19
GUERRA ÀS DROGAS! Por Cláudia, Amarildo e tantos outros, vamos debater seriamente a política de repressão às drogas e a criminalização da pobreza. O porta voz da polícia do Rio de Janeiro, ao tentar desculpar-se pela morte brutal de Cláudia, assassinada com vários tiros e arrastada pelas ruas, disse que ela era uma mãe de família, e portanto não havia razão para ela ser tratada assim. Poucos perceberam, mas o discurso oculto do policial é que se ela fosse de fato uma traficante não haveria problemas em ser assassinada. Quando Amarildo sumiu, também, a primeira justificativa foi de que ele era um traficante e, portanto, merecedor de violência e morte. A violência policial contra os pobres não é uma novidade. Graças a uma filmagem amadora e às redes sociais, a morte de Cláudia não ficou sendo apenas mais uma nas estatísticas. O fato de ela ter sido arrastada por um camburão da polícia chocou o Brasil, e todos ficaram sabendo que Cláudia foi covardemente assassinada pela polícia numa ação de “guerra às drogas”. A chamada guerra às drogas é hoje o mais poderoso instrumento de criminalização da pobreza e de instigação ao racismo. Conforme Loic Wacquant, o sistema penal hipertrofiado tem “um lugar central no aparato emergente para a gestão da pobreza”1. Este fato pode ser percebido claramente no caso de Cláudia e Amarildo e também no episódio da repressão ao

Guerra Às Drogas

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Guerra Às Drogas

GUERRA ÀS DROGAS!

Por Cláudia, Amarildo e tantos outros, vamos debater seriamente a política de repressão

às drogas e a criminalização da pobreza.

O porta voz da polícia do Rio de Janeiro, ao tentar desculpar-se pela morte brutal de

Cláudia, assassinada com vários tiros e arrastada pelas ruas, disse que ela era uma mãe de

família, e portanto não havia razão para ela ser tratada assim. Poucos perceberam, mas o

discurso oculto do policial é que se ela fosse de fato uma traficante não haveria problemas em

ser assassinada. Quando Amarildo sumiu, também, a primeira justificativa foi de que ele era

um traficante e, portanto, merecedor de violência e morte.

A violência policial contra os pobres não é uma novidade. Graças a uma filmagem

amadora e às redes sociais, a morte de Cláudia não ficou sendo apenas mais uma nas

estatísticas. O fato de ela ter sido arrastada por um camburão da polícia chocou o Brasil, e

todos ficaram sabendo que Cláudia foi covardemente assassinada pela polícia numa ação de

“guerra às drogas”.

A chamada guerra às drogas é hoje o mais poderoso instrumento de criminalização da

pobreza e de instigação ao racismo. Conforme Loic Wacquant, o sistema penal hipertrofiado

tem “um lugar central no aparato emergente para a gestão da pobreza”1. Este fato pode ser

percebido claramente no caso de Cláudia e Amarildo e também no episódio da repressão ao

tráfico na cracolândia, em São Paulo, onde os dependentes foram brutalmente atacados pela

polícia de Alckmin, em nome da repressão ao tráfico. A guerra às drogas legitima a violência

e as violações aos direitos humanos cometidas pelo próprio Estado contra os pobres,

normalizando as mortes dos traficantes, ou dos supostos traficantes.

Em uma palestra recente, Noam Chomsky chamou a atenção para o fato de que a

guerra às drogas é uma herança do racismo. Os avanços conquistados nos EUA nos anos

50/60 em relação aos direitos civis dos negros sofreram um revés nos anos 70, justamente

devido ao discurso da guerra às drogas que permitiram uma contra ofensiva racista de ataque

aos direitos dos negros e pobres.

Esta guerra às drogas também joga os pobres contra os pobres, pois os jovens sem

perspectivas são seduzidos pelo tráfico, tornando-se soldados numa guerra contra a polícia

(que também é composta por pobres) e contra outros jovens da favela ao lado, na disputa

pelos pontos de tráfico. É o roto contra o esfarrapado.

