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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ TEMPO E HISTORICIDADE EM OS SERTÕES DE EUCLIDES DA CUNHA CURITIBA 2013

Helder - Tempo e Historicidade em Os Sertões de Euclides da Cunha

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Este estudo investiga a relação que se expõe no livro Os Sertões, de Euclides da Cunha, entre tempo e a historicidade atribuída ao sertão e ao sertanejo. Nesta obra, lançada em 1902, que se apresenta como um estudo da Campanha de Canudos postula-se, desde o início, uma distância temporal entre o narrador letrado e os tipos populares, que foram observados na ocasião da guerra. Conforme o autor, os sertanejos figurariam como pertencentes ao passado, espécimes do atavismo histórico, preservados no interior que logo seriam suplantados pela marcha da civilização. Portanto, desde cedo o autor demonstra uma consciência histórica, a qual o permite discorrer sobre a historicidade dos habitantes do sertão. Destarte, representa o mundo rural em oposição ao mundo urbano, e sobretudo o tempo passado em oposição ao tempo presente. Existe, pois, uma articulação da consciência histórica, pela qual Euclides da Cunha, projeta o sertão e seu homem para o passado, mesmo que presentes. Põe-se em causa, nesta pesquisa, o propósito de tal consciência histórica, a qual define uma historicidade própria ao narrador e a sua matéria narrada. A percepção do tempo é responsável pela maneira como Euclides representa o seu sertão. Com o suporte teórico da teoria da história de Jörn Rüsen, a historicidade, manifesta no livro de Euclides da Cunha pode ser explicada.

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARAN

    TEMPO E HISTORICIDADE EM OS SERTES DE EUCLIDES DA CUNHA

    CURITIBA

    2013

  • HELDER SILVA LIMA

    TEMPO E HISTORICIDADE EM OS SERTES DE EUCLIDES DA CUNHA

    Dissertao apresentada como requisito

    parcial obteno do grau de Mestre em

    Histria, Curso de Ps-Graduao, Setor de

    Cincias Humanas, Letras e Artes,

    Universidade Federal do Paran.

    Orientador: Prof. Dr. Renato Lopes Leite

    CURITIBA

    2013

  • velhas rvores

  • Para que chova

    Sobre terras de ningum

    Vazias vastides

    de homem nenhum.

    J.

  • AGRADECIMENTOS

    Ao professor Renato Lopes Leite, pela orientao durante todo um longo trajeto. Sem as

    aulas primeiras de teoria da histria ps-moderna, nossa memria jamais teria resistido

    morte, ressurreio, e esperana do ontem. O futuro passado coisa de muita

    monta, houvesse se no quem da tenha dvida, averigue. A graa de ter sido, s num

    filme mesmo, desses da lembrana que ficam a girar eternamente l nas bandas do

    serto.

    A professora Helenice Rodrigues da Silva, por durante todos os anos de convivncia em

    aulas e seminrios, a confiana e incentivo para a ousadia e para o sonho da histria

    do futuro que por ns tanto passou, fossem outros que no a fome das feras os fados a se

    requerer do mar.

    Um agradecimento aos professores do departamento de Histria da Universidade

    Federal do Paran, pelo seu esforo no ensino e na historiografia. Ao professor Jos

    Braga Portella, pelas aulas de Teoria da Histria IV, por participar da banca de

    qualificao, comandando tudo, e da banca de defesa. Ao professor Carlos Lima, por

    conversas grandes, amplas e vastas.

    Ao professor Paolo Soethe pela atenta leitura e precisa crtica do relatrio desse

    trabalho.

    Ao professor Luiz Sergio Duarte e o pessoal da UFG pelo detonal. Escola detonal

    serialista dodecafnica de teoria da histria de Gois.

    A Capes pela bolsa de estudos, permitindo a pesquisa emprica de como ser um dndi

    do final do sculo XIX. Mais do que isso, a realizao desse trabalho.

    Em Canudos, a todos, em especial a hospitaleira Dona Cl, e seus netos, teatro e

    estilingues na Guerra; ao seu Mrio Serandim, profeta e estudante da histria do mundo.

    Ao Frederico Tavares, grande e profundo o cangao, forte o sol. Em Buque, ao seu

    Carlos, sempre na guarda da parquia, e grande entendedor de circo. Em Salvador, ao

    professor Raimundo Nonato e os alunos da UFBA. Em Recife, aos estudantes da

    Universidade Rural de Pernambuco e aos membros da mesa redndula; a concluso,

    naquele dia, que a rumo da Histria hermenutica leva ao campo de concentrao clari.

