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Guerreiras do Terceiro Mundo

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Fabricio Mota

GUERREIR@S DO TERCEIRO MUNDO

IDENTIDADES NEGRAS NA MÚSICA REGGAE DA BAHIA

1ª ediçãoPinaúna Editora

Salvador 2012

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© 2012 by Fabricio Mota

Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida, sejam quais forem os meios empregados, sem a expressa autorização.

EditorGustavo Falcón

Editora-assistente e CuradoraBárbara Falcón

Capa, Projeto Gráfico e EditoraçãoLucas Kalil

IlustraçãoLuiz Fernando Pereira da Silva

Produção GráficaCarolina Dantas

RevisãoClara Vieira

Ficha catalográfica elaborada por Solange Mattos CRB5/758

M917 Mota, Fabricio.

Guerreir@s do terceiro mundo: identidades negras na música reggae / Fabricio

Mota. - Salvador: Pinaúna, 2012.

192 p. - (Sons da Bahia, v. 2).

ISBN 978-85-65792-02-8

1. Reggae – Bahia. 2. Negros – Bahia - Identidade racial. 3. Música e sociedade –

Bahia. I. Título. II. Série.

CDD – 781.646098142 – 20.ed.

O site oficial do projeto disponibiliza conteúdo inédito e versões digitais dos livros.www.sonsdabahia.wordpress.com

Direitos desta edição reservados à Pinaúna Ideias Integradas Ltda., para distri-buição gratuita.

(71) 3624-1048 l www.pinaunaeditora.com.br

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Music is the weapon of the future.

Fela Kuti, anos 70

Luto apenas com a música.

Bob Marley, anos 80

Surge mais um guerreiro do Terceiro Mundo.

Levantando suas armas, com seu grito de alerta...

Edson Gomes, anos 90

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Dedico este livro,

à vida, in memorian, de Jorge França (Camelo), Lino de Almeida, Rick Husband, Rogério Fátima dos Santos, Pascoal Ferreira Mota (meu tio), Clóvis Rabelo e Edmundo Franco: guerreiros do Terceiro Mundo!

ao meu filho João Lucas de oito anos que, assim como eu, também está aprendendo a escrever... sobre as coisas da vida.

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AGRADECIMENTOS

Nunca se vence uma guerra lutando sozinho.

Raul Seixas

O exercício de agradecer é tão gratificante quanto impreciso, sobretu-do quando se tem uma lista imensa pela frente. Por isso, antes de tudo, agradeço aos meus guias que, movendo harmoniosamente o universo, me puseram aqui.

Reconheço que a publicação deste livro a um público agora maior é, mais que um esforço acadêmico inacabado, um resultado da luta de algumas gerações pelo acesso à dignidade pela via da educação. Nesse sentido, agradeço imensamente aos familiares numerosos (tios, tias, pri-mos, primas e anexos), mestres, amigos e amigas pelo incentivo, apoio e orações que se somaram ao longo dessa jornada. Em especial a Francis-co e Dionéia – literalmente “pai e mãe, ouro de mina” – a quem devo o sopro de vida. Tive, graças a vocês, a oportunidade de ver a escola como estrada para a dignidade e espaço de transformação e autoconhecimen-to. Estendo meus cumprimentos ao meu irmão Leandro e sua família, por toda força e exemplo de perseverança e luta por dias melhores. A gratidão e amor que guardo por vocês jamais caberão nas dimensões da palavra escrita!

Não há como não registrar ainda minha gratidão ao meu filho e ami-go, João Lucas, que nunca me negou seu terno abraço, ainda que minha falta pudesse lhe sugerir motivo. É por ele que estou aqui também!

À Tatiana Farias agradeço pelas doses intensas de afeto, amor, cari-nho e coragem nessa caminhada. Seu apoio foi ainda fundamental des-de a digitalização dos acervos de jornais em Feira de Santana, ao longo de sua pesquisa de mestrado, às leituras do texto em suas primeiras, intermediárias e últimas versões. Meus agradecimentos devem abraçar ainda outro segmento da família em Feira de Santana – Sr. Iélio, Srª. Ani-

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ta e Andréia – a quem devo enorme gratidão por todo apoio e incentivo fundamentais à concretização deste e de outros sonhos. Fico muito feliz de ter vocês em meu destino.

Aos amigos desde os tempos da república universitária: Samuel Mar-ques (hoje compadre), Jefferson Sobrinho, Igor Santos, Igor Rocha (Go-dzigor) in memorian, Felipe Costa, Nilton Araújo e Rogério Macêdo. Sem dúvidas, os cinco anos de fraterna e (in)tensa convivência e as doses diárias de Led Zeppelin, Jetrho Tull, Bob Marley & The Wailers, Novos Baianos, Gilberto Gil e tantos outros, me ajudaram a amadurecer algu-mas impressões sobre o universo dos sons.

À turma da UEFS, dos bons tempos da militância estudantil, hoje co-legas de profissão e sonhos, meu sincero abraço de agradecimento pelas noites (bem) perdidas! Pessoas como Hugo Damasceno, Fabrício (Reis), Luciana e Vladimir Senna, Robério Souza, Ana Clara Brito, Reginilde Santa Bárbara, Paloma Vanderlei, Neriane Pinto, Igor José, Íris Verena, Edivânia Alexandre e toda uma lista numerosa da qual prefiro logo me esquivar para evitar injustiças.

Entre os docentes da UEFS, minha sincera gratidão pelas aulas de cidadania. Posso citar entre estes/as: Elizete da Silva, Rogério Fátima (de quem sentirei saudades eternas!), João Rocha, André Uzêda, Acácia Batista, Eurelino Coelho, Elói Barreto, Maria Aparecida Sanches, Marco Barzano e tant@s outr@s... Para o amigo-mestre Antonio Godi, que me deu a honra de escrever o prefácio deste livro, agradecer é ainda pouco diante de todo aprendizado que a sua convivência me trouxe (desde os tempos da graduação, diga-se). Espero que este estudo possa representar mais uma parcela de minha gratidão e reconhecimento do seu trabalho.

Muitos outros são os guerreiros e guerreiras da música corresponsá-veis pela concretização deste livro: Clóvis Rabelo (in memoriam), Arygil, Jorge Papapá, Dionorina, Geraldo Cristal, Jorge Dubman, Inês Regina, Everson Coutinho, Iuri Sá, Átila Santtana, Sine Calmon, Marco Oliveira, Jorge de Angélica, Gilsam, Marcos Rubens, Osvaldo Filho, Kamaphew Tawá, Zavan Liv, Ras Sidney Rocha e professor Raimundo. Especialmen-te ao Sr. Carmelito Carvalho, exímio conhecedor da música reggae no

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mundo, agradeço por toda a atenção e pelas boas conversas sobre nosso tema de maior interesse.

Agradeço ainda a tod@s companheir@s da Associação Beneficente Revolution Reggae e Centro de Promoção da Educação, Cultura e Cida-dania (CEPECC) de Conceição do Coité-BA pelo aprendizado de novos jeitos de caminhar. Se houver méritos neste trabalho, eles também são devidos a vocês, pela inspiração! Estamos firmes nessa luta! À Valquíria Lima, cuja presença sempre me trouxe as mais positivas vibrações, um obrigado também especial. O convite para o projeto Reggae em Ação (2005), suas leituras, revisões e sugestões ao texto final, além das trocas musicais, todas foram também de enorme importância ao resultado que se apresenta.

Ao professor “Salloma” Salomão sou grato pela luz no início do túnel... Parte da inspiração para chegar até aqui devo ao seu precioso trabalho de pesquisa que, sem dúvidas, marcou decisivamente meus in-teresses pelas “memórias sonoras” negras nesse país. Além dele, esten-do meus cumprimentos ao professor Carlos Benedito Silva (Carlão) da UFMA e todos do Centro de Cultura Negra do Maranhão. Sinto-me feliz em contribuir, de alguma maneira, com o conjunto de estudos sobre mú-sica negra na diáspora cujo professor foi um dos pioneiros nesse país.

À professora-orientadora Angela Lühning sou profundamente grato, para além dos muitos conhecimentos novos, pelo enriquecedor, compre-ensivo e paciente acompanhamento acadêmico. Sou ainda imensamente agradecido ao corpo de funcionários e docentes do Programa de Pós-Graduação em Estudos Étnicos e Africanos (Pós-Afro) da UFBA pela convivência nas aulas e escadarias do Centro de Estudos Afro-Orientais (CEAO) com pessoas como Maria do Rosário, Cláudio Pereira, Florentina Souza e Livio Sansone (co-orientador), que renderam parte considerável das inquietações que se enunciam neste estudo.

Aos/às colegas do Pós-Afro, meu fraterno agradecimento. Foi um pra-zer enorme compartilhar incertezas, angústias, anseios, outras experiên-cias e projetos de vida com Ana Rita, Juscélio, Carlos Fernandes, Carlos Ailton, Sueli Conceição, Genivaldo, Pietro, Florismar, Tatiana Reis, Ecyla,

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Fábio, Valdélio, Rose, Bel (o Josivaldo), Marlon Marcos, Edmar, Liliam Aquino, Artemisa Odila, Nadja, Fabiana além de Sueli Borges e Bárbara Falcón – estas que agora dividem comigo a ansiosa missão de publicar os primeiros volumes da série Sons da Bahia.

Devo ainda incluir, entre as pessoas abraçadas por estas palavras, meus/minhas colegas do IFBA, Campus Simões Filho, a quem agradeço pela promissora amizade e pelas vibrações positivas, ao lado do corpo estudantil desta instituição, com quem tenho aprendido cotidianamente novos jeitos de aprender, de resistir e de existir. Vocês nem imaginam o quanto são corresponsáveis pela minha formação também!

Ao nobre amigo Matheus de Jesus, minha gratidão pela disposição e mediação com as muitas falas do universo. Axé meu caro!

Sou ainda muito grato aos/às companheiros(as) de música espalha-dos pelo mundo e que, ao longo desta mais de uma década, vêm com-partilhando, através da arte dos sons, algumas utopias incendiárias!

Por fim, agradeço a CAPES/CNPQ pelo incentivo através da bolsa de estudos que, literalmente, alimentou este pesquisador e a realização de sua obra.

E pra você que não esqueci, “aquele abraço”...

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PREFÁCIO

UM MOTE NA FÁBRICA DA HISTÓRIA MUSICAL Escrever um prefácio para a obra de um companheiro das trincheiras cul-

turais desta contemporaneidade conflituosa e misteriosa é um desafio. Decidi optar pela crônica de nosso tempo, que motivou a pesquisa acadêmica e a canção ardente e analista do autor. Uma primeira crônica é passional, envol-vendo personalidades de nosso tempo ligadas à história factual, popular e política cultural das brumas de tempos a serem desvendados e revelados. Uma segunda pegada volta-se para um olhar acadêmico e teórico, que vê a cultura como um ingrediente humano determinante no alto capitalismo. É nesta linha tênue e importante que o autor nos provoca, colocando na mesa reflexões sobre conflitos sociais e históricos diferenciados. Apontando a música rasta-reggae como um novo “movimento social”, político e comportamental.

É fato que, com a morte de Bob Marley (11/05/1981), nascimentos tantos estariam a serem deflagrados e desvelados. Viaja o astro e fica sua obra bri-lhando para sempre a nos iluminar. O insólito decifra-se na primeira capital baiana e brasileira quando o astro recebe cidadania e batismo através da ins-tituição do Dia do Reggae em Salvador. O registro de nascimento desse novo soteropolitano consta no decreto municipal de número 5. 817/2000. Desde então, Marley renasce em Salvador como cidadão soteropolitano e herói polí-tico cultural de nossa diversidade. A questão é como que tudo se configura no nosso aqui e história. Trata-se do “I Tributo a Bob Marley”, ocorrido em maio de 1982, um ano depois da morte em vida eterna do astro.

Esta potencialidade baiana de partilhar a vida tendo em conta as diferen-ças e diversidades culturais reconheceria a vocação brasileira de mostrar para o mundo a necessidade da relação fraternal e humana. E aí, a morte de um cometa musical, em 1981, glorifica um sentido novo de pertencimento espa-cial e cultural, denominado Diáspora Africana. Blocos afro baianos, artistas e intelectuais pertencentes e contaminados por esse contexto estético musical criariam o “I Tributo a Bob Marley”. A Jamaica passaria a ser e estar também aqui, como estaremos sempre para além de nós e das fronteiras babilônicas. Esse é o refrão da obra em questão e rima.

Foi assim, em 1982, quando importantes militantes de representações afropopulares, a exemplo de Raimundo Bujão e Gilberto Leal, entre tantos, negociaram com intelectuais e artistas e criaram a matriz do “I Tributo a Bob Marley”. Sentados no chão em uma das salas da casa do historiador João J. Reis, a militância afrocultural, contando com a participação e anuência do

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Ator. Antropólogo. Professor da Universidade Estadual de Feira de Santana.

sociólogo Juca Ferreira (hoje ex-Ministro da Cultura), Antonio Godi (professor, ator e antropólogo) e intelectuais outros. Hoje, 30 anos depois, é preciso re-memorar e ofertar para as novas gerações essas conquistas. Nessas trincheiras históricas, foi construído esse evento com algumas ações que efetivaram a pu-blicação de um livreto com as primeiras versões para o português das canções de Marley, com traduções de João Reis e Antonio Risério e capa desenhada em nanquim por Antonio Godi. Ações determinantes marcadas por instala-ções estético-musicais no Centro Histórico de Salvador, a culminar num show dos representantes do reggae basilar do nosso Recôncavo. Foi assim que tudo começou a se cristalizar e ganhar formas, e histórias de lutas culturais e sociais inusitadas no cenário de Salvador e do Recôncavo baiano. A obra aqui apre-sentada, penso, homenageia e propaga essas conquistas das novas trincheiras culturais e políticas.

Estudos insipientes apontam a música como elemento de identidade e agonia sociocultural. Teorias clássicas, a exemplo de M. Weber, T. Adorno e outros tantos a avançar na alta modernidade, têm apontado para o estudo da música nas tramas misteriosas de nossas sociabilidades. A música, com suas asas elétricas num contexto inesperado, destronaria sentidos de tempo e espa-ço configurando um sentido inesperado de “diáspora”. Sentidos e conheci-mentos sociais do viver e devir a serem reconfigurados e estudados. A canção de Fabricio Mota tece fios de nós num tempo novo gritando pela velha e sa-grada subjetividade de nós. Novas lutas de “movimentos sociais” movidas por ritmos a serem compreendidos e desvelados. O mote do autor “tá na pegada” de uma Bahia que guarda uma tradição tardia e recente de proporcionar o difícil encontro da diversidade humana através da música.

Mas que também construiu uma epistemologia contemporânea tendo como protagonistas estudiosos da estirpe de Milton Santos e uma antropologia vigorosa refletindo sobre o difícil encontro histórico dos diferentes. O estudo de Mota é desdobramento de uma academia baiana e brasileira que refletiu sobre as culturas e suas agonias. As agonias do autor escutam os conflitos contemporâneos de constituições de identidade com base em memórias e so-noridades contaminantes. Esse LP de nós reverbera-se no aqui a reivindicar a importância de uma geografia, sociologia e antropologia na Bahia, que grita por revelar-se em música reggae. É um novo disco antropológico no ritmo dos novos autores, dos protagonistas da “Escola de Estudos Culturais” que têm, como compositores, Stuart Hall, Paul Gilroy e tantos outros. Tratam-se de fitas coloridas mescladas e musicadas pronta a serem rediscutidas...

Antonio Jorge Victor dos Santos Godi

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SUMÁRIO

LADO A

APRESENTAÇÃO, 15

FAIXA 1: “SURGE MAIS UM GUERREIRO DO TERCEIRO MUNDO”, 35

UMA QUESTÃO DE IDENTIDADE: A MÚSICA REMODELANDO A PERTENÇA, 45

VIRANDO JAMAICA, 51

A BABILÔNIA DO SERTÃO E SUAS CHAMAS, 65

NAS MARGENS DO PARAGUAÇU, 69

FAIXA 2: “ÁFRICA A LA JAMAICA, MÚSICA DA RAÇA”, 83

OS GUERRILHEIROS DA JAMAICA VÃO ATACAR, 90

A ÁFRICA NO ATLÂNTICO NEGRO: OUTROS DIÁLOGOS, 103

DE BEDUÍNOS A MALÊS, 113

LADO B

FAIXA 3: OS ANOS 90 E O VERÃO DO REGGAE BAIANO, 127

1988: O ANO QUE NÃO TERMINOU, 130

QUEIMANDO TUDO COM A FOLHA DO REGGAE, 147

PORRADA DE POLÍCIA, 150

FAIXA 4 (INTERLUDE): DE JESUS A JAH, 165

FAIXA 5 (DUB VERSION): QUEM NÃO GOSTA DE REGGAE, BOM SUJEITO NÃO É, 173

REFERÊNCIAS, 183

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APRESENTAÇÃO

Sonhei e fui... Mar de cristal, Sol água e sal, Meu ancestral. E eu tão singular me vi plural

Trecho da canção Sonhei, de Lenine, Bráulio Tavares e Ivan Santos

A história e prática da música negra apontam para outras possibilidades e geram outros modelos plausíveis [...], utilizo a analogia da música por-que você pode viajar pelo mundo inteiro e ela ainda é negra.

Tony Morrison, citada por Paul Gilroy, 2001

O presente livro é uma impressão sobre as andanças da música. Mais es-pecialmente, sobre uma das trilhas sonoras mais expressivas do século XX e sua reverberação no universo sociocultural baiano: o reggae. Urdido nas favelas urbanas de Kingston (capital da Jamaica) nos anos 60, este foi um dos principais meios de denúncia e combate contra a exclusão social e a invisibi-lidade dos negros, que se mundializou reassumindo novas leituras sonoras e referenciais de identidade. Visto aqui como uma contracultura musical, foi responsável por conectar diferentes grupos “nacionais” que engendraram, de maneiras singulares, uma visão de mundo multicentrada do pertencimento negro, representando um exemplo genuíno de “estilo étnico de status global” (Cf. Gilroy, 2001).

Falar em reggae nos remete a pensar no contexto social onde esse gênero musical se constituiu primeiramente. O país atualmente chamado Jamaica é uma das maiores ilhas do Caribe que faziam parte da engrenagem do mundo colonial no Atlântico a partir do século XIV. Antiga colônia espanhola, mas com forte presença de civilizações indígenas, particularmente os Taino (cha-mados pejorativamente de Arawakes – comedores de carne – pelos coloniza-dores), esse território foi aos poucos sendo violentamente ocupado e teve estas

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populações nativas progressivamente dizimadas. A partir de meados do século XVII, inicia-se um período de dominação colonial inglesa que se estenderia até 1962. Estes últimos fortaleceram o regime escravista vigente, incrementando-o com a plantation açucareira, o que gerou intensos conflitos sociais ao longo de toda a sua história, inclusive com a formação de comunidades de refugiados da escravidão conhecidas como Cimaroons (ou Cimarrones) que, analoga-mente, se assemelham às formações de quilombos do Brasil1.

Já em meados dos anos 60, a sociedade jamaicana passava pelo pro-cesso de reestruturação nacional e vivenciava grandes mudanças em seu cenário sociocultural que podem ser resumidas em dois planos paralela-mente. Primeiro, a presença das bigbands de jazz e do frenético ska, res-ponsáveis pela formação de grandes plateias de jovens desde os anos 50, iam aos poucos dando lugar a uma formação mais compacta (no time de músicos) que trazia uma sonoridade mais ralentada e um estilo de tocar mais centrado nos contrapontos de guitarra e piano, acompanhados de mântricas linhas de baixo e um estilo pulsante de tocar bateria: o rockste-ady, representado por artistas como Ernest Ranglin, Lynn Taiti & The Jets, Sly e Robbie, Judy Mowatt Rita Marley e outras/os, que proporcionaram um momento de efervescência criativa na história da música jamaicana2. Segundo, de outro lado, o contexto de extrema pobreza e exclusão im-pulsionou a popularização da música nas classes ainda menos abastadas e subjugadas à violência. Num misto de engenhosidade técnica e genia-lidade musical, os resultados das gravações de estúdio eram aos poucos levados ao grande público através de sistemas de som ambulantes que operavam como rádios tocadas a céu aberto. Os sound systems eram então um novo espaço de fruição musical, onde o engenheiro de som interagia com as gravações tocadas ao vivo, acrescentando-lhes efeitos sonoros ou mesmo alterando a ordem dos instrumentos, ao passo que os cantores (toasters) criavam um diálogo com o público improvisando letras e recriando as canções a cada aparição. Este fenômeno é a porta de entrada para uma das grandes revoluções musicais legadas pela mú-sica jamaicana ao mundo: o dub3. Em suma, a forte influência da música jamaicana, redefiniu o panorama cultural de quase todos os continentes sob um signo sonoro que conhecemos como reggae e sobre o qual trago algumas reflexões.

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Na Bahia das últimas décadas do século XX, este gênero musical compôs a cena plural dos movimentos políticos e culturais, em consonância com o posicionamento das militâncias negras. Tornou-se então imprescindível para a compreensão da ressonância nacional e mundial da musicalidade4 reggae – uma das mais emblemáticas expressões da música negra na diáspora – inves-tigar sua existência idiossincrática na Bahia. Convergindo para esta direção, analiso a presença estético-musical e sociocultural do gênero, e sua interface com os processos de legitimação de uma cultura negra, a partir de novos refe-renciais de identidade.

Por isso, advirto, que as linhas que seguirão são um esforço acadêmico de um certo autor-sujeito, que vivenciou e se relacionou/relaciona com o univer-so musical abordado. Considero importante salientar esse dado, pois acredito que no debate sobre a questão das identidades nossos “lugares” são impres-cindíveis à construção de nossas intervenções e discursos. Para tanto, imagino que entrecruzar minha história de vida ao trabalho de pesquisa no texto que se apresenta pode ser uma forma de traduzir, inicialmente, minha relação com este terreno musical.

Literalmente, nasci e tenho crescido sob influência do mundo da música e seus mais fiéis representantes, dentre os quais, destaco o compositor, músico e cantor baiano Gilberto Gil. Os discos de vinil, as fitas K7 e outras referências desse artista em particular, sempre tiveram presença nas estantes de minha in-fância. Mais do que isso, escuto, desde criança, que minha chegada ao mundo foi embalada por uma de suas músicas mais tocadas nos anos 80. Pelo menos uma vez ao ano, minha mãe, Dionéia (e sei que não se importará com a ausência do título “Dona”) e outros familiares me relatavam um episódio que pode ilustrar bem essa relação. Era abril de 1980, aos nove meses de gestação do seu primogênito, ela esperava mais um tedioso domingo passar, quando percebeu as contrações que anunciavam o rebento. Atônita, ela e meu pai partiriam em busca de ajuda na vizinhança para que, às pressas, pudesse ser acolhida na maternidade mais próxima. Na então deserta rua “C”, do bairro de Mussurunga I (àquela época, recém fundado pela URBIS), em Salvador-BA, a oportunidade de “socorro” ficava à mercê da sorte ou de algum dos poucos vizinhos que possuísse um automóvel e se dispusesse a atendê-la. Pela lembrança de minha mãe, um senhor da vizinhança de nome “Pedro” apon-

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tou na Rua com seu Chevrolet carregado de instrumentos musicais que ha-viam animado um evento dominical. Apesar da sobrecarga no veículo, ele se habilitou a prestar solidariedade, desviando o caminho de casa e conduzindo a gestante e seu marido, em meio aos muitos “tambores, repiques e ataba-ques” – assim lembra minha mãe sempre aos risos – até a maternidade, que ficava a cerca de 17 km.

Recorda ainda que, tendo desembarcando no hospital, em meio às con-trações, foi conduzida para o atendimento médico e estava visivelmente in-tranquila, o que tornaria sua “hora” um pouco mais difícil. O auxiliar médico que conduziu os preparativos do parto insistiu repetidas vezes por sua tranqui-lidade, pedido que não contava com uma resposta positiva. Pelo contrário, tomada pela dor, expectativa, ansiedade, perda de líquido – e tantos outros sentimentos que sou incapaz de mensurar – ela se esvaiu em lágrimas. Já na sala do parto, ouviu novos pedidos de calma e tranquilidade. Todos em vão! Diante da situação, um dos membros da equipe médica, começou a cantar para ela (e o bebê) uma de suas melodias prediletas:

“não, não chore mais...menina não chore assim.não, não chore mais...”

A atitude a tocou com tamanha precisão que a tensão deu lugar à sere-nidade. A melodia vocal lhes trouxe o conforto necessário para que aquele ritual de vida se concretizasse. Para ela (minha mãe), aquele refrão de Marley, revisitado por Gil, é minha canção de chegada neste mundo. Para mim, esta história que já ouvi repetidas vezes, é hoje muito mais simbólica e pode ajudar não só a me entender, como ainda algumas questões ilustrativas da relação-mediação da música no cotidiano das pessoas. Durante muito tempo, insisti em tratar esta narrativa de minha origem como uma grande coincidência e/ou gesto de carinho materno. Nos últimos anos, tenho repensado bastante esta posição. Precisamente, ela nos serve agora como ponto de partida para uma reflexão mais apurada sobre o impacto das musicalidades negras na sociedade brasileira das últimas décadas, mais especialmente na Bahia.

Este livro é, portanto, expressamente uma tentativa de compreender al-gumas dimensões dessa relação. Essa passagem, além de tudo, retrata ainda

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que, de modo pouco convencional, o impacto e a popularidade da versão em português gravada por Gilberto Gil de “No Woman, No Cry” (autoria de Vicent Ford), imortalizada por Bob Marley & The Wailers. A sintonia do artista brasileiro com a música afro-jamaicana demonstrava uma posição em comum com outros músicos e intérpretes do período, que identificavam nessas trilhas sonoras da música negra transnacional, novos referenciais identitários para problematizar sua própria história. Esta leitura musical, ainda que sublime, é um indício da posição de um artista negro diante da possível (re)construção de um país recrudescido pelas desigualdades sociorraciais (SILVA, 2000).

Nesse sentido, a postura do profissional médico, que cantou para tranqui-lizar as dores de um parto, reforça a presença da música na tradução das rela-ções e conflitos do seu tempo. A releitura apropriada de Gil traduzia bem a an-gústia de um país que vivia sob as dores de uma transição “lenta e gradual”5. Naquela conjuntura, chorar não era mais preciso, pois a dor haveria de dar lugar a novos tempos, como ansiavam muitos movimentos sociais.

Além disso, a alusão a um parto serve aqui como metáfora para evidenciar que a produção-gestação deste estudo foi sem dúvida uma espécie de “parto intelectual” seja pela dor, seja pelo rito de passagem, seja pela esperança no fruto que se anuncia – agora em dose dupla já que o primeiro resultado des-te exercício culminou na dissertação de mestrado defendida pelo Programa Multidisciplinar de Estudos Étnicos e Africanos (Pós-Afro), da Universidade Federal da Bahia, sediado no Centro de Estudos Afro-Orientais (CEAO), sob orientação da etnomusicóloga e professora Angela Lühning6 – que aqui se apresenta publicado em formato de livro.

Lembrando ainda da minha adolescência, tive entre meus familiares al-guns ouvintes do reggae. Nas muitas vezes que estive com Carlos Feitosa (ou simplesmente Tio Feitosa) em sua casa, na cidade de Valença, no baixo-sul da Bahia, terra natal da porção materna de minha família, ouvíamos muitos discos de Jimmy Cliff, Alpha Blondy e, sobretudo, Edson Gomes por quem guardávamos uma admiração enorme, seja pela qualidade do seu trabalho, seja pelo fato de ser “prata da casa” e, logo, trazer em suas canções os pro-blemas de nosso tempo. Recordo-me ainda, com humor, do meu tio paterno Pascoal Mota, que sempre me apresentava alguns cassetes com gravações de Edson Gomes. Nas palavras dele, o reggae era a “música que fala a verdade!”,

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referindo-se ao conteúdo crítico-social abordado nas letras. Essa imagem me marcou profundamente, pois, de fato, as tais “verdades” também me causa-ram a inquietação necessária para estar aqui.

Imagino que meu gosto pela música foi também fortemente influenciado pelo contato com o rádio, com os muitos discos de vinil que tínhamos em casa e com a imagem dos músicos que apareciam na TV (e sempre vibrei com as aparições de Gilberto Gil!). Paralelo a isto, é importante destacar minha aten-ção aos grupos de percussão (leia-se samba-reggae) que brotavam nos muitos bairros de Salvador7. A rigor, interessava-me bastante pela possibilidade de aprender a tocar um instrumento e compreender os princípios de organização que transformavam ideias, sensações, impressões sobre a sociedade em algo tão sinestésico como a canção.

Esta inquietude não me levaria a outro caminho senão o de buscar produ-zir meus próprios sons. E, assim, entrei para o “ramo”, como muitos jovens da minha geração, pelas bandas de garagem, tentando tocar os chamados covers de clássicos da música rock de projeção transnacional e da música afropop em destaque naqueles anos 90, como o reggae, que, por conseguinte, foi um dos meus primeiros repertórios. Minha opção pelo baixo elétrico deveu-se ao in-teresse de ingressar em algumas das tantas bandas de rock e reggae fundadas entre 1996-97, no bairro de Mussurunga, em Salvador. Não por coincidência, aquela era uma conjuntura de muita visibilidade para esses estilos transnacio-nais na Bahia. Do ponto de vista do reggae baiano, esse intervalo de tempo se constitui em um momento crucial de afirmação desses estilos musicais no universo sociocultural de muitas cidades do estado da Bahia, como será apre-sentado mais à frente.

O convívio com a música como entretenimento e, mais tarde, como opção profissional foi se tornando uma realidade desde então. Aos poucos, o gosto pelo som foi sendo complementado pelo interesse nas trajetórias das bandas e artistas de minha preferência, em escutar os álbuns com maior atenção, em identificar a ficha técnica dos discos. Enfim, passei a enxergar a música como algo que tem uma conexão profunda com a realidade ao seu próprio redor. Em fins dos anos 90, paralelo com o meu ingresso na universidade para o cur-so de graduação em História, fui tendo acesso a novos olhares sobre a arte dos sons. O acesso à investigação científica, nessa área específica, não aconteceu

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propriamente na graduação. Encontrava ali alguns poucos canais de interlo-cução que me proporcionassem maiores vôos na área da pesquisa acadêmica sobre a música, dado que não inviabilizou que se iniciassem algumas leituras que, mais à frente, seriam bastante produtivas ao estudo da ciência histórica a partir da música.

Minhas válvulas de escape, no entanto, eram as bandas alternativas e os eventos artístico-culturais promovidos pelo movimento estudantil. As muitas experiências que fizeram/fazem parte de minha formação no mundo da mú-sica me auxiliaram (e ainda auxiliam) na construção de um olhar e ouvir mais atento às dimensões sociais que estão impressas nos conteúdos e discursos musicais.

Dos experimentos sonoros da infância à brincadeira com o baixo8 do pre-sente, tenho percebido que a produção de música é fundamental nos pro-cessos de autocompreensão dos sujeitos (e me incluo neste contingente). O presente trabalho é, portanto, uma interface acadêmico-investigativa desta interpretação e, por isso, trata-se de uma visão particular e situada de um uni-verso de fontes que foram escolhidas para reflexão, haja vista que todo registro musical é passível das mais diversas leituras.

Entre a conclusão do curso (2004.2) e o ingresso no Pós-Afro (2006.1), atuava como professor de História em escolas da rede pública e privada de Salvador, além de programas de “capacitação” (ainda não me conformo com esse rótulo...) de jovens e adultos, educação não formal e outras experiências na área de educação. Paralelamente, aproveitava para alimentar algumas lei-turas sobre música, indústria cultural, História da África, bem como ocupar-me com o ofício de músico baixista (que felizmente não abandonei!).

No início de 2005, cursei, como aluno especial, a disciplina “Trabalhado-res, Formação de Classe e Etnia” ministrada pela Profª. Drª. Cecília Velasco e Cruz, que surtiu, para mim, particularmente, um efeito de transição do uni-verso de pesquisa sobre os trabalhadores ferroviários do início do século XX (temática herdada da iniciação científica) à leitura das relações sociais sobre o prisma de questões como “racialização”, “identidade étnica” e cultura. Foi naquela ocasião que li, com “outros olhos”, Kwame Appiah e Amy Guttman (misunderstood conections!) e ainda pude rever alguns clássicos da antropolo-

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gia. Em suma, aquela experiência foi interessante, pois saí da disciplina provo-cado a desenvolver uma temática que se aproximasse de minha experiência de vida, além de estimulado a encarar a face acadêmica do debate sobre as relações/desigualdades raciais com mais profundidade.

Foi exatamente em 2005 que recebi a proposta que mudaria definitiva-mente meus caminhos. A convite da amiga-professora Valquíria Lima e do Centro de Promoção da Educação, Cultura e Cidadania (CPECC), em parce-ria com a Associação Cultural Beneficente Revolution Reggae, ambas entida-des da cidade de Conceição do Coité-BA, fui ministrar o módulo de abertura do Projeto de Formação de Lideranças Negras, Reggae em Ação (realizado entre 2005 e 2007). Esta ação foi e tem sido responsável pela descriminali-zação do reggae (e seus protagonistas) naquela cidade, haja vista a ameaça eminente das batidas policiais e dos grupos de extermínio que faziam, à época, um número considerável de vítimas sob a alegação de serem “confundidos” com marginais.

Objetivamente, o convite era direcionado ao mini-curso intitulado “Me-mória Musical e Identidade Negra”, que deveria trazer um debate sobre a im-portância da música na construção da identidade dos negr@s, bem como da sobrevivência de suas tradições. Aceitei com preocupação o convite, dada a responsabilidade delegada a mim e, para tanto, mergulhei num volume de leituras (algumas já acumuladas desde fins da graduação) e parti na busca de novas referências para fundamentar a ementa do curso. Nesse período, contei com a valiosa contribuição do amigo e professor Antonio Godi que atendia, sem rodeios, aos meus inconvenientes telefonemas e visitas vesperti-nas inesperadas. Além dele, coincidiu restabelecer o contato via e-mail com o professor “Salloma” Salomão Jovino da Silva, que tive o prazer de conhecer numa conferência na Unicamp (São Paulo) em 2001. Atenciosamente, pro-fessor “Salloma” me enviou sua dissertação de mestrado e outras referências interessantes que foram incorporadas aos poucos ao mini-curso, bem como à, então incipiente, proposta de pesquisa.

Meu envolvimento foi tamanho que o universo de leituras acabou sendo aproveitado para amadurecer um projeto de pesquisa sobre a música reggae e suas influências no universo cultural baiano. Encarei o desafio do curso de mestrado com a esperança de ter, no programa, um espaço de debate para

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amadurecer as reflexões sobre as relações raciais no Brasil e a importância da música neste contexto. A rigor, o ingresso na pós-graduação também tem relação explícita com meu ativismo antirracista, certo de que a luta pela inclu-são social das populações negras tem passado pelo acesso à educação e ao protagonismo na produção do conhecimento científico.

Caminhando nessa direção, esse estudo analisa as manifestações étnico-identitárias de negritude presentes nos registros fonográficos da musicalidade reggae, produzidos na Bahia nas últimas décadas. O levantamento e análise da produção fonográfica (incluindo LPs e CDs) ligada ao reggae da Bahia, en-tre os anos 1979 e 2003, constituem-se no material central desta pesquisa, ao lado de entrevistas e outras fontes impressas como o jornal Folha do Reggae, publicado em 1997. Foram analisados os elementos da linguagem musical, utilizando fichas catalográficas contendo as variantes: ano de lançamento, gra-vadora, nome(s) do(s) artista(s), letras, observações-comentários, textos adicio-nais (encarte e/ou contracapa), músicos participantes, arranjador e produtor e/ou diretor musical e artístico, observações, seguindo, portanto, um caminho apontado por estudos anteriores (SILVA, 2000c; MORAES, 2000).

O produto fonográfico e suas partes integrantes (capa, encarte, artes grá-ficas, textos adicionais) compõem/compuseram um universo de livre e alter-nativa expressão dos artistas, redimensionando o alcance do registro auditivo. Do ponto de vista da discografia analisada, em especial, percebi que muitos significados de pertencimento e negritude foram construídos a partir das es-tratégias discursivas estético-musicais na composição das canções (arranjos, instrumentação, letra, etc.) e/ou nos materiais produzidos em associação ao registro sonoro (SILVA, 2000c; HUSS, 2000).

Moraes (2000) aponta que, entre os obstáculos da investigação do “do-cumento musical”, encontra-se o peso das tradições da metodologia clássica que, de modo reducionista, desarticula os elementos estruturais da canção (melodia, ritmo, andamentos) da “realidade que gira em torno dela” (p. 215). Em outras palavras, o registro final aparentemente “aprisionado” no disco é o resultado da interação entre variáveis internas (processo social de produção artística) e externas (relação com o contexto de seus agentes realizadores). Na medida em que o disco9 é resultante de percepções do artista sobre o mun-do, sua reprodutibilidade incorpora as condições materiais e históricas de seu

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tempo e são continuamente (re)construídas, impressas pelo publico ouvinte e pensante10. Sugiro, a partir desse trabalho, portanto, que a experiência da produção (no sentido de saber/fazer) musical seja tomada como referência na compreensão dos discursos estético-musicais contidos no registro fonográfico. Em outras palavras, o universo dos músicos e as estratégias intrínsecas na produção e reprodução do som também representam experiências e perspec-tivas que devem ser visualizadas nos estudos sobre a música como experiência social e política.

Para tanto, foi necessário arriscar uma orientação metodológica de cunho mais dialógico e, por vezes, descritivo, acompanhando um caminho episte-mológico definido por Carvalho (1999) como “etnografia da sensibilidade musical”. Fujo de algumas descrições mais densas em detrimento de analisar, a partir de algumas experiências pessoais, os elementos discursivos que consti-tuem a música. Destaco ainda que optei também pela transcrição das letras ao longo do texto na íntegra, de modo a possibilitar uma compreensão melhor do leitor, evitando anexos que poderiam por em risco a fluência da leitura.

O fato de estar diante de uma gama de possibilidades de análise nos coloca sob a responsabilidade de advertir a quem ler estas páginas sobre o terreno espinhoso do estudo da história da música. Por isso, não cabe fundar teses conclusivas sobre os discursos musicais investigados, tampouco tratar com juízo de valor os registros que ora analiso. Ainda que compreenda que o “gosto” é socialmente construído e pode ser encarado como objeto de reflexão, gostaria de salientar que tentei me distanciar no que pude de inferir sobre a “qualidade” das letras ou arranjos, assim como na classificação dos registros analisados.

