso a
cuidados médicos, quando solicitados” (MAZURANA e McKAY, 2003: p.15 tradução
nossa).
33
2.4.2 Problemática dos programas de DDR para a inclusão de meninas
Uma série de falhas nos programas de DDR de Serra Leoa dificultou a participação de
meninas. Um dos principais problemas era o reconhecimento da atuação destas em grupos
armados. Na condição de “esposas” dos combatentes, não eram aceitas como participantes
efetivas da guerra, mesmo que houvessem lutado. E, além disso, nem sempre dispunham de
uma arma de fogo para comprovar a sua participação.
O mito de que meninas e mulheres não estavam envolvidas em grupos armados foi
propagado por figuras bastante influentes no conflito, como os líderes dos grupos armados e
até membros do governo. Sempre foi preocupação desses líderes disfarçar sua presença, uma
vez que o assunto propagaria uma imagem extremamente negativa junto à comunidade
internacional (MAZURANA e CARLSON, 2004: 21).
O seu não reconhecimento as impediu de participarem dos programas de DDR, muitas
das entrevistadas pelo estudo acreditavam que isto era feito com o propósito de impedir que
elas pudessem usufruir dos benefícios concedidos (MAZURANA e CARLSON, 2004: 21).
De acordo com os oficiais dos programas de DDR, as “esposas” não poderiam usufruir
dos benefícios, uma vez que estes eram destinados apenas aos combatentes dos principais
grupos armados, e portanto “dependentes” não seriam considerados. No entanto, como já
mencionamos anteriormente, as meninas possuíam múltiplas tarefas. Considerá-las apenas
“esposas” é incorreto, segundo Mazurana e Carlson (2004). Vale lembrar que 60 por cento da
população estudada relataram sua condição de “esposas”, mas apenas 8 por cento delas não
tinham outro papel.
Segundo Mazurana e McKay (2003), a percepção generalizada das meninas e jovens
mulheres é de que era necessário entregar uma arma para participar do programa de DDR.
Muitas delas não possuíam armas para entregar e muitas outras tiveram suas armas
confiscadas, em muitos casos por seus comandantes, ou mesmo por seus “maridos”, para
benefício próprio.
Estes fatos compõem os principais fatores responsáveis pela restrição à participação
das meninas em programas de DDR em Serra Leoa. Conforme nossa hipótese inicial, houve
nessa iniciativas falhas graves, e elas atingiram em especial a população feminina, que foi
34
prejudicada dentro de uma situação que, por si só, já seria dramática para todas as pessoas
que, de uma forma ou de outra, viram-se envolvidas no conflito.
35
CAPÍTULO 3 – ANÁLISE DOS PROGRAMAS DE DDR PARA MENINAS EM
SERRA LEOA
A preocupação seguinte de nossa análise é relativa às dificuldades encontradas pelas
meninas regressas de grupos de conflito, em serem inseridas nos programas de DDR. Esta
tarefa não poderia ser concluída sem considerarmos as experiências e impressões destas
jovens, a partir do que se deveria definir quais participariam dos programas. Uma vez
estabelecido este grupo, nos preocupamos em avaliar em que medida foram suas necessidades
supridas.
As meninas fazem parte de um grupo que desaparece entre as categorias “criança” e
“mulher”. As suas necessidades e experiências particulares não são abordadas
adequadamente; os programas de DDR as ignoram. Muitas vezes estes programas subestimam
a quantidade de meninas envolvidas nos conflitos armados e não as consideram “soldados
verdadeiros” (UNICEF, 2005: 53 apud, PARK, 2006: 323).
Os programas de DDR são elaborados para atender as necessidades de indivíduos que
participaram de grupos armados durante uma guerra. É um processo que acontece durante o
período de transição da guerra para a paz, que necessita de um ambiente seguro para a
instauração de uma estabilidade de longo prazo. Para obter este ambiente seguro, é preciso
que os agentes propagadores da violência sejam impedidos de agir.
