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1 textbfManifesto Cyborg “No final do século XX, neste nosso tempo, um tempo mítico, somos todos qui- meras, híbridos – teóricos e fabrica- dos – de máquina e organismo; somos, em suma, ciborgues. O ciborgue é nossa ontologia; ele determina nossa política. O ciborgue é uma imagem condensada tanto da imaginação quanto da realidade material: esses dois centros, conjugados, estruturam qualquer possibilidade de transformação histó- rica. Nas tradições da ciência e da política ocidentais (a tradição do capitalismo racista, dominado pelos homens; a tradição do progresso; a tradição da apropriação da natu- reza como matéria para a produção da cultura; a tradição da reprodução do eu a partir dos reflexos do outro), a relação entre organismo e máquina tem sido uma guerra de fronteiras. As coisas que estão em jogo nessa guerra de fronteiras são os territórios da produção, da reprodução e da imaginação.” 37 “O ciborgue está determinadamente comprometido com a parcialidade, a ironia e a perversidade. Ele é oposicionista, utópico e nada inocente. Não mais estruturado pela polaridade do público e do privado, o ciborgue define uma pólis tecnoló- gica ba- seada, em parte, numa revolução das relações sociais do oikos – a unidade doméstica. Com o ciborgue, a natureza e a cultura são reestruturadas: uma não pode mais ser o objeto de apropriação ou de incorporação pela outra. Em um mundo de ciborgues, as relações para se construir totalidades a partir das respectivas partes, incluindo as da polaridade e da dominação hierárquica, são questionadas. Diferentemente das es- peranças do monstro de Frankenstein, o ciborgue não espera que seu pai vá salvá-lo por meio da restauração do Paraíso, isto é, por meio da fabricação de um parceiro he- terossexual, por meio de sua complementação em um todo, uma cidade e um cosmo acabados. O ciborgue não sonha com uma comunidade baseada no modelo da família orgânica mesmo que, desta vez, sem o projeto edípico. O ciborgue não reconheceria o Jardim do Éden; ele não é feito de barro e não pode sonhar em retornar ao pó. É talvez por isso que quero ver se os ciborgues podem subverter o apocalipse do retorno ao pó nuclear que caracteriza a compulsão maníaca para encontrar um Inimigo. Os ciborgues não são reverentes; eles não conservam qualquer memória do cosmo: por isso, não pensam em recompô-lo. Eles desconfiam de qualquer holismo, mas anseiam por conexão – eles parecem ter uma inclinação natural por uma política de frente unida, mas sem o partido de vanguarda. O principal problema com os ciborgues é, obviamen-

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anotações e citações sobre o manifesto cyborg

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  • 1textbfManifesto Cyborg

    No final do sculo XX, neste nosso tempo, um tempo mtico, somos todos qui-meras, hbridos tericos e fabrica- dos de mquina e organismo; somos, em suma,ciborgues. O ciborgue nossa ontologia; ele determina nossa poltica. O ciborgue uma imagem condensada tanto da imaginao quanto da realidade material: essesdois centros, conjugados, estruturam qualquer possibilidade de transformao hist-rica. Nas tradies da cincia e da poltica ocidentais (a tradio do capitalismo racista,dominado pelos homens; a tradio do progresso; a tradio da apropriao da natu-reza como matria para a produo da cultura; a tradio da reproduo do eu a partirdos reflexos do outro), a relao entre organismo e mquina tem sido uma guerra defronteiras. As coisas que esto em jogo nessa guerra de fronteiras so os territriosda produo, da reproduo e da imaginao. 37

    O ciborgue est determinadamente comprometido com a parcialidade, a ironiae a perversidade. Ele oposicionista, utpico e nada inocente. No mais estruturadopela polaridade do pblico e do privado, o ciborgue define uma plis tecnol- gica ba-seada, em parte, numa revoluo das relaes sociais do oikos a unidade domstica.Com o ciborgue, a natureza e a cultura so reestruturadas: uma no pode mais sero objeto de apropriao ou de incorporao pela outra. Em um mundo de ciborgues,as relaes para se construir totalidades a partir das respectivas partes, incluindo asda polaridade e da dominao hierrquica, so questionadas. Diferentemente das es-peranas do monstro de Frankenstein, o ciborgue no espera que seu pai v salv-lopor meio da restaurao do Paraso, isto , por meio da fabricao de um parceiro he-terossexual, por meio de sua complementao em um todo, uma cidade e um cosmoacabados. O ciborgue no sonha com uma comunidade baseada no modelo da famliaorgnica mesmo que, desta vez, sem o projeto edpico. O ciborgue no reconheceriao Jardim do den; ele no feito de barro e no pode sonhar em retornar ao p. talvez por isso que quero ver se os ciborgues podem subverter o apocalipse do retornoao p nuclear que caracteriza a compulso manaca para encontrar um Inimigo. Osciborgues no so reverentes; eles no conservam qualquer memria do cosmo: porisso, no pensam em recomp-lo. Eles desconfiam de qualquer holismo, mas anseiampor conexo eles parecem ter uma inclinao natural por uma poltica de frente unida,mas sem o partido de vanguarda. O principal problema com os ciborgues , obviamen-