Para analisar a produção musical em torno do reggae na Bahia, lancei mão, prioritariamente, de um acervo discográfico que inclui artistas de cidades da Bahia (como Cachoeira, Feira de Santana e Salvador, principais nichos da contracultura “rasta-reggae”11) de onde surgiu grande parte dos grupos que definiram singularmente o estilo neste estado brasileiro. Este material constitui um rico universo de possibilidades de estudos. A grande diversidade de falas e abordagens representadas nos discos analisados exige um olhar e um “ou-vir” mais interativo com as demais áreas disciplinares, algo que, de partida, nos coloca no olho do furacão (basta lembrar que mesmo a noção de multi-

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disciplinaridade ainda vem sendo amadurecida). A experiência do mestrado multidisciplinar que vivenciei tem sido enriquecedora neste sentido. Dialogar e aprender com áreas de conhecimento como a Etnomusicologia e a Antro-pologia fortaleceram/fortalecem, a meu ver, novas perspectivas teórico-meto-dológicas de uma História Social da Cultura, bem como do estudo da Música e seus sujeitos.

É fundamental, para tanto, que situemos essa diversidade de registros musicais na dimensão do tempo histórico. É preciso lembrar que essa é uma tarefa bastante complexa, uma vez que as fontes em diálogo estão dispostas em um intervalo de tempo de pouco mais de duas décadas. Escolhi, então, dialogar com os muitos registros fonográficos produzidos nesse período para tentar mensurar um conjunto – o máximo representativo – de artistas e discos responsáveis pela “invenção” da leitura/interpretação baiana do reggae.

Nesse sentido, os anos 80, que, desse ponto de vista, começam em 1979, dado o lançamento do álbum Bahia Jamaica de Chico Evangelista e Jorge Alfredo ao lado da gravação de “No Woman, No Cry”, imortalizada por Bob Marley & The Wailers, e reiterada por Gilberto Gil no álbum Realce, compre-endem, a meu ver, o momento crucial da emergência de novas alternativas e perspectivas de organização civil em ebulição no chamado “verão da abertu-ra”. É um contexto de onde brotam legendas partidárias às dúzias e de onde floresce uma ambiência sociocultural fortemente mobilizada pela produção musical. Na Bahia, e em particular em Salvador, a “trama” musical que se anunciava, como sugeriu Guerreiro (2000), era protagonizada por uma juven-tude negra reencorajada pela invenção de novos ideais de liberdade que os/as levariam a percorrer a África e o Caribe negros a bordo de uma criativa re-leitura destes territórios do Atlântico. O reggae foi uma das principais matérias-primas neste processo.

Uma vez reterritorializada, essa musicalidade viveria novos tempos de ascensão, à medida que corriam os anos 90. Inevitavelmente, reggae e samba-reggae implodiram o mercado fonográfico, impondo-lhe novos agentes, sonoridades, estratégias de gravação e reprodução e, obvia-mente, novas contradições. Essa definitiva entrada em cena não ocorreu sem negociações e tensões e, tampouco, deram-se de igual maneira em Salvador e nas cidades do interior da Bahia, como Cachoeira e Feira de

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Santana – principais nichos desta contracultura no estado. Tamanha foi a ebulição do verão do reggae baiano, que os anos 90, para nós, não cabe-ria mesmo em uma década. O advento das tecnologias digitais de repro-dução do som e a gradativa democratização (ou seria popularização?) das tecnologias de gravação tornou possível que, até meados de 2002 e 2003, personagens importantes dessa trajetória registrassem, ainda que tardiamente, suas memórias musicais em CDs independentes.

A opção por este marco referencial-cronológico impôs, desde o início, algumas questões e perigos. Em primeiro lugar, a necessidade de contem-plar um recorte tão amplo em um período de trabalho tão exíguo como o curso de mestrado impôs algumas escolhas no tocante ao objetivo final do trabalho de pesquisa. Sobre este aspecto, alerto que a análise das fontes discográficas exige maior ênfase no debate sobre as potencialidades do re-gistro fonográfico como suporte da realidade que o cerca. Por isso, a inten-ção principal é colocar essa fonte no centro das atenções, travando mais um debate sobre a importância deste ponto de vista para a compreensão das relações sociais mediadas pela música. Para isso, é fundamental cruzar as impressões sobre as fontes, bem como lançar mão da história oral como caminho alternativo para preencher possíveis lacunas e, potencialmente, abrir novas trilhas para estudos futuros.

Em segundo, pesava sobre meus ombros a responsabilidade de pro-duzir um texto que contemplasse o universo de transformações compre-endidas nesse intervalo de décadas. Esse período inclui diferentes con-junturas e mudanças consideráveis que colocaram em efervescência a sociedade baiana como: a ascensão dos blocos afro, a nova economia das relações políticas resultante do processo de “abertura” até a “demo-cratização civil”, o que inclui, por exemplo, a reestruturação dos veículos de comunicação no estado da Bahia e o poderio de “velhos cães de guarda” da ditadura militar sobre a imprensa baiana; as intensas trans-formações e contradições socioespaciais na capital e interior do estado; a emergência dos blocos de samba-reggae e suas leituras de uma negri-tude multicentrada, que seria a principal matéria-prima para o boom da chamada axé music. Sobre este quesito, vale destacar que uma rigoro-sa classificação das fontes concorreu para evitar certas imprecisões (e

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dispensar o “fardo” do trabalho intelectual ideal). Analisando os discos, percebemos que haviam diferenças visíveis quanto ao teor dos discursos identitários, nas distintas categorias e perspectivas de negritude, além das diferentes posições ao longo das décadas.

Para dimensionar essas transformações no tempo e espaço, argumento em favor de uma periodização que sugere alguns momentos expressivos (e a transição entre eles) da inserção e consolidação do reggae no ambiente so-ciocultural baiano. Reconheço e adverto de antemão que, se por um lado, toda periodização é em si arbitrária com a dinâmica da experiência humana ao longo da história, é, por outro, necessária quando se pretende, por vezes, dimensionar os próprios caminhos desta mesma dinâmica. Sem mais, tentei situar minhas reflexões em torno de alguns períodos singulares que serão apre-sentados a seguir.

O primeiro – os anos 80 – está compreendido entre os anos 1979/80 e 1988, contexto que pode ser pensado em dois momentos distintos: primei-ramente até meados dos anos 80, onde aparecem as primeiras expressões de afinidade que registram a presença do gênero em questão na produção musical baiana; em seguida, fins desta década, onde relaciono a prolifera-ção dos blocos afro de samba-reggae e sua leitura musical transcontinental à paulatina incorporação do reggae como um referencial étnico e identitário dos negros, em algumas cidades da Bahia. Grande parte dessas entidades investia na pesquisa das culturas musicais negras do Caribe e de alguns países do continente africano, em busca de suas respectivas histórias e, obviamente, sonoridades, o que trouxe fortes influências. Pode-se destacar uma predileção explícita pela música cubana, jamaicana e de países africanos como parte da formação percussiva de algumas entidades afro-carnavalescas em Salvador. Acrescenta-se o cruzamento com as sonoridades das tradições rítmicas locais, de forte presença nos rituais do candomblé, ao lado da crescente influência dos meios de comunicação, paradoxalmente um forte aliado para a inserção e ressignificação da “música mundializada”, como afirma Sansone (1997). Esse momento de contato e inserção é o alvo dos nossos primeiros capítulos.

O segundo momento – os anos 90 – entendo como a cristalização de uma cena “regueira” na Bahia, compreendida entre os anos de 1988/89 até 1997/98. Nesse intervalo de década, cristaliza-se uma produção singular em

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torno dos estilos musicais transnacionais negros como o reggae e o rap, e se edificam trabalhos significativos em torno do reggae, em paralelo com as lutas em comemoração ao centenário da abolição. Identifico uma sintonia explícita entre esses estilos transnacionais da música negra na Bahia e a po-sição militante dos movimentos negros nesse momento em especial (SILVA, 2000). Em meados dos anos 90, insinua-se um cenário musical integrado por inúmeros artistas identificados com o reggae, além do gradativo apare-cimento de uma considerável produção de discos em CD (compact disc), fe-nômeno que tem relação com os formatos digitais de gravação e reprodução da música. Em fins dos anos 90 (que se estende até meados de 2003), uma multiplicidade de grupos intérpretes e grupos musicais, como Adão Negro, Sine Calmon e Morrão Fumegante, Dionorina, Geraldo Cristal, Jorge de An-gélica, Gilsam, Nengo Vieira, registram suas experiências musicais em discos. Esse intervalo de década é ainda o momento onde se assistiu ao que chamo de “Verão do Reggae Baiano”, que se configurou em fins dos anos 90, com uma enorme proliferação deste gênero nos bairros, nas bandas alternativas, na agenda cultural das cidades e em uma escalada que galgaria o primeiro degrau do carnaval de Salvador com a canção “Nayambing Blues”, de Sine Calmon e Morrão Fumegante, no carnaval de 1998. Paradoxalmente, esse é o contexto de onde emergem manifestações expressas de repressão à mú-sica (e seus protagonistas) por parte da polícia e de segmentos da imprensa baiana. Registra-se ainda, nesse contexto, a publicação do informativo Folha do Reggae, fonte imprescindível onde serão discutidas estratégias de mobi-lização e respostas dos “regueiros”12 na defesa do reggae como um produto da cultura negra da Bahia.

Diante, portanto, dessa gama de possibilidades, o resultado apresentado aqui reflete escolhas que foram definidas sob a pena de deixar eventuais lacu-nas. Após a devida catalogação do material colhido, ao longo dos semestres de pesquisa, escolhi deliberadamente o conjunto de registros sonoros e plásti-cos que pudessem representar melhor minha argumentação. Ao longo dos ca-pítulos, a citação recorrente das letras, capas, encartes ou mesmo das estraté-gias discursivo-musicais não propõe uma impressão conclusiva. Pelo contrário, espero estimular, com este trabalho, que um número maior de pessoas possa voltar as atenções para o universo musical que ora investiga-se, para tirar suas próprias “conclusões”.

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O texto que se apresenta é, em linhas gerais, uma forma de com-preender o processo de inserção e cristalização da música reggae no cenário sociocultural baiano à luz de alguns registros de sua produção musical. Para tanto, os diferentes pontos de vista sobre o universo das fontes estão evidenciados na organização dos capítulos que faz alusão deliberadamente à estrutura de um LP, uma das principais matérias-primas deste estudo.

O Lado A contempla, além desta apresentação-introdução, o capítulo intitulado Faixa 1: “Surge mais um Guerreiro do Terceiro Mundo”, no qual se apresenta um balanço da inserção e presença do reggae no eixo sul do Atlântico Negro, dialogando com alguns documentos musicais im-portantes registrados no início dos anos 80.

Os desdobramentos dessa interação foram dimensionados no terreno sociocultural baiano ao longo dos anos 80, como se pretende discutir na Faixa 2, intitulada “África a la Jamaica, Música da Raça”. Neste, se-rão abordadas as ressignificações sobre a África a partir das construções musicais e dos registros fonográficos ligados à influência do reggae na Bahia. Abordo a centralidade dos blocos afro nesse processo, bem como o consequente nascimento do samba-reggae como uma nova linguagem da música brasileira naquele momento. Além destas entidades, outros artistas, em diferentes momentos, também são corresponsáveis pela in-clusão da temática da História da África e de uma leitura multicentrada deste continente, que inclui o Caribe e os movimentos pan-africanistas como referenciais simbólicos que inauguraram uma nova tendência das políticas culturais negras na Bahia (PINHO, 2004).

“Virando o disco”, passamos ao Lado B, que se inicia com a Faixa 3, intitulada “Anos 90: O Verão do Reggae Baiano”. Aí é abordada a rela-ção entre as canções de reggae e o surgimento de uma nova metafísica de negritude, cujos discursos perpassam pelas canções e outros elementos que compõem os discos. Faço uma leitura das inúmeras autoidentidades negras presentes nos elementos estético-musicais do registro fonográfico e sua relação com as falas dos movimentos sociais no período, enfatizando a interação dos artistas de reggae, em sintonia com diversas posições públi-cas dos movimentos negros nas últimas décadas. Em Interlude, “De Jesus

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à Jah”, dialogo com as diferentes leituras de mundo sintonizadas com cosmovisões religiosas e suas confluências e/ou contraposição de ideias. Analiso também o surgimento de novas leituras híbridas da religiosidade, professadas em muitos dos álbuns sob os quais se edifica este trabalho de pesquisa.

Na Faixa 5, “Quem Não Gosta de Reggae, Bom Sujeito Não É”, que traz as considerações finais, pretende-se entrecruzar as informações e problematizações dos capítulos anteriores (por isso o sentido dub) apon-tando para futuros caminhos da investigação. Esse será o espaço para traçar algumas reflexões sobre o mercado fonográfico e os espaços alter-nativos de divulgação do reggae em Salvador.

Pretende-se, portanto, com este livro, levantar algumas reflexões so-bre o papel da musicalidade reggae como elemento articulador da luta antirracista na Bahia recente, tomando por base, privilegiadamente, a produção fonográfica desta expressão. A propósito, o título desta publi-cação, Guerreir@s do Terceiro Mundo (...), tomado de empréstimo e adaptado da canção homônima de Edson Gomes, já apresentada en-tre as epígrafes, tenta dimensionar essa relação de enfrentamento e por hora negociação em que se envolveram alguns sujeitos responsáveis pela construção dessa cena musical e política no contexto em destaque. Vale ainda destacar que o uso do símbolo “@” sugere que há, entre estes personagens, homens e mulheres – ainda que uma reflexão devidamente bem apurada sobre as relações de gênero e a presença das mulheres nes-te cenário musical não estejam devidamente contempladas neste estudo – uma lacuna por ser então preenchida em trabalhos futuros. Este recurso é deliberadamente provocativo e sugere a ruptura na palavra escrita com a generalização a partir do referencial masculino, tão naturalizado em nosso cotidiano quando nos referimos a uma diversidade de gêneros. Este recurso político me foi apresentado no primeiro congresso baiano de pesquisador@s negr@s realizado em 2007, na UFBA.

O “discurso estético-musical rasta-reggae”, como sugeriu Godi (1997), tem alterado os sentidos do ser negro em Salvador e outros centros urba-nos da Bahia, haja vista a gama de artistas radicados nas mais diferentes cidades do estado que buscaram criar, ao gosto de suas experiências e

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interpretações, suas próprias versões do gênero musical afro-jamaicano. Este fenômeno foi marcado pela disputa contra a marginalização direcio-nada aos adeptos e admiradores do estilo em muitos espaços, como os meios de comunicação regionais e nacionais13.

A produção ainda rarefeita de estudos que focalizem o gênero em questão como expressão fundamental desta “contracultura” plural de negros e negras no mundo contemporâneo e sua trajetória singular no Brasil constitui o leit motiv da elaboração deste trabalho. No que se refere ao universo baiano, o gradativo surgimento de estudos sobre a impor-tância da musicalidade reggae e suas contribuições ao universo plural da diáspora negra justificam a necessidade de materializar estas problemati-zações através da pesquisa. Feitas estas ponderações, estendo o convite para “cairmos no reggae”...

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NOTAS

1 Uma pesquisa de fôlego sobre a história da Jamaica e, particularmente, da cultura Rasta, foi produzida por Danilo Rabelo e defendida com tese de doutorado em 2006. Nela, constam aspectos históricos, geopolíticos, econômicos e antropológicos minuciosos sobre a ilha caribenha e sua conexão com a cultura espiritual e musical do rastafarianismo. É sem dú-vida a produção mais exaustiva já realizada no Brasil (RABELO, 2006). Sobre a história do reggae ver também estudos clássicos como Albuquer-que (1993), Davis & Simon (1983) e ainda White (1999).

2 Ver Rocksteady: The Roots of Reggae, Stacha Bader (Direção), 2009. Documentário sobre a influência do rocksteady na música mundial. A concepção da obra que encadeia as narrativas históricas dos músicos e musicistas, produtores e outros agentes traz um rico depoimento sobre história e música jamaicana tornando-o um registro imperdível.

3 Ver Dub Echoes, Bruno Natal (Direção), 2008.

4 O conceito de musicalidade quando utilizado aqui, remete diretamente à formulação proposta por Salloma Silva (2000) como um conjunto de práticas musicais e, como tal, posições político-culturais.

5 Esta foi a conhecida expressão mencionada pelo General Ernesto Geisel para se referir à postura dos militares diante do fim do regime. Em 1979, foi decretada também a lei da anistia que pôs, sob o manto silencioso de uma mesma justiça os criminosos do Regime e exilados políticos (Ver mais em GASPARI, Élio. Ditadura Derrotada: O Sacerdote e o Feiticeiro. São Paulo: Cia das Letras, 2003).

6 MOTA, 2008.

7 Não poderia esquecer-me do Sementes do Reggae, grupo de percussão formado no bairro de Mussurunga. Alimentei, por muito tempo, a vonta-de de fazer parte da percussão do Sementes, mas a proibição meio tácita da família frearam minha utopia.

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8 “Brincar com o baixo” é a forma como meu filho, João Lucas, descrevia meus momentos de estudo com o instrumento.

9 Disco refere-se a toda e qualquer obra musical, composta de até 04 canções – singles – ou mais, que constam como registro no histórico de um artista ou um conjunto deles. Comumente, associa-se restritamente ao disco de vinil esta definição.

10 Sobre esse debate, o clássico artigo de Walter Benjamin sobre a arte e sua reprodução no mundo capitalista (BENJAMIN, 1960) tem uma importância. A rigor, outros autores já têm produzido leituras sobre a obra de Benjamim que, posteriormente, nos servirão de suporte teórico-metodológico.

11 Esta definição foi tomada de empréstimo de Godi (1997), um dos primeiros pesquisadores envolvidos com essa temática no viés da socioantropologia da música, na Bahia.

12 Termo comumente utilizado para identificar o ouvinte ou músico de reggae.

13 Por exemplo, em Salvador, há um processo contínuo de marginaliza-ção dos tradicionais radialistas de reggae paralelo ao controle das bandas e shows pela grande indústria cultural da música baiana que organiza o carnaval. Atualmente é exibido pela rede pública, através da Rádio Edu-cadora FM (107.5), o programa No Balanço do Reggae, além de alguns em rádios alternativas. No interior do estado, movimentos sociais organi-zados em entidades como a Associação Cultural Beneficente Revolution Reggae, em Conceição do Coité-BA, têm sido importantes agentes mo-bilizadores contra a violência policial e dos grupos de extermínio contra jovens negros, além de organizarem eventos de debate sobre racismo, cidadania e políticas públicas para saúde, educação no município.

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FAIXA 1

“SURGE MAIS UM GUERREIRO DO TERCEIRO MUNDO”

E grita Jamaica, povão:Ê JamaicaImpere entre todos os negrosA crença no nosso poder de criarUm novo universoUm novo universo

Trecho da canção Rituais de Negros, de Mundão Disco Muzenza do Reggae, 1988

Estes repertórios de práticas são aqui entendidos como novas formas de organização e intervenção social, política e cultural dos grupos negros, gerando novos paradigmas de identificação e visibilidade das popula-ções negras urbanas, num processo onde as práticas em torno da música são transpassadas pelas lutas sociais e políticas.

“Salloma” Salomão J. da Silva, 2000

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A luta pela visibilidade dos anseios e projetos das populações negras foi ponto alto nas décadas de 80 e 90 no país e, de modo singular, na Bahia. À revelia de todos os processos institucionais e socioculturais de segregação racial que se recompuseram ao longo da história, as expe-riências das populações negras – em contextos os mais diversos, leia-se – apresentam complexas estratégias e contradiscursos reveladores da não-sujeição e da produção alternativa de conhecimento(s) e visões de mundo na sociedade. Entre as muitas linguagens apropriadas nesse pro-cesso tenso de afirmação de (nossas) autoidentidades, a música tem se destacado, dada a sua importância na construção das relações sociais, sobretudo no mundo contemporâneo, onde esse processo literalmente se amplifica14.

A aceleração (e globalização) dos padrões industriais de produção e consumo de mercadoria, em consonância com a presença definitiva dos meios de comunicação e outros artefatos tecnológicos ampliaram o abismo entre as nações da Europa e EUA em relação a países do chamado terceiro mundo. Paradoxalmente, esse processo tornou pos-sível novos canais globais de interlocução do protesto negro nos gran-des centros urbanos (SILVA, 2002). Sobre o contexto da globalização, Sansone (2004) aponta dois conjuntos de opiniões que já, há muito, têm sido debatidas: a primeira, indicando a popularização dos estilos cosmopolitas de vida e de uma suposta socialização dos bens de consu-mo, outrora restritos às nações do “norte”; a segunda, assinalando os aspectos negativos do subjugo das nações mais poderosas econômica e politicamente, que aniquila projetos e respostas locais. Entretanto, o autor sugere um terceiro caminho que tenta considerar um pouco de cada um desses aspectos apontando a “heterogeneização global” – um aumento indelével das trocas simbólicas que possibilitam outras formas identitárias e canais de etnicidade, invertendo, de certo modo, o velho conceito centro-periferia. Alguns elementos conjunturais – como o im-pacto do mundo anglófono, o efeito bilateral e desigual da indústria fonográfica, o fim dos regimes militares, a ação dos movimentos sociais e a abertura ao turismo – ajudam a entender as transformações de uma cultura negra conectada, a partir de então, com outros referenciais que transcendem as experiências regionais.

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A confluência das contraculturas do Caribe e demais regiões da Amé-rica Latina nos trânsitos “globais” de sons, sentidos identitários e expe-riências residuais do colonialismo – oriundas dos mais distantes espaços subalternizados – é um fenômeno nunca visto antes dos anos 50 do sécu-lo XX. A cultura é potencialmente reveladora desses cadinhos no proces-so de globalização e, portanto, um terreno de confronto, resistência (ou mesmo dominação), como nos lembra Milton Santos (2001). Argumenta o autor que a cultura “popular”15, além de revelar as “falas” do cotidiano das minorias, altera o sentido e ressalta a importância dos cenários lo-cais e regionais para a constituição da noção de valores ditos “globais”. Numa leitura menos diplomática, Milton Santos destaca a nova centra-lidade da “periferia” nesse processo, descentrando velhos paradigmas e inserindo os agentes e narrativas, outrora relegados. O terceiro mundo é visto menos como alvo das teorias do subdesenvolvimento – anos 50-60 – e mais como manifestação de desconforto às conseqüências do “novo imperialismo” (SANTOS, 2001, p. 152).

Esse processo instala novas relações e tensões no plano da política e está manifesto nas expressões estético-musicais, corpóreas, étnico-iden-titárias, etc. Do ponto de vista das relações raciais, as políticas culturais enunciam, a partir de expressões como a música, sentidos de pertenci-mento que nos obrigam a estabelecer outras referências teórico-metodo-lógicas para compreender esses movimentos sociais. A canção “Terceiro Mundo” de Walmir Brito, gravada em 1988, no álbum Marley Vive da Banda Terceiro Mundo, é uma formulação sugestiva nessa direção, pois remonta em grande parte ao cerne desse trabalho, uma vez que define esse espaço como um território de identificação étnica dos povos negros, tendo a Jamaica e a África como referenciais geopolíticos, conforme se pode observar em trechos da letra:

TERCEIRO MUNDO (Walmir Brito, 1988)

Lembra-te MarleyCéu azul reggae canção

Influências evólicasEtílicas constelações

Sentimento que vai à Jamaica

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Um negro povo a clamar àMãe África

Terceiro mundo é um elo unificando as nossas raízesLapidação da pérola Negra

O brilho da pazO elo negro mais profundo

Corretivo ao mundoEu grito não apartai os negros não jamais

O sentimento que vaiÀ Jamaica

Um negro povo a clamarÀ mãe África

Além disso, o “silêncio” em torno da presença negra nos pro-cessos políticos e culturais da sociedade brasileira vem, ao longo dos anos, sendo preenchido por uma crescente produção de diversos autores (as), com relativo engajamento nas lutas dessas populações, colocando novas perspectivas epistemológicas às áreas de conhecimento científico, a exemplo das Ciências Humanas.

Nesse bojo, observamos a existência de importantes estudos so-bre música na Bahia – como a valiosa publicação de 1997 do projeto S.A.M.BA.16 – que apontam a preocupação dos antropólogos, musicó-logos e sociólogos baianos (raros os historiadores) em compreender este universo temático, trazendo novas contribuições que relacionem música, identidade negra e cultura enquanto categorias dinâmicas e não-essen-ciais. Nesse sentido, tem sido pertinente estudar as “sonoridades” na di-áspora negra, dialogando e problematizando a noção de Atlântico Negro (GILROY, 1995) e suas reflexões sobre o repertório das práticas musicais no âmbito das “tradições populares”.

Outro exemplo relevante é o trabalho de “Salloma” Salomão Silva (2000) – intitulado “A Polifonia do Protesto Negro: Movimentos Culturais e Musicalidades Negras Urbanas” – que trata das estratégias adotadas por sujeitos individuais e coletivos das populações negras urbanas, utilizando a música como veículo de mobilização. Sugere o autor uma concepção de estudo dos movimentos sociais, identificando o fenômeno singular

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configurado pelas práticas culturais negras, a partir das canções gravadas entre os anos 70 e 80 nos espaços urbanos de Salvador, São Paulo e Rio de Janeiro; além disto, destaca outros parâmetros de análise para o processo político de democratização do país. Artistas da música, outrora silenciados, têm seus olhares sobre o mundo respeitados e seus cantos de protesto audí-veis, na proposta do autor, como ilustra a vasta produção discográfica pes-quisada. A partir dessa dissertação, muitas reflexões podem ser articuladas sobre a música como mediadora das demandas e anseios das populações negras na contemporaneidade. Por outro lado, a discografia analisada pelo autor não insere, de modo sistemático, uma análise de presença de influên-cias como o reggae e o rap, haja vista não ser este o seu objetivo principal. Obviamente uma das grandes contribuições desse trabalho é possibilitar que novas análises sejam produzidas tomando a música negra como experiência sociocultural e política na História. Este texto é, em particular, um passo a partir da direção insinuada pelo autor. Sinto-me, portanto, com a valiosa tarefa de dialogar com eventuais lacunas de sua reflexão.

A análise sobre tais processos político-culturais nos impõe considerar o papel das políticas negras na construção da modernidade. Em O Atlân-tico Negro, Paul Gilroy (2001) traz uma instigante análise das peregrina-ções do pensamento negro, desde o contexto da colonização, mapeando as histórias de (re)apropriação dos instrumentos dos opressores, recon-quistando uma humanidade outrora negada.

A metáfora do “oceano” ou, mais exatamente, dos “navios negreiros” na middle passage 17, além de amplamente influenciada pelas reflexões de W. E. B. Du Bois, incorpora um espírito crítico para avaliar e dimen-sionar as muitas formas de sobrevivência das culturas negras na diáspora, a partir das mais diversas produções. Segundo Gilroy, essas metafísicas de negritude contrariam/contrariaram a lógica do racismo e sua perversa tendência à coisificação d@s negr@s, destituindo-lhes do status de sujeito, humano, quiçá intelectual. O Atlântico Negro é um “campo” de tensão, indeterminação e não-dualismo, onde subjetividades e formações culturais se constituem em um trânsito constante e subliminar, em muitos casos, de noções de pertencimento e negritude. O autor identifica as marcas deste trânsito inventado e as apontam como registros de uma contracultura da

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modernidade, presentes nas expressões artísticas (principalmente na músi-ca), na literatura, em suma, em constante subversão do lugar de mercado-ria-objeto, através de criativas maneiras de “automodelagem individual” e “libertação comunal” (GILROY, 2001. p. 100).

Gilroy assinala o modo “sugestivo” pelo qual o mundo do Atlântico Negro é situado a partir de uma rede entrelaçada entre o local e o glo-bal, que transcende os limites das fronteiras nacionais e sinaliza para os muitos sentidos da “particularidade étnica” (2001, p. 82). Este ponto, em especial, reserva uma polêmica que atravessa toda sua obra: os limites das identidades raciais e do absolutismo étnico nos discursos políticos negros. Para o autor, esse legado condiciona a identidade à aspiração de suas raízes (supostamente autênticas, naturais), o que reforça uma visão essencialista de base ontológica. Nesse sentido, a ideia dos negros como “grupo protonacional”, com sua cultura enclausurada, reforça a visão mistificante de um afrocentrismo que colabora, em grande parte, para silenciar a diversidade de expressões que a cultura negra assumiu no mundo contemporâneo.

Em outro prisma do debate, escritores – como Aníbal Quijano – têm articulado um novo pilar crítico do pensamento ocidental ao fundar a noção de “colonialidade”. Ao lado de Enrique Dussell, Walter Mignolo, Edgardo Lander, Ramón Grosfoguel e outros, ele integra o grupo de pensadores latino americanos críticos da colonialidad del poder (LAN-DER, 1998). De acordo com esta corrente, a modernidade é, grosso modo, um padrão eurocêntrico de poder que alicerçou/alicerça a domi-nação colonial/capitalista, cujo sistema de classificações sociais, sustenta-do prioritariamente na ideia de “raça”, se estendeu pelos séculos XVI ao XVIII-XIX e se transformou na transição para o século XX, traduzindo o que Immanuel Wallerstein chamou de sistema-mundo18.

Quijano afirma ser a América a primeira identidade da modernidade, inaugurando o espaço/tempo de um novo padrão mundial-colonial-ca-pitalista. Assim, a naturalização da categoria mental de “raça” e da pers-pectiva eurocêntrica do conhecimento foram constructos impostos pela dominação colonial. Concomitante a esse processo, constituíra-se uma nova estrutura global de controle das relações de produção, legitimando

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uma divisão social-racial do trabalho. A colonialidad del poder, conceito inaugurado pelo autor foi, portanto, uma das mais ativas determinações no processo de reidentificação histórica, uma vez que foram atribuídas às populações subjugadas novas identidades geoculturais, que ressignifi-cam as diferenças culturais, histórias e epistemologias em prol da disputa dinâmica pelo controle do conhecimento.

Um olhar muito próximo das interpretações de Quijano está presen-te nos escritos de Walter Mignolo (2003). Um desafio proposto em sua obra é compreender e analisar as epistemologias alternativas que coe-xistiram ao longo do processo histórico de construção da modernidade à revelia dos paradigmas do ocidente. Entretanto, não sugere uma nova homogeneidade descolonial calcada no relativismo cultural, mas numa contaminação da mentalidade científica, da construção do objeto na ci-ência, parafraseando Pierre Bourdieu, em suma, numa perspectiva onde intercalamos teoria e ação do sujeito.

Mignolo tem se preocupado em melhor compreender a “geopolítica”19 do conhecimento e a constituição de un pensamiento otro em oposição à razão moderna e, consequentemente, ao racismo epistêmico. Trata-se de um projeto de ruptura epistemológica deslocada do pensamento/espaço europeus, que se firma na busca da “pluriversalidade” (outra concepção de mundo global) como protesto universal e na descolonização do saber e do ser, mediando a construção de um pensamento liminar20. Trata-se de uma crítica à genealogia do pensamento único produzida pelo oci-dente europeu, abandonando, portanto, a noção de modernidade – que, segundo Mignolo, é um relato triunfante dos europeus que enfatiza a superioridade e uma suposta civilidade contra a barbárie dos índios e negros, ou seja, dos “outros”.

Relacionando essas perspectivas, é possível inferir que autores(as) dessas correntes – pós-coloniais e descoloniais – utilizam como elemento central, para suas reflexões, as experiências de insubordinação, sobrevivência, se-dição e negociação dos sujeitos marginalizados em diferentes contextos do mundo Colonial e Pós-colonial. Por outro lado, o Atlântico Negro, se apro-veitado como projeto teórico-metodológico, navega numa direção diferente do pensamento descolonial. Isto não significa, a meu ver, que estejamos

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diante de projetos antagônicos, mas de perspectivas diferentes (e divergen-tes, é claro) quanto à História da Modernidade e sua superação. Na análise de Paul Gilroy, as políticas culturais negras são, grosso modo, intervenções críticas e intrínsecas à modernidade. Tomando algumas experiências negras no Reino Unido, Caribe, América e África (anglófonas), o autor se distancia de qualquer argumento que corrobore com a ideia de que há um pensa-mento descolonial comum, inerente às rotas da escravidão. Pelo contrário, está interessado em compreender como os negros na diáspora restituíram suas humanidades e ressignificaram seus sentidos (re)utilizando os meios e ferramentas do próprio colonizador.

Conforme Paul Gilroy (2001), músicos e outros artistas podem ser en-tendidos como intelectuais orgânicos21 das tradições alternativas “inven-tadas” na diáspora. Nesse contexto, as expressões musicais constituem um veículo fundamental, de modo que a autenticidade de seus discursos e ações não está restrita ao universo das normas da democracia burguesa e do mundo da escrita. Seguindo nitidamente os caminhos dos estudos culturais, bem representados por autores como Stuart Hall, Gilroy tem enfatizado a posição destes sujeitos na construção/legitimação dos reper-tórios da política cultural negra à revelia dos resíduos do colonialismo das “dispersões irreversíveis da diáspora” (HALL, 2003, p. 343); este proces-so tem, na história musical, um registro indelével, haja vista o impacto de expressões sonoras e estéticas de alcance transnacionais, a exemplo do reggae e tantas outras como o jazz, blues, o funk, o rock e o rap.

Em outras palavras, estes músicos são considerados, na definição de Gilroy (2001, p. 164) – em acordo com a perspectiva já apresentada por Hampatê-Bá – como: “[...] guardiões temporários de uma sensibilidade cultural distinta e entrincheirada que também têm operado como recurso político e filosófico”. Portanto, o autor endossa a sugestão de que os músicos e usuários de música, em sua “práxis” subversiva, representam um tipo particular de intelectual.

A difusão transcontinental da musicalidade reggae, que, desde os anos 60, compunha o repertório das lutas contra a violência e a invisibi-lidade social, está associada a outras sonoridades do protesto negro con-temporâneo (GODI, 1997, 1998, 2001; HALL, 2003; SILVA(a), 1995;

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SILVA(c), 2000). Isto implica que o discurso estético-musical desse gêne-ro, registrado nas canções dos álbuns, afasta qualquer impressão de que essa seja uma música pura22! Trata-se, na verdade, de uma “mixagem” que incorpora elementos do rock, rythm n’ blues e é incorporado na cena musical destes outros estilos de matrizes negras (CARDOSO, 1997; WHITE, 1999; DAVIS & SIMON, 1983).

No Brasil, mais precisamente no Maranhão, o trabalho produzido por Carlos Benedito Silva observou, a partir dos depoimentos orais e um rigoroso estudo etnográfico, os espaços das “festas de reggae” de São Luís-MA, em meados dos anos 9023. Tentando compreender as formas de sociabilidade mediadas e de legitimação social das populações ne-gras, bem como suas ações/respostas à marginalização, a partir desses territórios, o autor ressalta ainda que este processo está inserido numa rede transnacional, onde as novas tecnologias de comunicação e repro-dução do som desempenham papel de amplificadoras dessas memórias musicais e aproximam, de modo singular na história humana, as experi-ências de vida desses grupos sociais (SILVA, 1995, p. 129; ver também GODI, 1998). Violentamente excluídos da cidadania ao longo dos sécu-los, negros e negras construíram sua história de modo diacrítico, à revelia de modelos oficiais – resíduos do colonialismo – e tiveram na música um conectivo passado-presente mediador de seus anseios e visões de mun-do. Trata-se de um “descentramento”, como propôs Stuart Hall em seu clássico Da Diáspora, que abre caminho para importantes estratégias de “intervenção no campo da cultura popular” (2003, p. 337).

Esta presença não se dá, como sabemos, sem confrontos e tensões. Muniz Sodré (1988) aborda este universo e aponta a relevância do coti-diano nas ruas como terreno dinâmico apropriado por negras e negros. O autor tece uma crítica brilhantemente contundente ao uso de categorias de análise que não deem conta da diversidade dos espaços urbanos como lócus de afirmação dos grupos e de reinvenção de suas identidades raciais. Em outros termos, Sodré descortina a dialética hegeliana (e sua referência dualista), argumentando serem as práticas musicais, o jogo, o comércio informal das ganhadeiras, em suma, o convívio com a “rua”, elemento formador das “cidades”, não podendo, portanto, se dissociar numa aná-

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lise mais complexa dos processos de formação destes centros. Além de literalmente “enxergar” a experiência negra, apresenta um olhar crítico-epistemológico de fundamental importância para a construção de um ou-tro cânone, engajado com a inclusão, no mundo acadêmico, da presença e sujeição dos(as) afrodescendentes na construção das relações sociais.

Mas quais elementos essas trajetórias nos oferecem para refletirmos melhor sobre a construção de identidades negras? Qual a relação dos processos identitários uma vez que a música conecta universos cultural-mente distintos? É o que veremos a seguir.

“UMA QUESTÃO DE IDENTIDADE”: A MÚSICA REMODELANDO A PERTENÇA

Rituais de negrosUma questão de identidadeUm momento negroUma nova negritude [...] 24

O crescente interesse pelo estudo das identidades passou a integrar a agenda acadêmica dos últimos 30/40 anos, sobretudo pela interven-ção gradual dos movimentos sociais em diversas esferas da sociedade. O próprio conceito de identidade tem sofrido mudanças substanciais nestas últimas décadas como sinalizou Sökefeld (1999) destacando, nesse sentido, o papel impactante da antropologia e deslocando essa referência conceitual de sua definição original da psicologia – onde o significado de “identidade” está associado com características da perso-nalidade do indivíduo. Para ele, o discurso antropológico foi o respon-sável por dimensionar a identidade como marcador do grupo entre si e em relação ao “outro”.

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Paralelamente, o impacto das imigrações transformou demográfica e culturalmente as populações entre os continentes, colocando em crise o nacionalismo de Estado, suas ditas “fronteiras” nacionais e suas arbitra-riedades. O meio acadêmico passa a debruçar-se sobre novas relações co-munitárias e novos sentidos de identidade coletiva, como fez Fredrik Barth desde a década de 60 em suas reflexões sobre os grupos étnicos, balizando o início de uma longa jornada de debates que se mantêm pertinentes até o presente momento25. O conceito de etnicidade, por exemplo, emergiu no meio acadêmico das últimas décadas do século XX como uma categoria que pudesse dar conta destas novas formas de sociabilidade, pautadas em uma dinâmica de exclusão e inclusão que impunha aos grupos sociais novas fronteiras. Compreender estes novos sentidos de pertencimento e as implicações entre ser “nós” e “outro” trouxe, além de um acirramento con-siderável das formas de segregação social, um novo relevo à “pertença” como estratégia de sobrevivência e interação social. O grande destaque de sua análise é considerar a identidade como expressão dinâmica e situacio-nal dos grupos sociais que, dadas as formas de organização social, tendem a se recriar e formar novos arranjos. Nessa abordagem, a identidade não é um conjunto de traços culturais herdados atemporalmente pelas gerações ao longo do tempo, mas reside na renovação e atualização dos traços de autoinscrição, como já sinalizava Manuela Cunha (1979), provocando a antropologia brasileira a questionar as indeterminações entre as formas de representação do lugar dos indivíduos (suas identidades) e a cultura.