Surge uma série de impedimentos para reverter o quadro de violência, o que dificulta o
auxílio aos que participaram do conflito. É justamente este o momento de atuação dos
programas de DDR.
Independente da tarefa realizada pelo membro de um grupo armado durante a guerra,
este geralmente encontrará dificuldade para se adaptar novamente à sociedade. Seja por uma
dificuldade pessoal ou por uma rejeição por parte de sua família e comunidade. Isto acontece
frequentemente, pois muitos dos combatentes em Serra Leoa cometeram atrocidades com
membros de suas próprias comunidades. Assim, ao final da guerra, quando retornavam,
reencontravam as vítimas dessas atrocidades.
Os programas de DDR guiam os combatentes pelo processo de desarmamento,
desmobilização e reinserção na sociedade até que estes completem o processo de reabilitação,
36
auxiliando cada passo até a conclusão deste procedimento. Para chegar a este estágio cada
etapa deve ser executada na sua amplitude.
O programa de DDR realizado em Serra Leoa deveria servir de modelo para outros
programas. Porém, a partir de dados utilizados pelo estudo, Girls in Militaries,
Paramilitaries, Militias and Armed Opposition Groups (ICHRDD) é possível perceber uma
disparidade entre o número de meninas que participavam dos grupos armados e o número de
meninas inscritas nos programas de DDR de Serra Leoa.
Foi identificado um total de 48 216 crianças-soldados no conflito de Serra Leoa;
destas, 12 065 eram meninas, porém apenas 506 delas participaram dos programas de DDR.
Pode-se dizer que o número de meninas que participaram de algum grupo armado e que
efetivamente passaram por algum programa de DDR é ínfimo. Estes números põem em
questão o real sucesso desse programa, que apresenta uma porcentagem muito pequena de
meninas inscritas em relação à quantidade das participantes em algum grupo armado.
Existem algumas explicações para estes números que demonstram falhas no processo
de elaboração e implementação dos programas, impedindo a participação de meninas.
Conforme apontado no capítulo anterior, estes problemas se resumem à falta de
reconhecimento da atuação ou da própria participação das meninas em grupos armados, a
proibição da participação das „esposas‟ nos programas e a necessidade de entregar uma arma
de fogo além de realizar um teste de conhecimento de armas .
Para avaliarmos tais problemas devemos considerar que a falta de reconhecimento
deveu-se ao mito difundido de que as meninas e mulheres não estavam envolvidas em grupos
armados. Idéias propagadas por figuras bastante influentes no conflito como os lideres dos
grupos armados e até membros do governo.
Preocupados com a repercussão junto a comunidade internacional, uma vez que o
conflito tomava grandes proporções, os lideres dos grupos armados e forças do governo
procuravam esconder a participação de crianças e principalmente das meninas, dos órgãos
envolvidos no processo de instauração da paz em Serra Leoa.
Isto para que não fossem evidenciadas todas as atrocidades que aconteciam
desenfreadamente durante o conflito, tais como o recrutamento de crianças, amputações
mortes, torturas, estupros, casamentos forçados, entre outros.
37
Diante do fato de se crer que meninas e mulheres não estavam envolvidas em grupos
armados, foi difundido genericamente que elas não participaram como soldados e assim foram
impedidas de tomar parte e usufruir dos benefícios concedidos pelos programas de DDR,
prejudicando consideravelmente a sua reabilitação ao fim da guerra.
Outra explicação para o limitado número de participantes nos programas era a
restrição imposta por oficiais do DDR que definiram que „esposas‟ não poderiam usufruir dos
seus benefícios, uma vez que eram apenas dependentes. Segundo oficiais, os programas eram
estritamente para combatentes, já que estes tiveram que se deparar com as atrocidades da luta
armada.
Este pensamento não condiz com a realidade enfrentada pelas milhares de meninas
que foram recrutadas para participar nos conflitos, ou nas atividades desenvolvidas pelos
grupos armados. Todos envolvidos na guerra foram vítimas de violência, física ou
psicológica, e portanto seriam merecedores de apoio para facilitar sua reintegração na
comunidade e família.