Page 2: Guerra Às Drogas

Está cada vez mais evidente que os efeitos negativos agregados da criminalização e do

proibicionismo são muito superiores às consequências do uso ou do abuso das drogas ilícitas.

Dos 50 mil homicídios dolosos anuais, grande parte relaciona-se ao tráfico de drogas, seja

fruto das disputas entre os traficantes, seja do enfrentamento da polícia com os mesmos. E há,

ainda, os mortos “por engano”, como Cláudia , Amarildo e tantos outros que não tiverem

repercussão na mídia. Sabe-se também que a corrupção policial é alimentada pelas

oportunidades de negócios ilícitos que o comércio clandestino propicia. E ainda há que somar

os custos financeiros e humanos impostos pelo sistema penitenciário, assim como os gastos

com as instituições de segurança e de justiça criminal, cujas energias são em boa parte

consumidas com essa vasta problemática.2

Sobre a Lei 11.343/06

A nossa lei anti drogas (nº 11.343/06) promove a discriminação ao não fornecer

critérios objetivos para diferenciar o traficante do usuário, bem como para caracterizar a

associação para o tráfico. É uma norma penal aberta, isto é, há uma diferenciação nebulosa

entre usuários e traficantes. Seu texto gera uma política criminal sem nenhuma

correspondência entre os resultados desejados e os resultados obtidos, pois fracassa na

promessa de reduzir os índices de criminalidade derivados do tráfico.3

Para o usuário não há pena de prisão, porém a questão é quem terá o “privilégio” de

ser tratado como usuário. Para determinar se a droga destina-se a consumo pessoal “o juiz

atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que

se desenvolveu a ação, às circunstancias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos

antecedentes do agente”(artigo 28 parágrafo 2º).

Aqui, evidentemente, não há um critério objetivo. Se a pessoa flagrada em posse da

droga tiver uma “aparência” de traficante, poderá ser indiciada pela Polícia ou denunciada

pelo MP como traficante. Isto é, se estiver numa favela, ou for visivelmente pobre e/ou negro,

mesmo que esteja com uma quantidade pequena de droga poderá responder por tráfico.

Entretanto, se a sua aparência for de um jovem de classe média, o mais provável – mesmo que

a quantidade de droga não seja tão pequena assim – é que ele seja considerado um usuário. A

mera leitura do parágrafo 2º do artigo 28 é suficiente para evidenciar que esta discriminação

está autorizada pela própria lei.

Foi o próprio Ministro do STF, Luís Roberto Barroso quem afirmou que, ao analisar

os processos que chegam ao Supremo sobre tráfico de drogas, constatou que “boa parte das

pessoas presas são pobres que foram enquadradas como traficantes por portar quantidades

Page 3: Guerra Às Drogas

não significantes de maconha. E minha constatação pior é que jovens, negros e pobres

entram nos presídios por possuírem quantidades não tão significativas de maconha e saem de

presídios escolados no crime”, afirmou o ministro4.

O problema não se restringe à diferenciação entre usurário ou o traficante, mas

também ao indivíduo que será considerado em associação com o tráfico ou não. O artigo 35

que caracteriza a associação para o tráfico determina a pena de reclusão de 3 a 10 anos, que se

soma à pena do artigo 33 que caracteriza o tráfico. Assim, se o indivíduo for considerado

membro de uma associação para o tráfico sua pena será aumentada significativamente. Tal

caracterização também não é objetiva.

“É possível, então, suspeitarmos que, por trás de toda a elaboração legislativa da lei

11.343/06 acabou-se criando um mecanismo eficiente de enclausuramento de determinado

grupo de pessoas, demonstrando que, ao contrário do que poderia parecer (uma lei tão

ampla que contemplasse todos os tipos de condutas desviantes e indesejáveis), a lei não é

democrática em sua abrangência, mas reforçadora de estigmas sociais e implementadora de

uma política de ‘faxina social’, já que os indivíduos de classe média ou de classe alta

tenderão a ser identificados nas incursões policiais, aplicando esse mesmo texto legal, como

usuários e, portanto, excluídos das prisões”.5

Os resultados da política proibicionista

A desencarcerização do usuário é um avanço, mas totalmente insuficiente. Além da

discriminação evidente, vemos que o resultado desta política é que o usuário é obrigado a ter

contato com o mundo do crime para adquirir a droga, arriscando-se em regiões muitas vezes

conflagradas pela disputa de território ou correndo risco de ser assassinado por dívidas com

traficantes perigosos. Além disso, muitas vezes a errônea profecia de que “ a maconha é porta

de entrada para outras drogas” acaba se realizando devido à criminalização pois o traficante

tem interesse em vender drogas cada vez mais caras ao usuário.