Contudo, é importante destacar que, historicamente, o debate sobre identi-dades é revelador dos diferentes “lugares” e sujeitos que se posicionam diante da questão, sejam est@s artistas, educador@s, ativistas etc. As formas de se representar na sociedade e o olhar sobre a cultura e a diversidade está inti-mamente ligado à posição dos sujeitos diante das tensões que caracterizam o mundo que nos cerca – particularmente quando tratamos de grupos que subvertem as formas de exclusão recriando a maneira como eram vistos e redimensionando as formas de sociabilidade. Por isso, contruir-se identitaria-mente traduz um esforço constante de situar-se, deslocar-se e afirmar-se em meio a um conjunto de práticas e discursos presentes desde a infância que são produzidos e reproduzidos por instituições como a família, a escola, as comunidades religiosas, bem como são fortemente representados pela mídia

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em seus muitos produtos culturais. Representar-se como sujeito de sua história tem sido uma árdua escolha política para as populações negras no Brasil que tem suas subjetividades estilhaçadas desde a infância e as veem constante-mente inferiorizadas através de rótulos e estigmas que marcam seus corpos com símbolos de rebaixamento frente ao olhar do outro (MOTA & SILVA, 2011). Em suma, reiterar o debate sobre identidades implica problematizar um terreno das relações sociais onde se perpetuam estereótipos e outras formas de representação pejorativa de grupos marginalizados historicamente em nosso país, bem como, na contramão, se insurgem modelos outros de afirmação dos sujeitos. Nas palavras de Gilroy (2007), a “linguagem distintiva da identidade” serve para mensurar como os vínculos de pertecimento a uma comunidade ou grupo podem estabelecer estilos ativos e alternativos de solidariedade as-sim como firmar politicamente novas fronteiras na sociedade.

O livro do antropólogo Carlos Benedito Silva (2007) traz um debate insti-gante sobre a questão das identidades locais no Maranhão e sua relação com as influências musicais-culturais consideradas “externas”/“estrangeiras”. Ele analisa as posições de alguns segmentos de São Luís diante da influência da presença da música reggae na cidade. A “Jamaica brasileira”, como é chamada a capital do estado do Maranhão, na verdade, vive há algumas décadas uma disputa simbólica pelas identidades. Para o autor, o reggae representa, para a elite dominante (literalmente falando), uma ameaça ao status de “Atenas bra-sileira”. Ele apresenta um conjunto de argumentos que ratificam o estranha-mento, entre eles, a justificativa de ser este um gênero da música internacional, logo, contrário às raízes genuinamente brasileiras26. Um ponto relevante de seu trabalho é analisar a relação tradição-modernidade como conflituoso “diálogo criador”, onde o global não substitui o local. Para o autor:

“[...] tanto as rupturas da tradição quanto as contradições da modernida-

de permitem este diálogo, mostrando que mesmo nas culturas aparente-

mente “fechadas” à modernidade, a pluralidade se insinua, determinan-

do os ritmos da identidade” (SILVA, 2007, p. 42).

Tomando como referência a noção de diáspora negra como situação de rompimento-recriação de laços identitários das populações de matriz africana, o conceito de identidade apresenta-se do modo potencialmente criativo e sugestivo. Nas palavras de Carlos B. Silva:

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“[...] esses processos interativos possibilitam também aos diferentes gru-

pos localizados que são atingidos pela dinâmica da mundialização da cul-

tura, escolher, baseados em suas raízes étnico-culturais, novos elementos

que, a partir de uma ressignificação, passam a ser retratados como ex-

pressão de sua identidade” (SILVA, 2007, p. 45).

Desse modo, a recusa por parte dos supostos guardiões da identidade na-cional (ou maranhense) às influências “externas” da música pode constituir-se num critério para marginalizar contraculturas da música negra na diáspora, como é o caso do reggae, reduzido ao rótulo de música internacional e, neste sentido, inautêntica. A presença recente deste estilo musical tem fertilizado au-toidentidades fundamentais à (re)inserção das demandas e perspectivas das populações negras, como destacamos, na Bahia. Visto aqui com uma das tra-dições inventadas de expressão musical dos negros na diáspora, no contexto contemporâneo, o reggae é uma contracultura musical (re)produzida no Atlân-tico Negro, portanto, um gênero musical transnacional.

É fundamental considerar que categorias como “raça” ou “cultura negra”, que têm sido ressignificadas, podem ser interpretadas como mais próximas da experiência concreta de autoafirmação ou combate à invisibilidade. Portanto, pode se considerar que, no Brasil, os me-canismos de exclusão e desigualdade passam pelo apelo à negação racial do negro (assim como de outros grupos étnicos subjulgados historicamente), por isso os movimentos sociais têm realçado a im-portância da autoafirmação na noção de “raça” neste embate27. O conceito de “raça” opera então para além do sentido universalista raça como definição genérica/homogênea do ser humano em dife-renciação às outras formas de vida orgânica. A produção fonográfica analisada neste livro apresenta, repetidas vezes, o termo “raça” para destacar/afirmar o sentido político da palavra “negra/o”.

Ainda nesse sentido, a noção de cultura também pode ser entendida em sentido mais completo, dinâmico: um terreno igualmente ambíguo que ganha diferentes formas de definição, de acordo com uma determi-nada realidade social figurada. É, portanto, no interior desses limites que me refiro à noção de “cultura negra”. As experiências de (nós) afrodes-cendentes têm redesenhado, definitivamente, a concepção de cultura.

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Pode-se afirmar que os resultados musicais produzidos no universo das populações negras na Bahia sugerem uma reflexão mais plural da noção de cultura e do engendramento de novas identidades. O reggae, em especial, aponta para diversas alternativas à invisibilidade social de um ou mais grupos identificados por sentidos, valores e símbolos étnicos de negritude. Nesse movimento, construiu-se uma “cultura musical” – de conteúdos críticos e estética contundente – que tem afetado, de manei-ra especial, as dimensões identitárias e do pertencimento, e constituído, assim, uma lógica própria de representação, pautada na inserção social do grupo étnico-racial. Portanto, o que vem sendo chamado aqui de identidades negras não é um conjunto de características intrínsecas (ou naturais) aos negros e negras, mas engloba uma noção política de per-tencimento construída na tensão entre um processo histórico de mar-ginalização do negro na sociedade brasileira e as inúmeras respostas, propostas e alternativas apresentadas por estas populações, como as canções registradas nos discos que compõem os repertórios da música negra produzida em algumas cidades da Bahia. As identidades negras são, enfim, uma posição política plural de defesa da diversidade e que “implica a construção de um olhar de um grupo étnico/racial ou de sujei-tos que pertencem a um mesmo grupo étnico racial sobre si mesmos, a partir da relação com o outro” (GOMES, 2003, p. 172).

Tomando a música como referência, percebe-se que os discursos pre-sentes nos documentos fonográficos e canções, bem como no universo que as cercam, edificam-se em uma dinâmica contingente de alteridade. O impacto destas frequências musicais foi decisivo na Bahia, nos últimos 30 anos, compondo a cena plural dos movimentos políticos e culturais em consonância com o posicionamento das militâncias negras urbanas. Repertório das lutas contra a exclusão e a invisibilidade social, as ondas de Kingston – capital jamaicana – reassumem novos caminhos, sonori-dades e referenciais de etnicidade, constituindo um resultado singular de afirmação desta cultura conectiva que atraiu diferentes grupos “nacio-nais” e foi responsável por revisitar uma visão de mundo intercontinen-tal, representando, logo, um exemplo genuíno de “estilo étnico de status global” (Cf. Gilroy, 2001).

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Nesse sentido, é pertinente estudar as “sonoridades” da vida cultural na diáspora afro-latina, problematizando a noção de Atlântico Negro (ibid.) e suas reflexões sobre o repertório das práticas musicais no âmbito das “tra-dições populares” negras, como o faremos mais à frente. Podemos afirmar ainda que, no bojo das expressões musicais de maior disseminação mundial a partir da segunda metade do século XX, o reggae é um “estilo de músi-ca negra que tem seu pertencimento em loci variados do planeta” (GODI, 1998, p. 275). Ele transcende as fronteiras linguísticas e nacionais, e enca-deia outros laços de etnicidade sobre (e em torno da) produção artística e histórica do negro. Incorporando novos sentidos, em sintonia com “aspectos tenazmente locais” (SANSONE, 1997, p. 221) e para além do mundo angló-fono, a disseminação deste gênero em águas brasileiras representa mais uma das muitas confluências da cultura negra. Portanto, tornou-se imprescindível à compreensão desta ressonância, investigar sua existência idiossincrática na Bahia. Nesses ritmos, fundiu-se uma visão mítica sobre África ancestral e contemporânea que levam em consideração a diáspora como produto e desdobramento da escravidão e posiciona-se, acima de tudo, como laço transnacional entre sujeitos que têm em comum as mesmas raízes, diferentes origens e um presente semelhante. Em outras palavras,

“[...] deslocadas de suas condições originais de existência, as trilhas sono-ras dessa irradiação cultural africano-americana alimentaram uma nova metafísica da negritude ‘elaborada e instituída na Europa e em outros lugares’[grifo nosso] dentro dos espaços clandestinos, alternativos e públi-cos, constituídos em torno de uma cultura expressiva que era dominada

pela música” (GILROY, 2001, p. 175).

A irradiação do reggae colocava a Jamaica em destaque como uma das importantes referências de sublevação do terceiro mundo, alterando a geopolítica da cultura. A produção fonográfica, bem como as demais fontes analisadas no período em foco neste livro são bastante elucida-tivas do processo de subversão que marcou muito particularmente um novo referencial político-identitário – de uma Jamaica reinventada – e que serviu amplamente como referencial de resistência e (re)existência da população negra, bem como em sua ação na ruptura da dinâmica racial que operava/opera na sociedade.

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VIRANDO JAMAICA

A década de 1980 chegava ao mundo com ar de novidade! Na mú-sica brasileira, diversos artistas que agitaram os palcos e outros meios de comunicação nos decênios anteriores se consagravam como referências da contracultura daquele momento no país. A cena sociocultural e políti-ca, vivenciada dentro e fora do Brasil ao longo da década de 70, era epí-logo para os conflitos sociais que marcaram os últimos suspiros do século XX. O esgotamento do regime totalitário-militar brasileiro e a revoada de movimentos sociais civis, de todas as ordens, são parte de um contexto mais geral alterado: pelo impacto das lutas civis; pela descolonização das mentes e dos povos – no continente africano e na diáspora negra – do arcaico domínio europeu (HALL, 2003; SILVA, 2000); pela ascensão das ações do movimento Black Power norte-americano e pela visibilidade emergente de novas manifestações de pertencimento negro presentes na música, no cinema e na televisão28. Essas imagens ressignificadas foram transformadas em símbolos e sinais de identificação dos jovens afro-brasileiros29. As trilhas sonoras daquele período foram sensivelmente percebidas nos repertórios de inúmeros artistas brasileiros, um resultado criativo que é hoje parte significativa de nossa memória musical30.

A emergência de movimentos sociais que pautavam a inclusão social do negro marcou definitivamente a história recente do Brasil. Na Bahia, a fundação de diversas entidades político-culturais como os blocos afro Ilê Aiyê (1974), Olodum (1979), Male Debalê (1979), Muzenza (1981), assim como a fundação do Movimento Negro Unificado (1978), enun-ciava a mobilização de inúmeros agentes em torno do debate das de-sigualdades étnico-raciais, propondo assim novas políticas à sociedade brasileira (SILVA, 2000c; RISÉRIO, 1981; GODI, 1997)31. Interagindo com renovadas estratégias de intervenção na vida pública, esses agen-tes propunham uma leitura para o país e seus desenhos futuros (leia-se democratização) que levava em conta as desigualdades étnico-raciais na história e na realidade brasileira.

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Os impactos destas agitações ecoaram nas décadas de 80 e 90, palco de contínuas movimentações de artistas negros que dedicaram suas te-máticas e atividades (música, dança, teatro, artes plásticas, literatura, poe-sia...) à pesquisa e resgate de um passado ancestral de matrizes africanas, identificado com a luta contra a invisibilidade social de negros e negras, o que construiu, assim, um novo paradigma de mobilização social. Em ou-tras palavras, os anos 80 parecem menos uma “década perdida”32 se vistos à luz dos movimentos políticos e culturais da população negra.

É nesse contexto que o compositor-músico-cantor baiano Gilberto Gil, um dos personagens mais influentes e controversos da música popular bra-sileira no século XX, consolidava sua carreira pelo experimentalismo e pela sintonia com as influências e tendências sonoras de circulação mundial. Sua trajetória musical, iniciada nos anos 60, se entende até os dias atuais incluin-do no currículo uma intensa participação na vida política do Brasil pré e pós-ditadura. Cofundador do movimento tropicalista, o artista é conhecido ativista político-cultural, inclinação que lhe rendeu intensas perseguições, al-guns anos de exílio em Londres33 e uma vasta produção musical reconheci-damente cosmopolita. Para além da imagem ora vanguardista, ora diplomá-tica (haja vista sua participação como Ministro da Cultura do Governo Lula entre 2002-2008), Gilberto Gil é, sem dúvida, uma das importantes referên-cias na inserção e diálogo com as principais tendências da música negra de dentro e fora do Brasil, e especialmente a música afro-jamaicana.

A regravação da canção “Não Chore Mais” (disco: Realce, 1979), ver-são de Gil para “No Woman, No Cry”, de Vincent Ford – já citada em um dos contos da minha vida particular – imortalizada por Bob Marley & The Wailers e, também, pelo próprio Gil, trata de uma postura manifesta de revolta e esperança em uma nova perspectiva de sociedade, de um novo tempo sem a violência política que tanto marcou as sociedades do terceiro mundo nesta segunda metade de século XX, violência esta contra a qual Gil e Marley foram alguns de seus combatentes mais conhecidos. Essa era, a propósito, a intenção original de Gil, como se vê em seu relato:

“Eu pensava na transposição de uma cena jamaicana para uma cena brasileira o mais similar possível nos aspectos físico, urbano e cultural. Emblemática do desejo de autonomia e originalidade das comunidades

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alternativas, ‘No Woman, No Cry’ retratava o convívio diário de rastafáris no government yard (área governamental) em Trenchtown e a persegui-ção policial, provavelmente ligada à questão da droga (maconha) que eles sofriam. Essa situação eu quis transportar para o parque do Aterro, no Rio de Janeiro, também um parque onde localizei policiais em vigília e hippies em rodinhas tocando violão e passando fumo, como eu cos-tumava vê-los de noite na cidade. Coincidindo com o momento e que a abertura política estava começando, ‘Não Chore Mais’ acabou por se referir a todo período de repressão no Brasil”34.

Observando a letra da canção temos:

NÃO CHORE MAIS(Gilberto Gil, 1979)Bem que eu me lembro

Da gente sentada aliNa grama do Aterro, sob o sol

Ob-observando hipócritasDisfarçados, rondando ao redor

Amigos presosAmigos sumindo assim

Pra nunca maisTais recordações

Retratos do mal em siMelhor é deixar pra trás (...)

Não, Não Chore maisNão, Não Chore mais

Menina, meninaNão chore assim35

A letra em português, com leves adaptações traduz o sentimento da versão original gravada pelos Wailers:

(…) ’Cause I remember when we used to sitIn the government yard in Trenchtown

Oba-observing the hypocritesMingle with the good people we meet

Some friends we haveSome friends we lost

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Along the wayIn this Future you can’t forget your past

So, dry your tearsAnd don’t shed no tears

No Woman no CryNo Woman no Cry 36

Há que ser considerado ainda que a metáfora da dor como transição é um conectivo comum entre as muitas histórias de sobrevivência no Atlântico Negro e está traduzida em muitos de seus repertórios. Esta analogia nos remete ainda ao que Gilroy (2001) chamou conceitualmente de “sublime es-cravo” (slave sublime): um traço característico das culturas construídas pelos escravos – e legadas a seus descendentes – de sublimação da dor pelo prazer no processo criativo da construção de seus modos de comunicação.

No álbum Realce, outras linguagens explícitas vão ilustrar esta inte-ração com as novas “metafísicas de negritude” em trânsito naquele con-texto. A capa traz uma foto de rosto do autor que enfatiza, além de sua convidativa (e provocativa) descontração, o uso de uma estética negra nos cabelos e adornos, inspirada nos muitos penteados afro-brasileiros e, arrisco, nos dreadlocks afro-jamaicanos. A música reggae trouxe, com sua ampla bagagem de signos, o uso do cabelo como forte representação étnico-identitária37.

Para além disto, as canções que compõem esse álbum abordam algu-mas sonoridades e temáticas que fazem parte do universo de referências socioculturais abertamente marginalizadas na sociedade e que estão as-sociadas à história das populações negras. Além da presença marcante do ijexá, ritmo oriundo do candomblé tocado no espaço da rua, a temáti-ca própria do candomblé é explícita em canções como “Longunedé”, em que Gil canta a mitologia ancestral da divindade afro-brasileira, marca esta registrada em outros discos anteriores e posteriores de sua carreira, o que confere visibilidade a esta cosmovisão de matriz africana.

É uma opinião compartilhada por muitos que este é, do ponto de vista da produção fonográfica, um dos principais marcos da chegada do reggae no Brasil (GODI, 2000; SILVA, 2000a). Em entrevista com o

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radialista, produtor cultural e colecionador Clóvis Rabelo, que trabalha há mais de duas décadas com a produção e divulgação do gênero na Bahia, ele cita um momento bastante ilustrativo dessa história quando perguntado sobre a primeira vez que teve contato com o reggae. Nas palavras de Clóvis Rabelo:

“[...] em 1980, ou foi 79, que eu não me lembro, quando eu fui assistir um show de Gil na Escola de Teatro [da Universidade Federal da Bahia, em Salvador] ele falou, voz e violão, que ele ia cantar a música de um ja-maicano que era sucesso e ele cantou ‘No Woman no Cry’. Foi a primeira

vez que eu ouvi... E daí pra cá começou [...]”38.

Ainda diante destas evidências, não podemos deixar de considerar, como o fez Godi (2001), que a presença do calypso caribenho nos anos 60-70 (forte estilo influenciador do reggae) foi um dos agentes fertili-zadores das sonoridades afro-caribenhas no terreno cultural e musical em muitas cidades brasileiras, como Salvador e São Luís do Maranhão (SILVA, 1995).

Considero, portanto, que a aproximação (inseparável) do reggae com o estilo citado, no Brasil, contou com uma conjunção de fatores que dizem respeito ao contexto político-cultural e étnico-identitário que pairava sobre a Bahia e outros territórios do Atlântico, em consonância com a consolida-ção do reggae na indústria fonográfica mundial, no contexto da contracul-tura dos anos 70. Acrescente-se a isto a condicionada entrada do gênero na cena da música inserida no mercado mundial de entretenimento.

Essa trajetória vem sendo abordada pela bibliografia esporádica que vem sendo produzida sobre o reggae (SIMON & DAVIS, 1983; WHITE, 1999; ALBUQUERQUE, 1997). Em todos esses trabalhos tem sido co-mum destacar que a aceitação pública do reggae contou com um certo trabalho de conversão do público, tentando aproximar a mensagem do roots reggae às influências da música negra de maior circulação no mer-cado internacional de então, especialmente o rock e o rhythm & blues. O documentário Catch a Fire (1999) é uma fonte valiosa para apreciar a questão, pois apresenta a trajetória de gravação do álbum dos Wailers lançado em Londres (1972), narrada por alguns dos principais agentes

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envolvidos (músicos, engenheiros de som, produtores) além de registros raros da realidade social de Kingston e Londres à época. Esse disco39

representa um marco da indústria fonográfica mundial por inúmeras ra-zões: o conteúdo fortemente político e declaradamente étnico-identitário são marcas indeléveis, paralelamente ao uso de tecnologias alternativas de gravação e mixagem, que tornaram possível produzir uma musicali-dade híbrida, com forte apelo às populações do Atlântico Negro angló-fono. Além disso, a inserção, em Londres, de instrumentos e sonoridades mais conhecidas pelo público, colocava o reggae jamaicano no centro da indústria fonográfica internacional (através da gravadora Island), for-talecendo, consequentemente, as contraculturas negras no contexto do capitalismo dos anos 70. Na opinião do produtor-tradutor dos Wailers, Cris Blackwell, o grupo deveria atingir o mercado fonográfico da Inglater-ra e EUA, apresentando-se ao mundo como um “grupo negro de rock”. A capa de Catch a Fire com formato de isqueiro também representou uma forte estratégia para o mercado, bem como se consolidou como uma das obras-primas da história da indústria fonográfica. Nas palavras dele: “Catch a Fire foi um acontecimento”40. Bunny Livingston (um dos fundadores dos Wailers) descreve, no documentário, esses episódios com as seguintes palavras:

“Eu, Bob e Peter precisávamos encontrar uma forma que fosse aceitável. Nós resolvemos fazer um ritmo bem marcado que sugerisse os princípios básicos do reggae e depois poríamos um pouco de cor aqui e ali que não afetaria o

princípio básico, mas que atrairia o mercado internacional”41.

Ainda comentando as estratégias de sedução mercadológica in-trínsecas à edificação da música reggae, o baixista Aston “Family Man” Barret, que teve papel crucial na formação musical dos Wai-lers – ao lado do irmão baterista Carlton Barret – desde o início da carreira, afirmou:

“A música reggae é a batida do coração do povo. É a linguagem universal. E quando ele bate você não sente dor... Estávamos tentando nos expressar com as letras na melodia. Fazendo um reggae roots com um sabor R&B [rhythm n’blues] para que se espalhe”42.

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Nas palavras do músico, percebe-se como os componentes musicais diaspóricos foram rearranjados para compor um gênero singular. Carlos Albuquerque, no livro O Eterno Verão do Reggae, acrescenta que o su-cesso da canção “I Shot the Sheriff”, de Bob Marley, teria alavancado novamente a carreira do guitarrista Eric Clapton e, em contrapartida, provocado o maior interesse das gravadoras na música jamaicana que, diga-se de passagem, já contava com um time considerável de músicos, produtores, estúdios de gravação, rádios, etc.43.

É interessante considerar, com efeito, a grande inversão histórica que este fenômeno provocou. A música reggae foi o estilo que deu, além de divisas para a Jamaica e alguns de seus artistas, o primeiro astro pop do terceiro mun-do e uma nova referência étnico-identitária que alteraria profundamente as políticas culturais negras em todo o Atlântico Negro. Este fato está diretamente associado à centralidade simbólica que a Jamaica passa a assumir entre artis-tas e outros intelectuais orgânicos em outros países, como o Brasil.

A presença inusitada da música afro-jamaicana seria percebida pelo registro sensível da faixa “Nine Out of Ten”, do disco Transa (1972), de Caetano Veloso, arranjado por Jards Macalé – contemporâneo ao lan-çamento de Catch a Fire (dos Wailers) – como sugere a letra da canção, conquanto Caetano nunca tenha feito alusão enfática ao reggae como contracultura musical, tal qual fez ao rock:

NINE OUT OF TEN(Caetano Veloso, 1972)

Walk down Portobello road to the sound of reggaeI’m alive

The age of gold, yes the age ofThe age of old, the age of gold

The age of music is pastI hear them talk as I walk yes

I hear them talkI hear they say

Expect the final blastWalk down Portobello road to the sound of reggae

I’m alive […]

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Além da explícita referência, chamou-me especialmente atenção as citações de abertura e encerramento em que se apresenta uma vinheta, que insinua uma tentativa de reproduzir o som do reggae jamaicano (o resultado é ainda muito próximo de um rocksteady) e que se disse-minava pelo mundo via Londres e muito mais timidamente os EUA. Nesse caso, a interação da sonoridade enunciando a mensagem que se complementa pelas informações da letra é algo digno de referência pela percepção pioneira do artista, apesar de menos indicativo de uma relação mais próxima com a divulgação do reggae e sua inserção no mercado fonográfico brasileiro.

É precisamente na passagem para os anos 80 que o reggae passa a ter maior reverberação no Brasil. A sintomática gravação de Gilberto Gil abriu, em certo sentido, as portas para o gênero no mercado fonográfico brasileiro. Esse era, precisamente, o entendimento da gravadora alemã Ariola (associada da inglesa Island, de Cris Blackwell), que trouxe Bob Marley, acompanhado de Jacob Miller (Inner Circle), Junior Marvin (The Wailers) e outros músicos jamaicanos ao Rio de Janeiro, em março de 1980, para um evento de divulgação do seu staff de artistas. Como afir-ma Leo Vidigal, Bob Marley era a grande aposta internacional do selo no país, sobretudo depois da bem recebida gravação de Gilberto Gil (versão de “No Woman, No Cry”) pelo público e do lançamento do álbum Survi-val 44, que “já estava girando nos toca-discos de 10 mil brasileiros”45.

Apesar de tratada com razoável expressão pelos veículos de imprensa da época, segundo Vidigal (2006), a passagem de curta duração do ídolo jamaicano também deixou marcas em sua obra musical, como atesta o som da cuíca presente na gravação de “Could You Be Loved”, composta por Marley durante o vôo da viagem de volta, como afirma Blackwell46. Deixou também memórias interessantes para alguns músicos baianos da-quele período. Moraes Moreira, um dos contratados da Ariola à época, esteve presente em muitos momentos da visita e compôs, segundo o próprio, uma canção-homenagem ao músico47. Para o reggaeman baia-no Tonho Dionorina, a passagem de Marley lhe renderia, por motivos adversos, uma busca pela obra e música reggae. Em sua entrevista, ele comentou sobre sua impressão do episódio e relatou que entre suas idas

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e vindas para o Rio, ao longo dos anos 70, teve a oportunidade de ter os primeiros contatos com o reggae. Nos anos 80, com a passagem de Marley pela cidade, o músico comenta, com certo pesar, suas tentativas infelizmente mal sucedidas de encontrar pessoalmente o artista jamaica-no. Segundo Dionorina, o fato o estimulou a pesquisar a música de Bob Marley. Nas palavras dele, “foi o desencontro para o encontro [...]”48.

O fato é que a presença de músicos jamaicanos reconhecidos, a partir daí, passava a fazer parte, ainda que esporadicamente, da agenda cultural brasileira e baiana. De acordo com o Sr. Carmelito Carvalho, colecionador há mais de três décadas e admirador confesso da vida e obra de Peter Tosh, o cofundador dos Wailers esteve no Brasil (em 1980) participando de um capítulo da novela Água Viva, exibida no turno da noite ao lado do intérprete (e então ator) Fábio Júnior e da protagonista Tônia Carreiro. Além dessa passagem, sabe-se que Tosh esteve no Brasil em outra ocasião para uma apresentação musical no 2º Festival de Jazz de São Paulo49.

Outra presença de destaque no país, e mais especialmente na Bahia, foi o cantor, compositor e intérprete Jimmy Cliff. Pelas correntes sonoras do Atlântico Negro, Cliff já estabelecera uma relação com o Brasil que remonta a fins dos anos 60, quando de sua participação no Festival Inter-nacional da Canção (GODI, 2001) e como aponta o raro LP Jimmy Cliff in Brazil (Philips, 1968). O registro raro (não se trata de reggae, diga-se) contém doze faixas, dentre as quais, versões de canções da música po-pular brasileira, interpretadas pelo então jovem cantor jamaicano como: “Serenou”, cantada em português (pouco fluente, leia-se) e “Andança”, numa versão intitulada “The Lonely Walker”.

Em fins dos anos 70, Jimmy Cliff apresentou ao público brasileiro o álbum Follow my Mind (WEA, 1977), lançado inicialmente como com-pacto, já contendo a canção “No Woman, No Cry”. O novo momento que vivia a música afro-jamaicana em fins dos anos 70 e propriamente as mobilizações sociais de cunho étnico-identitário protagonizadas pelos gru-pos negros citados, trariam-no novamente ao Brasil e, mais exatamente, à Salvador, no início dos anos 80, onde fixou residência e, durante algum período, apresentou-se com artistas como Gilberto Gil e Lazzo Matumbi.

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Em suma, àquela altura o reggae era, além de convidado VIP do mainstream das gravadoras, um estilo musical de forte conteúdo crítico-social e étnico-identitário amplamente divulgado e “cultuado” em toda a América, como afirmou Carlos Albuquerque (1997). A década que suce-deu 1980 foi arena política e cultural onde o gênero também se apresen-tou como alternativa musical. A (auto)afirmação desta musicalidade em terreno baiano foi produto de uma série de episódios, ora de aceitação, ora de enfrentamento que, uma vez registrados “sob o signo do som”, para citar os “malungos” do estado vizinho50, tornaram-se alvo deste tra-balho de pesquisa.

Compreendo, portanto, que o reggae se inscreve em uma relação complexa de intercâmbio e invenção de novas alternativas sociais e políticas mediadas pelo poder expressivo da música. Nesse sentido, a interpretação que se propõe aqui tenta inserir novas questões para a compreensão da sociedade baiana à luz, e ao som, destas tradições inventadas no contexto recente51. Aponta exatamente para a história de múltiplos enredos e novas tradições musicais, já há muito perce-bida pela socioantropologia da música baiana e registrada de modo criterioso pela antropologia episódica de Goli Guerreiro, com uma ressalva básica: em tempos onde a disputa contra o silêncio (racializa-do) foi demarcada pela polifonia de cantos e toques autoidentificados com a ideia de negritude, é prudente analisar com suspeição a trama alegre de seus tambores52.

Retomando a periodização sugerida lá atrás, percebe-se que é propria-mente a partir desse contexto que se registra o conjunto de trabalhos mais emblemáticos da influência do reggae no Brasil. Um dos primeiros registros desta presença no país é o raro álbum Bahia Jamaica (1979) de Chico Evangelista e Jorge Alfredo, que consagrou canções como “Rasta Pé” e “Reggae da Independência” em festivais de música e nas rádios. O título do álbum é singularmente sugestivo à época, com seu o apelo à identifica-ção entre duas regiões do Atlântico fundidas num mesmo substantivo com-posto (Bahia Jamaica). A faixa homônima tem uma letra extremamente curiosa que tematiza a sabedoria ancestral das “muitas canções que falam do mar” e o encontro dos países pelo bater dos tambores:

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BAHIA JAMAICA(Chico Evangelista e Jorge Alfredo, 1979)

Quem falouTem a cabeça branca

A pele morenaDe muitas cançõesQue falam do marDo mar a Bahia

Tambor que bate aquiTambor que bate lá

Bahia-JamaicaUm ponto de encontro

Entre eu e você

À altura da estrofe: “tambor que bate aqui, tambor que bate lá” sobre-põe-se a sonoridade de atabaques e agogôs (em compasso 6/8), num tra-ço característico de alguns sons rituais do candomblé, que se associa ao argumento central da canção e que se sintetiza no refrão: “Bahia Jamaica um ponto de encontro entre eu e você”. Esta citação de sons é sintomá-tica de uma musicalidade identificada com a valorização das expressões e manifestações negras. É ainda presença marcante, no Bahia Jamaica, a marcação peculiar e característica do reggae (compasso 4/4 com o 2º e 4º tempos fortes nos instrumentos de harmonia, em contraponto com a marcação pulsante da bateria no 3º tempo) ao lado de linhas percussivas de ijexá, fazendo referência ao ritmo tocado pelos afoxés de Salvador. A faixa “Reggae da Independência” que trata do 2 de Julho (marco da Independência do Brasil, na Bahia do século XIX) é um outro exemplo que atesta este argumento. Mais uma vez, as sonoridades dos atabaques, xequerês e agogôs estão presentes na narrativa musical do festivo histó-rico. O universo percussivo está fundido com outros elementos elétricos além do híbrido violão ovation marcando o balanço (ou batida) reggae.

É interessante como algumas imagens do disco ilustram esse sentido de pertencimento mediado pelo “mar”. A contracapa e encarte do álbum trazem fotografias, dentre as quais algumas em que Chico Evangelista e Jorge Alfredo estão imersos nas águas do mar. Esta representação é pro-fundamente simbólica, uma vez que reforça uma noção de identidade a

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partir do Atlântico. Esse recurso, presente em outros registros fonográficos da década de 80, ilustra uma posição compartilhada por outros artistas que fazem parte dos repertórios do protesto negro na Bahia.

Entre estes, destaca-se o cantor e compositor Lazzo Matumbi, uma das mais emblemáticas referências da música baiana fora do Brasil. Lazzo, durante os anos 70, foi cantor do bloco afro Ilê Aiyê e ativista da música negra. Sua contribuição à divulgação das frequências ja-maicanas no Brasil é imprescindível. Profundamente influenciado pelo reggae, transitou por vários países do mundo integrando o time de mú-sicos em uma das turnês do jamaicano Jimmy Cliff53.

Lazzo entrou para o mercado fonográfico com o raro compacto sim-ples Salve a Jamaica (1981)54, deixando muito explícita a sua aproxima-ção com a tendência jamaicana e outras matrizes da música negra. No entanto, em 1983, ao lançar seu primeiro LP Viver Sentir e Amar 55, o artista revela sua inclinação polifônica buscando atingir um público bas-tante diversificado56. A faixa de abertura “Do Jeito que seu Nego Gosta”, de Zelito Miranda e Lazzo, projetou-o para um reconhecimento maior, aliado ao fato de ser o disco distribuído pela gravadora multinacional EMI-ODEON. Neste álbum, o reggae é citado entre os muitos gêneros da música negra interpretados pelo cantor.

Um dado importante diz respeito à banda corresponsável pelos arranjos de base do álbum, a banda Studio 5. Em muitas conversas com músicos e produtores, bem como nas entrevistas realizadas, a Studio 5 é citada como uma das primeiras bandas de reggae da Bahia. Não por coincidência, mui-tos músicos dessa banda gravaram outros álbuns importantes do reggae baiano, a exemplo de Reggae Resistência de Edson Gomes (1988), que será analisado mais adiante. Ao se referir a este grupo, o radialista Clóvis Rabelo, bem como outros entrevistados, mencionaram a importância dele como um dos pioneiros a tocar o gênero na Bahia.

Na verdade, há na fala dos entrevistados uma certa polarização em torno desse dado. O interesse em datar o pioneirismo do “fazer” reggae na Bahia é, de certo modo, alvo da maioria dos músicos e produtores culturais que pude dialogar. Na fala de Clóvis Rabelo, que reforça o pio-

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neirismo soteropolitano, é possível perceber uma breve tensão em torno do termo reggae. Em outras palavras, a maior visibilidade dos músicos de Cachoeira (Edson Gomes, Geraldo Cristal, Sine Calmon, Nengo Vieira e outros) deve-se a maior popularidade que estes ganharam no mercado da música no estado. Entretanto, Rabelo faz uma ponderação em torno do termo reggae que me parece plausível comentar. Ao referir-se à Studio 5 em comparação aos Remanescentes, grupo de músicos, compositores e intérpretes da cidade de Cachoeira, Rabelo pondera:

“[...] o Studio 5 era uma banda de reggae, mas ele não tinha aquela fi-losofia reggae, pra mim mesmo a primeira a banda de reggae mesmo foi a Remanescente, porque os caras eram reggae, os caras ‘comia reggae’,

‘respirava reggae.”

A ênfase no Remanescentes como um grupo “legítimo” de reggae pode estar associada à maneira como os músicos interagiam e se colocavam diante da sociedade. Segundo Bárbara Falcón (2001), os Remanescentes de Cachoeira se destacavam pelo estilo de vida coletiva que lhes rende-ram, além de um aprofundamento razoável nos “fundamentos” musicais do reggae, uma intensa resignação cristã pentecostal. De todo modo, sabe-se que parte desse grupo de músicos atuou na Studio 5 e em parte impor-tante das gravações de Edson Gomes no início de sua carreira57.

Opinião diferente atesta o cantor e compositor Jorge de Angélica, que registra uma versão diferenciada e bem disposta do marco inaugural do reggae baiano. Segundo ele, a primeira expressão musical do gênero fei-to na Bahia teria nascido em Feira de Santana com a fundação da ban-da Gana, em início dos anos 80. Jorge de Angélica é enfático ao situar sua militância no reggae anos antes da aparição de Edson Gomes como reconhecido representante baiano do gênero. Sua fala revela, como Ra-belo, um interesse explícito na hegemonia da fundação do reggae. O que nos parece é que as diferentes narrativas fundacionais revelam também a disputa em torno da construção da memória.

O interessante nessas posições é notar que há em comum um mesmo marco cronológico, qual seja, o início dos anos 80. Isto me leva a consi-derar que, se por um lado, há um interesse político na disputa pela he-

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gemonia do marco inaugural, há também em comum um contexto que se apresentava favorável à incipiente proliferação do reggae como uma música executada por músicos baianos. Em suma, é propriamente nesse contexto que começam a brotar os grupos musicais identificados com a proposta desta musicalidade58.

Sintomaticamente, ainda nos anos 80, novamente Gilberto Gil traria ao público outra referência importante para a edificação da influência do reggae na música brasileira. O lançamento de Raça Humana (1984) tem forte influ-ência das tecnologias de gravação e sonoridades utilizadas pelos jamaicanos. Este disco, coproduzido por Liminha, inclui uma faixa gravada com os Wailers nos estúdios Tuff Gong de Kingston. “Vamos Fugir”, a faixa gravada com os jamaicanos, é uma das canções de maior destaque na obra.

No entanto, outros elementos chamam a atenção nesse registro. O primeiro deles é o uso de timbres de guitarra e sintetizadores, além de realçadas frequências graves e linhas sinuosas de contrabaixo, a exem-plo da canção homônima ao álbum. Além destes aspectos, relevantes à compreensão da gama de sentidos em diálogo na produção de uma obra fonográfica, Raça Humana traz uma canção muito ilustrativa da posição do artista frente às políticas culturais afrodescendentes:

A MÃO DA LIMPEZA (Gilberto Gil, 1984)

O branco inventou que o negroQuando não suja na entrada

Vai sujar na saída, êImagina só

Vai sujar na saída, êImagina só

Que mentira danada, êNa verdade a mão escravaPassava a vida limpandoO que o branco sujava, ê

Imagina sóO que o branco sujava, ê

Imagina sóO que o negro penava, ê

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Mesmo depois de abolida a escravidãoNegra é a mão

De quem faz a limpezaLavando a roupa encardida, esfregando o chão

Negra é a mãoÉ a mão da pureza

Esta leitura musical da História do Brasil, às avessas da historiografia oficial, denuncia a segregação sociorracial e aborda a participação d@s negr@s desde as ocupações socialmente desprivilegiadas à edificação de uma sociedade “limpa” do racismo.