Como previamente informado, a atuação das meninas soldado era ainda mais
abrangente do que a de meninos, uma vez que possuíam múltiplas tarefas. Assim é incorreto
presumir que estas meninas eram apenas dependentes, afinal a sua participação não estava
limitada ao papel de „esposas‟. Segundo Mazurana e Carlson (2004), sessenta por cento da
população de estudo relatou que eram „esposas‟, mas apenas oito por cento delas não
possuíam outro papel.
Baseado nestas informações pode-se dizer que é equivocado restringir a participação
das „esposas‟ uma vez que um número muito pequeno delas não possuía outra atividade junto
ao grupo. Porém, independente da função exercida dentro do grupo armado, todos os
indivíduos que dele participam, estão suscetíveis a presenciar e até participar das mais
terríveis ocorrências durante a guerra.
O terceiro problema que impediu a participação de meninas nos programas de DDR,
diz respeito aos métodos utilizados pelos agentes responsáveis pelo processo de
desarmamento. Os métodos que determinavam quais indivíduos poderiam participar dos
programas de DDR consistiam da entrega de uma arma, e um teste para definir quem possuía
habilidade de montar e desmontar uma arma do tipo AK-47, a mais utilizada durante o
conflito em Serra Leoa.
38
Toda a população que fez parte do estudo do ICHRDD e que participou dos programas
de DDR relatou ter passado pelo teste de conhecimento de armas e uma grande parte teve de
entregar uma arma, inclusive as crianças.
Muitas meninas relataram que não puderam tomar parte dos programas de DDR, por
não possuírem armas, ou porque não participaram ativamente do combate, ou por terem tido
suas armas confiscadas por seus „maridos‟ ou comandantes de grupo.
Mesmo nem sempre havendo a necessidade, a percepção generalizada das meninas era
de ser preciso entregar uma arma para participar dos programas assim, conclui-se que este
fato provavelmente restringiu a quantidade de meninas que procurassem assistência, por
acreditaram que não seria possível participar.
Porém, possuir ou não uma arma não indica se o indivíduo teve participação ativa no
conflito, afinal como mencionado anteriormente meninas tiveram suas armas confiscadas por
comandantes ou seus „maridos‟ para que eles usufruíssem dos benefícios oferecidos pelos
programas de DDR.
Paira dúvidas no teste de armas na medida em que se trata de um método equivocado
para se determinar quais indivíduos deveriam ter participado dos programas de DDR. Sabe-se
que nem todos os membros de grupos armados atuaram exclusivamente como combatentes,
ao estipularem que, apenas aqueles que utilizaram armas durante os combates necessitam de
auxilio para a reabilitação, desconsidera-se a atuação dos demais envolvidos no conflito.
Este fato se configura como uma falha dos programas de DDR por não considerarem
que existiram pessoas que não atuavam ativamente no conflito, mas estas também viveram o
contexto da guerra e necessitavam de auxilio para sua reinserção na sociedade e futura
reabilitação.
A partir destes fatos concluímos que os programas de DDR e os procedimentos neles
aplicados não cogitavam de forma abrangente a inclusão dos que participara de grupos
armados, prejudicando especificamente as meninas. São programas essencialmente voltados
para indivíduos do sexo masculino que tiveram atuação como combatentes durante o conflito.
39
3.1 Meninas que participaram de programas de DDR em Serra Leoa
Apesar da existência de restrições à participação de meninas nos programas de DDR,
506 meninas participaram do DDR em Serra Leoa, um número pequeno, quando
consideramos o total de meninas envolvidas em grupos armados.
Estas relataram a existência de uma série de falhas quanto a provisão das necessidades
específicas, quando entravam para os programas, tais como a falta de roupas adequadas e de
materiais de higiene (sabonete, shampoo,e absorventes). Relataram ainda que não tinham
acesso a médicos quando solicitado (MAZURANA e McKAY, 2003: p.15).