A guerra às drogas tem fracassado no mundo todo. O aumento dos esforços policiais

no combate às drogas e as penas mais duras não tem como conseqüência uma diminuição no

número de usuários e dependentes mas sim um aumento dos crimes relacionados às drogas,

tanto crimes contra a vida como nos crimes de corrupção.

Esta não é uma conclusão de vertentes políticas esquerdistas. Milton Friedman,

economista liberal de direita é um dos que se somou à defesa da descriminalização:

“As drogas são uma tragédia para os viciados. Mas criminalizar o seu uso converte essa

tragédia em um desastre para a sociedade, para os usuários e não-usuários. Nossa

Page 4: Guerra Às Drogas

experiência com a proibição das drogas é uma repetição da nossa experiência com a

proibição de bebidas alcoólicas. (…) Se as drogas tivessem sido descriminalizadas há 17

anos, o “crack” nunca teria sido inventado (ele foi inventado porque o alto custo das drogas

ilegais tornou rentável oferecer uma versão mais barata) e hoje haveria muito menos

viciados. As vidas de milhares, talvez centenas de milhares de vítimas inocentes teriam sido

poupadas, e não só nos EUA. Os guetos de nossas grandes cidades não seriam uma terra de

ninguém infestados de drogas e crime. Menos pessoas estariam em prisões e menos prisões

teriam sido construídas”.6

No Brasil, segundo o INFOPEN, em 2005 havia 32.880 presos por tráfico, em 2011, já

com a nova lei, este número disparou para 125.744 presos por tráfico. Com estes números, a

suposição de que um endurecimento das penas diminuiria o tráfico cai por terra.

A repressão não tem influência nenhuma sobre uma parcela da juventude que busca no tráfico

os meios de sobreviver e de realizar os sonhos e o padrão de consumo estimulados

diariamente na televisão: tênis e roupas de marca, celular, computador,etc, etc…. Em certa

medida o tráfico representa a única forma de ascensão social para esta parcela da juventude,

além de lhes oferecer um “grupo social” ao qual pertencer, no qual se sentem superiores e

poderosos, pois infligem medo nos demais.

Mas o destino final destes jovens é a morte precoce ou o encarceramento. O estado

degradante das prisões só faz recrudescer a revolta e a falta de perspectiva daqueles que por lá

passam, e que ao saírem encontram-se ainda mais inimpregáveis do que antes, não tendo outra

opção se não o mundo do crime.

Para o Ministro Barroso:

“O foco do meu argumento não é a questão do usuário, não que considere

desimportante. A preocupação é dupla. Primeira é reduzir o poder que a criminalização dá

ao tráfico e esses barões nas comunidades mais pobres e, especialmente, na minha cidade de

origem, o Rio. A criminalização fomenta o submundo do poder político e econômico a barões

do tráfico que oprimem comunidades porque oferecem remunerações maiores que o Estado e

o setor privado. Meu segundo questionamento diz respeito à conveniência de uma política

pública que manda para a penitenciária jovens de bons antecedentes que saem de lá

graduados na criminalidade.”7

A própria polícia tem consciência de que a guerra ao tráfico está perdida:

“O aumento das nossas ações nas fronteiras forçou os traficantes a adotar novas

táticas. Mas, embora as operações tenham se intensificado, elas não são páreo para a