Em linhas gerais, fica visível que a produção fonográfica deste primei-ro período dialogava com um sentido de antirracismo, que reivindicava o reconhecimento do racismo pela sociedade como um problema histórico por ser reparado. As manifestações nos discos são ecos de sucessivas movimentações sociais nos mais diversos contextos urbanos do país.

A BABILÔNIA DO SERTÃO E SUAS CHAMAS

O silêncio em torno dos movimentos sociais negros na região de Feira de Santana (particularmente no contexto da reafricanização) está ainda por ser preenchido pelos estudos acadêmicos, dado que também se refle-te na lacuna de estudos que tratem do universo sociocultural desta cidade – um dos principais centros de confluência do Brasil. Respondendo a esta demanda, alguns trabalhos produzidos recentemente chamam a atenção. Investigando as experiências das mulheres negras na virada do século XIX para XX, o valioso estudo de Karine Damasceno (2011) aponta para o embrião de uma trajetória de resistência – e (re)existência – da popula-ção negra pobre de Feira de Santana, concomitante com o processo de transformação urbana do período. Com abordagem pioneira, a historia-

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dora sinaliza para a ativa participação da população negra, notadamente das mulheres, impondo suas formas de sobrevivência numa sociedade visivelmente marcada pelas hierarquias da escravidão59.

Outro trabalho recentemente produzido é a tese de Josivaldo Pires de Oliveira, defendida em 2010, que tomou como objeto de investigação as “práticas de curandeirismo” e o universo das religiões de matriz africana em Feira de Santana na sua convivência tensa com as práticas de repres-são policial presentes na cidade em meados do século XX, noticiadas na imprensa e registradas em um universo de fontes judiciais. Mapeando a presença dos candomblés na vida espiritual da sociedade feirense, o autor descortina dados sobre a participação dos adeptos nos mais variados es-paços de sociabilidade concomitante ao surgimento de diversas (e brutais) formas repressão deste universo “mágico-curativo”, embasadas ora nos discursos higienistas ainda em voga no Brasil dos anos 40 a 70 do século passado, ora nos termos do Código Penal de 194060.

Ainda que, no plano da produção científica, esses enfrentamentos ve-nham sendo abordados progressivamente, do ponto de vista dos afoxés e outras agremiações culturais da cidade, os anos 80 e 90 foram tempos de agitação. Ao longo dessas décadas, a cidade foi palco de intensas mobilizações político-culturais emergentes em torno da “cultura popular” regional, ao lado de uma singular valorização da negritude e seus agentes como referencial identitário, como atesta a proliferação de inúmeras en-tidades ligadas à militância antirracista em paralelo à crescente influência dos estilos musicais transnacionais na produção cultural local, como indi-ca o surgimento das primeiras bandas de reggae61.

A completa escassez de materiais sobre esta temática é um dado mais do que sugestivo da necessidade de se pensar sobre a mesma. Analisando al-guns dos principais jornais da cidade, dei-me conta da urgente necessidade de produzir um sistemático estudo sobre a produção cultural de seus agentes nos conflitos sociorraciais62. Ainda que, provisoriamente, não me dedique a suprir com riqueza de detalhes esta lacuna, pretendo dialogar com alguns desses indícios para compreender quais enredos estão por trás da presença singular do reggae na cidade, que é um dos nascedouros do estilo na Bahia, e sua relação com os movimentos sociais negros no contexto em foco.

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As inúmeras referências nos jornais impressos a respeito das manifesta-ções da cultura negra de Feira de Santana, entre as quais o reggae é identi-ficado63, entrecruzadas com algumas informações oriundas de entrevistas64, permitem considerar que a presença da música afro-jamaicana, naquele contexto urbano, remonta, como em outras regiões do país, a fins dos anos 70 e início dos 80. A influência e cristalização da musicalidade reggae naque-le contexto, como em quase todos, não se deu sem fraturas e enfrentamen-tos. Ao longo dos anos 80, a produção gradativa de reggae esteve lado a lado com as movimentações dos afoxés e outras entidades ligadas à política cultural negra. Inúmeras canções gravadas por artistas de Feira de Santana são oriundas dos repertórios dessas entidades. Para além disso, parte con-siderável dos compositores e intérpretes (como Gilsan, Jorge de Angélica, Dionorina, Nunes Natureza, Nilton Rasta e outros) participou como cantores dos afoxés, além dos mesmos serem corresponsáveis por essas entidades. Em suma, ao longo das últimas décadas, o reggae era um dos elos de uma rede de musicalidades negras que vem compondo o ambiente sociocultural também de Feira de Santana. Em uma entrevista do compositor Carlos Pita ao jornal Feira Hoje, é interessante observar sua impressão e interpretação poética da influência do ritmo, alterando cena urbana do lugar:

“Feira de Santana é a babilônia do Sertão e o que lhe separa do mar são os verdes canaviais do Recôncavo, onde muito da cana plantada nasceu da dor de mais uma chicotada. É que a história se apaga na veloz e pouco se falam dos nossos ancestrais [...]. Nessa cidade do ‘reconsertão’, nessa ‘babylouca new caatinga’, eu sinto a presença de reggae, eu vejo jubas de

leão, eu vejo rastas […]”65.

As palavras do artista instigam um olhar mais amplo sobre as influências destas novas sonoridades negras mundializadas em fruição com elementos de identificação (intra) regional, como sugerem os interessantes encontros semân-ticos. Sua ênfase no amargo passado da plantation do Recôncavo está articu-lada a sua leitura do contemporâneo, onde a presença da estética negra – nas “jubas de leão” e nos “rastas” – insinua a “presença de reggae”.

Para tentar reconstituir, no entanto, uma História do Reggae de Feira de Santana é precípuo considerar o universo sociocultural-musical da cida-de – as micaretas, lavagens, festas de largo, bandos anunciadores e, mais

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especificamente, o surgimento das escolas de samba e posteriormente dos afoxés – e a relação/conflito que envolve a presença dos afrodescendentes66. Para não cair em hipóteses imprecisas e “achismos” desnecessários, evitarei uma genealogia detalhada dessas entidades. Desse modo, atento mais para as descrições sobre a relação dos afoxés e o surgimento do reggae na cidade, como o farei didaticamente no capítulo posterior.

É importante levar em conta também a relevância do rádio, no re-ferido contexto, como veículo de comunicação e aproximação com as muitas tendências musicais em trânsito no Atlântico Negro, logo, como um dos ”meios” para aquele novo contato-interação cultural/musical. Segundo Jorge de Angélica, por exemplo, foi o rádio que o colocou pela primeira vez diante do som do reggae:

“ […] ouvi uma vez numa rádio AM de Feira, não lembro se foi na Rádio Carioca. [...] ouvi essa música e fiquei apaixonado pelo ritmo, mas não

tive mais possibilidade de ouvir”67.

Por caminhos diferentes, para Dionorina, o rádio também foi o seu primeiro mediador com o mundo da música (alguns de seus familiares foram cantores de rádio e o próprio também se apresentava como cantor infantil) e, efetivamente, com o reggae:

“A primeira vez que ouvi ‘Stir it Up’ com The Wailers, Bob Marley can-tando, assim... Era uma música que me chamava a atenção e me prendia toda vez que eu ouvia. Às vezes quando eu ouvia, ouvia sempre no pro-grama de Big Boy, que era um programa que tinha de madrugada, de dez à meia noite na Rádio Mundial do Rio... Eu ficava procurando pra ouvir, porque nesse tempo só ouvia rádio. Depois começou a aparecer aquelas radiolas de seis pilhas da Phillips, mas não era todo mundo que tinha. Uma vez nós nos juntamos três amigos pra comprar. Aí, cada fim de semana, ficava na mão de um. E durante a semana se juntava tudo em um lugar pra ficar ouvindo (risos!). Era legal”68.

É plausível registrar que em Feira de Santana (e em outras cidades certamente), tinha-se o hábito de ouvir, além dos programas de produção local, os programas de rádio de inúmeras regiões do Brasil e outros países, a exemplo das locuções da BBC de Londres, para sintonizar-se com as in-

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formações do mundo. Se o rádio, os discos e, em certo modo, a TV, foram meios facilitadores da inspiração, pela imagem e sons, com os referenciais transnacionais das culturas negras, foi a vivência das contradições sociais que incendiaram os ideais desses artistas. Um dos primeiros exemplos é a fundação das bandas Gana e Esperança que, já durante a década de 80, mostravam seus acordes na cidade. A Gana, fundada por Jorge de Angéli-ca, tinha em sua formação, além do parceiro Tonho Dionorina, um time de músicos que foram responsáveis pela popularização do reggae, sobretudo entre os bairros populosos da cidade, que tinham o grande público alvo: Nunes Natureza, Paulo Monge, Enfezado, Nilton Rasta, Meire, Pi e outros. A banda Esperança, liderada por Gilsam, militante negro também ligado aos afoxés da cidade (inclusive até o presente) é outro exemplo da presen-ça reggae na produção musical de Feira de Santana.

É central também a interação de alguns representantes das religiões de matriz africana na construção desse processo. Basta lembrar que o candomblé foi um dos principais mananciais identitários para se construir os discursos estético-musicais que são apresentados pelos blocos afro e afoxés e, neste caso, para a produção local do reggae em particular. Ade-mais, a filiação direta e indireta desses artistas no culto afro-brasileiro marcaria singularmente suas leituras musicais69.

NAS MARGENS DO PARAGUAÇU

Um porto de considerável presença das sonoridades afro-jamaicanas foi, e é, sem dúvida, a cidade de Cachoeira. Situada no Recôncavo baia-no, Cachoeira faz parte de um conjunto de cidades interconectadas, no passado colonial, pelas atividades produtivas das plantagens de cana-de-açúcar e fumo. De todo modo, a paisagem urbana da cidade tem sido profundamente alterada pelas novas influências e sonoridades das culturas de massa que, nas últimas décadas do século XX, têm sido forte demarcador de identidades entre os jovens.

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Localização das Cidades Conectadas pela Produção da Música Reggae na Bahia (Cachoeira/São Félix, Feira de Santana e Salvador)

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A compreensão desta presença estético-musical vem sendo exausti-vamente analisada pelo trabalho de Bárbara Falcón, que desde 2001 de-senvolve pesquisas sobre música e etnicidade entre os grupos da cidade e, mais especialmente, sobre o reggae de Cachoeira (FALCÓN, 2001). Basta citar que artistas como Edson Gomes, Tin Tim Gomes, Sine Cal-mon, Nengo Vieira, Geraldo Cristal e outros são radicados nesta cidade; eles são (auto) identificados pela autoria de um modo genuíno de “fazer” – no sentido de tocar – reggae: o chamado “reggae resistência”.

Segundo Falcón, a integração do ritmo jamaicano na cidade dá-se por influência de uma conjunção de fatores que incluem: a nova inserção da indústria fonográfica no cotidiano, uma afinidade étnico-identitária, uma vez que a temática da valorização do negro ganha reverberação em uma sociedade marcada por formas veladas, e não menos cruéis, de discriminação sociorracial. Como desdobramento desse contato, nasceu

Detalhe da Localização das Cidades Conectadas pela Produção da Música Reggae na Bahia

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o Remanescentes, experiência comunitária musical e religiosa que reunia musicistas interessados em meditar sobre o evangelho bíblico cristão, sob a mediação da música reggae. Como ponto de encontro e referência, estava a residência do músico Nengo Vieira, no bairro da Federação, em Salvador, no Alto das Pombas, nº 53, onde se reuniam outros artistas à época. Este grupo acompanhou artistas como Lazzo e Edson Gomes, com quem gravou os primeiros álbuns de carreira.

A rigor, a música era um veículo de intermediação para a pregação evangélica à qual se dedicava o grupo e em torno da qual se reuniam os músicos Sine Calmon, Marcos Oliveira, Tin Tim Gomes e Nengo Vieira, fundadores do Remanescentes. Nas palavras de Vieira:

“Era tipo um albergue, onde as pessoas conviviam num ambiente sadio, um ambiente de coletivo, solidário. Se tinha um prato de comida dividia igualmente pra todo mundo e isso a gente fazia na prática mesmo. E essa praticidade foi que nos serviu de suporte não só pra hoje, como para o momento em que nós fundamos o grupo Remanescentes, com a proposta de evangelizar as pessoas, pregar a palavra de Deus, na verdade”70.

Em uma das canções do Remanescentes, fica registrada a característi-ca do grupo e sua inclinação comunitária, religiosa e musical:

REMANESCENTE(Nengo Vieira & Tin Tim Gomes, 1992)

Das margens do ParaguaçuEm plena América do SulSó remanescente ficaráSó remanescente ficaráÉ a semente do amor

Que brota nesta geraçãoBuscando a luz, a paz, a vida e a união

E o Senhor já diz em sua palavraE com sua autoridadeSó remanescente ficaráSó remanescente ficará

Só remanescente ficará, meu Deus!

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Paralelamente, emerge da mesma cidade o compositor e cantor Edson Gomes que, ao longo dos anos 80, despontou como grande aposta da música reggae no Brasil, fato que se consolidou com o lançamento de seu primeiro álbum, em 1988. Um dos mais conhecidos músicos do gênero no Brasil começou sua vida profissional como auxiliar de pedreiro na área da construção civil71. O gosto pelo futebol o projetou para atuação no time Cruzeiro (de Cachoeira) pelo qual disputou campeonatos locais72.

A influência da música negra brasileira lhe rendeu, no início de sua carreira, o apelido de Tim Maia, por causa das canções deste, que é uma de suas principais referências. Ao longo dos anos 70, atuava como intérprete em conjuntos musicais da cidade de Cachoeira onde venceu algumas premiações em festivais estudantis. Ao lado do parceiro Nengo Vieira, foi aos poucos conhecendo a música afro-jamaicana e arriscando as primeiras releituras do gênero. Em início dos anos 80, já se apresenta-va em alguns eventos do circuito artístico-cultural de Salvador, onde foi aos poucos ganhando visibilidade73. Nas palavras do artista:

“Em 1983, eu percebi que o reggae era o veículo certo para levar mi-nhas ideias e convicções. Como um elemento negro, eu tinha a opção do samba, mas não achava este gênero com tradição de luta pelos direitos dos oprimidos. Então, busquei um gênero musical que casasse com meu

propósito de protestar contra todas as discriminações”74.

Em 1985, a premiação no festival Canta Bahia como melhor intérprete lhe rendeu a gravação do primeiro compacto com a canção “Rastafary”. Já nesse período, a rejeição de alguns segmentos da imprensa baiana, a exemplo da FM Itapoan, freava saltos maiores do artista. Somente em 1987, a premiação do Troféu Caimmy, novamente como melhor intér-prete, abriu-lhe as portas para a gravação do primeiro disco lançado em 1988, o Reggae Resistência cujo título demonstra a completa adoção do reggae como estilo definidor da carreira de Edson Gomes75.

De todo modo, essa paulatina descoberta do reggae remonta a um conjunto de processos que guardam relação com outros movimentos político-culturais negros da Bahia. É o que será tratado a seguir.

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Imagens do clássico Bahia Jamaica (1980) de Chico Evangelista e Jorge Alfredo.

Encarte do LP (3l0 x 60cm).

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Capa de Raça Humana (WEA, 1984). A sonoridade deste disco evi-dencia a permanente aproximação de Gilberto Gil com o reggae jamai-cano. Entre as faixas, “Vamos Fugir” contou com a gravação e arranjos dos músicos dos Wailers, banda fun-dada por Bob Marley.

Lazzo. Viver, Sentir e Amar. Pointer, 1983.

Lazzo. Atrás do Pôr do Sol. Nosso Som, 1988.

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Cartaz do I Reggae in Bahia Festival (REBAFE), em 1988. Entre as atra-ções: Edson Gomes, Braga Jamaica, Lazzo Matumbi, Banda Gana, Banda Frutos e Orvalhos, e outros além dos blocos afro Ilê Aiyê, Muzenza, Olodum, Filhos de Gandhy e Obá Guiné.

Cartaz de divulgação do show Pro-cura-se de Tonho Dionorina e Banda Gana realizado em setembro de 1986, no Feira Tênis Clube.

Cartaz do show Bahia Negra realizado em julho de 1988, em Feira de Santana.

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NOTAS

14 O uso do termo “amplificar”, aqui na condição de verbo, é livremente deliberado e faz referência aos amplificadores: aparelhos eletrônicos de processamento e reprodução das frequências sonoras, muito utilizados a partir das primeiras décadas do século XX.

15 O termo “cultura popular” (seus usos e abusos) vem sendo debatido com vigor por autores e autoras das Ciências Humanas ao longo das últimas dé-cadas. Não se pretende revisar esta temática no momento. De todo modo – sem mergulhar nesse profundo debate (mas molhando os pés!) – prefiro abreviar meus comentários e partilhar da forma como é utilizado o termo por Milton Santos, além de autores como Mikhail Bakhtin, Carlo Ginzburg e E. P. Thompson: uma espécie de discurso “de baixo” (SANTOS, 2001, p. 144).

16 SANSONE & TELES, 1997. Obra citada.

17 A “passagem do meio” é uma expressão que designa o trecho mais longo e sofrido da travessia dos navios negreiros no Atlântico.

18 WALLERSTEIN, 1974; citado por GROSFOGUEL, 1992.

19 Ver DUSSEL, Enrique, 1977.

20 O autor usa a noção de “Pensamiento Fronteiriço”, na versão origi-nal em espanhol. Na edição traduzida para o português, consta a ideia de pensamento “Liminar”. Durante sua participação no IX Fábrica de Ideias, curso avançado de Relações Raciais realizado pelo CEAO em Sal-vador e Cachoeira (julho/agosto de 2006), Mignolo aproveitou o ensejo para reforçar essa “errata”.

21 A acepção desse conceito é eminentemente gramsciana; Hall é o autor contemporâneo que percebeu a contribuição deste pensador ita-liano aos estudos culturais na dimensão da presença negra na diáspora (Cf. HALL, 2003).

22 Além disso, a propagação do reggae ilustra certa cissiparidade, haja vista as inúmeras variáveis como o ragga, roots reggae, raggamuffin, dub poetry (DAVIS & SIMON, 1983; ALBUQUERQUE, 1997).

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23 SILVA, Carlos B. R. Da Terra das Primaveras à Ilha do Amor: Reggae, Lazer e Identidade Cultural. São Luís: EDUFMA, 1995.

24 MUZENZA. Muzenza do Reggae, Continental, 1988.

25 BARTH, F. “Grupos Étnicos e suas Fronteiras” In: POUTIGNAT & STREIFF-FENART, 1998.

26 Ver Ritmos da Identidade: Mestiçagens e Sincretismos na Cultura do Maranhão (SILVA, 2007).

27 GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo. Classes, Raças e Democracia. São Paulo: Editora 34, 2002. pp. 47-77.

28 O interessante documentário Wattsax: Woodstock da Música Negra, registra o festival de música negra realizado na cidade de Watt nos Es-tados Unidos, em 1972, com narração e entrevistas de Richard Prior. Retrata ainda o cotidiano dos jovens negros no país, da música à religio-sidade. É um registro precioso dos anos 70!

29 Cf. Silva, 2000.

30 O surgimento de novas variáveis do samba, como o samba rock, samba funk e sua identificação com a juventude negra, no período, é um dado que atesta essa informação (SILVA, 1984; SILVA, 2000). A dissertação de mestrado de Luciana Xavier (no prelo), defendida no programa de Pós Graduação da FACOM/UFBA é uma das mais recentes produções sobre o tema. Veremos mais adiante que o samba-reggae é um dos descenden-tes destas hibridações musicais.

31 A proliferação dos blocos afrocarnavalescos remonta à criação dos blo-cos de índios, desdobramentos das escolas de samba dos anos 60, em um contexto permeado por variáveis tecnológicas e midiáticas (cinema, televisão, gibis) e profundas modificações no território urbano de Salva-dor (GODI, 1991).

32 Sobre esse conceito ver, GOHN, M. da Gloria. Movimentos Sociais e Educação. São Paulo: Cortez, 1994.

33 Em muitas entrevistas Gil refere-se a alguns episódios de sua vida em Londres, como um tempo de sentimentos ambíguos: por um lado, a an-gústia do exílio, por outro a convivência com a contracultura musical de

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grande circulação na Europa (naquela época o epicentro da indústria fonográfica mundial).

34 RENNÓ, Carlos (org.). Gilberto Gil -Todas as Letras. São Paulo: Cia das Letras, 1996.

35 FORD, Vicent. Versão Gilberto Gil. In: GIL, Gilberto. Realce, Elektra, 1979.

36 Ibid.

37 Em uma das falas do líder espitiritual rastafári Mortimo Planno, quando perguntado sobre a vida de Bob Marley, ele enfatiza a centralidade das tranças como representação de insurgência. Segundo ele, para conter o “açoite as tranças” de Marley “era preciso cortar-lhes a cabeça”. Ver: Catch a Fire. Coleção Classic Álbuns, Série 2. Eagle Rock Entertainment, 1999. Agradeço aos amigos do Grupo Cultural Revolution Reggae (Con-ceição do Coité-BA) pela sugestão e aos professores Paulo Neto e Pinzol da UNEB (Campus Juazeiro) pela cópia deste material em DVD.

38 Entrevista com Clóvis Rabelo (14/11/2006).

39 Bob Marley & The Wailers. Catch a Fire. Island Records, 1972.

40 Ibid. Este álbum não foi publicado no Brasil com estas características. Ao que parece, também não o foi na Jamaica como sugere a informação de Carlos Albuquerque sobre o impacto de Catch a Fire no mercado da música de Kingston. Ao referir-se ao disco, ele menciona a capa em que aparece Bob numa fotografia de rosto, ostentando um longo “cigarro de ganja”.

41 In: Catch a Fire. Classic Álbuns, 1999 [tradução: Legendas Videolar].

42 Ibid.

43 ALBUQUERQUE, 1997; ver também WHITE, 1999.

44 Bob Marley & The Wailers. Survival. Island Records (distribuidora Ariola), 1979.

45 VIDIGAL, Leo. “O Rei no Rio: Dreads no Verão da Abertura”. Revis-ta Bizz, Ed. 201, maio de 2006. Ver também ALBUQUERQUE, 1997, pp. 71-78. A visita incluiu compras de materiais esportivos, partida de

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futebol com artistas contratados da Ariola (dentre os quais, Chico Buar-que, Toquinho e Moraes Moreira) e, obviamente, participação na festa de centenas de convidados no Morro da Urca, além da hospedagem no opulento Copacabana Palace, recepção digna de um dos maiores popstars da época.

46 Ibid. p. 78.

47 ALBUQUERQUE, 1997, p.78.

48 Entrevista com Dionorina (24/11/2007).

49 Entrevista com Sr. Carmelito Carvalho (14/12/06). Estes fatos também ganharam os comentários de Carlos Albuquerque que acrescenta alguns episódios da polêmica passagem de Tosh pelo Brasil (1997, pp. 103-104). Na visão do autor, além dos inesquecíveis e mântricos shows, as outras aparições de Tosh “deram o que falar”. No auge de sua militância pela legalização da maconha, o cantor e compositor jamaicano ganhou comentários profundamente pejorativos na imprensa, tais como os do Jornal do Brasil: “Agora eu tenho que acreditar na abertura. O Maluf pagando esse criolo pra vir aqui dizer isso?” – comentou um não identi-ficado jornalista (ibid.).

50 O termo “malungo” significa companheiro e foi inspirado no Daruê Ma-lungo, grupo afropercussivo sediado em Olinda-PE, forte influenciador dos engenheiros musicais do movimento manguebeat em Pernambuco. Aten-tos para as sonoridades afropercussivas de Olinda-Recife e sintonizados nos ecos de blocos afro e do samba-reggae da Bahia, sem perder as ante-nas com o dub jamaicano e o afrobeat de Lagos (Nigéria), deram vida, no ápice do anos 90, a um dos momentos mais expressivos da história recente da música brasileira. Ver QUEIRÓZ, 2000. O fragmento foi extraído da canção “Voyager”. Nação Zumbi, Futura. Trama, 2005.

51 Ver HOBSBAWN, Eric. & RANGER, Terence. A Invenção das Tradi-ções. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.

52 GUERREIRO, Goli. A Trama dos Tambores: A Música Afro-pop de Salvador. São Paulo: Editora 34, 2000 (Coleção Todos os Cantos). A au-tora aborda as trajetórias da música afropercussiva da Bahia nas últimas décadas do século XX e sua ascensão para um formato afro-pop-elétrico,

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que provocou uma enorme polarização da Bahia como centro produtor de música e culturas musicais no Brasil.

53 Fonte: www.lazzo.com.br. Site visitado em 21/12/07.

54 Lazzo Matumbi. Salve a Jamaica. Fermata, 1981.

55 Lazzo Matumbi. Viver Sentir e Amar. Pointer Discos, 1983.

56 No texto da contracapa tem-se: “ritmo, balanço, voz, arranjos e sen-timento, tudo isso num fabuloso disco, cheio de emoção e vontade de mostrar um trabalho capaz de agradar a todos. [...]”, texto de José Mau-rício Machine.

57 FALCÓN, Maria Bárbara Vieira. O Reggae no Recôncavo Baiano. Re-manescentes do Paraguaçu. Música e Identidade Cultural em Cachoeira. Monografia de Conclusão de Curso. Salvador: UFBA, Departamento de Antropologia, 2001.

58 É importante citar que, nesse período, são lançados em outras regiões do Brasil trabalhos importantes com os de Luís Vagner, também um dos pioneiros a gravar reggae no país ainda em meados dos anos 80.

59 DAMASCENO, Karine Teixeira. Mal ou Bem Procedidas: Cotidiano de Transgressão das Regras Sociais e Jurídicas em Feira de Santana, 1890-1920. Dissertação de Mestrado. Campinas: UNICAMP, 2011.

60 OLIVEIRA, Josivaldo Pires de. Adeptos da Mandinga: Candomblés, Curandeiros e Repressão Policial na Princesa do Sertão, Feira de Santa-na-BA, 1938-1970. Tese de Doutorado. Salvador: UFBA, 2010.

61 Entrevista com Dionorina (24/11/2007). Entrevista com Jorge de An-gélica (02/08/2008).

62 Agradeço imensamente à Tatiana Farias pelo auxílio solidário na di-gitalização das muitas dezenas de páginas e recortes de jornal, quan-do de sua pesquisa no arquivo da Biblioteca Municipal de Feira de Santana.

63 É recorrente nos jornais a associação entre o reggae como expressão “do gueto”, “da periferia”, “dos negros do gueto”.

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64 Entrevista com Dionorina (24/11/2007). Entrevista com Jorge de An-gélica (02/08/2008).

65 Matéria: “Contraste da Miséria e da Beleza”. In: Jornal Feira Hoje, 21/03/89.

66 Entrevista com Jorge de Angélica (02/08/2008).

67 Ibid.

68 Entrevista com Dionorina (24/11/2007).

69 Jorge de Angélica registra sintomaticamente que “uma mãe-de-santo” teria financiado alguns instrumentos musicais para incentivar a formação da primeira banda de reggae de Feira de Santana. Possíveis conexões políticas entre a produção musical e o campo religioso em que se ins-creviam estes artistas serão mencionadas mais a frente no capítulo de interlúdio.

70 VIEIRA apud FALCÓN, 2001, p. 29. Entrevista em 10/08/01.

71 Ibid.

72 “Perfil Edson Gomes”. Folha do Reggae, nº 02, Fevereiro de 1997.

73 A exemplo do projeto “Bairro a Bairro” com a banda Studio 5. In: Folha do Reggae, ibid.

74 Revista On line. Agradeço a Bárbara Falcón pela atenção com este e tantos outros materiais de grande utilidade para esta pesquisa.

75 Ibid. Nas entrevistas com Clóvis Rabelo (14/11/2006) e Jorge de An-gélica (02/08/2008) e outras fontes impressas, como o jornal citado aci-ma, é frequente a informação de que Edson Gomes vai, paulatinamente, aderindo à música reggae como estilo musical definitivo. O próprio com-positor destaca os caminhos dessa opção.

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FAIXA 2

“ÁFRICA A LA JAMAICA, MÚSICA DA RAÇA”Don’t care where you come from As long as you’re a black man You’re an African No mind your nationality You have got the identity Of an African[…] ’Cause if you come Trinidad And if you come from Nassau And if you come from Cuba You’re an African No mind your complexion There is no rejection You’re an African

Trecho da canção African de Peter Tosh

[...] mesmo remetendo a fatores que teriam sido criados no passado, o processo contínuo de (re)construção das identidades étnicas está em co-nexão com as ideias [e conflitos] da globalização e da fragmentação do mundo pós-moderno. Portanto, embora o passado – e neste caso especí-fico, o passado africano – seja constantemente resgatado, é a experiência comum dos atores no presente, na chamada ‘alta modernidade’, que produz a matéria-prima para a construção das identidades.

Patrícia Pinho, 2004, p. 67

Nasci no Brasil, mas me considero africano.

Edson Gomes, em 2006

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A (re)invenção da África e do ser negro na diáspora, sob o ponto de vista da música reggae da Bahia, constitui o ponto central deste capítulo. Dialogo aqui com a produção musical do reggae e sua filiação com o samba-reggae na Bahia, tentando compreender a construção situada de imagens em torno de uma história da África e seus “descendentes” na diáspora negra, no contexto das décadas de 80 e 90, que foram reapro-veitadas como marco étnico-identitário pelos movimentos negros.

As muitas expressões de identidades negras insinuam que os séculos de colonização e colonialismo não imputaram as permanências histó-ricas, epistemológicas e culturais das muitas populações subjugadas à escravidão, se bem que lhes impôs cicatrizes marcantes. A busca pelos la-ços matriciais e ancestrais diacríticos que “preservados”, de certo modo, constituem o universo das culturas negras na diáspora, sempre inseriu a África como referencial político, geográfico, histórico, simbólico. Cabe, neste capítulo, inferir sobre a (re)construção das identidades negras em conexão com novos usos e sentidos políticos e simbólicos do termo “Áfri-ca” no contexto da globalização, ou seja, representações singulares de um território heterogêneo e multifacetado.

Para além de um tema acadêmico, este é um processo que tem mobi-lizado milhares de agentes, desde as multinacionais capitalistas aos mo-vimentos sociais, em prol da construção das tais novas perspectivas e contornos mundiais. De fato, não podemos compreender a nova ordem global (ou “globalitarismo”) sem levar em conta os séculos de coloniza-ção e subjugo das monarquias nacionais européias sobre as Américas e o continente africano. Além disto, creio que tem se tornado cada vez mais impreciso falar em globalização no singular, uma vez que crescentes estudos vêm apontando a relevância das conexões e trocas “sul-sul” pro-blematizando, portanto, a noção de centro-periferia como modelo expli-cativo único e as novas respostas a este cenário multicentrado.

Alguns autores, como Sansone (2000), têm provocado outras hipóte-ses sobre a relação global-local, enxergando o papel, ainda que incipien-te, das “trocas horizontais”, nos fluxos globais de símbolos e mercadorias na base da cultura negra. Para ele, as interpretações em torno da “Áfri-ca” e dos símbolos de matriz africana têm papel central na produção de

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uma nova geopolítica da cultura, onde a Bahia é um centro referencial. Este fenômeno estaria ligado ao surgimento de uma série de “políticas de identidade”, o que chama de “nova onda étnica”, que foi desdo-bramento do processo de redemocratização do país, a partir dos anos 80. Sansone aponta ainda que parte desta identificação com um tipo de “África”, que se tem no Brasil e, particularmente, na Bahia, foi produzi-da sob influência dos muitos pesquisadores estrangeiros – como Melville Herskovits, Roger Bastide e Pierre Verger – cujos olhares quase sempre atentavam para os “traços culturais”, “hábitos sociais” e outras formas de “africanismos”76.

A respeito dos olhares sobre a cultura africana, que pode ser tranquilamente lida como afro-americana também, Femi Ojo-Ade ressalta dois extremos inter-pretativos: de um ponto de vista “escandalosamente falso e racista”, inspirado nos “conquistadores”, a visão reducionista de um “ethos africano” primitivo, quintessencial e selvagem; de outro lado, os “defensores da África” (de todas as partes do mundo, inclusive alguns intelectuais africanos) que “acabaram proclamando-a como monólito paradisíaco e idílico”, o que “não é menos escandaloso por sua natureza simplista” (OJO-ADE, 1995, pp. 37-38). A ava-liação descontente de Ojo-Ade é tão cabível quanto questionável, pois instiga perguntarmos sobre as relações sociais que são/foram pano de fundo destas posições. A premissa do “conquistador”, tão longamente ratificada, dispensa maiores comentários, uma vez que há, ainda, infelizmente, larga produção bibliográfica e paradidática que lhes dá suporte como analisado no trabalho memorável de Ana Célia da Silva (2001)77. Tentando entender o outro lado da questão, acrescento que há, no interior de determinadas visões, mais do que puro simplismo. No terreno da cultura baiana dos anos 90, o esforço político-cultural de valorização das imagens em torno da África, na dimensão da produção musical, projetou, em muitos casos, uma visão largamente miti-ficada, mas não necessariamente estanque. A predominante crença em uma “África-fonte-de-todo-saber”, presente nos discursos dos blocos afrocarnava-lescos, como identificou Patrícia Pinho (2004), é um exemplo concreto desse fenômeno. Analisando criticamente essas “falas” e sob a análise dos docu-mentos fonográfico-musicais, mais adiante, sugiro que alguns discursos “afro-centrados” são menos uma declaração simplista e mais uma resposta possível ao mito sobrepairante da “Europa-fonte-de-todo-saber”. Há muitos sentidos

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em jogo neste novo olhar, para além da dualidade aparente, sobretudo se considerada a intensa mobilização artística no enfrentamento das ostensivas imagens depreciativas do negro, presentes em grande parte das produções veiculadas pelos meios de comunicação da sociedade brasileira ao longo das últimas décadas do século passado78.

Esse processo de disputa no campo dos significados (e para além dele), inscrito entre os anos 70 e 80, é compreendido aqui como “reafri-canização” que, segundo Osmundo Pinho, é:

“[...] a nova inflexão dada à agência [agency] social, política e cultural afrodescendente em Salvador [e em outras cidades da Bahia como pude observar, acrescento], marcada pelo uso de símbolos ligados à africani-dade e por uma interação determinada com a modernização seletiva bra-sileira, caracterizada, ao mesmo tempo, pela conexão desterritorializada com fluxos simbólicos mundiais e da diáspora” (2005, pp. 127-128).

Identifico que a busca pela África como paradoxo e contracultura do extremo ocidente, remonta também aos movimentos negros na virada dos séculos XIX para XX, destacadamente com o surgimento e circulação das ideias pan-africanistas. A América foi o expoente do nascimento e divulga-ção das ideias de retorno à África (HOWE, 2000), como ilustra a gama de movimentos pan-africanistas e lideranças que recolocaram as demandas e questões das populações negras nos debates internacionais de direitos hu-manos. A atuação e as produções de intelectuais, como Marcus Garvey, Aimé Cesáire, W. E. B. Du Bois e tantos outros que investiram profunda-mente em compreender os muitos legados herdados das sociedades africa-nas pelos seus descendentes espalhados no Novo Mundo, confirmam esta opinião. Neste esforço, contribuíram para a constituição de novas tradições sedimentadas numa “África imaginada”, vista do Caribe (e outras margens do Atlântico) que agitaram os primeiros tempos do século XX, colocando “na mesa das novas sociabilidades uma compreensão de alteridade mar-cada pela pluralidade étnica”79. Estes movimentos ressignificaram a noção pejorativa e essencialista construída (pelas muitas linhagens do pensamento social europeu) em torno da História da África e de seus sujeitos de origem, destacando as contribuições dos negros para a construção da modernida-de.

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De maneira incisiva esses movimentos colocavam em cheque o pa-radigma evolucionista da ciência racial em voga no período ao passo que desmontavam a trajetória do pensamento racial no período colonial, onde era amplamente questionável a capacidade racional do negro afri-cano (DESAI, 2001, pp. 20-21).

Observando um mapa do continente africano, adaptado do origi-nal publicado em 1914, fica nítido o violento projeto anticivilizatório do imperialismo defendido pelas nações européias – assentado nas teorias raciais do século XIX – pela representação geopolítica da pre-sença destes Estados. Curiosamente estão fora dessas demarcações a Libéria – Estado construído sob a prerrogativa de fundar uma nação de “retornados” da escravidão no Atlântico Norte – e o Império da Etiópia. Este último foi palco de um episódio representativo para a produção de um novo referencial sobre a África imaginada e, portan-to, das nascentes ideias pan-africanistas.

Essa ligação memorial com a África foi tematizada por algumas enti-dades carnavalescas em Salvador e outras agremiações do gênero entre fins do século XIX e início do XX. Raphael Vieira Filho (1997) anali-sa entre os “folguedos negros” a presença marcante de clubes como os Pândegos da África e Clube da Embaixada Africana. Este último, fundado em 1895, desfilou nos festivos do carnaval de 1897, homena-geando a Independência do Império da Etiópia, diante da notícia da vitória deste sobre as tropas italianas na luta contra o neocolonialismo europeu em 1896.

O Manifesto da Embaixada publicado nos jornais Correio de Notícias (27/02/1897) e A Bahia (28/02/1897) registra a posição política na ho-menagem da entidade a partir da organização do cortejo:

“[...] o préstito está assim organisado:

Seguir-se-há bem organisada banda de musica, preparada pela ‘digna co-lônia africana desta cidade’ para acompanhar a Embaixada. Trajará notá-vel costume algeriano, executando em seu trajecto os dobrados Fortunato Santos, Menelik, Makonem, etc. [...] Dois Trombeiros trajando costume abyssinio, anunciarão a passagem do victorioso Menelik, negu dos negus,

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Colonialismo Europeu e Império Otomano no Continente Africano em 1914

Mapa adaptado do original de WESSLING, 1998

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OS GUERRILHEIROS DA JAMAICA VÃO ATACAR

Na Bahia da segunda metade do século XX, as intensas mobilizações em torno de novas identidades negras inspiradas numa concepção “afri-cana” de mundo têm relação com o contexto dos movimentos pela des-colonização “das mentes e povos” do continente africano (HALL, 2000) – o que incluía guerras civis em quase todos os territórios nacionais do

que por homenagem ao Rei da Zululandia empunhará o glorioso estandar-te da Embaixada Africana [...]. O negus dos negus será acompanhado por dois ministros, os quaes trajarão rico vestuário de gala. [...] seis Ras [chefes

etíopes] empunhando espadas formarão a guarda de honra Imperial”80.