Estes exemplos são suficientes para demonstrar que, as necessidades especificas das
meninas e mulheres não foram levadas em consideração durante o processo de elaboração dos
programas de DDR. Afinal, a falta de roupas adequadas, que geralmente não eram de tamanho
correto, mostra que os agentes responsáveis não consideraram a quantidade, ou
desconsideraram completamente a existência de meninas envolvidas no conflito, e que
necessitariam de DDR.
Os materiais de higiene são essenciais para assegurar a saúde das meninas, visto que
elas menstruam e necessitam de absorventes íntimos e materiais adequados para a
higienização apropriada. Esta é mais uma questão específica das meninas, mas que deveriam
ter sido consideradas na elaboração dos programas, uma vez que são considerados materiais
de higiene básicos.
A questão da falta de assistência médica é preocupante para todo e qualquer indivíduo
que participe de programas de DDR, afinal, num contexto de guerra espera-se que existam
muitos feridos que necessitam de tratamento imediato. Porém é crucial que as meninas
disponham deste atendimento, uma vez que algumas delas possam estar grávidas. Estes
cuidados são essenciais para o bom andamento da gestação, e para assegurar a saúde de mãe e
filho.
Muitas meninas sofrem violência sexual, inclusive praticas de „casamento forçado‟,
uma escravidão domestica e sexual, e acabam engravidando. Estima-se que a idade da maior
parte das „esposas‟ seja entre 9 e 19 anos (MAZURANA e McKAY, 2004: 93), estas meninas
são extremamente novas e são obrigada a lidar com todos os desafios da maternidade numa
idade que nem todas se encontram preparadas.
40
Estes são perfeitos exemplos de como os programas de DDR não foram propriamente
elaborados para receberem mulheres e meninas na medida em que não estavam preparados
para assessorá-las com suas necessidades singulares, que são exclusivas do sexo feminino.
3.2 A Visão das meninas-soldados
A seguir assinalamos alguns dos principais obstáculos mencionados pelas meninas
envolvidas em conflitos armados, que permitem compreender as dificuldades encontradas
para o sucesso de suas reintegrações.
De acordo com o estudo realizado pelo ICHRDD, cinquenta por cento das meninas
apontou a falta de comida, roupas e moradia como maior obstáculo para sua reintegração. Já
quarenta e nove por cento consideravam que treinamentos profissionalizantes eram um fator
importantíssimo para ajudar este processo. Grande parte das meninas não puderam participar
de cursos profissionalizantes por não disporem de serviços que cuidassem de seus filhos
(MAZURANA e McKAY, 2003).
Acreditamos ser interessante apontar estes obstáculos uma vez que todos são
abordados durante os programas de DDR. Todos os participantes de DDR recebem auxilio
para enfrentar a difícil missão de voltar a uma vida „normal‟ ou similar com a que viviam
anteriormente ao conflito. Para isso recebem suprimentos básicos e podem participar de
cursos profissionalizantes nos centros de DDR, até que chegue o momento que estão prontos
para voltarem as suas famílias e comunidades.
Assim, estes obstáculos apontados pelas meninas podem ser considerados empecilhos
especialmente para elas, uma vez que muitas não participam do DDR, por conta das
deficiências na elaboração dos programas como mencionadas anteriormente.
3.3 A Corte Especial para Serra Leoa
Para o presente trabalho iremos abordar apenas às questões sobre a Corte Especial de
Serra Leoa relevantes para o mesmo, abordando assim, apenas o julgamento do recrutamento
de crianças soldado e o fato do casamento forçado ter se tornado um crime contra a
humanidade.