Page 5: Guerra Às Drogas

demanda da droga, que incentiva a audácia dos traficantes. O que faz com que a polícia fique

enxugando gelo.”8

Salo de Carvalho relata que em março de 2009, em Viena, após uma década da

vigência do plano das nações Unidas “Um mundo livre das Drogas”, os representantes dos

países, agências internacionais de controle e ONGs reuniram-se para fazer um balanço da

implementação do plano. Segundo ele,

“O balanço apresentado possibilita verificar que a estratégia internacional de guerra

às drogas sustentada pela criminalização (a) não logrou os efeitos anunciados (idealistas) de

eliminação do comércio ou diminuição do consumo, (b) provocou a densificação no ciclo de

violência com produção de criminalidade subsidiária (comércio de armas, corrupção de

agentes estatais, conflitos entre grupos p.ex.) e (c) gerou a vitimização de grupos vulneráveis

(custo social da criminalização) , dentre eles consumidores, dependentes e moradores de

áreas de risco.”9

Ainda segundo Salo, o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBC-Crim)

antecipou os resultados que foram publicizados no evento internacional, diagnosticando a

ineficácia do projeto “Um mundo livre das Drogas”. O Instituto afirma ser “irreal, irracional

e irrealizável a meta de consumo zero” e constata que “a política global de combate às

drogas (é) usada como técnica de colonização cultural, cujos danos aos usuários e à

sociedade superam os problemas decorrentes do abuso de entorpecentes – v.g. incremento da

violência, encarceramento em massa e corrupção dos agentes estatais.”10

Salo de Carvalho explica que existe uma falsa imagem de que o direito penal e o

processo criminalizador podem ser instrumentos eficazes no controle ou erradicação do

consumo de drogas e que esta falsa imagem deriva de uma visão equivocada do fenômeno das

drogas. Nesta ótica haveria um vínculo indissolúvel entre consumo e dependência, uma

irreversibilidade desta dependência , uma necessária subcultura criminal formada pelos

usuários e ainda a convicção de que o usuário não tem condições de ter uma vida produtiva.

Os estudos criminológicos, entretanto, tem desconstituído esta imagem, sobretudo

demonstrando ser falsa conexão entre usuários e toxicômanos e ainda entre usuários e

subculturas criminais.11

Luís Eduardo Soares argumenta também que está evidenciado que não há eficácia

prática na proibição. O acesso de consumidores potenciais às drogas continua sendo uma

realidade inabalável, ao longo das últimas décadas, apesar das políticas repressivas,

independentemente do volume de dinheiro investido (ou perdido) nessa guerra e da qualidade

Page 6: Guerra Às Drogas

das polícias mobilizadas. O acesso não é afetado pela proibição. Por isso, flexibilizações

legais não importam em expressiva mudança na demanda.

Contudo, mesmo que as mudanças fossem significativas, esse fato não justificaria a

intervenção do Estado no domínio da liberdade individual ou das escolhas privadas, desde que

elas não violem direitos alheios.

Encarcerando os pobres

O Brasil é o quarto país do mundo em população carcerária, atrás apenas dos EUA,

Rússia e China. Levantamento feito pelo Instituto Avante Brasil, com dados do InfoPen, do

Ministério da Justiça, apontou um crescimento de 508,8% na população carcerária brasileira

no período de 1990 a 2012, registrando 548.003 presos em 2012, uma taxa de 287,31 para

cada 100 mil habitantes, em uma população de 190.732.694 habitantes, de acordo com o

IBGE.

Esse crescimento foi muito maior, por exemplo, que a taxa de crescimento da

população nacional, que não passou de 30%. Ou seja, enquanto a população cresceu 1/3, a

população carcerária mais que sextuplicou. O déficit é de mais de 100 mil vagas.12

E quem são estes presos? No ano de 2012 os pardos e negros eram ampla maioria.

43,7% de presença dos pardos e 17% de negros. Também era maioria os que tem o Ensino

Fundamental Incompleto, 50,5%. Dos demais, 14% eram apenas alfabetizados e 6,1%

analfabetos. Os jovens também eram maioria: Quase 30% tinha entre 18 e 24 anos e 25,3%

entre 25 e 29 anos. A maioria cometeu crimes contra o patrimônio e/ou tráfico de

drogas.13 Podemos sintetizar o perfil do preso assim: homem pardo ou negro, com idade

entre 18 e 29 anos, com ensino fundamental incompleto , preso por roubo ou tráfico.

