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GÊNEROS NÃO-FICCIONAIS COMO FICÇÃO: UMA ANÁLISE DE A SEVENTH MAN E UM PASSAPORTE HÚNGARO Autora: Vanessa Hack Gatteli * Professor Responsável: Dra. Rita Lenira Bittencourt RESUMO Este trabalho pretende discutir, sob uma perspectiva comparatista, o livro A Seventh Man, de John Berger e Jean Mohr e o filme Um Passaporte Húngaro, de Sandra Kogut. O primeiro traz o subtítulo explicativo “A book of images and words about the experience of Migrant Workers in Europe”. Já o segundo é um documentário sobre o desenrolar burocrático de um pedido de nacionalidade húngara. As duas obras discutem, de maneiras diferentes, a insignificância do individuo diante do Estado e do Capitalismo. Analisarei as obras sob o ponto de vista metaficcional, pois mesmo não sendo ficcionais, elas exploram a ficcionalidade do mundo para além do texto ficcional. Além disso, em A Seventh Man, John Berger, ao lado das fotografias de Jean Mohr, usa diferentes gêneros textuais, inclusive poesia ao lado das imagens. Analisaremos a relação entre texto e imagem das obras bilateralmente, sem a intenção de estipular uma hierarquia. PALAVRAS-CHAVE: documentário, ficção, fotografia. ABSTRACT This article intends to discuss, under a comparative perspective, the book A Seventh Man, by John Berger and Jean Mohr and the film Um Passaporte Húngaro, by Sandra Kogut. The book has the self-explanatory subtitle “A book of images and words about the experience of Migrant Workers in Europe.” The film is a documentary about the bureaucratic process of a Hungarian nationality request. Both works discuss, in different ways, the insignificance of people against state and capitalism. We are going to analyze the works under a metafictional point of view because, in spite of not being fictional, they explore the fictionality of the world outside the literary fictional text. John Berger uses different kind of texts (including poetry) along Jean Mohr’s pictures. We are going to analyze the relation between text and image bilaterally, without hierarchy. KEYWORDS: documentary, fiction, photography. * Estudante de Letras – Português e Inglês. UFRGS – Bolsista BIC da Pesquisa "Poéticas do Presente: Espaço e imagem" - Universidade Federal do Rio Grande do Sul. [email protected]

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GÊNEROS NÃO-FICCIONAIS COMO FICÇÃO: UMA ANÁLISE DE A SEVENTH MAN E UM PASSAPORTE

HÚNGARO 

 

Autora: Vanessa Hack Gatteli* Professor Responsável: Dra. Rita Lenira Bittencourt 

 

 

RESUMO Este trabalho pretende discutir, sob uma perspectiva comparatista, o livro A Seventh Man, de John Berger e Jean Mohr e o filme Um Passaporte Húngaro, de Sandra Kogut. O primeiro traz o subtítulo explicativo “A book of images and words about the experience of Migrant Workers in Europe”. Já o segundo é um documentário sobre o desenrolar burocrático de um pedido de nacionalidade húngara. As duas obras discutem, de maneiras diferentes, a insignificância do individuo diante do Estado e do Capitalismo. Analisarei as obras sob o ponto de vista metaficcional, pois mesmo não sendo ficcionais, elas exploram a ficcionalidade do mundo para além do texto ficcional. Além disso, em A Seventh Man, John Berger, ao lado das fotografias de Jean Mohr, usa diferentes gêneros textuais, inclusive poesia ao lado das imagens. Analisaremos a relação entre texto e imagem das obras bilateralmente, sem a intenção de estipular uma hierarquia. PALAVRAS-CHAVE: documentário, ficção, fotografia. 

ABSTRACT This article intends to discuss, under a comparative perspective, the book A Seventh Man, by John Berger and Jean Mohr and the film Um Passaporte Húngaro, by Sandra Kogut. The book has the self-explanatory subtitle “A book of images and words about the experience of Migrant Workers in Europe.” The film is a documentary about the bureaucratic process of a Hungarian nationality request. Both works discuss, in different ways, the insignificance of people against state and capitalism. We are going to analyze the works under a metafictional point of view because, in spite of not being fictional, they explore the fictionality of the world outside the literary fictional text. John Berger uses different kind of texts (including poetry) along Jean Mohr’s pictures. We are going to analyze the relation between text and image bilaterally, without hierarchy.  KEYWORDS: documentary, fiction, photography. 