41
A Corte Especial para Serra Leoa foi estabelecida pelo Governo do país, juntamente
com a ONU. Essa Corte foi incumbida de levar à justiça os maiores responsáveis pelas
violações de direito humanitário e das leis de Serra Leoa. A Corte é o primeiro tribunal
fundado inteiramente por contribuições voluntárias de vários governos e visa julgar os crimes
perpetrados em todo território de serra Leone desde 30 de novembro de 1996(SCLC, s/d)
Treze acusações foram formalizadas pelo Promotor em 2003. Duas destas
subsequentemente foram retiradas em dezembro de 2003 devido ao falecimento dos acusados
(SCSL, s/d). Os julgamentos de três ex-lideres da AFRC, dois membros da CDF, e três ex-
lideres da RUF foram concluídos.
A Corte Especial de Serra Leoa vem processando várias pessoas, entre elas,
CHARLES TAYLOR (ex-presidente da Libéria), FODAY SANKOH (líder da RUF- já
falecido); todos acusados de recrutar ou sequestrar crianças, para serem treinados e
posteriormente usados em ativo combate (SCSL, s/d)
O julgamento de Charles Taylor, está atualmente na última fase do julgamento no
Tribunal de Haia (SCSL, s/d).
A Corte Especial para Serra Leoa deu à Promotoria permissão para realizar uma
emenda, que considera o casamento forçado um crime contra a humanidade: “Crimes Against
Humanity-Other Inhumane Acts (Forced Marriage).” Esta emenda permite a instauração
formal de um processo nos casos de „casamento forçado‟ segundo o artigo 2.i do estatuto.
Esta é a primeira emenda deste tipo, e segue a tendência da justiça internacional
especificamente focada em crimes de gênero (Park, 2006).
Essa instauração formal do processo nos casos de “casamento forçado” cria um
precedente significativo na medida em que chama atenção para a situação específica das
meninas em conflitos (Park, 2006).
42
CONCLUSÃO
Expusemos nos capítulos precedentes uma série de dados e características referentes
aos conflitos ocorridos em Serra Leoa. A partir disso concluimos que toda uma geração,
particularmente de crianças, sofreram as agruras de uma guerra civil, a qual certamente não
foi fruto de uma escolha pessoal. Não fosse essa situação por si só suficientemente injusta,
detectamos no seu interior uma segunda injustiça, no que diz respeito à condição feminina.
A presença, os papéis e experiências das meninas que participaram de grupos armados
em Serra Leoa são complexos e tal complexidade é maior do que qualquer pesquisa
bibliográfica possa abarcar, por mais que conte amplamente com relatos pessoais.. Tal
avaliação imprecisa resultou em erros operacionais e programáticos por parte das Nações
Unidas, organizações multilaterais, ONGs internacionais e o governo de Serra Leoa. Em
suma, a atenção inadequada às meninas, juntamente com uma falta de sensibilidade sobre suas
circunstâncias e necessidades específicas, teve um impacto negativo sobre o processo de
DDR, como um todo, neste país por nós analisado.
A inclinação ao não reconhecimento de meninas em grupos armados na concepção e
execução de programas DDR resultou na quase exclusão da mulher e ainda mais das meninas
dos programas de DDR e os benefícios propostos por estes. Ressaltamos que os centros e
procedimentos de DDR foram fundamentalmente criados para acomodar um número grande
de combatentes do sexo masculino. Não foi dada a devida atenção às experiências singulares a
que as meninas foram submetidas durante a guerra, e depois dela, na sua reintegração à
sociedade. Seus direitos não foram protegidos, e com essa forma de exclusão, acaba-se por
compromter o próprio funcionamento da sociedade, na qual elas se tornarão mulheres, futuras
mães, esposas e profissionais.
Abordagens alternativas devem ser exploradas para atender às necessidades,
aspirações e direitos de todos os indivíduos, que de alguma forma foram afetados por guerras.