Para exemplificar o ritmo de agravamento desta realidade podemos apontar que há um

crescimento significativo de mulheres presas por envolvimento no tráfico de drogas. Entre

2007 e 2012 o Estado do Rio Grande do Sul registrou aumento de 66% da população

carcerária feminina. No Brasil, no mesmo período, o crescimento foi de 36%14. Em São

Paulo, 40% dos jovens internados estão envolvidos com o tráfico de drogas, segundo dados da

Fundação Casa15. O Rio Grande do Sul também responde perante a Comissão Interamericana

de Direitos Humanos devido à situação de super lotação e precariedade do Presídio Central.

Neste contexto o comércio ilícito de entorpecentes aparece em segundo lugar de

incidência (atrás dos crimes patrimoniais) atingindo 24,43% da população carcerária em geral,

e no que diz respeito à população carcerária feminina, é a principal causa de encarceramento,

atingido 49,65% das presas16.

Page 7: Guerra Às Drogas

E nos presídios, lugar reservado aos descartáveis, reina a barbárie, como vimos de

forma mais aguda no Maranhão, Estado governado há décadas pela família Sarney, à qual o

PT deu fôlego ao chegar no poder. A sociedade se chocou com a violência em Pedrinhas, mas

é hora de refletir por que se chegou a este extremo. É hora de parar o clamor por

encarceramento e aumentar o clamor por direitos.

Qual a saída?

Em 2013, pela primeira vez, representantes de 34 países das Américas se uniram para

buscar uma alternativa à guerra às drogas. Estes chefes de Estado e de Governo, incluindo os

Estados Unidos, solicitaram à OEA a discussão de alternativas e o resultado foi o relatório “O

problema das drogas nas Américas”, apresentado pelo Secretário-Geral da Organização dos

Estados Americanos (OEA), José Miguel Insulza. Ele apresenta como principais

recomendações a descriminalização do uso das drogas e a regulamentação do consumo da

maconha como um dos cenários a serem analisados. Uma Sessão Especial da Assembléia

Geral das Nações Unidas sobre a questão das drogas vai acontecer em 2016 e este documento

deve servir para alimentar o debate.17

O relatório da Comissão global de Política sobre Drogas, assinado pelos ex-

presidentes do Brasil, Fernando Henrique Cardoso; da Colômbia, César Gavíria, do Chile,

Ricardo Lagos, do México Ernesto Zedillo; pelo ex- presidente do FED Paul Volcker e pela

ex – alta comissária das Nações Unidas para Direitos Humanos, Louise Arbour, traz duas

recomendações: substituir a criminalização do uso de drogas por uma abordagem de saúde

pública e experimentar modelos de regulação legal de drogas ilícitas para reduzir o poder do

crime organizado18.

O Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBC-Crim) apresenta como proposta:

“A não incriminação e regulamentação do cultivo, produção, fabricação e comércio

de drogas deve ser encarada como uma alternativa viável (a ser objeto de exame) na

construção de uma relação pacífica com as drogas. Em relação ao consumo não-

problemático de toda e qualquer droga, por ausência de lesividade e em respeito à regra da

não punibilidade da autolesão, é inarredável a renúncia à intervenção penal.”19

Law Enforcement Against Prohibition (LEAP) é uma organização internacional sem

fins lucrativos de profissionais da justiça criminal(juízes, policiais, advogados, etc..) que

defendem a substituição da proibição por “um sistema rígido de regulação legalizada”20.

Esta organização tem um braço no Brasil – LEAP Brasil – cuja proposta é “a eliminação da

política de proibição das drogas e a introdução de uma política alternativa de controle e

Page 8: Guerra Às Drogas

regulação das drogas, incluindo pertinentes regulamentações impositivas de restrições à

venda e uso de drogas em razão da idade, da mesma forma que existem restrições em razão

da idade ao casamento, assinatura de contratos, álcool, tabaco, direção de veículos e

operação de equipamentos pesados, direito de voto, e outras”21.