A homenagem a Menelik II, então imperador da Etiópia, comprova a ligação dos negros de Salvador com os acontecimentos do continente africa-no em fins do século XIX, fenômeno que se revela também no relativo fluxo de africanos entre os portos de Lagos (Nigéria) e Salvador81. Cabe salientar ainda que a Embaixada e outros clubes negros da época mostravam uma imagem da África que convergia estrategicamente para os ideais de “civiliza-ção” da sociedade, presentes nos desfiles do “Carnaval Moderno da Bahia”. Esta estratégia representava uma contraposição sociorracial à hegemonia da elite dominante – representada pelos clubes freqüentados, exclusivamente, pelos “brancos”, como o “Cruz Vermelha”, que ganhava notória aceitação pública, como se registra nos veículos da imprensa local82.

Sabemos que esse fato histórico trouxe/incitou na América as ideias de “retorno” mítico sobre a África (a começar pelo nascimento do pan-africanismo na Jamaica), cujos registros aparecem em grande parte da produção musical do reggae. De todo modo, o olhar para esse exemplo, deve guardar as devidas proporções que o distanciam, no tempo históri-co, do contexto que ora se apresentava em fins do século XX, sob o qual venho tecer as análises a seguir.

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continente. Ainda neste contexto, destacam-se as lutas em prol dos direi-tos civis em toda a América, com maior visibilidade nos Estados Unidos, além das trilhas sonoras consoantes com este fenômeno: o funk, soul music e o reggae que ganhava proeminência no mercado fonográfico e programas de rádio.

O álbum Survival de Bob Marley & The Wailers (Island, 1979) é um registro sintomático deste momento. Além de pautar, ao longo de todo o repertório, o estado das lutas de libertação nacional no continente afri-cano, às voltas da década de 70, o material gráfico da obra, produzido pelo art designer Neville Garrick, é profundamente representativo desse debate ora apontado. No front da capa, a imagem do mórbido interior de um navio negreiro (slave driver) contrasta com o título da obra – Survival – que se superpõe a esta. Como pano de fundo, imagens das diferentes bandeiras de nações africanas que conquistaram a independência sob o custo das tortuosas guerras civis, ao longo do século XX.

No Brasil, esse processo contou com a movimentação de inúmeros ativistas negros das mais diversas áreas e artes e foi amplamente marca-do pelo registro musical, como analisou “Salloma” Silva (2000). As mui-tas Áfricas reinventadas aqui foram reveladas ao longo de um processo onde parte da produção cultural e, portanto, a música erguiam-se contra a nova ofensiva do capitalismo pós-guerra sobre o continente africano e tomava-o como referência contra toda a desigualdade sociorracial da sociedade brasileira. Em outras palavras, as canções, e seus sujeitos (pro-tagonistas ou coadjuvantes), se colocavam contra “a memória de uma certa ocidentalidade americana e de uma nacionalidade brasileira em-branquecida” fazendo reapropriações da historiografia e trazendo novas leituras fundamentadas em um referencial sobre a África, que destoava do establishment e sintonizava-se com determinados segmentos da pro-dução intelectual negra83.

Para além dessas novas tradições, a influência das sonoridades ne-gras (e seus conteúdos político-culturais) alteraria substancialmente esse processo de autoafirmação. Nas valiosas notas de Carnaval Ijexá, Anto-nio Risério (1981) registrou esse novo cenário-cadinho de africanidades, onde coexistiam as revisitadas tradições de matriz africana em consonân-

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cia com a circulação global de ritmos afro-americanos, no contexto da segunda metade da década de 70. Estas matrizes transnacionais em rela-ção ao enfrentamento da realidade local-nacional foram a matéria-prima para o surgimento dos blocos afro e, mais especificamente, do Ilê Aiyê. Essa leitura criativa foi profundamente incômoda à sociedade dominante da época, como fica evidenciado em um dos registros da imprensa local, veiculados no jornal A Tarde, sobre o desfile do Ilê Aiyê, em 1974:

“Conduzindo cartazes onde se liam inscrições tais como: ‘Mundo Negro, ‘Black Power’, ‘Negro para você’, etc., o bloco Ilê Aiyê, apelidado de ‘Blo-co do Racismo’, proporcionou um feio espetáculo neste carnaval. Além da imprópria exploração do tema de imitação norte-americana, revelando uma enorme falta de imaginação, uma vez que em nosso país existe uma infinidade de motivos a serem explorados, os integrantes do Ilê Aiyê – to-dos de cor – chegaram até a gozação dos brancos e demais pessoas que observavam o palanque oficial. [...] Não temos, felizmente, problemas ra-ciais. Esta é uma das grandes felicidades do povo brasileiro. A harmonia que reina entre as parcelas provenientes das diferentes etnias constitui, está claro, um dos motivos de inconformidade dos agentes de irritação que bem gostariam de somar aos propósitos da luta de classes o espetáculo da luta de raças. Mas isto no Brasil eles não conseguem”84.

A reação do jornal (que traduz a impressão dos agentes e, de certo modo, de parte do público leitor) revela uma ideologia dominante cal-cada no “mito da democracia racial”, que contestava o uso da temática norte-americana, no tocante à questão das relações raciais. Esse fenô-meno dos movimentos negros pôde ser registrado em inúmeros outros estados brasileiros e foi percebido pelas atenções de alguns intelectuais antenados com o novo quadro. Osmundo Pinho (2005) ressalta que, contemporâneo à publicação de Risério, Carlos Benedito R. Silva apre-sentara, pioneiramente, uma comunicação sobre o movimento Black Soul de Campinas no Grupo de Trabalho “Temas e Problemas da Po-pulação Negra no Brasil”85, onde analisava que as formas modernas e transnacionais da cultura negra passavam a operar como articuladoras/mediadoras da identidade negra, para além das formas “tradicionais” de cultura negra, entendidas como “de origem africana”. As formas moder-nas e transnacionais de cultura negra passariam, a partir desse momento,

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a operar “como uma manifestação cultural que os identificava de alguma forma (pelos tipos de roupa, dança, música, etc.)”86, impressão que é marca definitiva de sua produção intelectual.

Não posso deixar de comentar o uso aparentemente polarizado que termos como “tradição” e “modernidade” revelam; a meu ver, menos uma hierarquia (e dicotomia) entre eles e mais a tentativa de entender a dinâmica que girava no interior das transformações socioculturais do pe-ríodo. Enxergando com os olhos de hoje, compreendo que utilização do termo “tradição”, já àquela época, não implicava a manifestação estática de expressões da cultura, o que se revela na aplicação do termo “moder-no”, que pode ser traduzido como “invenção de novas tradições”, ten-dência que mais tarde seria amplamente debatida por alguns teóricos87.

Em suma, essa tendência – sintomática de um novo olhar acadêmico sobre a música – passou a fazer parte de inúmeros outros trabalhos das Ciências Humanas e Sociais Brasileiras (GODI, 1991 e 2001; PINHO, 1997; LIMA, 1997; VEIGA, 1998; VIANNA, 1988 e 1995; GUERREIRO, 2001; SANSONE, 1997 e 2004; e muitos outros) que buscavam compre-ender o processo de mundialização da música, suas singularidades e rea-propriações no terreno da cultura brasileira. Seguindo essa trilha, hoje, é profundamente frutífero problematizar a relação entre as tais influências “modernas e transnacionais” e o florescimento de novas metafísicas de negritude, aliadas aos seus muitos usos simbólicos das imagens locais e globais sobre a África e, posteriormente, sobre a Jamaica, registradas nas canções do reggae produzido na Bahia.

Nesse sentido, a história do reggae na Bahia confunde-se, em grande parte, com os muitos capítulos da história do movimento negro88 baia-no, registrados nas canções dos blocos afro. Sua presença e cristalização como referência cultural-musical no cenário baiano, na década de 80, remonta, portanto, aos movimentos culturais negros do decênio anterior, onde os blocos afro foram grandes agentes multiplicadores89. Se a funda-ção do Ilê Aiyê apontava para um novo capítulo da participação negra na luta por direitos civis e pelo fim das desigualdades raciais no Brasil, a fundação dos blocos Olodum e Malê Debalê, em 1979, e Muzenza, em 1981, representa mais um passo nesta direção com uma flagrante

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diferença: estes últimos são corresponsáveis pelo diálogo com a música reggae e seu manancial simbólico, bem como pela reinterpretação recor-rente das sonoridades da música no contexto da mundialização. Se, nos anos 70, houve a influência das musicalidades de tendência globalizante da diáspora negra, que estiveram mais ao alcance do comportamento e menos interferindo nas formas musicais locais, os anos 80 assistiram às mesclas inusitadas das raízes do samba com o reggae (GODI, 2001).

No livro Reinvenções da África na Bahia, Patrícia Pinho (2004) consi-dera a nova centralidade dos países do Caribe (Cuba e Jamaica mais es-pecialmente) e EUA como material-referencial simbólico para as canções e estéticas dos blocos afro, mais precisamente em fins dos anos 80. Naquele contexto, algumas entidades começavam a inserir, em seus repertórios, can-ções que contemplavam e enalteciam “países reconhecidamente marcados por uma forte cultura negra”, em especial do Caribe, interagindo com uma noção de identidade com a África, que incluía a própria diáspora africana como manancial simbólico (PINHO, 2004, p. 39). Neste sentido, a Jamaica e Cuba passam a ser um novo referencial, na geopolítica da negritude, que foi sendo apropriado ao universo cultural baiano, trazendo por parte dos músicos uma busca pelas sonoridades negras destes territórios do Atlântico.

Na produção musical desse período, vislumbrou-se uma multiplici-dade de apropriações da historiografia que, vista de ponta a cabeça, interagia com novas leituras da África como “comunidade imaginada”90, no contexto da diáspora. No carnaval de 1982, o Olodum nos dá um exemplo desta leitura desfilando com o tema “Guiné Bissau – Estrela da Revolução Africana” e entoando a canção “Reggae do Olodum”, de Alírio Tumbaê, que menciona em um dos trechos:

Toda NegradaNão vai sobrar nenhum

Dançando Reggae

Sexta-feira no Olodum [...]91

A memória das lutas anticolonialistas no continente africano aqui está fundida a uma identidade negra que encontra, no reggae, um elemento aglutinador. Cabe lembrar que, a essa altura, o gênero ainda não gozava de

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maior visibilidade nas rádios ou lojas de disco, sendo executado “nas vitro-las de alguns negros antenados e imersos na militância étnica” ou girando nos prostíbulos e bares do antigo “Maciel-Pelourinho”, território de Salvador onde nasce a entidade carnavalesca e que se tornou, posteriormente, um dos cartões de visitas da cidade92. A sintonia com o universo afro-caribenho ficou registrada também em canções entoadas no carnaval de 1986 (com o tema “Cuba”), como “Um Povo em Comum Pensar”, de Suka, que evoca uma noção imaginada de identidade negra latino-americana:

Olha esse som latinoÉ de lá de Cuba

Onde pra ter direitosNada nos custa não

Latinamente um povo negro a cantarBate em minha mente

Um povo em comum pensar [...]93

Cuba é vista, inusitadamente, como referência política e étnico-identitá-ria. A canção traz uma leitura do quadro da política internacional, em sin-tonia com a posição geopolítica do país caribenho no contexto da Guerra Fria – um estado socialista, acossado pelo embargo econômico dos EUA e visto, por outro lado, por centenas de movimentos sociais como experiência democrática a ser seguida. Em associação com estas questões, a imagem construída em torno do canto latino de “um povo negro em comum pensar” sugere uma identificação polifônica, quando provoca o ouvinte a levar em conta os traços de africanidade que une as duas realidades nacionais. Exem-plo parecido aparece em “Sueños Lejos” (1986), de Tosta Passarinho:

Canta Cuba OlodumCuba encanta

Espanta os males, pra beleza conquistarCuba te vejo daqui

Mesmo sem ter ido láMeu passaporte brasileiro carimbado

Me proibindo de em Cuba entrarÉ uma ofensa a CubaUm desrespeito a mim

Vejo o projeto Mamnba94

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Sou mais o projeto MamnbaMama Cuba

Mambo Cuba No carnaval daqui e de lá

Mama CubaMambo Cuba

Manda um fiel, FidelVoar pra cá

Pra essa zorra melhorar95

A celebração da “Cuba Revolucionária” presente nesta canção con-tracena com as muitas chamadas identitárias a partir de expressões como “Mama Cuba”, que parece parafrasear “Mama África”. Este dado me ins-tiga a considerar o caráter dinâmico e situado do uso político dessas ca-tegorias identitárias de negritude, reinventadas na diáspora. O argumento de Suka e tantos outros compositores, entoado pelo Olodum em praça pública, vai ao encontro de outras tentativas de mapear possíveis conexões (“comum pensar”) afro-latino. Não é à toa que Lélia González (1988) tenha se preocupado em compreender essa relação buscando uma categoria de análise que mensurasse a história e vida das populações afrodescendentes no contexto (afro) latino-americano, tema ainda pouco explorado.

A categoria de “amefricanidade” é a tentativa de propor uma sínte-se analítica dos impactos do colonialismo europeu sobre os continentes africano e americano (e seus agentes), e dos novos impactos da reestru-turação social decorrente do processo de emancipação política iniciado no século XIX, que reificou uma “nova” hierarquia racial baseada na ideologia da “superioridade branca” (LANDER, 2000; QUIJANO, 2000; HANCHARD, 2001). Gonzáles (1988) reconhece – e este é um ponto crucial do artigo – a experiência histórica que envolve os continentes e problematiza a emergência de relações sociais (e de identidades) fundi-das neste “espaço”, que tornaria plausível pensar em laços comuns entre as populações negras da América Latina. Arriscaria dizer que, por cami-nhos diferentes e motivações próximas deste compositor-músico, está em jogo a compreensão de nossas diferenças, tomando por base o traço de africanidade como similitude à realidade caribenha. Imagino que este é um debate que ainda pode render mais considerações.

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Esse tipo de referencial esteve presente em grande parte dos discur-sos estético-musicais do reggae produzido no Brasil (dadas as propor-ções, na Jamaica também). Nadando contra as correntes, a busca pela “África mãe”, inseria a Jamaica como parada obrigatória e, posterior-mente, como destino propriamente dito. Vista como terra do reggae e de ícones da música negra como Bob Marley, Peter Tosh, Jimmy Cliff e Linton Kwesi Johnson, a Jamaica, e sua história moderna, também foi alvo de inúmeras canções dos blocos afro e de artistas ligados ao gênero na Bahia, situadas entre os anos 80 e 90.

Entre os blocos afro de Salvador, o Muzenza, fundado em 1981, tem uma singular relação com a musicalidade reggae. Mais conheci-do como “Muzenza do Reggae” ou “O Mestre do Reggae”96 foi uma das entidades que se mobilizou em torno da valorização da música e cultura afro-jamaicana como contracultura negra da diáspora, dando um sinal maior de afinidade estética, política e musical (VEIGA, 1997). É o que se verifica no LP intitulado Muzenza do Reggae gravado em 198897. O elenco de questões abordado nas canções deste álbum sina-liza, obviamente, para o contexto em que se inseriu o mesmo. Não se pode esquecer que 1988 foi palco de tensões das mais diversas ordens no Brasil e na América Latina.

No quadro internacional, assistia-se, por um lado, à crescente e anun-ciada derrocada do Leste (soviético) europeu e, por outro, aos muitos levantes guerrilheiros armados que efervesciam na América Latina, em países como a Bolívia, Venezuela e Nicarágua, além dos conflitos civis em países do continente africano como Moçambique, Angola e África do Sul. No Brasil, vivia-se sob a expectativa da promulgação de uma constituição nacional, que foi produto de intensas movimentações civis com o fim do Regime Militar e que renderia os princípios norteadores do tão esperado pleito eleitoral presidencial, depois de décadas de violência política e social. Do ponto de vista dos movimentos negros, esse foi um momento crucial de disputa contra as comemorações do centenário da publicação da Lei Áurea e seu silêncio à história do negro e, consequen-temente, às políticas de reparação social e reconhecimento do racismo como um problema da sociedade brasileira.

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É propriamente sob este prisma que as 10 faixas do álbum desenrolam suas mensagens de protesto. O disco apresenta uma leitura da África, men-cionando o quadro das guerras civis, em sintonia com a luta antirracista na Bahia e sob a mediação da Jamaica e da música reggae como referenciais.

A autodenominação “Guerrilheiros da Jamaica” é um exemplo sugestivo dessa leitura multicentrada. O termo “guerrilheiro”, nesse contexto, pode estar associado à popularidade das guerrilhas armadas em todo o continente ame-ricano. A conjunção com o termo jamaicano revela uma apropriação criativa de uma identidade nacional que serve como recurso étnico-identitário.

É interessante notar, no entanto, que não está presente neste, nem em ou-tros exemplos, a busca por uma identidade supranacional latino-americana, mas étnico-referenciada, com a imagem da América Central afro-jamaicana difundida pela música reggae. Na canção “América Central” (composição e interpretação de Nego Tenga), esta conexão fica bastante explícita:

América CentralAmérica Nagô

América Jamaica

Onde o Rei Bob Marley descansou [...]98

Em canções como “Guerrilheiros da Jamaica” (Ythamar Tropicália e Roque Carvalho) e “Sexta-feira” (Tatau), o uso da Jamaica deixa explíci-ta a leitura de uma identidade negra que tem na África e neste país fortes referências simbólicas para a edificação do pertencimento negro. Nesta última, apresenta-se uma leitura interessante que insere os garis, cate-goria profissional que cuida dos serviços de higiene sanitária da cidade, como um segmento representativo desta nova metafísica de negritude:

SEXTA-FEIRA(Tatau, 1988)

Sexta, sexta, sexta-feiraOs Guerrilheiros da Jamaica vão atacar

Sexta, sexta, sexta-feiraDe carnaval

Eu vou, eu vouDe Muzenza

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As tropas amarram os canhõesMuzenza traz a muniçãoOs garis nos faz alertar

Que os Guerrilheiros da Jamaica vão atacar.Os garis nos faz alertar

Que os Guerrilheiros da Jamaica vão atacar99

A Jamaica retratada nas canções é um referencial de identificação étnica, musical e geopolítica. Em quase todos os casos, esta interrelação é represen-tada através do ícone do reggae, o jamaicano mais conhecido em todo o mundo, Bob Marley, que é motivo de inúmeras citações musicais. Na canção “Brilho e Beleza” o intérprete faz uma referência direta à imagem construída em torno do músico, visto como rei pelos agentes do bloco afro.

A figura de Bob Marley, amplamente conhecida da indústria cultural nos anos 70 e 80, aos poucos foi convertida num poderoso referencial de identificação com a cultura negra local, figurando ao lado de outros tantos “reis” negros e/ou africanos que habitaram o universo polifônico do protesto negro brasileiro. Godi (2001) argumenta que a morte de Bob Marley em 11 de maio de 1981 teve também enorme repercussão no calendário do movimento negro baiano. Desde então, o mês de maio deixa de guardar ex-clusivamente a comemoração (e as reações contrárias também) da Abolição e passa a ser identificado por uma tradição recente, revigorada pelos tributos a Bob Marley. Em Salvador, o 11 de Maio é o “Dia do Reggae”, conforme decretado pela Câmara Municipal da Cidade.

Entre representações míticas da África e da Jamaica e autonarrativas “apocalípticas”, como sugere Ericivaldo Veiga (1997), o Muzenza teceu, e ainda o faz, parte considerável das redes que trouxeram o reggae para o cenário cultural musical de Salvador. Uma das canções mais conhecidas do Bloco traça uma imagem exuberante da passagem deste na Avenida:

[...] E a infinidade do seu canto trouxe vidaPra essa raça tão sofridaRaça negra, raça negra

Criticada e oprimidaMas com fé com brilho o Muzenza desceu

E diga valeu

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100 l Fabricio Mota GUERREIR@S DO TERCEIRO MUNDO - IDENTIDADES NEGRAS NA MÚSICA REGGAE DA BAHIA l 101

E no beco o menino gritou: MuzenzaÉ amor, é amor, é amor: Muzenza

E do céu Bob Marley Cantou: MuzenzaIô, iô, iô, iô, iô, iô, iô, iô, iô: Muzenza

E a terra tremeuE o céu mudou de cor

Mudou de corE o bloco do reggae chegouMuzenza Jamaica-Salvador

Yes, Jamaica Salvador

Ainda enfatizando a Jamaica em seu universo temático, o bloco afro Olodum, como já citado, também tem sua parcela de contribuição nesse processo. Em inúmeras canções do carnaval de 1989 (que tematizou a Etiópia), estiveram presentes refrões e citações da história do Império Etíope, em conexão com a proliferação do pan-africanismo e sua relação com a música reggae100. Um dos exemplos é a canção “Denúncia”, de Tita Lopes e Lazinho, cujo texto chama a atenção:

Simplesmente ensinando conscienteAbalando a estrutura mundial

Núbia Axum a Etiópia resistenteUnião poderosa e cultural

Olodum revela à comunidadeHistória que o opressor sempre ocultou

Menelik II venceu a batalhaTravada em árdua África NegraExpulsando italianos de Axum

Livrando-a do colonizadorA sua façanha logo se espalhouOutro rei importante se tornou

Haile SelassiêÉ Ras Tafari

Reinou na EtiópiaVirou filosofia

A Jamaica acolhiaE o reggae surgia

Impondo outra forma negra de lutar [...]101

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A questão central desta canção é informar-denunciar o silenciamento da historiografia ocidental (encarnada na expressão “colonizador”) diante da narrativa mítica e teórica que dá conta do surgimento do rastafaria-nismo na Jamaica. Remonta, para tanto, à guerra travada pelo Império da Etiópia – situado no nordeste do continente africano – governado por Melenik II em fins do século XIX, que freou o avanço das tropas italianas e garantiu a independência em plena ofensiva neocolonialista européia.

Este episódio foi profundamente ressignificado pela vigorosa atuação dos missionários negros batistas da Jamaica que associavam o relato mítico e his-tórico de personagens da cultura judaico-cristã (o Rei Salomão e a Rainha de Sabá) à terra prometida e seus descendentes vivos na Etiópia. O tom profético do sionismo negro, em ascensão no mundo anglófono, e seu ascetismo in-tramundano conclamavam os afrodescendentes a “olhar para a África”, vista como “terra prometida”, de onde “em breve um Rei negro seria coroado” e traria a redenção102. Alguns autores (SILVA, 1995; ALBUQUERQUE, 1997; WHITE, 1999) apontam que este argumento ganhou corpo e alma quando foi coroado Ras Tafari Makonnen, autoproclamado Imperador da Etiópia e (auto)intitulado “Rei dos Reis”, “Leão Conquistador da Tribo de Judá” que adotaria em seguida o nome Hailé Selassiê (“O Poder da Santíssima Trinda-de”) e cujo manancial simbólico seria frequentemente utilizado pelos rastafáris e reggaemans de todo mundo nas décadas que se seguiram.

Os desdobramentos desse processo fizeram parte dos conflitos inter-nacionais entre 1939-45, a chamada Segunda Guerra Mundial, quando a Itália, sob então regime totalitário nazi-fascista, invade novamente a Etiópia, fato retratado na canção “Etiópia” de Edson Gomes & Banda Cão de Raça, lançada em fins dos anos 90. A narrativa-denúncia do massacre promovido pelo estado fascista italiano é resgatada e associada com o silenciamento da historiografia sobre a África:

ETIÓPIA(Edson Gomes, 1997)

[...]Lá na escola não contaram nada

Fizeram questão de esconderHoje eles passam como filhos do Deus bom

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102 l Fabricio Mota GUERREIR@S DO TERCEIRO MUNDO - IDENTIDADES NEGRAS NA MÚSICA REGGAE DA BAHIA l 103

A gente vai passando como filhos do mal[...]

Quando Mussolini invadiu a EtiópiaFoi um rolo compressor esmagador

Com seu exército poderosoContra inofensivos guerreiros nativos

Nesta canção, ainda prevalece, entretanto, uma imagem do africano “etíope”, retratado como vítima, um pouco diferente de outras retratadas pelo próprio autor ao longo de sua carreira. Guardadas as devidas críti-cas, entendo que este registro é sintomático da centralidade em torno da temática do continente africano e sua ênfase na Etiópia e no pan-africa-nismo, para além da década de 80. No mesmo ano em que foi lançado o álbum Apocalipse (EMI-ODEON, 1998) de Edson Gomes, o Olodum teve como tema do carnaval “Roma Negra. Gladiadores da Negritude”.

Inúmeras canções revisitavam a História da África e a História Moderna da Jamaica, colocando o reggae como “outra forma negra de lutar”, como conclui a canção citada anteriormente103. Com exceção do Ilê Aiyê, que op-tou, inclusive até o presente, pela busca das tradições mais ligadas ao conti-nente africano, sob a releitura da experiência estética e política do candom-blé, a fundação do Malê Debalê (1979), Muzenza (1981) e Olodum (1979) trouxeram novos capítulos de um pertencimento à distância (long-distance belonging104) com a África e a Jamaica, que fertilizariam a consolidação do reggae na Bahia. Não quero dizer, com isso, que a presença decisiva do reggae seja consequência direta do trabalho dos blocos afro. Prefiro arriscar que foi por interação que estes universos culturais-musicais afrodescenden-tes se entrelaçaram, dentro de um contexto de produtivas reelaborações cul-turais, mediadas pela música. Por um lado, a crescente presença do reggae no mercado fonográfico brasileiro alterou o ambiente sociocultural na Bahia, por outro, em um contexto fecundo de profundas agitações em torno da valorização do negro e sua história, o discurso estético-musical do primo-afro-jamaicano trazia consigo uma leitura multicentrada da “África”, que foi profundamente reaproveitada. A teoria do Atlântico Negro é bastante pro-fícua para analisar esse fenômeno, uma vez que revela que existem outros polos de africanidade ou negritude “fora da África Mãe ou para além da hegemonia do mundo anglófono”, como assinala Pinho (2004, p. 56). Essa

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leitura pode ser percebida de diferentes modos, como alguns citados, em diversos registros do reggae produzido no Brasil, em especial na Bahia. Em “Dance Reggae”, Edson Gomes se refere ao reggae como “música da raça” (negra), corresponsável por esta nova inflexão em torno da África (vista da Bahia) e inspirada na Jamaica. A “África a la Jamaica”, expressão que parti-cularmente sintetiza o espírito central deste capítulo, serve de parâmetro para compreendermos tantas outras canções que trilharam o mesmo argumento.

A ÁFRICA NO ATLÂNTICO NEGRO: OUTROS DIÁLOGOS

Sem dúvida, a presença da musicalidade reggae e seu universo estético-musical pan-africanista constituíram-se em um poderoso referencial para a produção da música baiana, no interior dos blocos e, paulatinamente, no sur-gimento das primeiras expressões sonoras de um reggae in Bahia. É importan-te considerar que essa tendência não esteve circunscrita aos limites territoriais da Bahia, ganhando eco em outros registros musicais do período, tampouco foi manifesta apenas no interior da produção musical dos blocos afro.

Algumas leituras mais esporádicas acabaram por registrar esse contex-to. A canção “Porto das Raças”, composição de Djalma Oliveira e Mariano Carvalho, gravada por Egma, na coletânea Reggae in Bahia (Brasildisc, s/d) é uma tentativa de retratar essa nova conjuntura sociocultural:

Parece que a JamaicaFez porto em Salvador

E toda negra baiana quer cantarIô iô

Do solo de Mãe ÁfricaEmana tanta dor

Pelos guetos, pelos becosPelourinho Salvador

Iô iô iô iô iô iô

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104 l Fabricio Mota GUERREIR@S DO TERCEIRO MUNDO - IDENTIDADES NEGRAS NA MÚSICA REGGAE DA BAHIA l 105

De todo modo, há que se considerar que a história social do reggae em ter-ras (e águas) brasileiras influenciou – e foi influenciada por – essas novas “lei-turas de mundo” (literalmente falando), que descolaram a visão idílica sobre o continente africano para uma imagem diaspórica multicentrada, a qual insere o Caribe e o sul dos EUA como elos matriciais de ancestralidade e identidade étnica, em consonância com os debates incitados pelas militâncias negras ur-banas dos principais centros, ao longo de toda a década de 80.

O disco homônimo do grupo Obina Shok, gravado em 1986, é um exemplo dessa relação referencial com a diáspora. Amplamente conhe-cido e divulgado pelo público e crítica pelo hit de sucesso “Vida” (faixa 01), com participação dos baianos Gilberto Gil e Gal Costa, este produ-to fonográfico merece atenção pelos seus elementos estético-musicais e pela sonoridade polirrítmica que o constitue. Lendo-o e ouvindo-o com detalhes, não resisti em inseri-lo neste hall de discussões, ainda que este não faça, a rigor, parte do conjunto de registros fonográficos produzidos na Bahia ou a partir de musicistas baianos. De todo modo, sua referência é aqui fundamental como argumento em seguida.

Ao analisar o encarte e capa desse trabalho, reforço o argumento de que a afirmação étnico-identitária transcende o registro auditivo e se faz representar nas muitas linguagens estético-discursivas do disco (SALLO-MA, 2000). Além da capa, composta pela foto de apresentação desta-cando três músicos negros que ostentam penteados e adereços “afro” – o que, a meu ver, é assaz representativo – o encarte é também uma fonte frutífera para compreendermos o uso das linguagens visuais na produção de referenciais identitários de negritude. De um lado, temos o conjunto de letras e informações técnicas tendo como pano de fundo o desenho caricático de um jovem negro portando a tiracolo um instrumento elé-trico de corda (aparentando ser uma guitarra). No lado posterior, a ima-gem de toda a banda está em composição com o enorme fundo verde do Oceano Atlântico, num mapa mundi, em silhueta onde se destacam, nitidamente, a América do Sul e Central, incluindo as ilhas do Caribe e a costa atlântica do continente africano. Curiosamente, o “eixo norte” do mapa mundi está muito brevemente representado pelo sul dos EUA e, do lado diametralmente oposto, segundo essa “cartografia”, estão as penínsulas ibérica e itálica.

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A imagem que, sem dúvidas, fala por si, é representação visual da tendência polifônica presente nas muitas sonoridades negras que com-põem a obra musical. No universo de sete canções, três têm nítida influ-ência e instrumentação reggae, ao lado de outros exemplos inspirados na rumba cubana e no zouk antilhano.

A pulsação rítmica da bateria, num casamento com linhas fortes de contrabaixo, e marcação, em contratempo, dos sintetizadores anunciam a “pegada”105 reggae à brasileira da faixa 03, “Africâner Brother Bound”106. A letra sugere a solidariedade, ou “irmandade”, com os sul africanos negros (africaneers) diante do apartheid à vista em todos os meios de comunicação ao longo dos anos 70 e 80:

Africaner Brother BoundQuanto tempo ainda mais

Já durou até demaisQue não devia ser jamais

Poeta calou por um dia ou doisBandeira arriada pra descansar

O batuque ficou pra depoisQue o coração desenfrear

Quem é que no mundo pode impedirO sol de nascer e de brilhar

A palmeira de crescer, crescerA noite na mata de clarear

Do lado da gente, nós e nós e nósNa luta feroz até o fim

A vitória deixará pra trásUm tempo de guerra, tempo ruim

Os conflitos sociais da África do Sul e seu decretado apartheid 107 passam a ser uma das fortes referências apropriadas sobre as lutas no continente africano, em fins dos anos 80 e 90. A palavra cantada que tematiza os ter-rores dos “irmãos” da África e relaciona-os à luta feroz “do lado da gente”, na margem brasileira do Atlântico, ganha novo sentido com o arranjo con-tagiante do ritmo afro-jamaicano, numa leitura multicentrada dos conflitos raciais e numa dimensão transnacional e diaspórica. A “experiência comum desses atores no presente” fornece as questões para a construção de uma

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identidade negra que se pretende transnacional. Imagem semelhante está presente em um conjunto de canções que tematizam a luta antirracista fazen-do deferência aos conflitos raciais da África do Sul. A canção “Lubambo”, gravada na coletânea Reggae in Bahia (Brasidisc, s/d) pelo autor e intérprete Fred Vieira, também toma partido do conflito sul-africano:

LUBAMBO(Fred Vieira, s/d)

Ei homem branco de JoanesburgoVocê é quem tem que estender a mão

Eu nãoAh África

Ninguém vai tomarPois sua riqueza

É do povo do lugar

Em outro exemplo, o autor e intérprete Edson Gomes conclama o ouvinte e o “Recôncavo”108 à luta pela “libertação” das desigualdades raciais, buscando sintonizar-se com os movimentos internacionais pela liberdade do ativista Nelson Mandela:

RECÔNCAVO(Edson Gomes, 1990)

RecôncavoPela libertação do homem negro na AméricaE pelo repúdio do homem branco na África

Vamos lutar pela libertaçãoVamos lutar

Avante irmãoVamos lutar pela libertação

Por uma África livrePor uma África libertaPor uma África unida

E todo apoio a Nelson MandelaSistema nazista, sistema do diabo

Somos a voz da libertaçãoVamos à luta avante

Somos a voz da libertaçãoVamos à luta avante

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Vale destacar que o termo “irmão” pode ser visto como um recurso político e étnico-identitário para situar o negro num quadro de desigual-dades sociorraciais que transcendem o limite do local e contra as quais a canção se ergue. A temática do apartheid revela uma relativa sintonia com as pautas dos movimentos negros que, espalhados pelo mundo, encontram no caso sul-africano uma nova matéria-prima para problema-tizar as desigualdades raciais de seu lugar de origem.

Em um de seus comentários sobre as identidades negras na diáspora, Paul Gilroy parte do exemplo sugestivo da gravação da “Proud of Man-dela”, realizada em Londres, nos anos 1990109, que, em suas palavras, liga “em uma só música África, América, Europa e Caribe” (2001, p. 197). Reconstruída a partir da matéria-prima de Chicago, a canção, sen-sivelmente kingstoniana, rende homenagens ao ícone global da diáspora (Nelson Mandela). Cabe destacar, como o faz o autor afro-britânico, que a luta e libertação do líder sul-africano o tornou um ícone global da luta dos afrodescendentes, nas mais diversas regiões o mundo, interconecta-das pelo Atlântico Negro. É o que se confirma em algumas gravações do reggae na Bahia, dentre as quais cito a faixa “Bongô Man”, registrada no segundo disco do compositor e intérprete Jorge de Angélica110:

BONGÔ MAN(Jorge de Angélica, 2002)

Toque o Bongô ManEm homenagem ao Rei

Mandela, MandelaNelson Mandela

Semente jogada ao chãoPouco a pouco germinouFertilizada pelo sangue

Que muitos negros homens Derramaram

Batalhas foram travadasCom heroísmo e amorSe passaram 360 anosDe regime apartheidVários anos de prisão

Até que o Leão sul africano de Pretória

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Se libertouEu lhe peço por favor

Olha me toque o BongôToque o Bongô Man [...]

Levo em consideração, portanto, que o uso do termo apartheid, en-contrado nas canções de reggae (e samba-reggae) produzidas na Bahia, deve ser encarado como analogia às desigualdades sociorraciais presen-tes na sociedade baiana. O que pode parecer um anacronismo é, a rigor, um uso deliberadamente “exagerado” de um termo que, pelo impacto, provocava a sociedade a reconhecer o racismo como um problema.

De outro modo, o exemplo da canção “Brazilian Style” toca mais especi-ficamente na questão da influência do reggae como propulsor de novas nar-rativas sobre as identidades. Curiosamente, esta canção opera um confronto que foi alvo das análises de Carlos Benedito da Silva (2007) sobre a questão das influências identitárias “externas” e seus usos e rejeições pela sociedade maranhense. Em linhas gerais, a canção provoca uma interpretação que coloca o reggae como style (estilo de vida, comportamento, identidade) bra-sileiro. No texto da letra proposta em inglês tem-se:

Wherever you are goingIs still Obina SonEverybody likes it

These musics blow you mindWe play tin “robado” style

Brazilian StyleReggae music of the wayPut your troubles away

O uso do idioma inglês para descrever/se referir a um “estilo” brasileiro pode ter muitas conotações. Uma interpretação possível seria encarar como uma estratégia para atingir um mercado externo ao Brasil – o que não se pode duvidar, haja vista o reggae ser um gênero matricialmente do mundo anglófono e o inglês uma língua franca. Acrescente-se o impacto do merca-do fonográfico, controlado pelos EUA e Reino Unido, e hegemonia cultural anglófona (SANSONE, 2004), e esta tese torna-se ainda mais plausível. Ou-tra leitura considera, por outro lado, a circulação e cristalização do reggae no

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Brasil e o surgimento de novos canais de comunicação com o público (e os músicos, acrescento) que transcende a barreira do idioma nacional e alteram o idioma inglês (e os elementos culturais que o cercam e constitui) a partir de releituras “glocais”111 das influências “dominantes”. Por ambos os lados, é a busca por uma identidade que, por mais que seja externa/de origem, é atualizada pelas experiências locais e conta com certa aceitação do público, como sugere a canção: “Everybody Likes It” (Todo Mundo Gosta Disto). Há que se considerar ainda que o apelo discursivo desta composição se aproxi-ma, em muito, do argumento musical de Peter Tosh (na epígrafe) quando su-gere o termo “african” como identidade negra transnacional – em que toda pessoa negra, independente da origem nacional, é um africano (african):

Don’t care where you come fromAs long as you’re a black man

You’re an AfricanNo mind your nationalityYou have got the identity

Of an African […]112

Essa foi também a leitura registrada em algumas obras de Edson Gomes como atestam as canções “Estrangeiro” e “Meus Direitos”, respectivamente gravadas em 1990 e 1995. A primeira reforça um pertencimento à distância, já mencionado, onde o narrador-participante relata sua condição de estran-geiro em sua própria terra, num texto que se direciona a um sujeito somente identificado ao final da canção. Atentando para o texto da letra tem-se:

ESTRANGEIRO(Edson Gomes, 1990)

Estou aquiEstou bem distante do teu convívio

Eu estou aquiEstou bem distante, mas estou sabendo

Que se passa contigoÉ o mesmo que se passa comigoEu ando aqui pela Baby(lônia)Eles me chamam de brasileiro

Porém eu me sinto um estrangeiroTrabalho, trabalho e nada é nada não (2x)

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Eu vivo aqui num submundoBuracos, favelas, guetos imundos

Eles me chamam de brasileiroPorém eu me sinto um estrangeiro113 [...]

A mensagem desta canção é completada pelo arranjo musical que a cerca. O andamento marcadamente ralentado, suavizado pelos contra-pontos de sopro, ao lado de uma performance vocal que sugere intros-pecção ao ouvinte, dá à canção uma aura de lamento e contrariedade que reforça a ideia expressa no texto. As sonoridades impressas pelos músicos e musicistas, e aprimoradas no processo de mixagem dão, à canção, um sentido que, a rigor, não está explícito na letra. Nos trechos finais da canção, o momento de maior evolução vocal, a palavra “África” é repetida, numa evolução vocal que insinua um estado de êxtase, re-forçado por um acorde de guitarra “distorcida” (artificialmente): “África, África, África... / Iô, Iô, Iô, Iô, Iô/ África, África, África...”