 

   

                                                            * Estudante de Letras – Português e Inglês. UFRGS – Bolsista BIC da Pesquisa "Poéticas do Presente: Espaço e imagem" - Universidade Federal do Rio Grande do Sul. [email protected] 

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1 Considerações iniciais 

Tratando-se de uma jornada de estudos literários, subentende-se que o corpus a ser

analisado no artigo seja de natureza literária. Pelo fato de ter escolhido um corpus não

ficcional, algumas considerações tornam-se necessárias. 

Uma obra do autor John Berger fazia parte das discussões do grupo de pesquisa

Poéticas do Presente: Espaço e Imagem. Após ler o livro O livro da metaficção de Gustavo

Bernardo, no qual o autor analisa literariamente o documentário Jogo de Cena de Eduardo

Coutinho, optei fazer uma análise semelhante, usando como corpus outro livro não

ficcional de John Berger: A Seventh Man. 

Para tanto, optei por usar o mesmo embasamento teórico de Gustavo Bernardo, Waugh (1984, p.2) no qual ela afirma: 

In providing a critique of their own methods of construction, such writings not only examine the fundamental structures of the narrative fiction, they also examine the fundamental structures of narrative fiction, they also explore the possible fictionality of the world outside the literary fictional text. 

Decidi também trazer para a discussão o filme Um passaporte húngaro porque

acredito que ele seja uma espécie de “continuação” do livro. O livro trata do problema da

migração sem volta de trabalhadores e o filme gira em torno da busca da reconquista da

identidade perdida na migração. 

Centrei então a leitura no problema da perda da identidade do sujeito. Dada a

complexidade desse assunto e a brevidade do presente trabalho, optei por usar como

embasamento teórico o livro A identidade cultural na pós-modernidade (Hall, 2006). 

Hall (2006) divide a identidade do sujeito em três concepções diferentes: sujeito do

Iluminismo, sujeito sociológico e sujeito pós-modernos. O sujeito do Iluminismo, como o

próprio nome diz, é centrado, racional e individualista. O sujeito sociológico refletia o

complexo mundo moderno e é concebido na interação com a sociedade. O sujeito pós-

moderno seria mais heterogêneo, não tendo uma identidade fixa. 

O próprio autor (Hall, 2006) argumenta que essas concepções são um tanto

simplistas, mas ainda assim ajudam a realizar uma leitura das obras em questão. 

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Para uma leitura mais apropriada das imagens optei pelo embasamento teórico de

Barthes (1969) e Barthes (1984). Em Barthes (1969) temos alguns processos de conotação

que auxiliam na nomenclatura da leitura das imagens: truncagem, pose, objetos, fotogenia,

estetismo e sintaxe. Da mesma forma, o conceito de punctum em Barthes (1984 p. 46) será

trazido na leitura de algumas imagens: “vem quebrar (ou escandir) o studium. (...) é ele que

parte da cena, como uma flecha, e vem me transpassar.”. 

Logo, precisamos trazer o conceito de studium: 

(...) é uma vastidão, ele tem a extensão de um campo, que percebo com bastante familiaridade em função de meu saber, de minha cultura; esse campo pode ser mais ou menos estilizado, mais ou menos bem-sucedido, segundo a arte ou a oportunidade do fotógrafo (...) (BARTHES, 1984, p. 44 – 45) 

A partir desses suportes teóricos, o artigo divide-se, a seguir, em considerações

sobre as obras e encerra com um estudo das convergências e algumas considerações finais,

ainda em processo inconcluso. 

2 Das obras 

2.1 A Seventh Man 

A Seventh Man, de John Berger1 e Jean Mohr2 é um trabalho que inicialmente

pretendia mostrar como os países ricos da Europa necessitavam do trabalho das nações

pobres do mesmo continente. A intenção inicial era rodar um filme. No entanto, por falta

de recursos, os autores optaram por escrever um livro de imagens e palavras. Não consta

nenhuma classificação pela editora quanto ao gênero do livro. Devido a suas

características, ainda que heterogêneas, tomei a liberdade de classificar o livro como

documentário. O livro é divido em três partes: Departure, Work e Return. 

