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GUERRA ÀS DROGAS!
Por Cláudia, Amarildo e tantos outros, vamos debater seriamente a política de repressão
às drogas e a criminalização da pobreza.
O porta voz da polícia do Rio de Janeiro, ao tentar desculpar-se pela morte brutal de
Cláudia, assassinada com vários tiros e arrastada pelas ruas, disse que ela era uma mãe de
família, e portanto não havia razão para ela ser tratada assim. Poucos perceberam, mas o
discurso oculto do policial é que se ela fosse de fato uma traficante não haveria problemas em
ser assassinada. Quando Amarildo sumiu, também, a primeira justificativa foi de que ele era
um traficante e, portanto, merecedor de violência e morte.
A violência policial contra os pobres não é uma novidade. Graças a uma filmagem
amadora e às redes sociais, a morte de Cláudia não ficou sendo apenas mais uma nas
estatísticas. O fato de ela ter sido arrastada por um camburão da polícia chocou o Brasil, e
todos ficaram sabendo que Cláudia foi covardemente assassinada pela polícia numa ação de
“guerra às drogas”.
A chamada guerra às drogas é hoje o mais poderoso instrumento de criminalização da
pobreza e de instigação ao racismo. Conforme Loic Wacquant, o sistema penal hipertrofiado
tem “um lugar central no aparato emergente para a gestão da pobreza”1. Este fato pode ser
percebido claramente no caso de Cláudia e Amarildo e também no episódio da repressão ao
tráfico na cracolândia, em São Paulo, onde os dependentes foram brutalmente atacados pela
polícia de Alckmin, em nome da repressão ao tráfico. A guerra às drogas legitima a violência
e as violações aos direitos humanos cometidas pelo próprio Estado contra os pobres,
normalizando as mortes dos traficantes, ou dos supostos traficantes.
Em uma palestra recente, Noam Chomsky chamou a atenção para o fato de que a
guerra às drogas é uma herança do racismo. Os avanços conquistados nos EUA nos anos
50/60 em relação aos direitos civis dos negros sofreram um revés nos anos 70, justamente
devido ao discurso da guerra às drogas que permitiram uma contra ofensiva racista de ataque
aos direitos dos negros e pobres.
Esta guerra às drogas também joga os pobres contra os pobres, pois os jovens sem
perspectivas são seduzidos pelo tráfico, tornando-se soldados numa guerra contra a polícia
(que também é composta por pobres) e contra outros jovens da favela ao lado, na disputa
pelos pontos de tráfico. É o roto contra o esfarrapado.
Está cada vez mais evidente que os efeitos negativos agregados da criminalização e do
proibicionismo são muito superiores às consequências do uso ou do abuso das drogas ilícitas.
Dos 50 mil homicídios dolosos anuais, grande parte relaciona-se ao tráfico de drogas, seja
fruto das disputas entre os traficantes, seja do enfrentamento da polícia com os mesmos. E há,
ainda, os mortos “por engano”, como Cláudia , Amarildo e tantos outros que não tiverem
repercussão na mídia. Sabe-se também que a corrupção policial é alimentada pelas
oportunidades de negócios ilícitos que o comércio clandestino propicia. E ainda há que somar
os custos financeiros e humanos impostos pelo sistema penitenciário, assim como os gastos
com as instituições de segurança e de justiça criminal, cujas energias são em boa parte
consumidas com essa vasta problemática.2
Sobre a Lei 11.343/06
A nossa lei anti drogas (nº 11.343/06) promove a discriminação ao não fornecer
critérios objetivos para diferenciar o traficante do usuário, bem como para caracterizar a
associação para o tráfico. É uma norma penal aberta, isto é, há uma diferenciação nebulosa
entre usuários e traficantes. Seu texto gera uma política criminal sem nenhuma
correspondência entre os resultados desejados e os resultados obtidos, pois fracassa na
promessa de reduzir os índices de criminalidade derivados do tráfico.3
Para o usuário não há pena de prisão, porém a questão é quem terá o “privilégio” de
ser tratado como usuário. Para determinar se a droga destina-se a consumo pessoal “o juiz
atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que
se desenvolveu a ação, às circunstancias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos
antecedentes do agente”(artigo 28 parágrafo 2º).