Em outro exemplo, como a canção “Meus Direitos”, a ligação, literal-mente umbilical, com a África (nas palavras do autor-intérprete, “mamãe África”) é o ponto de partida para uma canção-denúncia sobre as desi-gualdades a que são alvos os negros no Brasil, ao longo da história.

[...] Quanto tempo que a gente tá aquiNo Brasil

Tanto tempo que a gente está assimSem ter educação

Sem ter oportunidadeSem ter habitação

Sem ser membro da sociedadeSomos alvo da incoerência

Vítimas da prepotênciaDos racistas

Ainda que persistam expressões como “vítima” ou “somos alvo”, o argumento central da canção corrobora uma imagem de alteridade do negro diante de direitos que são seus e pelos quais deve lutar. Arrisco esta interpretação acrescentando, novamente, a importância do arranjo na construção do discurso musical. O andamento mais acelerado e as linhas

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de baixo mais rápidas acabam por dar à obra um tom mais vibrante que, interagindo com a palavra cantada, completam e alteram o sentido da mensagem escrita na letra.

Quando perguntado, em conversa informal na capital baiana, no ano de 2007, sobre seu trabalho como baixista da banda Cão de Raça, o músico Osvaldo Filho – que acompanha Edson Gomes desde a turnê de divulgação desse álbum – enfatizou a busca por influências mais ja-zzísticas no uso do instrumento. De acordo com ele, Edson buscava um som de baixo que acompanhasse as nuances do vocal, estando menos focalizado (e não desligado, favor não confundir) da bateria, como é mais convencionalmente conhecido114.

No LP Música das Ruas 115, Dionorina, artista radicado na cidade Fei-ra de Santana, apresenta duas canções que travam mais explicitamente este debate116. A faixa de abertura do álbum, “Jamaica FM” (de Carlos Pita), aborda uma situação cotidiana de maneira inusitada:

JAMAICA FM(Carlos Pita/Dionorina, 1994)

Quando eu tava naquelaNaquela esquina

Ouvindo um reggaeNum radinho de pilha

Quando eu tava naquelaNaquela esquina

Querendo ser feliz e beijar minha meninaQuando alguém cantou:

Africana sensaçãoO negro é bacanaA cor não engana

Aumenta este rádioQue esse som tá em Luanda

De repente me sentiNa terra das primaveras

Jamaica FMEncontrei com Peter ToshNuma esquina, de bobeira

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Aqui tem palmeiraNo meu sonho flutuandoSem perder a correnteza

SunsplashPois existe a babilônia

Mas o negro tem beleza

Sob a ótica desta canção, o “ouvinte” é retratado como sujeito na rela-ção com os meios de comunicação, destacadamente com o rádio, símbolo ontológico da propagação e circulação da música no século XX. O reggae tocado no rádio desperta para uma “africana sensação”: sentimento de or-gulho negro (“o negro é bacana, a cor não engana”), que tem a diáspora como pano de fundo, haja vista a sintonia com a África Atlântica (tendo Luanda, capital de Angola, como referência) e a repentina impressão de se estar na “Terra das Primaveras” – leia-se São Luís do Maranhão, também conhecida como Jamaica brasileira. A argumentação intrigante e complexa desta canção ilustra um contradiscurso, a partir da canção que, obedecendo à lógica do conflito, opera com um sentido de pertencimento negro que encurta distâncias. Segundo Osmundo Pinho (2005), essa sintonia com a África, e outros referenciais geopolíticos da diáspora, é uma perspectiva dos afrodescendentes diante de um campo racializado, em parte pelos agentes negros, que optam por se identificarem como africanos, mas, sobretudo:

“[...] pelas instâncias da hegemonia política que se instalaram como um poder branco e como um representante local, colonial, do ‘branco univer-sal’ sediado em uma Europa sobrepairante”117.

Nesse confronto, a denúncia das muitas formas de silenciamento é uma alternativa política central118. Há episódios dessas lutas sobre os quais ain-da paira um enorme silêncio. No momento a seguir, trago para o foco das lentes deste trabalho, algumas histórias dos movimentos negros na cidade de Feira de Santana, um dos nascedouros da música reggae na Bahia.

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DE BEDUÍNOS A MALÊS

Em linhas gerais, a afirmação das expressões da cultura negra em Feira de Santana perpassa pela relação com o calendário festivo da ci-dade. A exemplo da micareta do Município, considerada a mais antiga do Brasil, o espaço das festas deve ser considerado como palcos centrais de onde se podem apreender valiosas interpretações sobre a dinâmica da urbe. A festa, vista aqui como espaço de sociabilidade (TINHORÃO, 1972; JANCSÓ/KANTOR, 2001; GODI, 1997; MOURA, 2001), é um terreno onde se reproduzem e subvertem as hierarquias e distinções de raça, classe e gênero. A participação efetiva ou segregada no(s) espaço(s) da festa incide diretamente sobre as muitas formas de interação (e repre-sentação desta) de seus/suas agentes, o que implica em um quadro de permanente tensão, ora no plano dos elementos simbólicos, ora no en-frentamento físico entre os grupos, que refletem e são, ao mesmo tempo, reflexo do quadro das relações sociais.

A disputa pela participação nos espaços lúdicos, cívicos, de celebra-ção da religiosidade e outros revela outros focos do confronto pela visibi-lidade dos afrodescendentes, em outras tantas dimensões da sociedade em que eles estão inseridos, seja através de entidades organizadas, seja através da “fantasia” (MOURA, 2001), ou quaisquer formas alternativas e inusitadas. No caso em questão, há uma relação direta entre a produ-ção musical sintonizada com elementos da cultura negra e a disputa pela presença do negro na sociedade.

Esses episódios remontam às décadas anteriores em que os blocos e escolas de samba119 eram uma das principais formas de participação nas festas, em um contexto que já anunciava os indícios da contradição que seria propulsora para o surgimento dos blocos afro120. Segundo Jorge de Angélica, os afoxés surgem como resposta ao quadro de explícita segre-gação dos negros na festa. Em suas palavras:

“Até nos blocos de bacanas a negrada não podia participar, né? A gente ficava de fora mesmo. Não tinha negócio de estória, não: ou ia puxar corda

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como, na época, chamavam os puxadores de corda ... Eram os beduínos. Ou ia ser beduíno dos brancos, pra aproveitar, ou... A gente não tinha oportuni-dade, ou ia puxar corda pra aproveitar uma merrequinha e também brincar ali humilhadamente ou... A gente procurou largar a corda dos caras lá, dos blocos de bacanas, e formamos o nosso bloco, os nosso afoxés”121.

Como parte de um processo mais amplo, a fundação do Afoxé Pomba de Malê e de outras entidades com o mesmo perfil é reveladora de uma nova leitura de negritude e africanidade que pairava sobre a Bahia dos anos 80, por razões conjunturais já abordadas. Foi parte constitutiva desse fenômeno, o fortalecimento dos laços com o candomblé, haja vista a participação decisiva dos terreiros na fundação e articulação das entidades, bem como a assunção de um “novo” discurso de autoidentificação étnica e orgulho negro.

Se é válido considerar que “uma imagem vale mais do que mil pa-lavras”, a capa do LP Música das Ruas de Dionorina (Stalo Discos, 1994) endossa esta máxima, dada a sua contextualidade. Para além do valor estético, a capa – cartão de visitas de uma obra fonográfica – demonstra um uso político do produto fonográfico para expressar sua leitura situada dos movimentos negros urbanos. Ao centro, repousa a imagem da face do artista e seus longos (e conhecidos) dreadlocks 122, num contraste de preto e branco (uma espécie de fotolito) e em uma combinação estilizada com a imagem de uma cobra coral, em cores vivas que é a própria extensão do seu cabelo. A leitura iconográfica de Pedro Kraff, bem recebida pelo artista, remonta à memória das lutas contra as desigualdades sociorraciais, nas mais diversas instâncias da sociedade feirense, mais notadamente na micareta.

A música “Cobra Coral” composta originalmente para o desfile do Afoxé Pomba de Malê explica melhor o sentido político desse uso:

COBRA CORAL(Jorge de Angélica, 1998)

O negro do Pomba quando sai da Rua NovaEle traz na cinta uma cobra coral

É uma cobra coralÉ uma cobra coral123

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Ao descrever o olhar discriminatório com que eram recebidos os integrantes dos afoxés ao se aproximarem e apresentarem no circuito festivo da micareta de Feira, o compositor associa simbolicamente o animal peçonhento como provocador de uma reação de temor mani-festada pelo público – e por que não dizer pelo poder público – diante de uma agremiação composta majoritariamente por homens e mulhe-res negros/as oriundos do bairro da Rua Nova. Este uso metafórico nos dá uma medida da percepção desses sujeitos, a partir das fronteiras raciais impostas na construção do evento público. A cobra coral é, por-tanto um símbolo-resposta à segregação racial, uma leitura política dos espaços de sociabilidade festiva e, para além deles, da cultura de Feira de Santana e suas contradições.

Cabe destacar ainda que a Rua Nova é considerada por muitos mo-radores e pelos meios da imprensa local como um “reduto” da cultura negra, seja pelo perfil étnico-racial dos habitantes, seja pelo reconheci-mento de elementos representativos de uma cultura negra (auto)identi-ficada nos afoxés e terreiros de candomblé. Essa imagem muitas vezes associada à ideia de “gueto” por alguns segmentos da imprensa fei-rense, por exemplo, guarda uma profunda ambivalência, pois também serviu para estigmatizar o bairro na opinião pública como um reduto de violência e criminalidade, imagem que as agremiações comunitárias e entidades do movimento negro vêm desconstruindo ao longo de mais de duas décadas124.

Além de “Cobra Coral”, outros registros de afirmação identitária, cristalizados sob o formato canção nos discos de reggae, são oriun-dos do desfile dos afoxés, dentre as quais se pode destacar “Bahia Negra”, também de autoria de Jorge de Angélica, como se vê no trecho a seguir:

BAHIA NEGRA(Jorge de Angélica)

Oh Oh Oh Bahia NegraA luz da alvorada te deseja

Oh Bahia MãeEu esse ano

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Vou mostrar como é que éO afoxé

Essa dança tão lindaQue vem do Papua

Da Nova GuinéÁfrica

Em conversa com a historiadora e pesquisadora Ana Rita Machado, militante negra, professora da Universidade do Estado da Bahia e radi-cada em Feira de Santana, ela declarou que considera “Bahia Negra” uma das canções de maior expressão entre os afoxés e que ganhou mais expressão local com a gravação de Jorge.

Cabe mencionar ainda que há, no imaginário social em Feira de San-tana, uma presença muito marcante de símbolos do universo pan-árabe – muitos dos cordões tinham nomes com essas características (Ali Babá, Escravos do Oriente, além da própria expressão “beduíno” para identifi-car os “cordeiros”). A leitura do afoxé da Rua Nova está situada com a África islâmica, dos malês, escravos responsáveis por uma rebelião social que teve grande reverberação na sociedade baiana do século XIX, bem como na historiografia brasileira125.

Em linhas gerais, não quero aqui reduzir uma série de trajetórias de lutas ao exemplo desta agremiação afrocarnavalesca. Pelo contrário, uti-lizo esse exemplo dada a conexão entre os demais encontrados e o en-volvimento de um grupo de músicos (alguns entrevistados) com essa en-tidade em especial. Imagino, no entanto, que um estudo mais detalhado dos movimentos político-culturais negros de Feira de Santana nas últimas décadas pode, com rigor, preencher esta lacuna.

Por fim, observando as muitas leituras e tecidas nas canções de reggae e samba-reggae em torno da África e da Jamaica na diáspora, percebe-se a importância destas expressões musicais na busca pela construção de novos referenciais críticos da história do negro, situada na desconstrução de certos estereótipos e estigmas em torno dessas “noções de lugar” que, arbitrariamente, incidiam sobre a sociedade como imagens depreciativas da memória e história dos afrodescendentes. Apesar disso, não defendo

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que as imagens construídas em torno desses referenciais geopolíticos são em si suficientes. Deixo bem explícito meu entendimento de que, à luz de uma determinada época, a produção dessas identidades imaginadas serviu de substrato para que novos caminhos crítico-interpretativos sobre o passado ancestral do negro, seus laços com o continente africano e as muitas histórias da África pré-colonial e contemporânea pudessem fazer parte da rede de temas e questões da sociedade brasileira.

Olhando para o presente, filio-me à causa de que é o acesso à educa-ção e à informação que pode preencher estas lacunas e imprecisões que ainda deixam névoas sobre nosso passado. Sem dúvida, os olhares sobre a “África” de dentro e fora do continente, do mundo de hoje, jamais se-riam os mesmos sem a experiência inventiva que nossa sociedade assis-tiu e que rendeu frutos (musicais) que carecem uma divisão mais justa.

Esse é, a meu ver, um mérito da obra de Patrícia Pinho sobre as rein-venções da África na Bahia: mostrar o desequilíbrio entre o alcance liber-tário das ideias utópicas sobre a África e o processo de transformação da cultura em mercadoria.

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Capa e contracapa do LP Música das Ruas (Stalo Discos, 1994), resultado do prêmio de melhor show no Troféu Caymmi, ano VIII.

Banda Terceiro Mundo. Marley Vive. EMI-Odeon, 1988.

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O compacto Sopa de Papelão (Inde-pendente, 1998), primeira gravação de Jorge de Angélica, trouxe canções como “Bahia Negra”, executadas originalmen-te nos desfiles do Afoxé Pomba de Malê, e “Gangue”, esta última um manifesto contra a violência e a impunidade.

O processo de gravação do disco con-tou com alguns entraves que, nas pala-vras de Jorge de Angélica, começaram na chegada ao estúdio:

“Quando a gente chegou lá pra fazer o orçamento, a gente nem entramos. Ela nos atendeu [pelo lado de fora] fechou a grade lá, abriu outra, trancou... Recebeu a gente assim fora, meio sestrosa... Dois negão, rasta... Ela subestimou a gente”.

Jorge e sua mãe, a Srª. Angélica (que o inspirou a adotar o seu nome ar-tístico) em sua residência no bairro da Rua Nova. Dona Angélica, como é mais conhecida, é uma das importantes perso-nagens na luta pela afir-mação da música reggae e demais elementos da cultura negra em Feira de Santana.

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Os álbuns Som Luxuoso e Muzenza do Reggae, lançados em 1988 pela gravadora Continental, trazem gra-vações das músicas tocadas nos en-saios e desfiles carnavalescos. Entre as referênciais estéticas, símbolos que remontam à História do Reggae como

o Leão – em alusão ao Leão da Tribo

de Judá, cultuado pelos Rastafáris – e a bandeira da Jamaica.

Obina Shok. Obina Shok. RCA, 1986 (Encarte). Através da imagem, os artistas dialogam com uma pers-pectiva identitária situada na diás-pora africana no Atlântico, recurso fortemente usado no período.

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NOTAS

76 SANSONE, 2004, p. 100. Ver também: SANSONE, 2000.

77 Desta autora ver: Desconstruíndo a Discriminação do Negro no Livro Didático. Salvador, EDUFBA, 2001. Não nos esqueçamos que a altera-ção na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira, provocada pela lei 10.639/1997 e novamente modificada em maio de 2008, resulta de intensas mobilizações para reparar, a partir da educação e dos materiais didáticos, esta dívida histórica.

78 Ver o interessante documentário de Joel Zito de Araújo A Negação do Brasil: O Negro na Teledramaturgia Brasileira, além da publicação em formato de livro com título homônimo.

79 Como lembrou Antonio Godi em uma homenagem póstuma ao poeta e militante precursor do movimento negritud, Aimé Cesáire : “Abril vai e Aimé fica”. Jornal A Tarde. Salvador, 24/05/08.

80 In: VIEIRA FILHO, 1997, p. 45.

81 Livro de Entrada e Saída de Passageiros do Porto de Salvador (1896-1897). In: SANSONE & TELES (orgs.), 1997, p. 47.

82 Ver as análises de Raphael Vieira Filho sobre os jornais da época no artigo já citado (2007, pp. 48-49).

83 “Salloma” Salomão (2000, p. 80) destaca a interessante conexão entre as imagens sobre a África (a partir do Egito), presentes em inúmeras can-ções, com a conhecida tese (de doutoramento) de Cheik Anta Diop que também “recupera” as relações do Egito com os povos africanos.

84 SOUZA JÚNIOR, 2008, pp. 21-22. Sobre o impacto desse primeiro desfile na imprensa baiana ver SILVA, Jônatas C. da. História de Lu-tas Negras: Memória do Surgimento do Movimento Negro na Bahia. In: REIS, João José (org.). Escravidão e Invenção da Liberdade. São Paulo: Brasiliense, 1988, pp. 275-288.

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85 PINHO, Osmundo. 2005, p. 133.

86 Esta análise foi reforçada em artigo publicado posteriormente. Ver SIL-VA, Carlos Benedito Rodrigues. “Black Soul: Aglutinação Espontânea e Identidade Étnica”. In: Encontro da Associação Nacional de Pós-Gra-duação e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS), 4, 1984, Caxambu, MG. Ciências Sociais: Compêndio de Comunicações. Caxambu, 1984. V. 2. 1984, citado por PINHO, 2005, p. 133.

87 Ver HOBSBAWN & RANGER, 1997.

88 Volto a lembrar que o movimento negro é aqui compreendido como o conjunto de mobilizações políticas, culturais, acadêmicas e artísticas que se-dimentavam suas bandeiras de luta pela afirmação do “ser” negro como catalizador da luta antirracista no Brasil do século XX, o que insere toda sorte de manifestações livres à fundação de entidades afrocarnavalescas e do chamado Movimento Negro Unificado (MNU), fundado em 1978. Sobre a história do MNU ver: Movimento Negro Unificado. MNU: 1978-1988: 10 Anos de Luta contra o Racismo. São Paulo: Confraria do Livro, 1988.

89 Sobre esta trajetória, o trabalho de Godi (2001) é, sem dúvida, a me-lhor síntese que se tem. Cf. “Reggae in Bahia: A Case of Long-distance Belonging”. In: DUNN & PERRONE, 2001.

90 Parafraseando o sugestivo trabalho de ANDERSON, Benedict. Nação e Consciência Nacional. São Paulo: Ática, 1989.

91 In: Olodum, Carnaval, Cultura e Negritude (1979-2005). RODRIGUES, João Jorge & MENDES, Nelson (orgs.), 2005, p. 339. Agradeço imensamente à Profª. e colega Joelma pela sugestão (e empréstimo!) deste precioso material.

92 GODI, 2001. Os trechos citados são traduções livres do artigo publica-do originalmente em inglês.

93 In: Olodum, Carnaval, Cultura e Negritude (1979-2005). RODRIGUES, João Jorge & MENDES, Nelson (orgs.), 2005, p. 320.

94 O Projeto Mamnba (Mapeamento de Sítios e Monumentos Religiosos Negros da Bahia) foi realizado entre os anos de 1982 a 1987, sob a

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coordenação dos antropólogos Ordep Serra (UFBA) e Olympio Serra. A partir de um convênio entre a antiga Fundação Nacional Pró-Memória e a Prefeitura Municipal de Salvador, o levantamento contabilizou cerca de duas mil sedes de cultos afro-brasileiros somente na cidade de Salvador. Ver: SERRA, Ordep. “Monumentos Negros: uma Experiência”. Salva-dor: UFBA, Revista Afro-Ásia, nº 33, 2005, pp. 169-205.

95 Ibid. p. 319.

96 VEIGA, Ericivaldo. “O Errante e Apocalíptico Muzenza”. In: SANSO-NE, Lívio & SANTOS, Jocélio Teles dos (orgs.). Ritmos em Trânsito: Sócio-Antropologia da Música Baiana. São Paulo, Salvador: Dynamis Editorial, Programa A Cor da Bahia e Projeto S.A.M.BA, 1997.

97 Muzenza. Muzenza do Reggae. Continental, 1988.

98 Ibid.

99 Ibid.

100 Gostaria de lembrar, em tempo, que as canções que são apresentadas pe-las entidades carnavalescas em Salvador são apreciadas ao longo dos meses que antecedem a festa momesca nas “quadras” onde os blocos ensaiam: o Malê Debalê, sediado nas imediações do Parque Lagoa do Abaeté, no bairro de Itapuã; o Olodum, na conhecida terça da Benção; no Pelourinho e o Ilê Aiyê, no Curuzu, coração do imenso bairro da Liberdade. Foi fundada, nos últimos anos, a “Senzala do Barro Preto” que comporta um complexo de atividades socioeducativas, além do espaço destinado aos shows. A partir das primeiras gravações em LP das canções destes blocos, o rádio e o mer-cado de discos passam a ser mais um espaço de disputa pela visibilidade (e auditibilidade) das canções e, obviamente, da divulgação das entidades.

101 In: RODRIGUES & MENDES (orgs.), 2005.

102 Palavras do Reverendo James Morris Webb, de Chicago proferidas por Marcus Garvey numa igreja de Kingston em 1927, segundo WHITE, 1999 (citado por ALBUQUERQUE, 1997).

103 Trecho da canção citada In: RODRIGUES & MENDES (orgs), 2005, p. 279.

104 Cf. GODI, 2001.

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105 Esta expressão é comumente utilizada pelos músicos para definir um determinado estilo musical a partir do arranjo.

106 Canção de Jean Pierre, Henrique Hermeto e Gilberto Gil. In: Obina Shock. Obina Shok, RCA, 1986.

107 Regime de distinção racial pela exclusão-separação direta entre ne-gros e brancos existente também em algumas regiões dos EUA.

108 O Recôncavo é entendido, em linhas gerais, como a região predomi-nante da sociedade açucareira, nos primeiros séculos da colonização, e que hoje compreende um conjunto de cidades (dentre as quais Cachoeira, terra natal de inúmeros artistas de reggae como Edson Gomes) num pe-rímetro de cerca de 80 quilômetros de Salvador. Em seu livro Segredos Internos, Stuart Schwartz destaca, no entanto, que há inúmeras opiniões e imprecisões para definir este termo (São Paulo: Cia das Letras,1988).

109 Gravada originalmente pelo trio vocal The Impressions de Chicago nos anos 1960, com o título “I’m so Proud” (Eu Sou tão Orgulhoso). O autor destaca ainda que este grupo inspirou grande parte dos artistas jamaicanos daquela dé-cada, dentre os quais o mais conhecido, os Wailers (GILROY, 2001. p. 197).

110 Jorge de Angélica. Confiança em Deus. Independente, 2000.

111 SANSONE, 2004.

112 Peter Tosh. Equal Rights. Virgin Records/CBS, 1977.

113 “Estrangeiro”. In: Edson Gomes. Recôncavo, EMI, 1990.

114 Uma audição da gravação de “Sociedade Falida” de Edson Gomes atesta esta impressão (Edson Gomes. Resgate Fatal. EMI, 1995).

115 O LP foi produto da premiação do Troféu Caymmi, importante con-curso da música baiana que deu visibilidade à grande parte dos/as ar-tistas baianos de projeção no cenário atual. Em 1986, Edson Gomes e Nengo Vieira também foram vencedores deste festival. Música das Ruas foi o show que deu nome ao disco, primeiro LP da carreira do artista.

116 Dionorina. Música das Ruas. Stalo Discos, 1994.

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117 PINHO, 2005, p. 129.

118 É o caso da faixa “New York Time: A bomba H já explodiu/ Na África/ New York Times não deu nada/ é tudo ilusão da raça humana/ New York Times não deu nada” (Dionorina. Música das Ruas. Stalo Discos, 1994).

119 Para citar algumas das principais agremiações: Cordão Império Feirense; Ali Babá e Os 40 Ladrões; Tanque da Nação; Escola de Samba Escravos do Oriente, da Rua Nova, sob coordenação da Ialorixá Mãe Socorro, persona-gem importante da história recente de Feira de Santana; Escola de Samba Padre Ovídio. Cf. Entrevista com Jorge de Angélica (02/08/2008).

120 Para o caso de Feira de Santana, o termo “afro” é sintomático de uma emergente autoidentificação étnica destas entidades.

121 Ibid.

122 Termo que define as tranças que constituem um dos penteados que identifica o reggae. Usa-se, de modo mais genérico, termos como “cabe-lo rasta” ou, simplesmente, “rasta”.

123 Foi gravada posteriormente no disco Sacasó (Zero Bala, 1998).

124 Fica em suspenso investigar a relação entre a popularização dos afoxés e a produção de um olhar criminalizador (sobretudo por parte da imprensa e dos órgãos públicos) sobre a Rua Nova. Não se pode desconsiderar índices nítidos de violência urbana neste e em outros bairros da cidade, tampouco atribuir-lhes motivações estritamente intrínsecas às suas fronteiras internas. Para completar a provocação e endossar minha preocupação com o tema, sugiro apreciar as reflexões de Wacquant sobre o crescimento de sistema carcerário e sua relação direta com o crescimento dos movimentos pelos direitos civis dos negros nos EUA (WACQUANT, L. “Crime e Castigo nos Estados Unidos: De Nixon a Clinton”. In: Revista de Sociologia e Política. Curitiba, nov. 1999, nº 13, pp. 39-50).

125 REIS, João José. Rebelião Escrava na Bahia: O Levante dos Malês (1835). Edição revista e ampliada. São Paulo: Cia das Letras, 1996.

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FAIXA 3

OS ANOS 90 E O VERÃO DO REGGAE BAIANO

Eu quero um Reggae Que me leve ao paraíso, eu queroEu quero um Reggae Que me traga uma nova ordem eu queroEu quero um Reggae Como ponto de partidaEu quero um Reggae

Trecho da canção Novo Reggae de Paulinho Ganaê e J. Magalhães

Se o lance tá na corA coisa é essa, Sinta Reggae, Reggae, ReggaeSe o lance tá na corA coisa é essa, é essa, é essa:Cantando e reggando Pra quem quiser ver...

Sinta e Kaya, gravada por Sine Calmon e Morrão Fumegante, 1997

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Se, ao longo dos anos 80, a sociedade baiana, e brasileira, interagiu com a presença gradativa da música reggae, pelas rádios, TV ou através dos discursos e estética dos blocos afro, é sem dúvida no intervalo de dé-cada entre 1988 a 1998 que o estilo ganha sua definitiva “consagração” no ambiente sociocultural e no mercado fonográfico. Seja pelo uso de novas técnicas de gravação que registraram, por exemplo, o Muzenza, em 1988, e outras gravações do samba-reggae, então “aprisionado” nos estúdios WR em Salvador, seja pela proliferação de bandas que arrisca-vam seus próprios vôos no ritmo afro-jamaicano.

Do início a meados dos anos 90, podia-se ouvir, além da marcante batida do então consagrado samba-reggae, os acordes de outros grupos de artistas como Adão Negro, Sine Calmon e Morrão Fumegante, Diono-rina, Geraldo Cristal, etc., que, aos poucos, cristalizavam suas experiên-cias musicais em registros fonográficos. O número crescente de registros está associado ao surgimento (e popularização) de novas possibilidades de gravação (digital), bem como pela maior circulação de discos interna-cionais de reggae no Brasil como apontam alguns colecionadores126.

Essa sintomática mudança seria evidenciada também pelas lentes de antropólogos e sociólogos, jornalistas e críticos de música que se volta-vam sobre alguns aspectos desse fenômeno “novo”. Os principais traba-lhos sobre o gênero emergem, sintomaticamente, ao longo desse perío-do (CUNHA, 1991; GODI, 1997, 1998, 2001; ALBUQUERQUE, 1997; WHITE, 1999; PINHO, 1997 e 2001).

No programa de Ciências Sociais da Universidade Federal da Bahia, dois trabalhos em especial discutem, com atenção, algumas nuances da presença reggae na Bahia. Marcos Rubens Santos (2001) analisa as respos-tas à discriminação sociorracial dos negros em Salvador, a partir da estética do reggae. Para além disso, seu trabalho consegue mapear os espaços de circulação e apreciação do público “regueiro”127 de Salvador, com base em uma rigorosa pesquisa de campo. É importante destacar que o autor era (e ainda é) um músico de relativa expressão na Bahia. Guitarrista da banda Adão Negro, vivenciava, à época, todo o processo de transformação e cristalização do reggae em uma cultura musical de presença definitiva na sociedade baiana, mais destacadamente entre a juventude negra.

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Outra representante acadêmica desta nova sensibilidade à socioantro-pologia da música foi (é) Bárbara Falcón, já mencionada, que, em mono-grafia sobre os “Remanescentes” – artistas que formaram uma comunidade religiosa e musical na cidade de Cachoeira – aponta ineditamente para o surgimento de novas trajetórias de vida mediadas pelo expressivo contato com a música reggae e seu arcabouço filosófico, religioso e político.

Para além desse dado, em cada esquina, beco ou bar das cidades na Bahia – particularmente Salvador, Feira de Santana e Cachoeira – se podia escutar, a qualquer momento, a pulsação grave do som jamaicano em coletâneas comercializadas pelos camelôs, contendo compilações dos principais representantes do estilo. Em outros cantos, os gritos de “fogo na Babilônia”, entoados por homens e mulheres de todas as idades im-punham um novo sentido de territorialidade que despertou o desagrado dos segmentos mais conservadores da elite baiana. Entre processos e batidas policiais, o reggae se colocava como uma alternativa vivaz da música negra na Bahia, como se confirmou, entre outros elementos, pela explosão da canção “Nayambing Blues”, de Sine Calmon e Morrão Fu-megante no carnaval de 1998. A este momento de efervescência socio-cultural-musical, chamo de “Verão do Reggae Baiano”. Estes e outros enredos serão particularmente alvo deste capítulo.

1988: O ANO QUE NÃO TERMINOU

1988 inaugura, precisamente, os anos de cristalização de uma cena reggae produzida na Bahia, como enuncia a movimentação de artistas do gênero entre inúmeras cidades do interior (exponencialmente Feira de Santana e Cachoeira) e capital (Salvador). Havia, nestes territórios, uma emergente produção local de reggae, que ganhava, aos poucos certa vi-sibilidade e popularidade na Bahia. Se por um lado, “a porta abria para Salvador, era estreita para as bandas do interior”, como enfatiza o cantor e compositor Jorge de Angélica. A música reggae foi um dos elementos

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propulsores de novos espaços de produção e organização contracultural na atlântica “cidade mundial”128. A realização do I Reggae in Bahia Festi-val, em 1988, nos dá ainda a impressão de que o gênero, à altura de 1988 e pelos anos 90 afora, constituía-se em um dos principais porta-vozes da luta antirracista dos negros e negras, na Bahia e no Brasil. Esse momento decisivo, registrado por alguns segmentos nacionais da opinião pública129, explica, como desdobramento, a gravação sintomática do álbum Reggae Resistência, primeiro disco de Edson Gomes, gravado nos estúdios da WR, em Salvador, por um time responsável pelo amadurecimento do reggae baiano, ao longo dos anos 80. A assinatura da gravadora EMI-Odeon era sintomática do interesse renovado nas produções “glocais” de estilos trans-nacionais da música negra, como atesta o lançamento contemporâneo da coletânea Hip Hop Cultura de Rua, com Thayde e DJ Hum, Mc/Dj Jack, Código 13 e outros (Gravadora Eldorado, 1988).

A expressão “Reggae Resistência” é uma definição utilizada em Cacho-eira na Bahia para definir o reggae roots feito sob as medidas da “tradição clássica” do som jamaicano, legadas por seus representantes mais conheci-dos (particularmente Bob Marley e Peter Tosh). Uma audição crítica deste álbum revela suas (do artista e demais envolvidos) enormes consonâncias com as sucessivas mobilizações sociais negras em torno do ano de 1988. Além da explícita contraposição às comemorações do centenário da Aboli-ção no Brasil (que dividia opiniões no período130), o disco de Edson Gomes nos dá pistas em torno da permanência de sentidos étnico-identitários de negritude, na diáspora. Na letra de “Sistema do Vampiro”, faixa de abertura, travam-se algumas questões que merecem atenção, como se pode conferir:

SISTEMA DO VAMPIRO(Edson Gomes, 1988)

Esse sistema é um vampiro Ah! O sistema é um vampiro Esse sistema é um vampiro

Todo povo ficou aflito Esse sistema é um vampiro

Ah! O sistema é um vampiro Vive sugando todo povo

Vem cá, meu Deus, desça de novo

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Ouça meu grito de socorroPai, escuta a voz desse teu povo

Que clamaUm centenário de falsa libertação

Cativeiro mentalEstamos metidos nos buracos

Estamos jogados nas favelas da vidaPendurados lá no morro

Velho pai, só nos resta teu socorroAh, sim!

Estamos largados nas calçadasNós não temos nem morada

Não temos nada!131

Ao referir-se ao “centenário de falsa libertação” (os 100 anos do decreto da Lei Áurea e a extinção “formal” do trabalho cativo), Edson Gomes utiliza uma categoria muito emblemática para a análise das influências da música reggae na Bahia: a expressão “cativeiro mental”132, apresentada por Bob Marley (bas-ta lembrar da famosa “Redemption Song”: “emancipate yourself from mental slavery [...]”. Este conceito compreende a escravidão como processo de vio-lência cultural que transcendeu o status da sociedade escravista e revelou-se como permanência no mundo contemporâneo. Através do reggae (que impli-ca num conjunto de práticas e vivências mediadas pela música), a categoria definida pelo intelectual negro jamaicano é reapropriada em um contexto de profunda tensão social no Brasil, sendo traduzida/ressignificada pelo artista baiano em um marco crucial da indústria fonográfica no país.

Edson Gomes & Banda Cão de Raça, assim como tantos outros intelectuais da época, assumiram uma posição explícita diante do contexto de 1988. Para além de ser o ano das “comemorações” do centenário da abolição formal da escravidão no Brasil, foi um momento de grandes debates sobre a organização do estado civil e seus instrumentos legais de garantia de direitos. As militâncias negras urbanas se insurgiam, levantando a necessidade de reconhecer a im-portância dos negros para a construção do país e a necessidade de reparar as dívidas históricas com essas populações, bem como estimular novas produções historiográficas nesta direção (SILVA, 2000c). Na faixa “História do Brasil”, constrói-se uma interpretação histórica crítica do marco da colonização.

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HISTÓRIA DO BRASIL(Edson Gomes, 1988)Eu vou contar pra vocêsCerta história do Brasil

Foi quando Cabral descobriuEste país tropical

Um certo povo surgiuVindo de um certo lugar

Forçado a trabalhar neste imenso paísE era o chicote no ar

E era o chicote a estalarE era o chicote a cortar

E era o chicote a sangrarUm, dois, três, até hoje dói

Um, dois, três, bateu mais de uma vezPor isso é que a gente não tem vezPor isso é que a gente sempre está

Do lado de foraPor isso é que a gente sempre está

Lá na cozinhaPor isso é que a gente sempre está

Está fazendoO papel menor

Ou o papel pior133

Ao contar uma “certa história do Brasil”, Edson Gomes realça o traba-lho forçado (escravo) como elemento indelével deste processo, cujas mar-cas persistem até o presente (“era o chicote no ar, era o chicote a sangrar/um, dois três, até hoje dói/ um dois três, bateu mais de uma vez”). Neste sentido, a canção traça um panorama da situação d@s negr@s, ocupando posições marginais na sociedade, fazendo sempre “o papel menor ou o papel pior”. Nesse contexto, esta canção soa como contradiscurso à histo-riografia conservadora que encarava o centenário da abolição como data comemorativa do fim da escravidão, silenciando o papel de negros e ne-gras na construção deste processo. Os solos de guitarra (ao longo de toda a canção) dão ainda o ar de contestação e “distorção” de uma verdade velada (não é à toa o uso de pedais de efeito overdrive para alterar a so-noridade harmônica, próprio dos grupos de rock).

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Posição muito próxima está registrada no álbum Atrás do Pôr do Sol, de Lazzo, lançado pela gravadora Nosso Som e distribuído pela multina-cional BMG-ARIOLA. Este é, sem dúvida, um dos discos com a sonoridade mais próxima do reggae já lançados pelo artista. Curiosamente, é também um álbum marcado por canções que explicitam as desigualdades raciais e apontam na direção de perspectivas também insinuadas pelos movimentos sociais da época. A primeira canção do álbum, “Abolição”, é também um manifesto contra as comemorações “oficiais”. Nas palavras do artista:

ABOLIÇÃO(Lazzo e Capinam, 1988)

Abolição!Abolição, a lição do meu avôQue casou com minha avóE que pariu a minha mãe

E com meu paiCom meu pai fazendo amorFez do prazer a flor da dorA beleza negra que eu sou

Acabar com a tristezaCom a pobreza e o apartheid

Não fazer da humanidade, a metade da metadeParte branca e parte negra

Abolição!Abolir essa careta

Que esconde a naturezaE que me faz ser teu irmão

E a lição, a lição do meu avôFoi ser dono do meu serFoi saber o que eu sou

A lição da liberdadeDa verdade de zumbi (Zumbi meu pai!)

Lá da Serra da BarrigaDa barriga onde eu nasciAbolindo a velha intrigaGuerreando pra sorrir134

A canção problematiza a “Abolição”, sugerindo-a como lição/posição política igualitária ensinada pelas gerações anteriores. O jogo de palavras e a inversão de sentidos edificam um contradiscurso à leitura hegemô-

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nica do centenário da Lei Áurea, demarcando uma posição comum a alguns segmentos das militâncias negras urbanas (SILVA, 2000).

A importância da afirmação/valorização do ser negro é um argumen-to central do artista. Ao entrecruzar a referência a sua genealogia com a Serra da Barriga, onde se situou o Quilombo de Palmares, Lazzo estabe-lece uma alusão explícita de ligação com um passado de lutas anticolo-niais, que deveria ser reinserido naquele contexto, em que ainda se fazia necessário “guerrear pra sorrir”.

A canção que encerra o mesmo disco também é um manifesto antirracista. Em “Lamento”, Gileno Félix e Lazzo abordam as formas de discriminação racial que representam um obstáculo à igualdade de direitos na sociedade:

LAMENTO

(Lazzo e Gileno Félix, 1988)Meu Deus, até quando a gente vai poder suportar

Uma falsa igualdade em que é sutil mentirE não nos conceder o direito

Meu deus quanto tempo a gente vai ter que esperarUma longa avenida livre de todos preconceitos

Se em cada esquina há um estranho olharDiscriminador acusando um suspeito

Eu não!Meu deus quanto tempo a gente vai ter que esperar

Pra doce raça humana ter iguais direitos?Será que eles não sabem

Que a chuva que cai do céuNão escolhe

Vem e molha todos nósE que o povo há de fazerSeu próprio mandamento

E o tempo há de sentirO que vem do firmamento

E a cada sol nascerNascerá sempre um novo movimento

Nascerá!Salve o deus da música

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Forte pra lutarContra a opressão

Contra a discriminaçãoContra o aparttheid

E dai-nos a paz(Choro nas minhas cordas)135

A partir desses registros, podemos mensurar a importância da música na mediação de sentidos identitários de negritude e antirracismo. É pos-sível ainda sugerir que os discos de reggae produzidos na Bahia repre-sentam expressões do ativismo político dos negros entre os anos 80/90. Os anos que seguiram também são protagonizados por inúmeros artistas que colocaram, através da produção musical deste gênero, temáticas re-lativas ao combate do racismo.