  • 2te, que eles so filhos ilegtimos do militarismo e do capitalismo patriarcal, isso parano mencionar o socialismo de estado. Mas os filhos ilegtimos so, com frequncia,extremamente infiis s suas origens. Seus pais so, afinal, dispensveis. 39-40

    A maquinaria moderna um deus irreverente e ascendente, arremedando aubiquidade e a espiritualidade do Pai. O chip de silcio uma superfcie de escrita; eleest esculpido em escalas moleculares, sendo per- turbado apenas pelo rudo atmico a interferncia suprema nas partituras nucleares. A escrita, o poder e a tecnologiaso velhos parceiros nas narrativas de origem da civilizao, tpicas do Ocidente, masa miniaturizao mudou nossa percepo sobre a tecnologia. A miniaturizao acabasignificando poder; o pequeno no belo: tal como ocorre com os msseis ele , so-bretudo, perigoso. 43

    De uma certa perspectiva, um mundo de ciborgues signi- fica a imposio finalde uma grade de controle sobre o planeta; significa a abstrao final corporificada noapocalipse da Guerra nas Estrelas uma guerra travada em nome da defesa; signi-fica a apropriao final dos corpos das mulheres numa orgia guer- reira masculinista(S ofia , 1984). De uma outra perspectiva, um mundo de ciborgues pode significarrealidades sociais e corporais vividas, nas quais as pessoas no temam sua estreitaafinidade com animais e mquinas, que no temam identidades perma- nentementeparciais e posies contraditrias. A luta poltica consiste em ver a partir de ambasas perspectivas ao mesmo tempo, porque cada uma delas revela tanto dominaesquanto possibilidades que seriam inimaginveis a partir do outro ponto de vista. Umaviso nica produz iluses piores do que uma viso dupla ou do que a viso de ummonstro de mltiplas cabeas. As unidades ciborguianas so monstruosas e ilegti-mas: em nossas presentes circunstncias polticas, dificilmente podemos esperar termitos mais potentes de resistncia e reacoplamento. 46

    O ciborgue um tipo de eu pessoal e coletivo ps-moderno, um eu des-montado e remontado. Esse o eu que as feministas devem codificar. p.63-64

    A escrita , preeminentemente, a tecnologia dos cibor- gues superfcies gra-vadas do final do sculo XX. A poltica do ciborgue a luta pela linguagem, a lutacontra a comunicao perfeita, contra o cdigo nico que traduz todo significado deforma perfeita o dogma central do falogocentrismo. por isso que a poltica do ci-borgue insiste no rudo e advoga a poluio, tirando prazer das ilegtimas fuses entre

  • 3animal e mquina. So esses acoplamentos que tornam o Homem e a Mulher extrema-mente problemticos, subvertendo a estrutura do desejo, essa fora que se imaginacomo sendo a que gera a linguagem e o gnero, subvertendo, assim tambm, a es-trutura e os modos de reproduo da identidade ocidental, da natureza e da cultura,do espelho e do olho, do escravo e do senhor. Ns no esco- lhemos, originalmente,ser ciborgues. A ideia de escolha est na base, de qualquer forma, da poltica liberale da epistemologia que imaginam a reproduo dos indivduos antes das replicaesmais amplas de textos. 88-89

    3 desmoronamentos de fronteiras: humano-animal, organismo-mquina e fsico-no-fsico.

    De uma perspectiva, o mundo cyborg quase a ltima imposio de umarede (grid) de controle no planeta, praticamente a ltima abstrao corporalizada emum apocalypse Star Wars, conduzido em nome da defesa, a ltima apropriao doscorpos das mulheres em uma orgia masculinista de guerra. De outra perspectiva, ummundo cyborg pode ser sobre realidades sociais e corporais vividas, em que as pes-soas no tem medo de seus laos de parentesco com animais e mquinas, nem daparcialidade permanente das identidade e dos pontos de vista contraditrios. O es-foro poltico o de ver atravs das duas perspectivas de uma vez, porque cada umarevela dominaes e possibilidades inimaginveis ao outro ponto. Vises unvocasproduzem piores iluses do que vises duplas ou monstros de muitas cabeas 295

    cyborg invibilidade... Strathern regimes de visibilidade.