Como o próprio subtítulo do livro diz, se trata de “um livro de imagens e palavras

sobre a experiência de trabalhadores migrantes na Europa”. O texto não serve para explicar

as imagens e as imagens não servem para ilustrar o texto, cada um deve ser lido

                                                            1 John Berger nasceu em Londres em 1926. Ele é autor de romances e de poesia, mas é mais conhecido por seus trabalhos como ensaísta. Ficou mundialmente conhecido em 1972 pela série televisiva Ways of Seeing, que mais tarde virou um livro homônimo. 

2 Jean Mohr nasceu em Genebra em 1925. É fotógrafo desde 1949 e um de seus principais trabalhos envolve a fotografia de refugiados palestinos durante cinquenta anos. 

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individualmente (salvo raras exceções), ainda que ambos que se complementem para

constituir uma narrativa. É importante ressaltar que os autores, propositalmente, não

colocam a legenda das imagens junto às mesmas, na maioria dos casos. Há legenda apenas

quando estritamente necessário. Os próprios autores (BERGER; MOHR, 2010, p.11)

afirma: “both should be read in their own terms”. 

O texto é bastante fragmentado, não há subdivisões definidas dentro dos capítulos.

É comum o texto trazer dados estatísticos em um parágrafo e no parágrafo seguinte mudar

para uma reflexão filosófica e até para poesia. 

Percebemos ao longo de todo o livro que a jornada dos trabalhadores constitui em

uma perda da identidade dos mesmos. 

No primeiro capítulo do livro, Departure, podemos observar aquilo que Hall (2006,

p.11) chama de “sujeito sociológico”:  

este núcleo interior do sujeito não era autônomo e auto-suficiente, mas era formado na relação com “outras pessoas importantes para ele” que mediavam para o sujeito os valores, sentidos e símbolos – a cultura – dos mundos que ele/ela habitava. 

No primeiro capítulo temos a imagem de um mercado a céu aberto na Iugoslávia: 

 

Figura 1 - Mercado a céu aberto em uma vila, na Iugoslávia (Fonte: BERGER; MOHR, 2010, p. 28) 

Observamos claramente nessa foto que há semelhança entre os indivíduos: roupas

semelhantes, cestas e sacolas, mercadorias. A sintaxe dessa imagem é harmônica, eu não

ressaltaria nenhum punctum. Além disso, há uma clara interação esses indivíduos,

conversam na mesma língua: eles se identificam como semelhantes. 

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Da mesma maneira, o texto descreve o dia-a-dia de um futuro emigrante, ainda inserido em seu meio: 

The father is in the forest felling and cutting. After midnight, having loaded the wood on to a mule, he will leave on his seven-hour journey to the nearest market village where, with a hundred or so other peasants from the high plateau, he will hope to sell the wood. (For stakes, fences, buildings: not for burning.) The night will be frosty but there is a moon. Occasionally a hoof will strike a spark from the road. He will return the following night, having hopefully sold the wood. (BERGER; MOHR, 2010, p. 24) 

Os dois textos (tanto a imagem como o texto escrito) opõe-se a uma foto que está

no segundo capítulo, na qual os trabalhadores estão na fila do refeitório de uma fábrica:

percebe-se que há várias nacionalidades ali. Ainda que seja circunstancial, essa foto é uma

metáfora do que acontece com os trabalhadores quando migram – tornam-se parte de uma

linha de produção, sua força de trabalho vira mercadoria. 

 

Figura 2 - Refeitório de uma fábrica em Frankfurt, na Alemanha. (Fonte: BERGER; MOHR, 2010, p.102) 

Da mesma maneira, o seguinte fragmento explicita como não há interação, a cultura

torna-se uma barreira: 

Look for lodgings. His cousin and the seven others have told him, where to try. The first door opens and immediately frames an unknown person. He asks in five

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words learnt by heart. He imagined the reply to his question would be an action, an opening of a room door, the handing over some money. Instead the the unknown person stares at him with an unknowable expression (…) (BERGER; MOHR, 2010, p. 94) 

No mesmo sentido de desumanização e perda da identidade, os autores trazem a

imagem de um estudo em “Engenharia Humana”: 

 

Figura 3 - Engenharia humana (Fonte: BERGER; MOHR, 2010, p. 109). 