Aqui, evidentemente, não há um critério objetivo. Se a pessoa flagrada em posse da
droga tiver uma “aparência” de traficante, poderá ser indiciada pela Polícia ou denunciada
pelo MP como traficante. Isto é, se estiver numa favela, ou for visivelmente pobre e/ou negro,
mesmo que esteja com uma quantidade pequena de droga poderá responder por tráfico.
Entretanto, se a sua aparência for de um jovem de classe média, o mais provável – mesmo que
a quantidade de droga não seja tão pequena assim – é que ele seja considerado um usuário. A
mera leitura do parágrafo 2º do artigo 28 é suficiente para evidenciar que esta discriminação
está autorizada pela própria lei.
Foi o próprio Ministro do STF, Luís Roberto Barroso quem afirmou que, ao analisar
os processos que chegam ao Supremo sobre tráfico de drogas, constatou que “boa parte das
pessoas presas são pobres que foram enquadradas como traficantes por portar quantidades
não significantes de maconha. E minha constatação pior é que jovens, negros e pobres
entram nos presídios por possuírem quantidades não tão significativas de maconha e saem de
presídios escolados no crime”, afirmou o ministro4.
O problema não se restringe à diferenciação entre usurário ou o traficante, mas
também ao indivíduo que será considerado em associação com o tráfico ou não. O artigo 35
que caracteriza a associação para o tráfico determina a pena de reclusão de 3 a 10 anos, que se
soma à pena do artigo 33 que caracteriza o tráfico. Assim, se o indivíduo for considerado
membro de uma associação para o tráfico sua pena será aumentada significativamente. Tal
caracterização também não é objetiva.
“É possível, então, suspeitarmos que, por trás de toda a elaboração legislativa da lei
11.343/06 acabou-se criando um mecanismo eficiente de enclausuramento de determinado
grupo de pessoas, demonstrando que, ao contrário do que poderia parecer (uma lei tão
ampla que contemplasse todos os tipos de condutas desviantes e indesejáveis), a lei não é
democrática em sua abrangência, mas reforçadora de estigmas sociais e implementadora de
uma política de ‘faxina social’, já que os indivíduos de classe média ou de classe alta
tenderão a ser identificados nas incursões policiais, aplicando esse mesmo texto legal, como
usuários e, portanto, excluídos das prisões”.5
Os resultados da política proibicionista
A desencarcerização do usuário é um avanço, mas totalmente insuficiente. Além da
discriminação evidente, vemos que o resultado desta política é que o usuário é obrigado a ter
contato com o mundo do crime para adquirir a droga, arriscando-se em regiões muitas vezes
conflagradas pela disputa de território ou correndo risco de ser assassinado por dívidas com
traficantes perigosos. Além disso, muitas vezes a errônea profecia de que “ a maconha é porta
de entrada para outras drogas” acaba se realizando devido à criminalização pois o traficante
tem interesse em vender drogas cada vez mais caras ao usuário.
A guerra às drogas tem fracassado no mundo todo. O aumento dos esforços policiais
no combate às drogas e as penas mais duras não tem como conseqüência uma diminuição no
número de usuários e dependentes mas sim um aumento dos crimes relacionados às drogas,
tanto crimes contra a vida como nos crimes de corrupção.
Esta não é uma conclusão de vertentes políticas esquerdistas. Milton Friedman,
economista liberal de direita é um dos que se somou à defesa da descriminalização:
“As drogas são uma tragédia para os viciados. Mas criminalizar o seu uso converte essa
tragédia em um desastre para a sociedade, para os usuários e não-usuários. Nossa
experiência com a proibição das drogas é uma repetição da nossa experiência com a
proibição de bebidas alcoólicas. (…) Se as drogas tivessem sido descriminalizadas há 17
anos, o “crack” nunca teria sido inventado (ele foi inventado porque o alto custo das drogas
ilegais tornou rentável oferecer uma versão mais barata) e hoje haveria muito menos
viciados. As vidas de milhares, talvez centenas de milhares de vítimas inocentes teriam sido
poupadas, e não só nos EUA. Os guetos de nossas grandes cidades não seriam uma terra de
ninguém infestados de drogas e crime. Menos pessoas estariam em prisões e menos prisões
teriam sido construídas”.6
No Brasil, segundo o INFOPEN, em 2005 havia 32.880 presos por tráfico, em 2011, já
com a nova lei, este número disparou para 125.744 presos por tráfico. Com estes números, a
suposição de que um endurecimento das penas diminuiria o tráfico cai por terra.