Alguns programas internacionais reconheceram a necesidade de tratar da reinserção a partir
da perspectiva dos ex-combatentes (MAZURANA and CARLSON, 2004: 26). Ao analisar os
problemas que ex-combatantes enfrentam no contexo pós-guerra, e ao destrinchar as
necessidades individuais dos sub-grupos no interior dos grupos armados, fica evidente que é
mais eficiente elaborar um programa específico, que englobe as necessidades pontuais deste
núcleo de pessoas, a partir de programas já existentes. Ao criar um programa específico
43
facilita o processo de DDR destes individuos, visto que as necessidades pontuais serão
consideradas e tratadas especificamente. Além destes programas poderem criar oportunidades
necessárias para que tais indivíduos possam evoluir no processo de recuperação para
finalmente superar as adversidades e integrar-se da melhor forma possível em suas
comunidades.
Desta forma as reais necessidades deste núcleo são abordadas de acordo com suas
esperiências, certificando-se que os programas especificos disponibilizem os tratamentos
adequados para cada realidade. Assim, propomos que a elaboração dos programas de DDR
sejam realizados de forma a considerarem abordagens alternativas as utilizadas
costumeiramente. Uma das recomendações feitas por Dyan mazurana e Susan McKay (2003),
ao Governo de Serra Leoa, a ONU, e às ONGs internacionais é, avaliar a situação de crianças
soldado de diversos grupos em conflito e e desenvolver objetivos específicos, estratégias
eatividades dentro dos programas de DDR (p.14).
Cremos que esta recomendação sugere a identificação da situação das crianças para
que assim possa elaborar um programa em cima das reais necesssidades e expectativas do
grupo, tornando-se mais eficiente.
Na análise de Mazurana e McKay (2003), esta necessidade se apresenta uma vez que
as necessidades e direitos de muitas meninas são desconsideradas por estes programas.
Certificando-se que existe um grupo prejudicado por falhas na elaboração do DDR,
propomos que estes considerem abordagens que trabalhem nas necessidades pontuais dos
indivíduos que seram reabilitados.
44
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47
SUMÁRIO
CAPÍTULO 1 – A EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE DIREITOS HUMANOS E OS DIREITOS
DAS CRIANÇAS NA QUESTÃO DA UTILIZAÇÃO DE CRIANÇAS-SOLDADOS EM
CONFLITOS ARMADOS ...................................................................................................................... 5
1.1 Direitos humanos .......................................................................................................................... 5
1.1.1 Direitos das crianças ............................................................................................................. 7
1.1.2 Serra Leoa .............................................................................................................................. 7
1.2 Direito Internacional Humanitário ................................................................................................ 9
1.3 Conflito Armado ......................................................................................................................... 10
1.4 Crianças-soldados ....................................................................................................................... 10
1.5 Meninas-soldados ........................................................................................................................ 13
1.6 Gênero ......................................................................................................................................... 13
1.7 Internally Displaced Persons (IDPs) ........................................................................................... 14
1.8 Desarmamento, Desmobilização e Reintegração (DDR) ............................................................ 14
CAPÍTULO 2 – O CONTEXTO HISTÓRICO DO CONFLITO DE SERRA LEOA ......................... 19
2.1 Contexto histórico ....................................................................................................................... 19
2.2 DDR: Construção e implementação em Serra Leoa .................................................................... 23
2.3 Crianças-soldados em Serra Leoa ............................................................................................... 27
2.3.1 Meninas-soldados................................................................................................................. 27
2.4 A presença e a atuação de meninas em grupos armados ............................................................. 31
2.4.1 Presença de meninas em programas de DDR ...................................................................... 32
2.4.2 Problemática dos programas de DDR para a inclusão de meninas .................................... 33
CAPÍTULO 3 – ANÁLISE DOS PROGRAMAS DE DDR PARA MENINAS EM SERRA LEOA . 35
3.1 Meninas que participaram de programas de DDR em Serra Leoa .............................................. 39
3.2 A Visão das meninas-soldados .................................................................................................... 40
3.3 A Corte Especial para Serra Leoa ................................................................................................... 40
CONCLUSÃO ...................................................................................................................................... 42
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................................................. 44