Já no terceiro capítulo, Return, o autor fala explicitamente da perda de identidade

por parte dos trabalhadores: “Only if he becomes a trouble-maker does he earn an identity;

and then he will be recognized in order to be kept out.” (BERGER; MOHR, 2010, p. 212) 

Esse último capítulo, ao invés de ser um reencontro da identidade, na verdade se

torna algo apenas a lamentar. O retorno é o fim da ilusão da migração. O autor passa de

dados estatísticos para a poesia: 

In Portugual the average income is $350 a year. The population is eight and a half million, and there are estimated to be 1.6 million Portuguese working abroad. 

According to his calculations, his annual return is preparation for his final return. (…) To be one’s own master in the economic as well as the social sense. To receive all the money which the finished job brings in. 

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To have a shop. (BERGER; MOHR, 2010, p.218)  

Pelo fato de o livro ter sido primeiramente publicado em 1975, os dados são

bastante obsoletos. Apesar disso o livro continua a ter uma significância. O trecho acima

mostra todas as ilusões de uma vida melhor que levam um trabalhador a largar sua família

e seu local de origem. No entanto, ao retornar, acabam por encontrar apenas desilusão: 

 Because the village has scarcely changed since he left, there is still no livelihood for him. When he carries out one of his plans, he will become the victim of the same stagnation which first forced him to leave. (…) Two or three years after his final return he or other members of his family will be compelled to go abroad once more. (BERGER; MOHR, 2010, p. 221-223) 

Como podemos ver, a migração de trabalhadores vira um círculo vicioso, algo

permanente, assim como a perda da identidade dos mesmos. 

O livro A Seventh Man estaria situado em um local de transição entre o sujeito

sociológico e o sujeito pós-moderno definidos por Hall (2006). Enquanto eles interagem

com o mundo que habitam originalmente, podemos chamá-los de sujeitos sociológicos. A

partir do mundo que vão para outro país para trabalhar e interagem com diversas culturas

(tanto a nativa quanto a de outros imigrantes) podemos chamá-los de sujeitos pós-

modernos: heterogêneo, fragmentado, constituído de várias outras identidades. 

2.2 Um passaporte húngaro 

O filme se trata do desenrolar burocrático do pedido de nacionalidade húngara da

própria diretora do filme, Sandra Kogut3. O filme lida também com o mesmo problema do

livro, a migração. Aparentemente, as razões são diferentes. No livro comentado

anteriormente, os trabalhadores deixam seus locais de origem por um período específico e

por opção própria. No filme, a migração ocorre devido aos rumores iniciais da Segunda

Guerra Mundial. 

No entanto, como observado nos comentários sobre o livro acima, os trabalhadores

migram, retornam e acabam tendo que migrar novamente por causa da falta de trabalho,

eles migram para sobreviver e aquilo que era para ser provisório acaba por ser definitivo.

No filme, um jovem casal judeu migra da Hungria para o Brasil devido aos rumores

                                                            3  Sandra Kogut nasceu no Rio de Janeiro em 1965. Entre vários trabalhos, destaca-se Mutum, longa-

metragem adaptado da obra Campo Geral de João Guimarães Rosa. 

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iniciais da Segunda Guerra Mundial e da perseguição de Hitler aos judeus. Para poder

permanecer legalmente no Brasil eles precisam abdicar de sua nacionalidade Húngara. 

No filme também fica clara a perda da identidade pela qual passam esses

imigrantes. Ao tentar resgatar sua nacionalidade húngara, a diretora não só passa por

trâmites burocráticos. Ela vai muito além, ela busca informações que a levem a resgatar

sua própria identidade. 

Ao buscar maiores informações sobre a mudança de nome de seu avô ela logo é

informada que ela não terá acesso a essa informação específica, visto que aquele arquivo

não tem informações tão antigas. Mesmo assim a diretora continua a conversar com aquele

funcionário e tenta obter o máximo de informações sobre a mudança do nome avô dela. Ela

descobre que por ser judeu seu avô havia mudado o nome para não ser perseguido. Ela

também descobre que o nome de seu avô “Lajta” significa o nome de um rio que marcava

a antiga fronteira entre a Hungria e a Áustria. 

A diretora do filme mostra-se como uma possível representante do sujeito pós-

moderno Hall (2006): heterogêneo, constituído de várias outras identidades. E ela tenta de

todas as formas recuperar a identidade do sujeito sociológico Hall (2006). A avó da

diretora era austríaca e se tornou húngara ao casar. Sandra tem nacionalidade brasileira,

vive na França e se comunica em inglês com parentes húngaros para tentar entender uma

das culturas a qual pertence, ela é constituída de várias culturas e identidades diferentes. 