A juíza aposentada Maria Lúcia Karam é uma das associadas, cuja experiência na

justiça criminal a fez perceber “os danos e as violações aos direitos humanos promovidas em

nome da guerra às drogas”. Como juíza ela sempre declarou a inconstitucionalidade das leis

que criminalizam o uso pessoal “pois se trata de uma conduta privada que não atinge direitos

de terceiros e que portanto o Estado não pode intervir”. Mas a juíza também concluiu, a

partir de sua experiência que “não basta o direito de cada um colocar no seu corpo o que

bem entender. É na proibição da produção e comércio que os maiores danos estão

presentes.”22

Luís Eduardo Soares defende que a proposta correta não é “liberar” pois não há que se

fazer apologia ou celebração das drogas. Muito menos defender a ausência de limites ou de

regras. Para ele, drogas “liberadas” , no sentido que associa o termo à ideia de anarquia, é o

que temos hoje pois não há nenhum controle de qualidade dos produtos comercializados;

nenhuma informação sobre limites de segurança para o uso de cada substância, ou sobre os

riscos envolvidos; um mercado instável, em que a corrupção policial, a violência e as armas

atravessam o caminho de toda a sociedade, mesmo dos que não têm interesse no consumo.

Legalizar implica disciplinar, regulamentar, negociar circunstâncias, métodos e padrões de

relacionamento. Portanto significa reverter a situação de caos que hoje impera e que traz

prejuízos para todos – menos para os que traficam.A experiência de políticas

descriminalizantes tende a demonstrar que o consumo não sofre alteração significativa. A

elevação gira em torno de 1,5% e fica na média do que se verifica em outros países que não

flexibilizaram sua legislação, no mesmo período.

Experiências internacionais de descriminalização da maconha

Muito embora insuficiente do ponto de vista da desestruturação do tráfico e de todas as

suas consequências, a descriminalização da maconha é um inegável passo adiante na luta

contra o proibicionismo. Marcelo Niel, médico psiquiatra e psicoterapeuta especializado no

tratamento de dependentes químicos e professor do Departamento de Psiquiatria da Santa

Casa de São Paulo pontua que hoje a discussão sobre a descriminalização gira em torno

principalmente da maconha pois ela é considerada pelos organismos internacionais de saúde,

como uma droga “leve”, pois os prejuízos para quem a consome são muito menores quando

Page 9: Guerra Às Drogas

comparados a outras drogas. Ele relata ainda que a maconha pode ser utilizada de forma

bastante eficiente no controle da dependência do crack. Um estudo realizado pelo Programa

de Orientação e Atendimento a Dependentes (Proad) da Universidade Federal de São Paulo

(Unifesp) demonstrou que 68% dos dependentes de crack avaliados conseguiram atingir a

abstinência fumando apenas maconha. Evidentemente que o uso da maconha não é isento de

risco pois é uma substância que pode causar dependência e trazer prejuízos, assim como

outras substâncias lícitas, como o álcool, o café e o cigarro, que causam dependência e muitos

danos à saúde.23

A maior parte das experiências de descriminalização da maconha ainda está

relacionada ao seu uso medicinal. Nos Estados Unidos, cujos governos tem incentivado e

promovido a “guerra às drogas”, atualmente, o uso medicinal da maconha já é legalizado na

Califórnia e em outros 13 Estados americanos. Na Califórnia, a lei estadual foi mudada,

tornando a posse da droga apenas uma infração e não mais uma contravenção. Agora, adultos

flagrados com maconha no Estado vão receber uma multa de US$ 100, mas não vão ter ficha

criminal.24

Mas o conceito de uso medicinal veio ganhando novos contornos ao longo do

processo:

“Essa história começou no maior estado dos Estados Unidos. Há mais de 15 anos, a

Califórnia legalizou o uso medicinal da maconha. No começo, a droga era prescrita para

portadores de HIV e pacientes terminais de câncer. Mas, hoje em dia, a lei foi se

flexibilizando e é muito fácil conseguir uma prescrição médica.