A repressão não tem influência nenhuma sobre uma parcela da juventude que busca no tráfico
os meios de sobreviver e de realizar os sonhos e o padrão de consumo estimulados
diariamente na televisão: tênis e roupas de marca, celular, computador,etc, etc…. Em certa
medida o tráfico representa a única forma de ascensão social para esta parcela da juventude,
além de lhes oferecer um “grupo social” ao qual pertencer, no qual se sentem superiores e
poderosos, pois infligem medo nos demais.
Mas o destino final destes jovens é a morte precoce ou o encarceramento. O estado
degradante das prisões só faz recrudescer a revolta e a falta de perspectiva daqueles que por lá
passam, e que ao saírem encontram-se ainda mais inimpregáveis do que antes, não tendo outra
opção se não o mundo do crime.
Para o Ministro Barroso:
“O foco do meu argumento não é a questão do usuário, não que considere
desimportante. A preocupação é dupla. Primeira é reduzir o poder que a criminalização dá
ao tráfico e esses barões nas comunidades mais pobres e, especialmente, na minha cidade de
origem, o Rio. A criminalização fomenta o submundo do poder político e econômico a barões
do tráfico que oprimem comunidades porque oferecem remunerações maiores que o Estado e
o setor privado. Meu segundo questionamento diz respeito à conveniência de uma política
pública que manda para a penitenciária jovens de bons antecedentes que saem de lá
graduados na criminalidade.”7
A própria polícia tem consciência de que a guerra ao tráfico está perdida:
“O aumento das nossas ações nas fronteiras forçou os traficantes a adotar novas
táticas. Mas, embora as operações tenham se intensificado, elas não são páreo para a
demanda da droga, que incentiva a audácia dos traficantes. O que faz com que a polícia fique
enxugando gelo.”8
Salo de Carvalho relata que em março de 2009, em Viena, após uma década da
vigência do plano das nações Unidas “Um mundo livre das Drogas”, os representantes dos
países, agências internacionais de controle e ONGs reuniram-se para fazer um balanço da
implementação do plano. Segundo ele,
“O balanço apresentado possibilita verificar que a estratégia internacional de guerra
às drogas sustentada pela criminalização (a) não logrou os efeitos anunciados (idealistas) de
eliminação do comércio ou diminuição do consumo, (b) provocou a densificação no ciclo de
violência com produção de criminalidade subsidiária (comércio de armas, corrupção de
agentes estatais, conflitos entre grupos p.ex.) e (c) gerou a vitimização de grupos vulneráveis
(custo social da criminalização) , dentre eles consumidores, dependentes e moradores de
áreas de risco.”9
Ainda segundo Salo, o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBC-Crim)
antecipou os resultados que foram publicizados no evento internacional, diagnosticando a
ineficácia do projeto “Um mundo livre das Drogas”. O Instituto afirma ser “irreal, irracional
e irrealizável a meta de consumo zero” e constata que “a política global de combate às
drogas (é) usada como técnica de colonização cultural, cujos danos aos usuários e à
sociedade superam os problemas decorrentes do abuso de entorpecentes – v.g. incremento da
violência, encarceramento em massa e corrupção dos agentes estatais.”10
Salo de Carvalho explica que existe uma falsa imagem de que o direito penal e o
processo criminalizador podem ser instrumentos eficazes no controle ou erradicação do
consumo de drogas e que esta falsa imagem deriva de uma visão equivocada do fenômeno das
drogas. Nesta ótica haveria um vínculo indissolúvel entre consumo e dependência, uma
irreversibilidade desta dependência , uma necessária subcultura criminal formada pelos
usuários e ainda a convicção de que o usuário não tem condições de ter uma vida produtiva.
Os estudos criminológicos, entretanto, tem desconstituído esta imagem, sobretudo
demonstrando ser falsa conexão entre usuários e toxicômanos e ainda entre usuários e
subculturas criminais.11
Luís Eduardo Soares argumenta também que está evidenciado que não há eficácia
prática na proibição. O acesso de consumidores potenciais às drogas continua sendo uma
realidade inabalável, ao longo das últimas décadas, apesar das políticas repressivas,
independentemente do volume de dinheiro investido (ou perdido) nessa guerra e da qualidade
das polícias mobilizadas. O acesso não é afetado pela proibição. Por isso, flexibilizações
legais não importam em expressiva mudança na demanda.