    Raphael Guilherme de Carvalho, por ter me revelado o segredo da umbanda, da sua

    ligao com a sentido hermenutico do mundo, e com a personalidade autoritria.

    Jefferson de Oliveira, grande mo com as mudanas, desde o Admirvel Mundo Novo,

    anos atrs, e muito antes at, sempre. E todos os seus, tios e tias, primos.

  • Dona Pamela F. Beltramin, de muitas receitas e muitas grandes ideias, a maior delas

    para as grandes teses brasileiras, relaxar faz-se mister, o mister relaxar.

    Seu Felipe (valeu pela quinta edio de Os Sertes), Seu Dom Caio, Seu Paolo

    Balozinho, o futuro buda do Tibet que o Alto da XV, e Seu Antnio. Na lida do

    centro de Curitiba, Reitoria. (ou onde se roubam as botas mas se vendem as botinas).

    Gabriela Kreutz Binko. Onde tudo errante, mesmo passageiro, motorista e cobrador.

    S poderei escrever as notas do sobressolo, qui depois de percorrer os arranha-cus de

    Stalingrado. Est no tar cigano e no zodaco online, o misterioso orculo astral diz

    apenas Tchekov o que de Tchekov, Joyce o que de Joyce, ao Pequeno Prncipe o

    que do Pequeno Prncipe. Essas tradues embaralham tudo; eu mesmo s sei jogar a

    velha canastra. E quem perguntar ao guarda pela direo, ao Um Dia Daqueles o que

    do Um Dia Daqueles.

    Jos Adil Blanco de Lima, que quando precisar caar uns lobisomens, mulas-sem-

    cabea, bestas furiosas do cinco mares, ou chamar o tcnico do elevador, e outros

    monstros e monstrengos barrocos, sabei que sou bom na espingarda, fura-bucho, e ferro

    frio, todas armas bentas e benzidas. Se descobrirmos que essas no funcionam com os

    mal-assombrados das trevas, ser a hora de usar das armas secretas da histria com

    esses excomungados: pai vio, esse charuto t me pondo tonto, pai vio, tambm

    conhecido como a sutra sagrado do Era uma Vez, revelado por Dongshan Shouchu,

    conforme encontrado no Registro do rochedo azul, pasta 12.

    Franciele do Couto Grabowski, por partilhar dos rastros perdidos do caminho

    esquecido, colheita de muita sustncia para os vivos, doloridos e famintos.

    Modernidade, melancolia, alegria. E um monte de outras coisas que ficaram de fora

    dessa histria. La fora, onde o vento faz a curva e no a curva faz o vento. Na cidade, o

    metr vai virar trem, e o trem virar biarticulado. Uma histria antiga, cantiga, memria.

  • RESUMO

    Este estudo investiga a relao que se expe no livro Os Sertes, de Euclides da Cunha,

    entre tempo e a historicidade atribuda ao serto e ao sertanejo. Nesta obra, lanada em

    1902, que se apresenta como um estudo da Campanha de Canudos postula-se, desde o

    incio, uma distncia temporal entre o narrador letrado e os tipos populares, que foram

    observados na ocasio da guerra. Conforme o autor, os sertanejos figurariam como

    pertencentes ao passado, espcimes do atavismo histrico, preservados no interior que

    logo seriam suplantados pela marcha da civilizao. Portanto, desde cedo o autor

    demonstra uma conscincia histrica, a qual o permite discorrer sobre a historicidade

    dos habitantes do serto. Destarte, representa o mundo rural em oposio ao mundo

    urbano, e sobretudo o tempo passado em oposio ao tempo presente. Existe, pois, uma

    articulao da conscincia histrica, pela qual Euclides da Cunha, projeta o serto e seu

    homem para o passado, mesmo que presentes. Pe-se em causa, nesta pesquisa, o

    propsito de tal conscincia histrica, a qual define uma historicidade prpria ao

    narrador e a sua matria narrada. A percepo do tempo responsvel pela maneira

    como Euclides representa o seu serto. Com o suporte terico da teoria da histria de

    Jrn Rsen, a historicidade, manifesta no livro de Euclides da Cunha pode ser

    explicada.