Cientistas já comprovaram a eficácia do THC, o principio ativo da maconha, no tratamento

de náuseas e vômitos provocados pela quimioterapia, para pacientes que sofrem de glaucoma

e de falta de apetite.

Mas os médicos nos Estados Unidos se baseiam em mais de 20 mil pesquisas, de

menor repercussão, para receitar maconha para até 190 enfermidades diferentes. Entre elas,

estresse, insônia, ansiedade, cólicas menstruais, dores nas costas, convulsões e epilepsia.”25

A grande novidade nos EUA aconteceu no estado do Colorado. Em 1 de janeiro o

Colorado se converteu no primeiro estado dos Estados unidos onde é legal cultivar e vender

maconha não só para propósitos medicinais. Washington e Colorado aprovaram a posse e uso

de pequenas quantidades de maconha para propósitos não medicinais em um plebiscito

realizado em novembro de 2012.No Colorado pelo menos 37 lojas em todo o estado já foram

totalmente licenciadas e abriram para vendas para maiores de 21 anos . Em 2014 as lojas de

maconha devem abrir também em Washington.26

Page 10: Guerra Às Drogas

O Uruguai é o primeiro país da América Latina a legalizar o uso, plantio e venda da

maconha. O consumo já não era mais crime há muitos anos e a principal preocupação do

governo foi impedir o narcotráfico de seguir dominando o mercado. O Artigo 4º da lei

aprovada e promulgada pelo presidente Pepe Mujica estabelece o objetivo da legalização:

“A presente lei tem por objeto proteger aos habitantes do país dos riscos que implica

o vínculo com o comércio ilegal e o narcotráfico buscando, mediante a intervenção do Estado

atacar as devastadoras conseqüências sanitárias, sociais e econômicas do uso problemático

de substâncias psicoativas, assim como reduzir a incidência do narcotráfico e o crime

organizado”.27

A produção e a comercialização serão controlados pelo governo, argumentando que o

projeto “regula um mercado já existente”. Alguns integrantes do governo chegam a dizer não

estão legalizando a maconha porque não haverá um livre comércio, com preços regulados

pelo mercado. Será tudo controlado pelo Estado.

Aqui no Brasil estamos iniciando esta discussão. O projeto de Lei 7270/14 do nosso

deputado Jean Wyllys é um ótimo referencial para o debate. Ele foi construído de forma

democrática pelos diversos segmentos que defendem a descriminalização da maconha, que é o

oposto da liberação hoje existente. Descriminalizar significa discutir a questão sem

preconceito, e sem a violência policial permeando o problema. Fazer o debate tendo em vista

que a lógica proibicionista propicia o aumento da exclusão social e da inclusão prisional.

Loic Wacquant, em As Prisões da Miséria28, demonstra como o “mais Estado

policial” tem substituído o “menos Estado econômico e social”, e que este menos é, em última

análise, a causa do aumento da violência generalizada. Se tomarmos a VIDA e a

LIBERDADE como os bens jurídicos mais valiosos para o ser humano, a ideia de que o

direito penal tem como objetivo tutelá-los é apenas uma função declarada, mas nunca

realizada. A retórica humanista apenas dissimula a realidade cruel: um direito penal

autoritário, discriminatório, violento e ineficaz do ponto de vista da defesa da vida e da

liberdade.

1 Wacquant, Loic. As prisões da Miséria. Rio de janeiro: Zahar, 2011. Pág. 22.2 Resumo dos argumentos apresentados por Luís Eduardo Soares em palestra na abertura da

conferência que celebrou os 58 anos da FIOCRUZ, em 10 de setembro de 2012,

intitulada “Contra a drogafobia e o proibicionismo: dissipação, diferença e o curto-

circuito da experiência”.

Page 11: Guerra Às Drogas

3 Guilherme, Vera Maria. Quem tem medo do lobo mau? : a descriminalização do tráfico de

drogas no Brasil: por uma perspectiva abolicionista. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013. Pág.