Um número considerável de artistas que, ao longo das décadas anterio-res, construíam a cena reggae, passava a registrar suas canções em discos com selos “independentes”, gravados a partir de tecnologias e softwares mais acessíveis. A respeito deste conjunto de fontes é importante destacar que não tenho privilegiado as informações sobre a circulação no grande mercado. É notório que estes registros fonográficos atingem um grupo às vezes pequeno de consumidores, o que, de início, parece inviabilizar maio-res reflexões acerca deste material. Por outro lado, as gravações de artistas como Ras Ciro Lima, Ubaldo Warú, Geraldo Cristal, Zavan Liv, Gilsan, Jorge de Angélica, etc., guardam valiosas impressões sobre o contexto pelo qual nos debruçamos e são, portanto, fontes primárias para compreender os enredos da versão baiana do gênero. Portanto, privilegio, aqui, ouvir e ver os sujeitos para além do critério quantitativo, ou de sua maior ou me-nor vendagem de discos.

Em outras palavras, “o que se vê” ou o que é invisibilizado, ainda ga-nha muita relevância no mundo contemporâneo, logo, o racismo e a luta antirracista se constituem em torno e em conflito com esses sentidos. Este exemplo faz relembrar ainda Maurice Halbwachs, em suas considerações sobre o papel dos músicos na construção da “memória coletiva”. Ele argumenta que a “lembrança” dos músicos são as únicas conservadas “numa memória coletiva que se estende no espaço e no tempo, tão longe

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quanto sua sociedade” (1990, p. 185). Entretanto, seu posicionamento representa, à luz de novas reflexões, alguns limites, uma vez que conside-ra todas as formas outras de memória coletiva seccionadas do tempo his-tórico, logo, restringindo sua herança ao tempo de vida dos indivíduos.

Segundo Ahmed Hampatê-Bá (1982), essas raízes podem ser ainda mais remotas, como aponta seu valioso A Tradição Viva que trata das tradições e formas de organização social persistentes em determinadas regiões do continente africano, ancoradas na oralidade. As tradições orais/musicais têm papel central na produção de conhecimentos, na or-ganização social e na legitimação das identidades e visões de mundo. Acompanhando esta opinião, destacamos que a oralidade aqui é com-preendida em seu amplo papel para o legado cultural e político de um ou mais grupos sociais. Portanto, os discursos estético-musicais e “falas” compõem as memórias de uma inventada tradição recente que serve como recurso político para legitimar os grupos e suas demandas sociais. É como aponta o historiador e músico “Salloma” Salomão Silva:

“Os compositores retomaram as ligações com as práticas Griot ou Doma [...] que são formas destinadas à preservação da memória na forma de canções [...]. O encontro dos compositores e militantes negros com a his-tória da África antiga e do Brasil colonial gerou um estilo inédito de can-ções urbanas, que se encontravam em sincronia com as proposições de

alguns grupos negros” (SILVA, 2000, p. 80).

Em inúmeras canções (o que inclui as apresentadas até o momento neste capítulo), esse recurso é amplamente visível e merece ser considerado. É im-portante considerar que na arena da chamada cultura baiana (que transcende, sem dúvida, o espaço metropolitano de Salvador), a música incorporou novos sentidos, de acordo com as diferentes formas de reprodução em sintonia com “aspectos tenazmente locais” da história, tais como as experiências musicais do Recôncavo, a presença da musicalidade de matriz africana nos rituais de candomblé e a emergente e híbrida sonoridade dos blocos afro e afoxés. Mú-sicos e musicistas são, no sentido amplo apontado por Geertz, intérpretes das tendências da música mundializada e recriadores destes estilos à luz das ten-sões e visões de mundo que lhes está ao alcance, ocupando, portanto, o lugar de pensadores(as), ativistas e sujeitos críticos que subvertem as hierarquias e

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“fazem a cabeça” (em diversos sentidos) de jovens e adultos que identificam, nas canções, abordagens em torno de seu próprio cotidiano.

É possível situar, ainda, acompanhando passos sugeridos por Sil-va (2000), um conjunto de canções que tematizaram o “resgate do passado” como forma de enunciar uma identidade de ser-estar negro na sociedade contemporânea, revisitando a historiografia e inserin-do outros personagens subversivos e episódios de sedição pela luta antirracista/antiescravista no passado colonial brasileiro. Zumbi dos Palmares, Lucas da Feira, entre outros, foram os protagonistas dessas novas narrativas musicais.

Talvez pela carreira “melhor sucedida”, o cantor e compositor Edson Go-mes apresente um número maior de exemplos espalhados entre seus 14 lan-çamentos (incluindo as muitas coletâneas). Entre as músicas existentes e mais elucidativas (“História do Brasil”136 já foi devidamente mencionada), há a can-ção “Capturados”, cujo texto da letra aborda o reconhecimento da identidade negra como estratégia de identificar a ideologia da democracia racial:

CAPTURADOS(Edson Gomes, 1990)Somos filhos dos escravos

Não temos vergonha de assumirSomos filhos dos capturados

Não temos vergonha de admitirSomos filhos dos escravos

Estamos afinsDe tirar essa máscaraRevelando a história

De um povo roubado, adulteradoE negado a ser feliz

Um povo castrado, lesionadoE negado a ser feliz

Somos filhos dos escravosEstamos afins

De arrancar essa máscaraRevelando a história

De um povo que habita

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Lá dentro do guetoCapital da miséria

Crianças que vivemCirculando nos sinais

São aprendizes de marginaisSomos filhos dos escravos

Somos filhos dos capturados

Somos, somos, somos e somos137

O verbo “ser”, tão evidenciado pelo autor, é sintoma de uma posi-ção política que visualiza, no passado, a figura do escravo como sujeito histórico – restituído de sua humanidade – para a identificação com o “ser” negro, no contexto contemporâneo. Chama ainda mais à atenção, a ênfase na filiação com o ancestral negro, como estratégia de “revelar” uma historiografia atenta para as desigualdades sociorraciais que pesa-ram sobre os afrodescendentes e, consequentemente, sobre seus filhos do presente. Longe de querer esvaziar ou esgotar as metáforas do artista, arrisco que a estrofe final, que se refere às crianças, sugere uma estratégia poético-musical para evidenciar o argumento central da canção.

Essa leitura do passado é profundamente reveladora de uma nova per-cepção sobre o presente que evidenciava as hierarquias raciais como perma-nência histórica da realidade brasileira e da autoafirmação (“somos...”) como resposta ao mito da democracia racial e da não violência; bem como das for-mas historicamente construídas do racismo que opera em torno de um sistema complexo que institui a inferiorização do negro e a exclusão das esferas do poder e, por conseguinte, dos mecanismos de legitimação destas esferas.

Além disso, o uso simbólico de elementos de circulação no imaginário social também foi alvo da criativa obra musical em foco. Utilizando o disco (em sua dimensão plástica) como espaço de interação, Recôncavo ostenta um encarte que guarda, de um lado, as letras do álbum e, de outro, uma imagem imponente de um time de futebol formado pelos músicos e outros agentes en-volvidos na produção da obra. O futebol, um dos esportes de maior símbolo de mobilização nacional e identificação do Brasil no exterior, é retratado de modo, se não transgressor, minimamente identificado com a estética negra138.

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Entre os muitos centenários celebrados na virada para a década de 90 – o da Abolição em 88, o da República em 89 – esteve em suspenso a questão dos ícones da memória nacional e seu efêmero calendário. Silva (2000) destaca que a entrada, no cenário nacional, de questões relativas às identidades negras, naquele contexto, foi um aspecto propulsor das mobili-zações que culminaram ao redor do ano de 1995, contexto em que se des-tacava a disputa política pela afirmação do 20 de Novembro como data comemorativa do tricentenário da Morte de Zumbi (20 de novembro de 1695). Ressalta ainda que a movimentação político-cultural, nos anos que antecederam este episódio, foi pauta da fala cantada dos grupos negros de inúmeras cidades do Brasil, entre os quais, aqueles ligados ao movimento Hip Hop (destacadamente em São Paulo). Esta nova presença afro-musi-cal urbana teria sido – na leitura plausível de Silva (2000) – sensivelmente percebida por Gil e Caetano Veloso que, na ocasião, apresentaram a can-ção “Haiti”, como música de trabalho do recém-lançado Tropicália 2 139. Na Bahia, esse processo também marcou algumas faixas da discografia do reggae. Em “Música das Ruas”140, Dionorina canta sua percepção do “novo Zumbi” na sinestésica “1695”:

1695 (MEDO NUNCA)(Dionorina, 1994)

Há algo no ar da praçaUm grito que pairou no tempo

Que a raça nos traz Refletindo um navio negreiro

Com os olhos do tempoNovo quilombo se formandoA resistência do som tropical

Somos negros mesmoSomos nossos pais

Somos dentes tão clarosSomos de todo gás

Por traz dos canaviaisUm lamento batalhador

Oh nãoMetáfora de escravidão

O desemprego e a corrupção no meu país

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Oh não oh nãoLibertai a carne e o espírito

Mas preservem meu coraçãoOh não1695,

1695, louca diáspora universal1695, banzos e malês retratam o que eu digo1695: novos “Zumbis” apostam na paz [mil...]

Chama que teima em luzir o seu brilhoNossa esperança ilustrando um cartaz

Medo nunca Medo nunca mais

Não, não, nãoMedo nunca

Medo nunca maisNão, não, não

Na leitura do compositor e intérprete, há em questão um sentimento de pertencimento étnico que paira no ar e no tempo (como “um espectro que ronda...”) e que remete ao passado do negro no Brasil, no que se re-fere à experiência dos quilombos, entendidos como territórios de sedição e resistência. Essa análise do passado nos remete às reflexões de Walter Benjamin, oportunamente lembrada nas epígrafes de Gilroy (2001), a respeito da história e sua incursão sobre o tempo. Diz-nos Benjamin que “articular historicamente o passado não significa aceita-lo ‘do jeito que ele realmente era’. Significa apropriar-se de uma memória quando ela eclode em um momento de perigo” (GILROY, p. 351, 2001).

Essa “memória viva” do quilombo e seu referencial-mor Zumbi indicam uma contra-história em que se sublevaram contra uma historiografia neo-ocidental que, a rigor, impunha contra parcela considerável da população brasileira (negros e negras), a sombra do silêncio. A posição desse e de ou-tros compositores, a partir de seus textos musicais, revela-se em consonância com o contexto em que os (novos) movimentos sociais negros no Brasil apostavam, dentre outras bandeiras, na alteração do calendário cívico e, com ele, da interpretação histórica que silenciava a importância de negros e negras para a edificação do Brasil e de uma história do negro na diáspora.

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Paralelamente, o arranjo da canção proporciona um ambiente pro-fundamente melancólico (blues), reforçado por incursões esporádicas de melodias de guitarra em escala pentatônica que respondem à cada avanço das estrofes. Esta impressão sonora completa o texto musical, instaurando uma imagem singularmente ambivalente: por um lado, a memória de um passado (da plantation) marcado pela dor, como demar-ca a postura vocal combinada com a vibrante resposta das estrofes finais: “medo nunca mais!”.

Não se pode deixar de considerar a percepção implícita de uma críti-ca às contradições da política nacional, na transição em marcha para um processo de alinhamento com as políticas do neoliberalismo, tendência que aparece em outros autores do gênero no ano seguinte141.

Em 1995, com o lançamento de Resgate Fatal, Edson Gomes traz em “Zumbi dos Palmares” uma homenagem ao tricentenário. Vejamos a seguir:

ZUMBI DOS PALMARES(Edson Gomes, 1995)

Zumbi,Rei dos PalmaresUm grito de dor

LiberdadeZumbi

Rei dos PalmaresUm lutador

Líder de valorVocê, o nosso precursor

De lá para cá outro não se viuDe lá para cá ninguém assumiu

VocêUm grande lutador

A nossa luta não acabouEis aqui a retomada

Vamos então encher a praçaGritar de novoGritar com raça

Deliberada

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Sou Zumbi dos PalmaresÉ o Zumbi dos PalmaresEu Zumbi dos Palmares

ZumbiAté mesmo o solSe eles pudessemA gente pagaria

ZumbiAté mesmo a chuvaSe eles pudessemA gente pagaria

Não temosComo estudar

E a cada dia se alimentarNão temos

Onde trabalharE a cada dia mais difícil

Se alimentarVocê

Um grande lutadorA nossa luta não acabou

Eis aqui a retomadaVamos então encher a praça

Gritar de novoGritar com raça

DeliberadaSou Zumbi dos PalmaresÉ o Zumbi dos PalmaresEu Zumbi dos Palmares

Ao longo desses anos todos que nós estamos no BrasilAinda não somos livres

A canção evidencia uma leitura de mundo que, voltando-se ao pas-sado, identifica, por um lado, a permanência das desigualdades sociorra-ciais e, por outro, a identificação com Zumbi (precursor, lutador, líder de valor) como referencial histórico e étnico-identitário de luta contra essa realidade. A canção sugere ainda um tom de mobilização em torno do tema, sinalizando para a opinião do artista diante da bandeira dos mo-

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vimentos negros urbanos. Ainda neste álbum, o passado escravista serve de referência à leitura das desigualdades do presente, como o exemplo da faixa “Fato Consumado”:

FATO CONSUMADO(Edson Gomes, 1995)

Toda miséria que o povo passaQuem vai pagar?

Toda essa fome que o povo passaQuem vai pagar?

Por todo esse sangue derramadoNas pedras do Pelô

De cada homem chicoteado

Nas pedras do Pelô [...]

A referência aos levantes de escravos e outras formas de resistên-cia à dominação colonial fizeram/fazem parte das mensagens do reggae baiano. Uma das leituras curiosas desse processo é a canção “Lucas da Feira”, de Gilsam, gravada (já tardiamente) em 2002, em seu álbum in-dependente Reggae para Todos. Lucas da Feira é o nome como ficou co-nhecido o liberto Lucas Evangelista142, que nasceu em Feira de Santana na primeira metade do século XIX e cuja história, rigorosamente silencia-da pelos grupos dominantes da cidade nos últimos séculos143, vem sendo retomada por alguns segmentos dos movimentos negros há algumas dé-cadas. A leitura do compositor e intérprete Gilsam é uma delas:

LUCAS DA FEIRA(Gilsam, 2002)

Que pode um homem e o sistema vilQue pariu a besta e a opressão

Quem viuA estrela da redenção

Nos olhos da noite contra o açoiteUm homem vil

Quem viuComo tantos outros homens

A estrada que se abriuPara conduzir sua gente

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Quem viuPelas veredas encandescentes

Lucas da FeiraFilho da LibertaçãoCinturão do agreste

De tantos algozes semeiam vozes de resistênciaContra a opulênciaDo ditador comum

Lucas da FeiraFilho da libertação

Aos olhos do cantor, pedagogo e ativista negro, Lucas da Feira é um personagem cuja história foi silenciada, pois revela o protagonismo de um negro liberto que se levantou contra o sistema colonial. Em muitas conver-sas com Gilsam, ele enfatizou que há, na verdade, bastante resistência em produzir uma história do passado colonial que problematize a condição do negro no contexto de Feira de Santana e do Sertão, de um modo geral144.

Em suma, os exemplos apresentados de canções sinalizam para uma tendência mais geral adotada por outros compositores e intérpretes que, ao longo dos anos 90 (que, a meu ver, se estende para além da década propriamente dita), tentaram dialogar e propor novos parâmetros à his-toriografia que pudessem, a partir da análise do passado, produzir uma leitura crítica da situação do negro na sociedade contemporânea.

Há, paralelamente, um universo de canções mais sintonizadas com a denúncia do racismo brasileiro e da democracia racial, como es-creveu o compositor e músico Artur Cardoso:

ADÃO NEGRO(Arthur Cardoso, 1998)

Apartheid disfarçado todo diaQuando me olho não me vejo na TV

Quando me vejo estou sempre na cozinha Ou na favela submissa ao poder

Já fui mucamaMas agora sou neguinha

Minha pretinha, nós gostamos de você

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Levante a saia e saia correndo pro quartoNa madrugada patrãozinho quer lhe vê

Será que um dia eu serei a patroa?Sonho que um dia isso possa acontecerFicar na sala, não ir mais para a cozinha

Agora digo o que vejo na TV:Um som negro,Um Deus negro,Um Adão negro,

O negro no poder

A ideologia da democracia racial, denunciada na expressão “apar-theid disfarçado todo dia” é associada pelos mecanismos de invisi-bilização social (como a TV) e pela manutenção de espaços (sócio)racialmente hierarquizados (como a representação da “sala” e da “co-zinha”). Alguns comentários já foram feitos sobre esta percepção, de inspiração freyreana, que incide sobre a ideia de que a “cozinha” está para os escravos, negros, mulheres, assim como a “sala” para os se-nhores, brancos, homens. Uma criativa leitura desta relação dualista foi feita por Carlos Albuquerque (1997), que denomina de “racismo sonoro” o hábito de considerar os instrumentos rítmicos como parte da “cozinha” na formação das bandas, em sua breve análise sobre o dub (e a nova centralidade-liberdade para o baixo e bateria) vertente mais psicodélica da música jamaicana145.

Comentários à parte, Artur Cardoso, cofundador da banda Adão Ne-gro (que é um nome, de saída, sugestivo) propõe uma contranarrativa de questões estruturais e cotidianas da sociedade. Este recurso, visível em outras leituras musicais do contexto, enuncia a presença de uma metafí-sica de negritude mais edificada em torno do orgulho negro do que pro-priamente na imagem do negro como vítima, uma mudança substancial, eu diria, do ponto de vista das estratégias discursivas e das perspectivas dos grupos negros urbanos. Ainda que o artista não faça mais parte do Adão Negro (dado que é, no mínimo, intrigante e que não pode ser de-vidamente contemplado nesta pesquisa) esta é uma das mais conhecidas canções do reggae baiano, desde fins dos anos 90.

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Em outra canção, o militante, compositor e baixista Jorge França re-alça, entre outras questões que também mereceria destaque, a relevância da autoafirmação do negro para a constituição de uma “identidade” na luta contra o racismo:

IDENTIDADE(Jorge França, 2003)Ei, meu irmão negro!

Não tenha medo de ser vocêNão renegue a sua cor

Ela te acompanhará onde você forEla faz parte da sua identidade

Assuma, enfrente a sua verdade [...]Nunca acredite em que diz que você não é belo

Mas pregue a paz entre o branco, o negro, o vermelho e o amareloE lute contra a discriminação

Esse é o seu destino, vamos lá meu irmão...146

Este tipo de referência, presente em outras gravações, permite men-surar a relevância da produção local da música reggae na construção de novos sentidos de pertencimento negro e repostas à desigualdade sociorracial. Essa manifestação esteve presente em outros materiais, como o informativo Folha do Reggae.

QUEIMANDO TUDO COM A FOLHA DO REGGAE

Completando esse quadro, a mobilização político-cultural em torno da divulgação do gênero em estudo também foi registrada em fontes como o informativo Folha do Reggae, publicado em Salvador, no verão de 1997. Ainda que publicado em apenas três edições, os exemplares desse impresso são uma fonte de extrema importância, pois apresentam

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uma agenda movimentada de eventos, lançamentos de discos, informa-ções sobre a presença dos blocos de reggae e samba-reggae no carna-val (representados em blocos tais como Resistência Ativa, Ska Reggae, Amantes do Reggae e Muzenza do Reggae, de Salvador), além de entre-vistas com músicos como Nengo Vieira, Edson Gomes e Sine Calmon.

No expediente do jornal, entre editores e colaboradores, estavam per-sonagens da militância negra na Bahia com Raimundo Bujão, Samuel Vida, Antonio Godi, Índio do Olodum e outros. Além de artigos acadê-micos sobre música rasta-reggae e pertencimento negro, era publicada, em cada edição, a tradução para o português de canções de Bob Marley, elaboradas pelo historiador João José Reis147.

Entre as matérias, destaca-se a que trata da presença dos blocos de reggae no carnaval (intitulada no periódico de “arrasta-reggae”), ocupando espaços outrora negados no circuito da festa momesca, bem como trazendo para o enfrentamento questões de cunho étnico-iden-titário. É importante destacar que o reggae chegava, naquele contex-to, instaurando um contraponto aos blocos de trio (da chamada axé music), no que diz respeito a manifestações de racismo no interior do evento público, como informa a Folha do Reggae, a partir de entrevista com Rosiel Santana, diretor do Muzenza:

“O Muzenza resgatou neste carnaval o direito de sair na rua durante o dia, chegando no domingo e terça às 16h na Avenida. Para Rosiel Santana, a importância do reggae é muito grande no carnaval, pois o ritmo é tocado até pelos blocos de trio resgatando a autoestima do povo afro-baiano. Segundo ele, a partir do momento que se mostra o que se tem de bom, a sociedade deixa de resistir e passa a acreditar, ‘o que era coisa de preto se

transforma em algo valorizado pela sociedade’. [...]”148.

Para esse diretor, houve um “cansaço” com relação a axé music, promovi-do pela falta de qualidade das músicas dos blocos de trio que, com raras exce-ções, englobam conotações racistas, como na música da banda Tiete Vips que diz: “a ti ba ba, a ti be be, nego nagô fede mais do que sariguê”. No entanto, o reggae não vem para competir, mas para ocupar seu espaço no carnaval de Salvador como forma de manifestação qualitativa do povo negro.

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Em linhas gerais, pode-se considerar que a Folha do Reggae se ca-racterizava como um veículo da mídia impressa alternativa com ênfase na divulgação do cenário artístico-musical em torno do reggae produzi-do dentro e fora da Bahia; na denúncia dos casos de racismo e outras formas de segregação na sociedade que atingiam mais diretamente os negr@s149. Como um manifesto político-cultural e étnico-identitário com atenção às mobilizações do movimento negro baiano e outros campos dos movimentos sociais, o informativo dialogava com a valorização da estética e cultura negras, mediadas pela música.

A existência desta fonte evidencia que a cristalização da música reggae no cenário sociocultural da Bahia não se deu sem enfrentamentos e toda sorte de formas de repressão e retaliação. Curiosamente, é no “Verão do Reggae Baiano” que se levantam, de um lado, artistas, profissionais libe-rais, pequenos empresários150 e, de outro, segmentos da justiça e outros órgãos do Estado, num enfrentamento simbólico e, muitas vezes, judicial que envolveu casos polêmicos como o ocorrido com o músico e compo-sitor Sine Calmon e a banda Morrão Fumegante, noticiado por inúmeros veículos da imprensa baiana e nacional, e pelo informativo em foco.

A primeira edição do Jornal traz uma matéria sobre a controvérsia iniciada, em 1996, pelo Delegado Itamir Casal, da Delegacia de Tóxicos e Entorpecentes, e fomentada pela juíza Dayse Lago, da 1º Vara Priva-tiva de Tóxicos, que condenou Sine Calmon a cumprir pena em regime fechado por suposta apologia e uso de drogas, uma vez que, no entendi-mento dos ditos defensores da “lei”, o próprio nome da banda (Morrão Fumegante) fazia alusão ao “baseado”151. Na versão do líder da Banda, a expressão foi inspirada nas escrituras bíblicas – não nos esqueçamos da ligação deste com os Remanescentes nos anos 80 – no Livro de Mateus, Capítulo 12: “Não esmagará a cana quebrada, nem apagará o morrão que fumega até que se triunfe o Juízo”152.

A rigor, o sentido da nomenclatura em questão despertava para uma série de posições subversivas que, de certo modo, afrontavam o poder local e reconfiguravam as relações de poder e segregação, sob as quais se assentavam as desigualdades na Bahia. Osmundo Pinho (1997) perce-beu este caráter contestatório implícito na questão ao analisar os espaços

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PORRADA DE POLÍCIA

Todo camburão tem um pouco de navio negreiro.

O Rappa, 1994

As manifestações de racismo e outras desigualdades sociais associadas à violência policial são temas frequentemente encontrados no universo de canções do reggae baiano, sobretudo a partir de 1988, contexto de franco acirramento dos movimentos negros urbanos na sociedade brasileira (prol e contra o centenário da Abolição, e para além deste), ocasião de amargas crises econômicas e políticas no cenário nacional, como assinalam as in-tensas mobilizações sociais do período. Wacquant (s/d) tem sugerido haver

de lazer e consumo de música no Pelourinho, a exemplo do Bar do Reggae. Faço minhas as suas considerações de que os gritos de “fogo na Babilônia”, o consumo de ganja, bem como a proliferação destes espaços ligados ao reggae se configuravam também como territórios de contestação antirracista, antirrepressão e antimoralista, fundando uma alternativa que, pelo desapego à ordem e apoio de uma parcela de jovens (inclusive não-negros e de classe média) incomodava alguns segmentos mais conservadores de nossa sociedade153.

Paradoxalmente, a ação desses magistrados surtia efeito reverso, con-tribuindo para a divulgação e maior popularidade do artista. É preciso destacar que os sucessivos episódios, envolvendo a polícia e o artista baiano, acabaram por provocar inúmeros agentes da militância negra na cidade, o que seguramente também contribuiu para a popularização de seu trabalho. De todo modo, a abordagem coercitiva destes agentes é ponto corrente na história do reggae e foi frequentemente pontuado em um conjunto de canções que serão comentadas a seguir.

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uma relação entre o aumento da repressão policial em conformidade com a crescente presença da afirmação dos movimentos sociais negros e suas estratégias político-culturais, no contexto dos EUA. Não acredito que seja possível concluir que esse fenômeno se evidencie em Salvador e outras cidades da Bahia por força das mesmas razões. Entretanto, partindo das evidências observadas a partir da análise dos registros musicais em foco, sugiro que há pelo menos um indício a ser seguido.

Na Bahia, alguns episódios de discriminação envolvendo músicos, pro-dutores e, em muitos casos, o “regueiro” em geral também foram pauta das falas dos entrevistados, o que evidencia a tensão em torno da afirmação e cristalização do reggae como estilo de vida, na condição de subcultura. Ten-tando compreender os muitos “perfis” do “regueiro” soteropolitano, Marcos Santos destaca que a experiência (profundamente desagradável, leia-se) de passar pelo baculejo, é interpretada pelos sujeitos como uma “encenação de sua condição de excluído, de marginal, de oprimido pela Babilônia”154.

Outras leituras musicais reforçaram essa impressão, evidenciando uma postura de afirmação de uma identidade que se reforça numa dinâmica de alteridade. Gravações numerosas registraram situações de repressão direta e indireta, bem como a marginalização ostensiva desse “aparelho” de estado, incidindo sobre a cena sociocultural em que o reggae se inse-ria como contracultura musical alternativa.

Edson Gomes é o autor com um número maior de canções registra-das, fato que pode se explicar por ser este o músico com maior número de discos gravados. Analisando sua obra, evidencio alguns exemplos que servem para ilustrar, com efeito, as presentes reflexões. O disco Campo de Batalha (EMI-ODEON, 1992) é um exemplo sugestivo dessa leitura crítica. O título da obra já sugere uma interpretação das relações sociais a partir de um conjunto de tensões em que se inscrevem as “posições dos sujeitos”, como sugeria, analogamente, Foucault. A faixa de abertura, a canção “Criminalidade”, inaugura o disco ao som de uma sirene policial que demarca nitidamente o tom de denúncia. A letra da canção destaca a criminalidade como situação de violência urbana provocada por um conjunto de fatores, dentre os quais se insere a “falta de segurança” e a atuação do aparelho policial em conformidade com este quadro:

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CRIMINALIDADE(Edson Gomes, 1992)

É tanta violência na cidadeBrother tanta criminalidade

As pessoas se trancam em suas casasPois não há segurança nas vias públicasE nem mesmo a polícia pode impedir

Às vezes a polícia entra no jogoA gente precisa de um super-homem

Jah Jah JahQue faça a mudança imediata

Jah Jah JahPois nem mesmo a polícia pode destruir

Certas manobras organizadasAh ah ah

É tanta violência na cidadeBrother tanta criminalidade

A lua não é mais dos namoradosOs velhos não curtem mais as praças

E quem se aventuraPode ser a últimaE quem se habilita

Pode ser o fimA gente precisa de um super-homem

Jah Jah JahQue faça a mudança imediata

Jah Jah JahPois nem mesmo a polícia pode destruir

Certas manobras organizadasNão, tudo um dia vai passar

Sei que tudo um dia vai mudar

Seguramente, por ser um dos músicos de reggae de maior vi-sibilidade no Brasil, Edson Gomes foi alvo da abordagem policial em situações diversas. Em entrevista concedida em 2006, para uma revista virtual, o músico relata dois episódios de constrangimento ocorridos nos anos 90:

“No CD [Apocalipse], abordei na música “Fogo na Babilônia”, uma situ-ação que ocorreu comigo. Em 1997, a polícia civil forjou um mandado de busca e apreensão. Invadiram minha casa em busca de droga e me

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imobilizaram e reviraram a casa em busca de drogas. Outra situação que aconteceu foi quando eu e meu irmão Bráu fomos a uma imobiliária alu-gar um apartamento. Então, quando saímos com o cara da imobiliária, no caminho, fomos parados pela polícia armados de metralhadoras e man-daram descer do carro alegando estarem procurando um carro roubado que parecia com o que estávamos” (Revista Musical On-Line, 2006).

A canção-denúncia citada, além de evidenciar essas informações re-flete uma posição discursiva onde o autor-sujeito se coloca como crítico destas relações de desigualdade. Ainda no álbum Apocalipse, Gomes gravou “Camelô”, uma das canções de trabalho155 que teve ampla re-percussão na imprensa e em outros espaços de divulgação. A canção aborda a violência dos órgãos públicos contra os trabalhadores do mer-cado informal – em meados dos anos 90, mais de 54% da população economicamente ativa de Salvador156:

CAMELÔ(Edson Gomes, 1997)

Sou camelôSou do mercado informal

Com minha guia souProfissional

Sou bom rapazSó não tenho tradição

Em contrapartida sou de boa famíliaOlha doutor

Podemos rever a situaçãoPare a polícia

Ela não é a solução nãoNão sou ninguém

Nem tenho pra quem apelarSó tenho meu bem

Que tambémNão é ninguém

Quando a polícia cai em cima de mimAté parece que sou fera

Até parece...

Naquele contexto, a gestão municipal do então prefeito Antônio Im-bassahy, representante da extrema direita baiana, promovia mais um pro-

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jeto modernizante para a cidade, a partir de uma política de “limpeza” do centro urbano de Salvador. Além das demissões em massa157, em nome do “enxugamento” da máquina administrativa, a prefeitura intensificou os chamados “rapas”, mutirões fiscais encarregados pela manutenção do espaço urbano que, sob esta alegação, retiravam (com o uso da força) centenas de trabalhadores autônomos da cidade, momento que foi devi-damente retratado pelo músico.

A canção, nesse contexto, é uma fala situada e, como tal, se revela como contradiscurso à ordem hegemônica. Esta abordagem tem sido marca inconfundível do trabalho de Edson Gomes, ao longo de mais de 20 anos. Em muitas outras canções, o autor-intérprete tematiza a violên-cia policial de maneira contundente, o suficiente para lhe ter causado alguns episódios assaz desagradáveis, como citado acima.

Parece sintomático que esse período, em especial, guarde um nú-mero considerável de canções que abordem esse problema, haja vista o contexto de cristalização do reggae como estilo étnico-estético-musical redefinindo o panorama das identidades sociais neste fim de século XX. Atesta, a meu ver, o confronto em torno da apropriação do gênero (e sua bagagem cultural) pelos segmentos marginalizados na sociedade baiana, encorajados por esses novos ritmos e, de outro lado, os representantes de uma “velha ordem” social que identificava, nestas manifestações, uma certa ameaça ao status quo. Em outras palavras, o conjunto de canções registradas ao longo dos anos 90 é emblemático das contradições que giravam em torno da afirmação do ritmo no cenário sociocultural baiano. Não à toa, esse foi tema da segunda faixa do primeiro disco de Diono-rina, de 1994 (o LP Música das Ruas). A canção “Porrada de Polícia” é uma referência emblemática da percepção do artista sobre o problema:

PORRADA DE POLÍCIA(Dionorina/Jorge Magalhães, 1994)

É no fundo da fomeQue a boca lambe a mesa farta de pavor

É na fome e na dorComo porrada de polícia

Quem mora no morro

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Tristes projetos de vidaSe corre pro osso

É presunto na pistaSe fica é pirão pra polícia

Ninguém quer polícia pra ordenar a filaRepresentantes armados do sistema

É no fundo da fomeQue a boca lambe a mesa farta de pavor

É na fome e na dorComo porrada de polícia

Não dá pra chorarQuando mais forte é o desejo de comerGuerreiros da redenção da raça humana

Detenham o trem da babilôniaPorque não param o trem

Da Babilônia

O apelo-denúncia à violência policial é ponto alvo desta canção. Cabe registrar que o termo “violência” deve ser compreendido de maneira am-pla, para além da moléstia física, como qualquer manifestação de arbitra-riedade do corpo policial diante da sociedade em geral. Relaciona ainda a crescente violência policial à miséria e outras mazelas, velhas conhecidas de nosso país. Posição semelhante e muito mais explícita foi registrada por outros artistas, dentre os quais, cabe o exemplo do reggaeman feirense Jorge de Angélica, que, em seu primeiro disco, gravado em 1998 (Sopa de Papelão), traz uma análise pontual sobre o problema na canção “Gangue”. É uma análise pontual do problema:

GANGUE(Jorge de Angélica, 1998)

Gangue perseguindo gangue...Morros e favelas

Pega fogo, corre sangueCom essa briga de gangue

Gangue perseguindo gangue...Inocentes não tem nada a ver

É quem vai pagarÉ quem vai morrer

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Com essa briga de gangueGangue perseguindo gangue...

ConfrontosEm que se confundem

Pessoas de bemHonesta e trabalhadora

Lhe dão tiro de 12PT e metralhadora

Comentem muita injustiçaTantos fora da lei

Como a própria políciaQuanta ignorância

Os miseráveis matam as mulheresTambém matam as crianças

É gangue de marginaisGangue de policiaisPois eles armados

São todos, são todosTodos iguais

E a gente nunca sabeQuem mata mais

São balas perdidasGangue perseguindo gangue

Gangue perseguindo gangue...

A violência, no interior dos bairros periféricos, nos centros urbanos do Brasil é uma infeliz realidade. Não tem sido diferente na cidade de Feira de Santana, onde vive o artista e de onde tirou inspiração para as questões identificadas na canção. Em sua análise, a polícia é comparada às quadrilhas de criminosos que sitiam os bairros periféricos da cidade e, deste modo, cor-responsável pelos altíssimos índices de mortalidade que atingem esta parcela da população urbana. Esta posição rendeu ao músico inúmeros casos de perseguição conforme o próprio informou em sua entrevista:

“Tivemos muitos problemas com a polícia. O pessoal do reggae era opri-mido. Quando eu fiz a música ‘Gangue Perseguindo Gangue’ fui abor-dado por uma patrulha de polícia no dia do show que queria que eu descesse do palco pra me espancar, me fazer covardia. Naquele dia, Deus

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providenciou anjos em forma de sargento, de cabo que chamou a patru-lha... Pra ir embora do show, a viatura teve que dar uma certa cobertura até próximo de casa. O sargento Valdir chamou “eles” e explicou, [ação que] abrandou os ânimos e modificou o raciocínio dos policiais” (DE

ANGÉLICA, Jorge. Entrevista concedida em 02/08/2008).

Este episódio demonstra que o enfrentamento com a polícia se dava a partir de uma dinâmica própria de relativa negociação e conflito. O Sargento Valdir, citado, foi, segundo Jorge de Angélica, um dos primeiros colecionadores de discos de reggae na cidade e cofundador do fã-clube Marcus Garvey, sediado no bairro da Mangabeira. Ainda segundo o mú-sico, o referido policial contribuiu, ainda que de maneira indireta, para amenizar a perseguição aos “homens rastas” da cidade, alvo de rotinei-ras abordagens públicas. Obviamente este dado não está dissociado da maior popularização da música reggae nos centros urbanos da Bahia.

Em suma, essas e outras vivências registradas e problematizadas nas faixas dos discos do gênero, ora analisados, fazem refletir sobre a impor-tância do reggae como discurso étnico-identitário de denúncia às mani-festações de racismo e outras formas de violência.

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Periódico Folha do Reggae, publicado em Salvador, no ano de 1997. Seu conteúdo trazia matérias sobre a presença rasta-reggae no carnaval baiano, entrevistas com artis-tas, agenda cultural, lançamento de discos, traduções (para o por-tuguês) de canções de Bob Marley e outros atrativos para o público “regueiro”.

A publicação tinha como marca o engaja-mento político-cultu-ral de editores, auto-res e colaboradores.

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Reggae Resistência (EMI-Odeon, 1988) foi o primei-ro disco de Edson Gomes & Banda Cão de Raça e um dos pioneiros a ganhar a classificação de Reggae Nacional nas prateleiras do mercado fonográfico bra-sileiro (Cf. Godi, 2001).

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Capa e contracapa do disco de Geraldo Cristal. (Geraldo Cristal. Reggaessência. Independente, 2002).

CD Fogo na Babilônia de Sine Cal-mon e Morrão Fumegante (Atração Fonográfica, 1997). A citação bíblica é sintomática das tensões envolven-do a banda e alguns segmentos mais conservadores da sociedade baiana.

CD Mata Atlântica de Nengo Vieira e Tribo d’Abraão (Independente, 2001).

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NOTAS

126 Cf. entrevista de Sr. Carmelito (14/12/2006).

127 Refiro-me a este termo, seguindo a classificação de Santos (2001) para quem há inúmeras manifestações do ser regueiro em Salvador. Em linhas gerais, pode-se considerar que tanto frequentador@s dos shows quanto o transeunte urbano, o qual deambula ostentando suas marcas de identifi-cação étnica – como as dreadlocks e outros tantos sinais – eram, e ainda são, alvo de discriminação sociorracial. Define assim, portanto, além do ouvinte e admirador da música reggae, o público que freqüenta os shows, os músicos e mesmo os menos sintonizados com a mensagem rastafári. Sem dúvida, esta é uma questão que desperta bastante polêmica entre os colecionadores, músicos ou ouvintes mais ligados, de maneira militante, à circulação e divulgação do reggae na Bahia.