Pela dimensão e temática desse artigo, as considerações elaboradas a respeito do

filme mantiveram-se restritas ao enredo, forçando uma separação da estrutura imagética

que não se sustenta muito, e que permanece ainda por explorar. 

3 Pontos de convergência entre as obras 

O filme Um passaporte húngaro, de Sandra Kogut, faz o caminho inverso do livro

de Berger/Mohr. Enquanto em A Seventh Man os trabalhadores perdem sua identidade ao

deixar sua família e seu local de origem, em Um passaporte húngaro a diretora busca

resgatar a identidade perdida por seus antepassados. 

No entanto, a redução do sujeito a simples códigos, letras é ressaltada nas duas

obras. 

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Em A Seventh Man, em um degradante exame eliminatório admissional, os

candidatos a empregados de uma fábrica alemã são examinados minuciosamente por um

médico. São obrigados a ficar seminus diante de desconhecidos. Eles são identificados

apenas por um número. 

 

Figura 4 - Exame médico de candidatos turcos para trabalhar na Alemanha. (Fonte: BERGER; MOHR, 2010, p. 54). 

 

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Figura 5 - Cada homem examinado tinha tem seu número marcado no peito e no pulso. (Fonte: BERGER; MOHR, 2010, p. 55) 

O punctum dessa fotografia é claramente o número sobre o peito, mas precisamos

levar em consideração o peculiar enquadramento do fotógrafo, ele escolheu uma pose de

modo que cortou parcialmente o rosto do homem, focando no número. 

Em Um passaporte húngaro os passaportes dos avós da diretora receberam um

grande carimbo (na capa) com a letra “K”, a inicial da palavra húngara “kivándorlás” que

em uma tradução livre significa “emigração”. Na prática, esse carimbo significa que o

portador desse passaporte não pode mais voltar para a Hungria. 

O capital e o Estado, respectivamente representados por médicos e funcionários

aduaneiros, ignoram completamente o sujeito existente por trás das letras e dos números. 

Em outra cena do filme, na qual a diretora busca informações com parentes (mais

uma vez, não é nada burocrático, apenas o resgate das origens) um senhor já idoso mostra

um papel e diz “this paper is my life”. Ele precisou se livrar de seu passaporte e se livrou

de entrar em um trem com destino a um campo de concentração porque inventou na hora

um número, sob o pretexto de saber o número de cor.  

Em A Seventh Man, muitos emigrantes portugueses morriam em travessias de

fronteiras ilegais. Para resolver a situação, eles passaram a tirar fotos assim que deixavam

o país. A foto era então partida em duas, uma parte ficava com o “guia” e a outra parte era

enviada pelo correio à família somente quando o trabalhador chegasse ao seu destino: 

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Figura 6 - Migrante português. (Fonte: BERGER; MOHR, 2010, p. 49). 

É interessante a sintaxe que os autores deram para a foto, reconstruindo a realidade

daqueles trabalhadores, separando a foto em duas partes. 

Mais uma vez, a vida desses trabalhadores se reduzia a burocracias, fossem elas

oficiais ou não. 

Outra questão sobre a qual as duas obras dialogam, é sobre o preconceito que

sofrem por serem estrangeiras. 

Em A Seventh Man, para mostrar o quão complexas são essas relações, o autor dá

voz aos trabalhadores nativos. Nota-se que as diferenças culturais e a falta de interação

resultam em preconceito: 

They come here, what do they come for? 

To get as much money as they can and send it out of the country. They are not interested in anything. Just money. It’s always the same story. They take our money, they take our Jobs, they take our houses – if they could, if we let them, they would take over everything. 

Do you know they all eat out of the same plate? They are barbarians. (BERGER; MOHR, 2010, p. 118) 

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No filme, a avó da diretora relata ter sido chamada de cidadã de segunda ordem,

mesmo após ter obtido a nacionalidade brasileira. 

Como já foi citado, Hall (2006) nos diz que para o sujeito sociológico, a identidade

reside na relação com pessoas importantes para ele (sujeito). Como o estrangeiro está fora

desse grupo de pessoas, gera-se preconceito e xenofobia. 