124 http://www.estadao.com.br/noticias/geral,barroso-defende-debate-da-descriminalizacao-da-

maconha,1110592,0.htm5 Guilherme, Vera Maria. Quem tem medo do lobo mau? : a descriminalização do tráfico de

drogas no Brasil: por uma perspectiva abolicionista. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013. Pág.

906 Tradução livre: “Drugs are a tragedy for addicts. But criminalizing their use converts that

tragedy into a disaster for society, for users and non-users alike. Our experience with the

prohibition of drugs is a replay of our experience with the prohibition of alcoholic beverages.

(…)Had drugs been decriminalized 17 years ago, “crack” would never have been invented (it

was invented because the high cost of illegal drugs made it profitable to provide a cheaper

version) and there would today be far fewer addicts. The lives of thousands, perhaps hundreds

of thousands of innocent victims would have been saved, and not only in the U.S. The ghettos

of our major cities would not be drug-and-crime-infested no-man’s lands. Fewer people

would be in jails, and fewer jails would have been built”

http://fff.org/explore-freedom/article/open-letter-bill-bennett/7 http://g1.globo.com/politica/noticia/2013/12/no-stf-barroso-defende-debate-sobre-

descriminalizacao-da-maconha.html8 Superintendente da Polícia Federal, delegado Sandro Caron, ao jornal Zero Hora em

25/11/2013, pág. 419 Carvalho, Salo de. Estudo criminológico e dogmático da Lei 11.343/06. 6ª Ed.rev.,atua. e

ampl. São Paulo: Saraiva, 2013. Pág. 12110 Ibidem pág. 12511 Carvalho, Salo de. Pág. 237-23812 http://atualidadesdodireito.com.br/iab/mapa-da-violencia-carceraria/evolucao-da-

populacao-carceraria-brasileira-de-1990-a-2012/13 http://atualidadesdodireito.com.br/iab/artigos-do-prof-lfg/perfil-dos-presos-no-brasil-em-

2012/14 Zero Hora, 22/08/2013. Pág. 3615 http://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Direitos-Humanos/-A-internacao-do-menor-

infrator-deve-ocorrer-em-ultimo-caso-/5/30194

Page 12: Guerra Às Drogas

16 Carvalho, Salo de. A Política Criminal de drogas no Brasil. São Paulo: Saraiva, 2013. Pág.

25517 http://vivario.org.br/oea-relatorio-recomenda-descriminalizacao-das-drogas/18 Folha de São Paulo, 22 de maio de 2013, Página Opinião A319 Carvalho, Salo de. Estudo criminológico e dogmático da Lei 11.343/06. 6ª Ed.rev.,atua. e

ampl. São Paulo: Saraiva, 2013. Pág. 12420 Tradução livre: Law Enforcement Against Prohibition is an international 501(c) 3 nonprofit

organization of criminal justice professionals who bear personal witness to the wasteful

futility and harms of our current drug policies. Our experience on the front lines of the “war

on drugs” has led us to call for a repeal of prohibition and its replacement with a tight system

of legalized regulation, which will effectively cripple the violent cartels and street dealers

who control the current illegal market. http://www.leap.cc/21 http://www.leapbrasil.com.br/missao22 http://www.leapbrasil.com.br/23 http://revistavisaojuridica.uol.com.br/advogados-leis-jurisprudencia/86/descriminalizacao-

das-drogas-do-debate-a-guerra-293295-1.asp24 http://www.ibccrim.org.br/noticia/13700-Maconha-nao-e-legalizada-na-California25 http://g1.globo.com/fantastico/noticia/2013/07/industria-legal-da-maconha-nos-eua-tem-

mercado-estimado-em-us-100-bi.html26 http://www.elpais.com.uy/mundo/legalizan-consumo-marihuana-fines-recreativos.html http:

//www.denverpost.com/news/ci_24828236/worlds-first-legal-recreational-marijuana-sales-

begin-colorado?source=email27 http://www.elpais.com.uy/uploads/files/2013/12/10/Ley%20de%20Marihuana.pdf28 WACQUANT, Loic. As Prisões da Miséria. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.