Contudo, mesmo que as mudanças fossem significativas, esse fato não justificaria a
intervenção do Estado no domínio da liberdade individual ou das escolhas privadas, desde que
elas não violem direitos alheios.
Encarcerando os pobres
O Brasil é o quarto país do mundo em população carcerária, atrás apenas dos EUA,
Rússia e China. Levantamento feito pelo Instituto Avante Brasil, com dados do InfoPen, do
Ministério da Justiça, apontou um crescimento de 508,8% na população carcerária brasileira
no período de 1990 a 2012, registrando 548.003 presos em 2012, uma taxa de 287,31 para
cada 100 mil habitantes, em uma população de 190.732.694 habitantes, de acordo com o
IBGE.
Esse crescimento foi muito maior, por exemplo, que a taxa de crescimento da
população nacional, que não passou de 30%. Ou seja, enquanto a população cresceu 1/3, a
população carcerária mais que sextuplicou. O déficit é de mais de 100 mil vagas.12
E quem são estes presos? No ano de 2012 os pardos e negros eram ampla maioria.
43,7% de presença dos pardos e 17% de negros. Também era maioria os que tem o Ensino
Fundamental Incompleto, 50,5%. Dos demais, 14% eram apenas alfabetizados e 6,1%
analfabetos. Os jovens também eram maioria: Quase 30% tinha entre 18 e 24 anos e 25,3%
entre 25 e 29 anos. A maioria cometeu crimes contra o patrimônio e/ou tráfico de
drogas.13 Podemos sintetizar o perfil do preso assim: homem pardo ou negro, com idade
entre 18 e 29 anos, com ensino fundamental incompleto , preso por roubo ou tráfico.
Para exemplificar o ritmo de agravamento desta realidade podemos apontar que há um
crescimento significativo de mulheres presas por envolvimento no tráfico de drogas. Entre
2007 e 2012 o Estado do Rio Grande do Sul registrou aumento de 66% da população
carcerária feminina. No Brasil, no mesmo período, o crescimento foi de 36%14. Em São
Paulo, 40% dos jovens internados estão envolvidos com o tráfico de drogas, segundo dados da
Fundação Casa15. O Rio Grande do Sul também responde perante a Comissão Interamericana
de Direitos Humanos devido à situação de super lotação e precariedade do Presídio Central.
Neste contexto o comércio ilícito de entorpecentes aparece em segundo lugar de
incidência (atrás dos crimes patrimoniais) atingindo 24,43% da população carcerária em geral,
e no que diz respeito à população carcerária feminina, é a principal causa de encarceramento,
atingido 49,65% das presas16.
E nos presídios, lugar reservado aos descartáveis, reina a barbárie, como vimos de
forma mais aguda no Maranhão, Estado governado há décadas pela família Sarney, à qual o
PT deu fôlego ao chegar no poder. A sociedade se chocou com a violência em Pedrinhas, mas
é hora de refletir por que se chegou a este extremo. É hora de parar o clamor por
encarceramento e aumentar o clamor por direitos.
Qual a saída?
Em 2013, pela primeira vez, representantes de 34 países das Américas se uniram para
buscar uma alternativa à guerra às drogas. Estes chefes de Estado e de Governo, incluindo os
Estados Unidos, solicitaram à OEA a discussão de alternativas e o resultado foi o relatório “O
problema das drogas nas Américas”, apresentado pelo Secretário-Geral da Organização dos
Estados Americanos (OEA), José Miguel Insulza. Ele apresenta como principais
recomendações a descriminalização do uso das drogas e a regulamentação do consumo da
maconha como um dos cenários a serem analisados. Uma Sessão Especial da Assembléia
Geral das Nações Unidas sobre a questão das drogas vai acontecer em 2016 e este documento
deve servir para alimentar o debate.17
O relatório da Comissão global de Política sobre Drogas, assinado pelos ex-
presidentes do Brasil, Fernando Henrique Cardoso; da Colômbia, César Gavíria, do Chile,
Ricardo Lagos, do México Ernesto Zedillo; pelo ex- presidente do FED Paul Volcker e pela
ex – alta comissária das Nações Unidas para Direitos Humanos, Louise Arbour, traz duas
recomendações: substituir a criminalização do uso de drogas por uma abordagem de saúde
pública e experimentar modelos de regulação legal de drogas ilícitas para reduzir o poder do
crime organizado18.
O Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBC-Crim) apresenta como proposta:
“A não incriminação e regulamentação do cultivo, produção, fabricação e comércio
de drogas deve ser encarada como uma alternativa viável (a ser objeto de exame) na
construção de uma relação pacífica com as drogas. Em relação ao consumo não-
problemático de toda e qualquer droga, por ausência de lesividade e em respeito à regra da
não punibilidade da autolesão, é inarredável a renúncia à intervenção penal.”19
Law Enforcement Against Prohibition (LEAP) é uma organização internacional sem
fins lucrativos de profissionais da justiça criminal(juízes, policiais, advogados, etc..) que
defendem a substituição da proibição por “um sistema rígido de regulação legalizada”20.
Esta organização tem um braço no Brasil – LEAP Brasil – cuja proposta é “a eliminação da
política de proibição das drogas e a introdução de uma política alternativa de controle e
regulação das drogas, incluindo pertinentes regulamentações impositivas de restrições à
venda e uso de drogas em razão da idade, da mesma forma que existem restrições em razão
da idade ao casamento, assinatura de contratos, álcool, tabaco, direção de veículos e
operação de equipamentos pesados, direito de voto, e outras”21.
A juíza aposentada Maria Lúcia Karam é uma das associadas, cuja experiência na
justiça criminal a fez perceber “os danos e as violações aos direitos humanos promovidas em
nome da guerra às drogas”. Como juíza ela sempre declarou a inconstitucionalidade das leis
que criminalizam o uso pessoal “pois se trata de uma conduta privada que não atinge direitos
de terceiros e que portanto o Estado não pode intervir”. Mas a juíza também concluiu, a
partir de sua experiência que “não basta o direito de cada um colocar no seu corpo o que
bem entender. É na proibição da produção e comércio que os maiores danos estão
presentes.”22
Luís Eduardo Soares defende que a proposta correta não é “liberar” pois não há que se
fazer apologia ou celebração das drogas. Muito menos defender a ausência de limites ou de
regras. Para ele, drogas “liberadas” , no sentido que associa o termo à ideia de anarquia, é o
que temos hoje pois não há nenhum controle de qualidade dos produtos comercializados;
nenhuma informação sobre limites de segurança para o uso de cada substância, ou sobre os
riscos envolvidos; um mercado instável, em que a corrupção policial, a violência e as armas
atravessam o caminho de toda a sociedade, mesmo dos que não têm interesse no consumo.
Legalizar implica disciplinar, regulamentar, negociar circunstâncias, métodos e padrões de
relacionamento. Portanto significa reverter a situação de caos que hoje impera e que traz
prejuízos para todos – menos para os que traficam.A experiência de políticas
descriminalizantes tende a demonstrar que o consumo não sofre alteração significativa. A
elevação gira em torno de 1,5% e fica na média do que se verifica em outros países que não
flexibilizaram sua legislação, no mesmo período.
Experiências internacionais de descriminalização da maconha
Muito embora insuficiente do ponto de vista da desestruturação do tráfico e de todas as
suas consequências, a descriminalização da maconha é um inegável passo adiante na luta
contra o proibicionismo. Marcelo Niel, médico psiquiatra e psicoterapeuta especializado no
tratamento de dependentes químicos e professor do Departamento de Psiquiatria da Santa
Casa de São Paulo pontua que hoje a discussão sobre a descriminalização gira em torno
principalmente da maconha pois ela é considerada pelos organismos internacionais de saúde,
como uma droga “leve”, pois os prejuízos para quem a consome são muito menores quando
comparados a outras drogas. Ele relata ainda que a maconha pode ser utilizada de forma
bastante eficiente no controle da dependência do crack. Um estudo realizado pelo Programa
de Orientação e Atendimento a Dependentes (Proad) da Universidade Federal de São Paulo
(Unifesp) demonstrou que 68% dos dependentes de crack avaliados conseguiram atingir a
abstinência fumando apenas maconha. Evidentemente que o uso da maconha não é isento de
risco pois é uma substância que pode causar dependência e trazer prejuízos, assim como
outras substâncias lícitas, como o álcool, o café e o cigarro, que causam dependência e muitos
danos à saúde.23
A maior parte das experiências de descriminalização da maconha ainda está
relacionada ao seu uso medicinal. Nos Estados Unidos, cujos governos tem incentivado e
promovido a “guerra às drogas”, atualmente, o uso medicinal da maconha já é legalizado na
Califórnia e em outros 13 Estados americanos. Na Califórnia, a lei estadual foi mudada,
tornando a posse da droga apenas uma infração e não mais uma contravenção. Agora, adultos
flagrados com maconha no Estado vão receber uma multa de US$ 100, mas não vão ter ficha
criminal.24
Mas o conceito de uso medicinal veio ganhando novos contornos ao longo do
processo:
“Essa história começou no maior estado dos Estados Unidos. Há mais de 15 anos, a
Califórnia legalizou o uso medicinal da maconha. No começo, a droga era prescrita para
portadores de HIV e pacientes terminais de câncer. Mas, hoje em dia, a lei foi se
flexibilizando e é muito fácil conseguir uma prescrição médica.