4 Considerações finais 

Por fim, podemos ler que a recuperação da identidade não é possível. Os motivos

não são simples de explicar.  

Uma explicação poderia ser o fato de os fatos apresentados em A Seventh Man e

Um passaporte húngaro serem relacionados com o “sujeito sociológico”. Ao ser uma

brasileira que mora em Paris e tenta resgatar sua nacionalidade húngara, Sandra Kogut

poderia ser relacionada com aquilo que Hall chama de “sujeito pós-moderno”. 

Outra leitura poderia ser o fato de que “identidade” é algo que não pode ser

resgatado. Por mais que se esforce para se inserir na cultura húngara, Sandra Kogut parece

ser menosprezada por sua falta de conhecimento. Em uma cena na qual a diretora interage

com uma Húngara, esta pergunta para aquela se ela sabe quantos milhões de habitantes

existem em Budapeste. Diante da negativa, a interlocutora de Sandra comenta

ironicamente: “e você quer ser húngara...”. 

Em uma última análise, talvez a noção de identidade usada aqui tenha sido um tanto

simplista, mas este é um trabalho que ainda pode ter a discussão levada adiante. A cena

final do filme se passa em um trem com origem em Budapeste e destino a Paris, após a

diretora finalmente conquistar seu passaporte húngaro. O funcionário do controle de

passaportes pede o passaporte da diretora. Ao pedir para falar em inglês, o funcionário

desconfia: “uma húngara que não fala húngaro?” e em seguida pede outro documento, que

a diretora não possui. Apenas o passaporte com a nacionalidade húngara não foi suficiente

para identificá-la como uma cidadã húngara, o Estado pediu mais. 

Toda a tensão do filme se passa na busca por esse passaporte, como se ele fosse o

atestado da reconquista da identidade. Apesar de a vida dos imigrantes dependerem de

simples papéis, o resgate da identidade depende de muitas outras coisas. 

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O funcionário então sai de cena por instantes e depois retorna. Ele devolve o

passaporte sem nenhum comentário. 

Outra passagem do filme que corrobora a leitura de que é identidade é algo

irrecuperável, é aquela em que a avó da diretora conta que seu falecido esposo jamais

sentira-se realmente “em casa” no Brasil. Por outro lado, mesmo com o fim da guerra, ele

sabia que jamais se sentiria “em casa” na Hungria novamente.  

Por fim, ela cita uma antiga música alemã que, nas palavras delas, dizia o seguinte:

“- Aonde você vai? – para casa. – De onde você vem? – De casa.” Uma belo paradoxo que

permeia essas duas obras que abordam o tema dos complexos problemas que envolvem a

migração, abrindo um vasto campo de reflexão teórica sobre a política pós-nacional. 

 

REFERÊNCIAS 

BARTHES, R. A câmara clara: nota sobre a fotografia. 6ª impressão. Rio de Janeiro: Nova Froneira, 1984. 185 p. 

BARTHES, R. A Mensagem Fotográfica. In: LIMA, L.C. Teoria da cultura de massa. Rio de Janeiro: Editora Saga S/A, 1969. p. 301 – 314.  

BERGER, J. Modos de ver. Rio de Janeiro: Rocco, 1999. 166 p. 

BERGER, J.; MOHR, J. A Seventh Man: A book of images and words about the experience of Migrant Workers in Europe. London: Verso, 2010. 240 p. 

BERNARDO, G. O livro da metaficção. Rio de Janeiro: Tinta Negra Bazar Editorial, 2010. 276 p. 

DUBOIS, P. O ato fotográfico e outros ensaios. 13ª Edição. Campinas, SP: Papirus, 2010. 362 p. (Série Ofício de Arte e Forma) 

HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. 11ª edição. Rio de Janeiro: DP&A, 2006. 102 p. 

KOGUT, Sandra. Um passaporte húngaro. [Filme-vídeo]. Direção de Sandra Kogut. Rio de Janeiro, Zeugma Films, República Pureza Filmes, Arte France, Hunnia Film Studio, Cobra Filmes, RTBF, CIVC Pierre Schaeffer, 2002. 71 min. Colorido. 

WAUGH, P. Metafiction: the theory and practice of self-conscious fiction. London and New York: Routledge, 1984. 176 p. (Série New Accents)