128 O excelente comentário de Patrícia Pinho sobre este conceito é digno de referência. Para a autora, o estudo das relações negras transnacionais deve considerar “os elementos de continuidade e ruptura em relação às hierarquias modernas de poder, riqueza, valorização e reconhecimento”, o que torna possível a cidades como Salvador emergirem como cen-tros radiadores de elementos da cultura negra, “expandindo o mapa do Atlântico Negro” e perturbando a colonialidade do poder, traço que a confirma como “cidade mundial” (PINHO, 2004, p. 57).

129 “A Bahia virou Jamaica”, Folha de São Paulo, Ilustrada, 31/01/1988, citado por GUERREIRO, 1997, pp. 97-113.

130 GIL, Gilberto. “Querem esvaziar os Festejos do Centenário da Aboli-ção”. In: Jornal Feira Hoje, 13/01/1988.

131 Edson Gomes. Reggae Resistência. EMI-Odeon, 1988.

132 A rigor, outros artistas também fizeram uso desse conceito produzido na diáspora, entre eles Paulinho Ganaê em seu CD independente gravado em 1997, intitulado “Independência em Mente”. No encarte, as palavras de Ganaê são: “da mesma forma que Zumbi é o eco de Ganga Zumba

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na luta pela liberdade, nós devemos ser o eco libertário de Zumbi na luta contra a escravidão mental, tendo sempre a independência em mente”.

133 Ibid.

134 Lazzo. Atrás do Pôr do Sol. Nosso Som/BMG-ARIOLA, 1988.

135 Ibid.

136 Edson Gomes. Reggae Resistência. EMI-Odeon, 1988.

137 Edson Gomes. Recôncavo. EMI, 1990.

138 O futebol é uma das paixões declaradas de Edson Gomes (e de astros como Bob Marley, por coincidência). Anualmente, ele realiza, nas come-morações de seu aniversário, uma partida protagonizada pelos músicos e amigos, e que, nos últimos tempos, tem contado com presenças ilustres como o jamaicano Gregory Isaacs, em ocasião de sua turnê pelo Brasil. Este evento foi retratado no vídeo-documentário que faz parte (nos Ex-tras) do primeiro DVD da carreira do artista. Edson Gomes. Ao Vivo em Salvador (Duplo). Atração Fonográfica, 2005.

139 Caetano Veloso & Gilberto Gil. Tropicália 2. Poligram, 1993.

140 Dionorina. Op. cit.

141 GENTILLI, P. & SADER, E. Pós-neoliberalismo. As Políticas Sociais e o Estado Democrático. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995.

142 LIMA, Zélia de Jesus. Lucas Evangelista: O Lucas da Feira. Es-tudo sobre a Rebeldia Escrava em Feira de Santana (1807-1849). Dissertação de mestrado. Salvador: FFCH/UFBA, 1990. Este estu-do, único até o presente, destaca a trajetória e as muitas imagens em torno deste personagem negro, considerado um bandido social, enforcado publicamente na primeira metade do século XIX, em Fei-ra de Santana.

143 Em nota, Igor Santos comenta sobre a resistência das famílias feiren-ses a batizar os filhos com o nome Lucas: “O nome Lucas foi evitado no batismo das crianças e se construiu, através das classes dominantes, uma memória de extremo negativismo [e racismo] em torno da memória deste ex-escravo” (SANTOS, 2007, p. 28).

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144 Sobre a sociedade escravista-colonial no Sertão da Bahia ver o rico traba-lho do Prof. Erivaldo Neves. NEVES, Erivaldo F. Das Sesmarias ao Minifún-dio: Uma Comunidade Sertaneja. Feira de Santana: UEFS, 2000. Não me custa advertir também sobre o clássico POPINO, Rolie. Feira de Santana: Ed. Itapuã, 1968.

145 Nas palavras de Albuquerque: “Afinal, porque guitarra, teclados e vo-cais são sala? E desde quando a música é uma kitchenette? Na Jamaica, essa discussão não existe. Lá o ritmo é livre, sempre senhor absoluto das suas ações” (ALBUQUERQUE, 1997, p. 97).

146 FRANÇA, Jorge. Canção “Identidade”. Banda The Sheriff, Velha Raiz, Álbum Independente, 2003.

147 Jornal Folha do Reggae, nº 01, 02 e 03. Fui informado que, no início dos anos 80, foi produzido um pequeno livro contendo traduções (inglês-portu-guês) das canções de Bob Marley e outros artistas afro-jamaicanos produzidas pelo historiador/professor referido em parceria com Antonio Godi, responsá-vel pelas ilustrações.

148 Jornal Folha do Reggae, nº 02, 1997.

149 Como exemplo, assinalamos a matéria “Demissões na Prefeitura: O Negão Dança mais uma Vez”, que denunciava os cortes de vagas de tra-balho anunciados em 1997 pelo então prefeito de Salvador. Jornal Folha do Reggae, nº 03, Salvador, 1997, p. 03.

150 Só para citar, o periódico contava com apoio de pequenas e médias empresas do comércio, a exemplo do Hotel Pelourinho (local de mui-tas apresentações de reggae nos anos 80-90, em Salvador); Lojas Wave Beach, que comercializa produtos e roupas para a prática do surf, o que aponta para uma parcela importante do público “regueiro” da cidade, os surfistas (ver SANTOS, 2001); Grão de Arroz, restaurante macrobiótico, dentre outros.

151 Denominação popular para designar o cigarro de maconha.

152 Seguramente, por força destes episódios, essa passagem está inscrita na capa do CD Fogo na Babilônia de Sine Calmon e Morrão Fumegante (Atração Fonográfica, 1997).

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153 Ver mais em PINHO, Osmundo de A. The Songs of Freedom: Notas Et-nográficas sobre Cultura Negra Global e Práticas Contraculturais Locais. In: SANSONE, Livio & TELES, Jocelio (orgs.), 1997 (obra citada).

154 Baculejo é abordagem-revista indisfarçavelmente preconceituosa da polícia (SANTOS, 2001, p. 78).

155 Faixa do disco selecionada pelo produtor (em geral) e/ou musicista(s) para divulgação. Em geral, é a faixa que deve ser incentivada nas rádios e outros meios de comunicação como portifólio do disco lançado.

156 Sobre este tema, ver a publicação organizada pelo Sindicato dos Bancá-rios: GOMES, Álvaro (org.). O Trabalho no Século XXI: Considerações para o Futuro do Trabalho. São Paulo: Ed. Anita Garibaldi; Bahia: Sindicato dos Bancários da Bahia, 2001.

157 O jornal Folha do Reggae publicou breve matéria sobre as medidas autoritárias da Prefeitura Municipal em 1997.

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FAIXA 4 (INTERLUDE)

DE JESUS A JAH

Uma audição das fontes tem revelado a necessidade de compreender, de maneira mais aprofundada, a relação entre religiosidade e produção musical no contexto em foco, uma vez que a experiência religiosa se apresenta de maneira bastante singular nas canções e mesmo declara-ções públicas dos artistas. É fundamental considerar que não me pro-ponho, pelo menos por hora, a analisar densamente os caminhos dessa relação, mas apontar, a título de reconhecimento, os campos religiosos que se apresentam nos materiais analisados. Uma leitura sobre o assunto será abordada no livro de Bárbara Falcón que compõe o terceiro volume da série Sons da Bahia.

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Pensar a religião, nesse contexto, implica correr os riscos apontados no estu-do de Marco Davi Oliveira (2004) sobre a participação dos negros no universo religioso pentecostal brasileiro. Segundo o autor, a enorme presença quan-titativamente negra entre os adeptos destas religiosidades tem-se convertido num fenômeno que merece maior atenção. Curiosamente, na Bahia, parte considerável dos músicos de maior projeção (comercial) da música reggae são pentecostais ou tem alguma ligação com este campo religioso. A rigor, esta re-lação já faz parte da história social do gênero desde suas origens jamaicanas.

A trajetória da música reggae está, desse modo, indissociada dos cami-nhos da filosofia rastafári. A História Moderna da Jamaica tem, entre suas páginas, a presença dos movimentos pan-africanistas como uma das influ-ências mais marcantes no universo político e cultural da Ilha. De certo modo, a divulgação do ritmo no mundo proliferou a cultura rasta pelos continentes. Através da cultura rasta, por sua vez, o reggae tornou-se uma das principais trilhas sonoras do Atlântico Negro, definindo o perfil de parcela considerável dos grupos sociais em centros urbanos de países do chamado primeiro mun-do, a exemplo de Londres, na Inglaterra (SANSONE, 1988).

Na Bahia, se o gênero foi um dos mais emblemáticos elementos arti-culadores de “estilos de vida diferenciados”, a presença da ideologia ras-tafári também resultou em “uma gama de versões”, como sugeriu Olívia Gomes da Cunha (1993). Neste estudo realizado no início dos anos 90, a autora já observava que a influência da música afro-jamaicana havia alterado profundamente as formas de identificação étnica, de modo que o uso do termo “rasta” havia sido incorporado como autoinscrição de negritude e antirracismo de cunho político, ora laico, ora religioso.

Esse tipo de impressão ficou em muitas gravações do período. Em 1990, quando do lançamento do álbum Recôncavo, o cantor e compositor Ed-son Gomes se posicionava, nessa perspectiva, com a canção “Adultério”:

ADULTÉRIO(Edson Gomes, 1990)

RastafarySe desligando desse sistema

E da coisa imunda que nos envenena

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E que adultera a nossa sinaRastafary

Cantando reggae em cada esquinaA coisa linda que nos alucinaE que faz ficar tão boa a vida

Eles querendo mudar nossa sinaNos injetando a inconsciênciaDizendo que é a democracia

Grande piada conto de fada (Rastafary)Disso sabemos (Rastafary)

Por isso vivemosA violência em toda cidade

Ninguém jamais viu a liberdadeA repressão em toda cidade

Ninguém jamais viu a liberdade

O termo “Rastafary” é encarado, neste caso, como sinônimo de autoi-dentificação étnica e política, não necessariamente ligado a um conteúdo religioso. De todo modo, a existência de espaços alternativos como a Legião Rastafári – uma primeira tentativa de aglutinar interessados pelo rastafarianismo e a música reggae no bairro da Liberdade – e, posterior-mente, a busca por um contato maior com o conhecimento da Bíblia, trouxe expressões idiossincráticas de uma religiosidade híbrida. Nesta busca, muitos jovens passam a frequentar igrejas pentecostais de Salva-dor e vivenciam uma série de conflitos, dada a postura (estética inclusi-ve) diante do estudo da Bíblia. Segundo Cunha (1993), citando Burdick (1989), tratam-se de “ambivalências e contradições de uma aparente igualdade racial”. Mesmo inseridos em igrejas – como a Igreja Pentecos-tal Jesus Nazareno – a convivência desses jovens foi sempre marcada por episódios de discriminação. Ainda assim, para muitos jovens rastas, o acesso ao espaço de produção da música era frequentemente vetado, seja na formação da banda, seja na escolha dos repertórios. Ainda que o reggae fosse inserido como um dos “ritmos” no culto, a presença dos “regueiros” ao uso da Palavra foi quase sempre restrita.

Cunha (ibid.) aponta ainda que, entre muitos jovens rastas de Sal-vador, a interpretação acerca desses processos revelava um tipo carac-

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terístico de ascetismo intramundano – para lembrar Weber (1905) – que encarava a igreja como “extensão do mundão”, logo, de seus vícios e contradições.

Para além da experiência da Legião Rastafári, é possível destacar, ao longo dos anos 90, alguns exemplos dessa concepção particular de rastafarianismo-pentecostalismo registrados na produção fonográfica. É importante notar que há uma distinção central entre esta vivência reli-giosa do rasta “convertido”, ou cristãos, e os chamados “crentes”: ao defender o princípio da salvação pela fé – que remonta à gênese dos movimentos reformistas na Europa do século XVI – num contexto onde o conflito religioso perpassa a dimensão racial, emerge uma nova iden-tidade étnico-religiosa, que rejeita a submissão ao pastor e às regras das igrejas, em detrimento da busca estrita pela ligação espiritual, através do conhecimento bíblico e do culto à Palavra.

É o que se apresenta no disco de Ras Ciro Lima entitulado Hailé Sellasiê I (2001). Os componentes gráficos do álbum, lançado em CD, remontam à iconografia judaico-cristã que serve de referencial simbóli-co para o rastafarianismo. Este material é um registro interessante para ilustrar o conjunto de trabalhos ligados à filosofia rastafári produzidos na Bahia. Entre as canções, pode-se destacar a faixa “Naum Jah”:

NAUM JAH(Ras Ciro Lima)

Naum JahO Senhor nos consolou

Naum JahNa batida do tamborFoi o sangue de Jesus

Que lavou o meu tamborMeu coração ele é um tambor

Que está batendo IÉ um louvor

De Jesus à JahRastafári I

Foi o Sangue de JesusQue lavou o meu tambor

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Esta canção ilustra bem a aproximação entre o universo cristão-pentecostal e a matriz pan-africana do rastafarianismo. Com efeito, a alusão à figura de “Jesus” não se opõe à referência à “Jah”, repre-sentação maior do sionismo negro, mas se locupletam como partes de uma mesma cosmovisão. A sonoridade tipicamente inspirada nos burru drums 158 jamaicanos sugere a peculiar experiência de um rasta-farianismo tenazmente local.

Em outros casos, vê-se com maior expressividade uma musicalida-de fundamentalmente cristã, a exemplo do trabalho de Nengo Vieira. Este que foi um dos fundadores dos Remanescentes de Cachoeira e um dos arranjadores e/ou compositores dos principais trabalhos de Edson Gomes e Sine Calmon. Vieira revela em seu trabalho uma vertente fun-damentalmente cristã159. Atualmente, ele é uma das lideranças religiosas da Bola de Neve Church, de onde gravou, ao vivo, seu mais recente trabalho Avivamente160.

Em linhas gerais, pode-se considerar que há muito para ser investi-gado, no que diz respeito às relações e tensões envolvendo a temática das religiões e a produção da música reggae na Bahia. Utilizo estes poucos exemplos para sugerir que este é um caminho profícuo para análises futuras.

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NOTAS

158 Tambores utilizados originalmente nas celebrações Rastafári. O tam-bor grave é o solista, enquanto os demais são responsáveis pelo ciclo intermitente da batida que identifica a musicalidade rasta.

159 Sugiro audição da faixa “Somos Libertos” do álbum homônimo.

160 Selo Bola Music, 2006.

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FAIXA 5 (DUB VERSION)

“QUEM NÃO GOSTA DE REGGAE, BOM SUJEITO NÃO É...”

Manifestando e contaminando Pelos fones nunca surdosMicrofones nunca mudosAtravés das entidades sampleadas Que dançam o absurdoDo canteiro da galáxia nervosaFalando para o ouvido do mundo:Plugue-se, ligue-seVá longe... longe […]

Voyager, Nação Zumbi, 2005

Vamos amigo, luteSenão a gente acaba perdendo O que já conquistou […]

Lili, Edson Gomes, 1990

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Se a música é repleta de sentidos que remetem ao contexto em que foi produzida, sua reverberação também potencializa novas formas de leitura e apropriação. O debate que se propôs neste livro foi uma tentativa de compreender algumas dimensões dessas questões: mais especialmente, a construção/legitimação das identidades negras mediadas pela música. Ao analisarmos a presença e fruição de culturas musicais transnacionais como o reggae, deparamo-nos com uma série de releituras que atualizam os sen-tidos estéticos, étnicos e políticos, ou mesmo os distorcem. Obviamente, os caminhos e as lacunas apontadas por este estudo evidenciam seu caráter não conclusivo, além de sugerir o quão bem vindas e necessárias são as novas contribuições sobre esta área das reflexões sobre a música negra.

Esta situação remete analogamente à apreciação de uma obra fono-gráfica, quando da audição de sua última faixa. Com é sabido, a faixa de despedida não implica pôr fim à viagem sinestésica que a música proporciona. Curiosamente, essas faixas têm sido utilizadas em muitos discos (inclusive os de reggae), para uma releitura da própria obra ou parte dela, em um novo arranjo onde se (re)aproveitam fragmentos e mesmo sonoridades dispersas, numa edição não-linear dos sons, além de sugerir novas questões. Esta faixa-capítulo se propõe nesta direção. Não trato aqui de uma consideração final-definitiva sobre a temática, mesmo porque isso seria impossível. Apresento, no entanto, algumas su-gestões e futuros caminhos por onde, acredito, seja possível percorrer nos estudos sobre as “memórias sonoras” negr@s na Bahia, em particular a música reggae.

Há, interligado ao surgimento dessa musicalidade afro-jamaicana, outras expressões que ganharam destaque na produção musical das úl-timas décadas, ainda que se desconheça a validade destas. Refiro-me a uma filosofia musical mencionada nas primeiras linhas deste livro, que foi criada por músicos-produtores jamaicanos como King Tubby, Augustus Pablo, e Lee “Scratch” Perry, com recursos tecnológicos ainda precários à altura dos anos 60: o dub. Para além de novas técnicas de gravação e edição, e mesmo reprodução ao vivo, o dub é uma interface mais psico-délica da música jamaicana, reconhecido pela presença irrevogável do baixo aliado ao ritmo da bateria – quase sempre “temperada” com efei-

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tos sonoros provocados pelos efeitos delay e reverb – e pelas sinuosas e mântricas frases dos instrumentos harmônicos. Aparentemente, trata-se da repetição de pequenas melodias, mas, observando com cuidado, percebe-se estar diante de uma montagem/edição de sons em que o en-genheiro de som ganha liberdade no processo de criação e potencializa a circularidade sonora, criando um ambiente profícuo para novas inter-venções. É, portanto, uma nova forma de conceber a música, onde os elementos sonoros podem ser combinados de muitas formas diferentes sem que haja, portanto, uma relação estrita com a versão original.

Em um ensaio jornalístico publicado em 2003, Hermano Vianna analisa a importância do dub na produção contemporânea da música, definindo-o como um procedimento filosófico, ou seja, mais que um es-tilo ou forma musical, um “modo de agenciamento de formas”, citando Jean Laude. Na análise de Vianna (2003):

“Segundo Laude, o que interessava a Picasso na ‘arte negra’ não era o exotismo ou o primitivismo, mas sim a maneira mais-que-moderna que as máscaras e as estatuetas africanas propunham para pensar o mun-do visual, onde a combinação, as redes de sentido e a ‘montagem’ têm mais importância que a organização via linearidade da lei da perspectiva” (VIANNA, Hermano. “A Filosofia do Dub”. Jornal Folha de São Paulo,

Caderno Mais! 09/11/2003, p. 05).

Peço perdão por mais uma longa citação, mas não resisti reproduzi-la, uma vez que entendo ser esta uma definição, no mínimo, coerente sobre a importância da produção musical jamaicana e sua propagação no ter-ceiro mundo, na segunda metade do século XX, alterando a geopolítica da cultura. Mais que isso, sugere uma leitura da história da arte que situa a inventividade da arte africana e dos seus descendentes na diáspora, como paradigma alternativo à modernidade. Identifico-me ainda com a percepção do(s) autor(es) quanto à importância do músico como artesão dos conceitos e sujeito proeminente nas novas sociabilidades produzidas, dentre outras questões, pela relação como o universo da música. Para Vianna, os produtores do dub são filósofos, no sentido sugerido por De-leuze e Guatarri, “sintetizadores de pensamentos” (ibid.).

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Não pretendo me alongar nesse debate, apesar de achar frutífero que novos trabalhos sobre a temática que ora me dedico levem em conta esta interface. Na última década, esta é uma das influências marcantes entre os muitos dos registros do reggae gravado na Bahia. De certo modo, a música brasileira recente tem forte influência desta “filosofia dub” ou “cultura do baixo” (no sentido sugerido por Linthon Kwesi Johnson em seu álbum Bass Culture), como insinua a crescente onda do rap no Bra-sil, que já dura mais de 20 anos. Em Salvador, mais recentemente, há um incipiente e produtivo cenário inspirado nos clássicos do dub, protagoni-zado por coletivos de toasters e DJs como o MiniStereo Público e bandas promissoras e inventivas como o a Dubstereo, que já merecem atenção das lentes das Ciências Humanas.

É central que levemos em consideração que há uma dimensão sen-sorial fundamental na música reggae que também merece ser analisada com maiores detalhes nos estudos posteriores. Para José J. de Carvalho (1999), cabe aos estudos musicológicos inserir a interpretação das mu-danças na percepção do ouvinte à gama de questões que tornam possí-vel compreender a produção e circulação da música popular no contexto paradoxal da globalização. Segundo o autor, este quesito remonta, dire-tamente, às transformações nos processos de gravação e na relação dos músicos com o produto final. Para Carvalho (1999), o princípio geral do equilíbrio sonoro definido pelos produtores e empresários das gravadoras remonta ao famoso “Panopticum” de Bentham, discutido por Foucault, onde o músico em geral está alijado do produto final, inclusive no que tange aos benefícios financeiros de seu trabalho. Tem se produzido um senso “padronizado” do fazer musical, seja pela duração da canção – que deve se adequar às regras do mercado fonográfico ou do tempo (exíguo) do rádio – seja pelas concepções das diferentes sonoridades.

A meu ver, a presença do reggae no mercado fonográfico mundial, e mais especificamente na Bahia, minimamente, instabilizou essas rela-ções, trazendo uma nova sensibilidade que opera como recurso político e filosófico e se apresenta em novas metafísicas do corpo. Seguramente, essa dimensão da sensibilidade musical é um dos elementos que explica o conhecido estado de êxtase em que se envolve o público dos shows do

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gênero – entre os quais os inúmeros a que assisti neste intervalo de pouco mais de dois anos, em Salvador e Feira de Santana. Observei que, para muitos ouvintes de reggae, a “batida” – que entendo como interação ritmo-melodia – é um dos elementos mais significativos de identificação com o ritmo. Acho um reducionismo gritante (para não falar no pre-conceito) atribuir restritamente ao consumo de cannabis, essa relação. Acrescento que é, por outro lado, fundamental enxergar a relação po-tencialmente inventiva que pode haver entre alteração dos estados de consciência e os processos de produção artística, como algo produtivo, em contraposição à onda conservadora que criminaliza tais práticas.

Voltando à História do reggae, fica muito nítido que a produção de novas sensibilidades sempre foi um tema presente na concepção dos mú-sicos. A citação de Aston “Family Man” Barret sobre o significado dessa música parece sugerir um sentido mais político, ainda que nas entreli-nhas, do que meramente se apresenta .

Em um momento de sua entrevista, o produtor e radialista Clóvis Rabelo destaca, entre as experiências difíceis no processo de gravação do álbum Reggaessência de Geraldo Cristal, a resistência dos técnicos de gravação em valorizar as frequências graves em detrimento de um mode-lo de equalização mais aceito pelo mercado. Contou-nos Rabelo: “Teve técnico que disse que não botasse o nome no encarte, porque daquele jeito não assinaria a mixagem, porque poderia se queimar”.

Entendo, portanto, que a questão da sensibilidade musical na produ-ção musical do reggae é mais uma das janelas deixadas por este trabalho para reflexões mais apuradas, posteriormente.

Analisando as fontes, ficou evidente a problemática existente entre o reggae e as relações no mundo do trabalho e suas contradições. Entre o universo de temas versados pelas canções, inserem-se muitas leituras que situam a exploração, as sedições e metamorfoses das relações de trabalho no espaço urbano. É fundamental que se possa refletir melhor do que se fez aqui sobre as diferentes representações dos compositores e intérpretes sobre as relações de trabalho e suas desigualdades.

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Há, entre as canções, discursos-posições críticos à Babilônia (leia-se capitalismo contemporâneo) que não dissociam o fim da exploração de classe da problemática em torno da superação do racismo na sociedade brasileira. Essas leituras são primordiais à compreensão, tanto dos meca-nismos de exclusão, quanto do acesso ao universo das relações de pro-dução, bem como das estratégias de sobrevivência dos sujeitos. Como apontado em estudos como os de Silva (2001), o forte apelo político do reggae, presente nas letras e em toda sorte de símbolos de identificação, acaba por interferir em outras identidades sociais como as identidades profissionais. As culturas musicais vêm operando de maneira singular na formação dos comportamentos entre os grupos jovens nos centros urba-nos de diversos países, como Inglaterra e Brasil, e alterando, inclusive, suas relações com o mundo do trabalho. Portanto, um olhar e ouvir mais interessado nessas questões pode também render um estudo sugestivo.

Outro caminho possível diz respeito às relações de gênero no uni-verso da música e sua produção. O silêncio em torno da presença das mulheres na produção musical do reggae baiano se constitui em uma lacuna por ser preenchida. Ainda que a profissão de músico tenha maior presença masculina, há que se perguntar sobre a atuação das mulheres. Em geral, compondo as bandas como backing vocals ou atuando como produtoras culturais (como Jussara Santana e Cristiane Calmon) de algumas bandas. A presença feminina pode/deve ser alvo de um estudo mais detalhado. Entre a discografia analisada, o trabalho de Zavan Liv, o disco Mil Olhos, é um registro sintomático de que essa temática pode ser produtivamente desenvolvida.

Como foi apontado na Faixa 02, o enorme silêncio do mundo aca-dêmico diante dos movimentos sociais negros no contexto da reafricani-zação na cidade de Feira de Santana deve ser urgentemente quebrado. O diálogo com alguns/algumas de seus/suas protagonistas, nestas últi-mas décadas, tem revelado inúmeras agitações sociais em combate à violência contra @s negr@s na cidade. Aliado a este dado cruel, a farta documentação que se apresenta a partir dos jornais, além do acervo de história oral sob tutela do CEDOC/UEFS, são motivos de sobra para referendar novas e mais ricas análises.

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Além disso, admito que muito sobre o reggae e seus sujeitos no con-texto da cidade de Cachoeira poderia ainda ser abordado. Poupei ener-gias sobre esta temática, uma vez que o trabalho de Bárbara Falcón, publicado agora em livro como parte desta Série em que me incluo, vem problematizando essas questões. Assim como esta temática, poder-se-á também abordar, com maior rigor, a importância dos meios de comuni-cação, mais especialmente o rádio, para a afirmação do gênero no ce-nário sociocultural baiano dos anos 80 e 90 e suas transformações. Os trabalhos de Clóvis Rabelo, Ray Company, Lino de Almeida e tantos outros foram, e ainda são, parte decisiva desta história. Guardo ainda as minhas expectativas para o surgimento de trabalhos que venham a preencher esta lacuna.

Conforme exposto, a discografia em torno do reggae é um forte enun-ciado da presença desta cultura musical no interior das relações sociais e suas contradições. Estou certo de que o estudo da relação identidade-música pode ser desenvolvido à luz de questões outras que não foram abordadas aqui. Não acredito que todo o sentido da música reggae esteja restritamente vinculado ao universo das manifestações de antirracismo e negritude. Minha preocupação, no entanto, é no gradativo esvaziamento da perspectiva do pertencimento negro que, ao longo das últimas déca-das, edificou este e tantos outros estilos musicais.

Os tempos de hoje são ainda um momento importante para se pensar sobre a história recente da música na Bahia e da música brasileira. Em artigo publicado no jornal A Tarde em 2008, Antonio Godi comentou a falta de apoio das políticas públicas aos músicos e associações cultu-rais ligadas ao ritmo em Salvador, no momento em que se comemoram oito anos da aprovação do decreto municipal que transformou o 11 de Maio no Dia do Reggae. Ainda que estejamos vivendo um novo mo-mento de forte influência jamaicana na música brasileira – como atestam discos recentemente gravados de artistas como Vanessa da Mata, Céu, Curumin, Lucas Santtana e mesmo a consolidação de um novo perfil técnico-sonoro como proposto por Buguinha Dub – o quadro ainda é de grande exclusão dos grupos do gênero dos espaços públicos, do calendá-rio musical e das políticas públicas na Bahia. Não nos esqueçamos que

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há pouco mais de 20 anos do lançamento de obras importantes como o primeiro álbum de Edson Gomes ou Marley Vive, da Banda Terceiro Mundo e ainda há três décadas do lançamento do álbum Bahia Jamaica de Jorge Alfredo e Chico Evangelista, bem como da fundação do Movi-mento Negro Unificado, existem muitas batalhas nessa “guerra cultural contemporânea” por serem travadas. Coincidências à parte, o reggae continua definindo comportamentos, subjetividades, sonoridades e, sem dúvida, novas identidades.

Foi seguramente embalado por estas influências que o compositor pernambucano Jorge Du Peixe lançou a provocação que intitula esta faixa-capítulo de considerações finais, à plateia de um show da Nação Zumbi, em 2008, na cidade de Salvador: “quem não gosta de reggae, bom sujeito não é”. Faço minhas as palavras dele...

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NOTAS

161 Delay é o termo técnico usado para designar o retardo de sinais em cir-cuitos eletrônicos, geralmente o atraso de som nas transmissões via satélite. No meio musical, é um equipamento que possui como função provocar a sensação de atraso do som emitido pelo instrumento musical em relação ao tempo real de transmissão do sinal sonoro. Assim o usuário pode controlar o tempo de atraso e a quantia de repetições do som após cada atraso. O uso deste recurso acústico foi mundialmente popularizado pelos DJs jamaicanos que proliferaram a cultura dub reverb, que, por sua vez é um efeito mecâni-co-acústico produzido através de um equipamento que simula a passagem do som como se refletido numa grande câmara, um ambiente de paredes fechadas, que prolonga o tempo de audição de determinada frequência sonora. Estes usos tecnológicos foram e são responsáveis por uma grande mudança sensível na produção musical contemporânea, fazendo parte de qualquer set de efeitos de músicos (instrumentistas ou DJs) em todo o mun-do, bem como nos mais complexos equipamentos de sonorização.

162 Ver alguns exemplos nas obras de Augustus Pablo (as canções “East of River Nile” gravadas em três versões no álbum homônimo) e King Tubby (as canções “King Tubby’s Dub” e “Turnable Dub”, gravadas no álbum Bring the Dub Come).

163 “A música reggae é o batimento cardíaco do povo. E tem uma coisa boa: quando ela bate você não sente dor”. In: Catch a Fire, 1999 (Ví-deo). Obra citada.

164 Entrevista com Clóvis Rabelo, 2006.

165 Decreto Municipal 5.817/2000. Ver GODI, A. J. V. S. “O Reggae Ra-lando nos Oito”. Jornal A Tarde, Maio de 2008.

166 Parte importante do movimento inspirado no manguebeat, oriundo de Olinda e Recife, este artista, que acompanha bandas como Nação Zumbi, gravou seu próprio álbum entitulado “Vitrola Adubada” (2008), além de atualmente gravar discos de inúmeros artistas ligados direta ou indiretamente à música reggae no Brasil.

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Page 190: Guerreiras do Terceiro Mundo

190 l Fabricio Mota GUERREIR@S DO TERCEIRO MUNDO - IDENTIDADES NEGRAS NA MÚSICA REGGAE DA BAHIA l 191

VIDEOGRÁFICAS

A Negação do Brazil. Dir.: Joel Zito de Araújo, 2000.

Adão Negro. Ao Vivo na República do Reggae. Salvador, Atração Musical, 2006.

Catch a Fire. Rock Entertainment (Classic Albuns, Collection), London, 1999.

Cérebros e Mãos Negras. Dir.: Daniel Caetano, CEAO/UFBA/ Fundação Palma-res, 2000.

Dub Echoes. Dir.: Bruno Natal, 2008.

Edson Gomes. Ao Vivo em Salvador-Bahia. Dir.: Edson Gomes. Salvador, Atra-ção Musical, 2006.

O Estado da Arte da Fuleragem (Vídeo-debate). Dir.: Pinzol. Juazeiro, UNEB, 2008.

Rocksteady: The Roots of Reggae. Dir.: Stacha Bader, 2009

The Best of Jorge de Angélica. Dir.: Ricardo Roots. Feira de Santana, 2006.

Wattstax. Dir.: Mel Stuart, EUA, 1972.

ENTREVISTAS

CARVALHO, Carmelito de. Entrevista concedida em 14/dez/2007. Entrevistado-res: A. J. V. S. Godi, Clóvis Rabelo e Fabricio Mota. Salvador-Ba.

DIONORINA. Entrevista concedida em 24/nov/2007. Entrevistador: Fabricio Mota. Feira de Santana-Ba.

DE ANGÉLICA, Jorge. Entrevista concedida em 02/08/2008. Entrevistador: Fa-bricio Mota. Feira de Santana-Ba.

GOMES, Edson. Entrevista concedida em 2006. Salvador, Revista Musical On-line.

RABELO, Clóvis. Entrevista concedida em 14/nov/2006. Salvador-Ba. Entrevis-tadores: A. J. V. S. Godi e Fabricio Mota.

DISCOGRÁFICAS

Adão Negro, Disco: Adão Negro, 1998-2000.

________, Disco: Só Diretoria. Independente, 1999.

________, Disco: Vence Tudo: Gravadora: Atração Musical, 2003.

________, Disco: Vence Tudo Ao Vivo. Gravadora: Atração Musical, 2005.

Banda Terceiro Mundo, Disco: Marley Vive. Gravadora: EMI Odeon, 1988.

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GUERREIR@S DO TERCEIRO MUNDO - IDENTIDADES NEGRAS NA MÚSICA REGGAE DA BAHIA l 191

Celso Bahia, Disco: 2 Neguinhos. Gravadora: Continental, 1988.

Chico Evangelista & Jorge Alfredo, Disco: Bahia Jamaica. Gravadora: Co-pacabana, 1980.

Diamba, Disco: Ninguém está a Salvo. Independente, 2000.

Dionorina, Disco: Música das Ruas. Gravadora: Stalo Discos-BA,1994.

________, Disco: Sacasó. Gravadora: Zero Bala-BA, 1998.

Edson Gomes, Disco: Reggae Resistência. Gravadora: EMI-Odeon, 1988.

________, Disco: Recôncavo. Gravadora: EMI-Odeon, 1990.

________, Disco: Campo de Batalha. Gravadora: EMI-Odeon, 1992.

________, Disco: Resgate Fatal. Gravadora: EMI-Odeon, 1995.

________, Disco: Apocalipse. Gravadora: EMI-Odeon, 1998.

________, Meus Momentos 1. Gravadora: EMI Odeon, 1994.

________, Meus Momentos 2. Gravadora: EMI Odeon, 1994.

________, Série Identidade (Coletânea). Gravadora: EMI, 2002.

Gilberto Gil. Disco: O Eterno deus Mudança. Gravadora: WEA, 1989.

________, Disco: Realce. Gravadora: Elektra, 1979.

________, Disco: Luar. Gravadora: WEA, 1981.

________, Disco: Um Banda Um. Gravadora: WEA, 1982.

________, Disco: Extra. Gravadora: WEA,1983.

________, Disco: Raça Humana. Gravadora; WEA, 1984.

________, Disco: Kaya N’ Gandaya. Gravadora: WEA, 2002.

Gilsam e Banda Airiyê, Disco: Reggae para Todos. Independente, 2002.

Geraldo Cristal, Disco: Reggaessência. Independente, 2002.

Jorge de Angélica, Disco: Sopa de Papelão. Independente, 1998.

Kamaphew Tawá e Aspiral do Reggae, Disco: Fonte do Saber. Independente, 1998.

Kebra Nagast. Disco: Desmistificação. Independente, 2006.

Lazzo, Disco (compacto): Salve a Jamaica. Gravadora: Fermata, 1981.

________, Viver, Sentir e Amar. Gravadora: Pointer Discos, 1983.

________, Filho da Terra. Gravadora: Pointer Discos, 1985.

Lazzo. Disco: Arte de Viver. Gravadora: Eldorado, 1995.

________, Disco: Nada de Graça. Gravadora: LZZ, 1998.

________, Disco: Lazzo Matumbi 25 Anos Ao Vivo. Independente, 2005.

Page 192: Guerreiras do Terceiro Mundo

192 l Fabricio Mota GUERREIR@S DO TERCEIRO MUNDO - IDENTIDADES NEGRAS NA MÚSICA REGGAE DA BAHIA l 193

Luís Wagner. Disco: Ao Vivo. Gravadora: Copacabana, 1986.

________, Disco: Conscientização. Gravadora: Copacabana, 1988.

Muzenza, Disco: Muzenza do Reggae. Gravadora: Continental, Ed. Latino, 1988.

Nengo Vieira e Tribo D’Abraão, Disco: Somos Libertos. . Gravadora: Atração Fo-nográfica, 1998.

________, Disco: Mata Atlântica. Independente, 2003.

________, Disco: Chama. Independente, 2006.

Nilton Abisay e Banda Zorat, Disco: Um Dia pra Sorrir. Independente, s/d.

Obina Shok. Disco: Obina Shok. Gravadora: RCA, 1986.

Paul Simon, Disco: The Rhythm of The Saints. Gravadora/ Editora WBR, 1990.

Paulinho Ganaê. Disco: Independência em Mente. Independente, 1997.

Ras Ciro Lima. Disco: Haile Selassiê I. Independente, 2001.

Reggae Vibrações. Disco: Reggae Vibrações. Vários Artistas. Gravadora: Kansas, 1991.

Renato Matos e Banda Acarajazz. Disco: Reggadô. Gravadora: Mel/ Discoteca 2001, 1993.

Sine Calmon e Banda Morrão Fumegante. Disco: Fogo na Babilônia. Gravadora: Atração Musical, 1997.

________, Disco: Rosa de Saron. Gravadora: Atração Musical, 1999.

________, Disco: Eu Vejo. Gravadora: Atração Musical, 2000.

The Sheriff. Disco: Velha Raiz. Figura 8 Studio. Independente, 2004.

Tin Tim Gomes. Pedra sobre Pedras. Independente, 1999.

Ubaldo Warú, Disco: Reggae Man. Gravadora: Musicart, s/d.

Zavan Liv, Disco: Mil Olhos. Independente, 2002.

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GUERREIR@S DO TERCEIRO MUNDO - IDENTIDADES NEGRAS NA MÚSICA REGGAE DA BAHIA l 193

Fabricio Mota é mestre em Estudos Étnicos e Africanos (CEAO/UFBA), licenciado em História (UEFS). Atua como pesquisador e professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia. Músico, desde os anos 90, desenvolve trabalhos com outros artistas de diferentes gêneros musicais na Bahia, experiência que associada à reflexão acadê-mica tem potencializado sua produção de estudos sobre história, música, cultura e identidades no mundo contemporâneo.

SOBRE O AUTOR

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Este livro foi composto em Souvenir LT BT com impressão

da Gráfica Viena, em papel offset 90g/m2, para Pinaúna

Editora em julho de 2012. Tira-gem: 1.000 exemplares

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