Cientistas já comprovaram a eficácia do THC, o principio ativo da maconha, no tratamento
de náuseas e vômitos provocados pela quimioterapia, para pacientes que sofrem de glaucoma
e de falta de apetite.
Mas os médicos nos Estados Unidos se baseiam em mais de 20 mil pesquisas, de
menor repercussão, para receitar maconha para até 190 enfermidades diferentes. Entre elas,
estresse, insônia, ansiedade, cólicas menstruais, dores nas costas, convulsões e epilepsia.”25
A grande novidade nos EUA aconteceu no estado do Colorado. Em 1 de janeiro o
Colorado se converteu no primeiro estado dos Estados unidos onde é legal cultivar e vender
maconha não só para propósitos medicinais. Washington e Colorado aprovaram a posse e uso
de pequenas quantidades de maconha para propósitos não medicinais em um plebiscito
realizado em novembro de 2012.No Colorado pelo menos 37 lojas em todo o estado já foram
totalmente licenciadas e abriram para vendas para maiores de 21 anos . Em 2014 as lojas de
maconha devem abrir também em Washington.26
O Uruguai é o primeiro país da América Latina a legalizar o uso, plantio e venda da
maconha. O consumo já não era mais crime há muitos anos e a principal preocupação do
governo foi impedir o narcotráfico de seguir dominando o mercado. O Artigo 4º da lei
aprovada e promulgada pelo presidente Pepe Mujica estabelece o objetivo da legalização:
“A presente lei tem por objeto proteger aos habitantes do país dos riscos que implica
o vínculo com o comércio ilegal e o narcotráfico buscando, mediante a intervenção do Estado
atacar as devastadoras conseqüências sanitárias, sociais e econômicas do uso problemático
de substâncias psicoativas, assim como reduzir a incidência do narcotráfico e o crime
organizado”.27
A produção e a comercialização serão controlados pelo governo, argumentando que o
projeto “regula um mercado já existente”. Alguns integrantes do governo chegam a dizer não
estão legalizando a maconha porque não haverá um livre comércio, com preços regulados
pelo mercado. Será tudo controlado pelo Estado.
Aqui no Brasil estamos iniciando esta discussão. O projeto de Lei 7270/14 do nosso
deputado Jean Wyllys é um ótimo referencial para o debate. Ele foi construído de forma
democrática pelos diversos segmentos que defendem a descriminalização da maconha, que é o
oposto da liberação hoje existente. Descriminalizar significa discutir a questão sem
preconceito, e sem a violência policial permeando o problema. Fazer o debate tendo em vista
que a lógica proibicionista propicia o aumento da exclusão social e da inclusão prisional.
Loic Wacquant, em As Prisões da Miséria28, demonstra como o “mais Estado
policial” tem substituído o “menos Estado econômico e social”, e que este menos é, em última
análise, a causa do aumento da violência generalizada. Se tomarmos a VIDA e a
LIBERDADE como os bens jurídicos mais valiosos para o ser humano, a ideia de que o
direito penal tem como objetivo tutelá-los é apenas uma função declarada, mas nunca
realizada. A retórica humanista apenas dissimula a realidade cruel: um direito penal
autoritário, discriminatório, violento e ineficaz do ponto de vista da defesa da vida e da
liberdade.
1 Wacquant, Loic. As prisões da Miséria. Rio de janeiro: Zahar, 2011. Pág. 22.2 Resumo dos argumentos apresentados por Luís Eduardo Soares em palestra na abertura da
conferência que celebrou os 58 anos da FIOCRUZ, em 10 de setembro de 2012,
intitulada “Contra a drogafobia e o proibicionismo: dissipação, diferença e o curto-
circuito da experiência”.
3 Guilherme, Vera Maria. Quem tem medo do lobo mau? : a descriminalização do tráfico de
drogas no Brasil: por uma perspectiva abolicionista. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013. Pág.
124 http://www.estadao.com.br/noticias/geral,barroso-defende-debate-da-descriminalizacao-da-
maconha,1110592,0.htm5 Guilherme, Vera Maria. Quem tem medo do lobo mau? : a descriminalização do tráfico de
drogas no Brasil: por uma perspectiva abolicionista. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013. Pág.
906 Tradução livre: “Drugs are a tragedy for addicts. But criminalizing their use converts that
tragedy into a disaster for society, for users and non-users alike. Our experience with the
prohibition of drugs is a replay of our experience with the prohibition of alcoholic beverages.
(…)Had drugs been decriminalized 17 years ago, “crack” would never have been invented (it
was invented because the high cost of illegal drugs made it profitable to provide a cheaper
version) and there would today be far fewer addicts. The lives of thousands, perhaps hundreds
of thousands of innocent victims would have been saved, and not only in the U.S. The ghettos
of our major cities would not be drug-and-crime-infested no-man’s lands. Fewer people
would be in jails, and fewer jails would have been built”
http://fff.org/explore-freedom/article/open-letter-bill-bennett/7 http://g1.globo.com/politica/noticia/2013/12/no-stf-barroso-defende-debate-sobre-
descriminalizacao-da-maconha.html8 Superintendente da Polícia Federal, delegado Sandro Caron, ao jornal Zero Hora em
25/11/2013, pág. 419 Carvalho, Salo de. Estudo criminológico e dogmático da Lei 11.343/06. 6ª Ed.rev.,atua. e
ampl. São Paulo: Saraiva, 2013. Pág. 12110 Ibidem pág. 12511 Carvalho, Salo de. Pág. 237-23812 http://atualidadesdodireito.com.br/iab/mapa-da-violencia-carceraria/evolucao-da-
populacao-carceraria-brasileira-de-1990-a-2012/13 http://atualidadesdodireito.com.br/iab/artigos-do-prof-lfg/perfil-dos-presos-no-brasil-em-
2012/14 Zero Hora, 22/08/2013. Pág. 3615 http://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Direitos-Humanos/-A-internacao-do-menor-
infrator-deve-ocorrer-em-ultimo-caso-/5/30194
16 Carvalho, Salo de. A Política Criminal de drogas no Brasil. São Paulo: Saraiva, 2013. Pág.
25517 http://vivario.org.br/oea-relatorio-recomenda-descriminalizacao-das-drogas/18 Folha de São Paulo, 22 de maio de 2013, Página Opinião A319 Carvalho, Salo de. Estudo criminológico e dogmático da Lei 11.343/06. 6ª Ed.rev.,atua. e
ampl. São Paulo: Saraiva, 2013. Pág. 12420 Tradução livre: Law Enforcement Against Prohibition is an international 501(c) 3 nonprofit
organization of criminal justice professionals who bear personal witness to the wasteful
futility and harms of our current drug policies. Our experience on the front lines of the “war
on drugs” has led us to call for a repeal of prohibition and its replacement with a tight system
of legalized regulation, which will effectively cripple the violent cartels and street dealers
who control the current illegal market. http://www.leap.cc/21 http://www.leapbrasil.com.br/missao22 http://www.leapbrasil.com.br/23 http://revistavisaojuridica.uol.com.br/advogados-leis-jurisprudencia/86/descriminalizacao-
das-drogas-do-debate-a-guerra-293295-1.asp24 http://www.ibccrim.org.br/noticia/13700-Maconha-nao-e-legalizada-na-California25 http://g1.globo.com/fantastico/noticia/2013/07/industria-legal-da-maconha-nos-eua-tem-
mercado-estimado-em-us-100-bi.html26 http://www.elpais.com.uy/mundo/legalizan-consumo-marihuana-fines-recreativos.html http:
//www.denverpost.com/news/ci_24828236/worlds-first-legal-recreational-marijuana-sales-
begin-colorado?source=email27 http://www.elpais.com.uy/uploads/files/2013/12/10/Ley%20de%20Marihuana.pdf28 WACQUANT, Loic. As Prisões da Miséria. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.