    Palavras-Chave: Histria Intelectual; Teoria da Histria; Conscincia histrica.

  • ABSTRACT

    This study sought to investigate the relationship between time and history in the book

    Rebellion in the Backland, by Euclides da Cunha. In this work published in 1902, which

    pretend to be an essay about the Canudos Campaign, he asseverates since the

    beginning a temporal distance between the literary narrator and the popular folks, which

    were seem in the occasion of the war. As the author says the sertanejos were types of

    the past, representing the historical atavism that had preserved in the backlands, where

    the march of the civilization would supplant them by force. Hence, the author

    demonstrates a historical consciousness that permits him to write about the historicity of

    the habitants of the backlands. Thus, he represents the rural world in opposition to the

    urban world, and above all the past time in opposition to the present time. A use of the

    historical consciousness projects the backlands and its folks to the past present. This

    research questions this historical consciousness, which defines a historicity to the

    narrator and another to the narrated. The perception of the experience of time must be

    the responsible of the means by which Euclides da Cunha represent the backlands. With

    the support of Jrn Rsens theory of history the historicity of the book can be

    explained.

    Keywords: Intellectual history, Theory of History, Historical Consciousness.

  • SUMRIO

    INTRODUO .......................................................................................................................... 10

    CAPTULO 1 - MODERNIDADE COMO CONTINGNCIA TEMPORAL ......................... 23

    POSIO DE EUCLIDES DA CUNHA NO CONTEXTO DA I REPBLICA. ................. 25

    O MODERNO ......................................................................................................................... 51

    CAPTULO 2 - PERSPECTIVAS SOBRE A HISTRIA. SERTO E CANUDOS .............. 58

    O SERTO ............................................................................................................................. 59

    A NOSSA VENDIA ............................................................................................................. 70

    CAPTULO 3 - O SERTO ARCAICO - NARRATIVA, TEMPO E HISTRIA. .................. 76

    POSIO DO NARRADOR.................................................................................................. 77

    HISTRIA E TEMPO ............................................................................................................ 86

    CONCLUSO .......................................................................................................................... 101

    OBRAS DE EUCLIDES DA CUNHA CONSULTADAS: ...................................................... 106

    BIBLIOGRAFIA ....................................................................................................................... 108

  • 10

    INTRODUO

    Este estudo sobre o livro Os Sertes, de Euclides da Cunha, tomado em suas

    caractersticas de forma e de funo, com que se elabora a conscincia histrica nele

    encontrada. Isto , a princpio no trata diretamente do serto, mas de um autor e de um

    livro que tratam do serto. A pergunta bsica que motiva esse estudo, portanto, levanta

    um tema que ser tratado em dilogo com a teoria da histria. Os fios condutores desta

    anlise so a experincia do tempo e sua humanizao em uma narrativa histrica.

    No pretende-se fixar ou sugerir uma interpretao de Os Sertes, como quem

    dissesse: este o sentido do livro. Lanado no mercado editorial em 1902, este

    procedimento foi, desde ento, feito e refeito pela crtica especializada e amadora. Em

    geral, essas intepretaes caracterizam-se por interessarem-se pela questo nacional,

    isto , o sentido do livro estaria intimamente ligado ao sentido do desenvolvimento do

    estado e da identidade nacional brasileira.1 Diversamente, nesta dissertao, procede-se

    metodicamente com o recorte e a seleo de trechos que respondem s diretrizes de

    investigao formuladas por uma pergunta terica. Tal pergunta originou-se do campo

    de debate da teoria da histria, concernente ao papel da histria e da linguagem na

    organizao da experincia temporal. Mais do que a soluo de uma questo, o objetivo

    principal construir um problema e encontrar possveis vias de solues. Passo a seguir,

    a formular o problema, cujo o corpo da dissertao tentar responder.

    A primeira edio de Os Sertes foi publicada em 1902. A narrativa da

    Campanha de Canudos feita por Euclides da Cunha tem muito do contexto da viragem

    do sculo XIX para o XX. O livro foi dedicado aos futuros historiadores, que

    pudessem olhar para o caso da guerra de Canudos no apenas como arrolado de fatos

    sem alma mas que encontrassem ali, no texto que Euclides oferecia, os traos atuais

    mais expressivos das sub-raas sertanejas do Brasil. O livro esboava mesmo que

    1 Acerca desse debate, cf. LIMA, Nsia Trindade. Um serto chamado Brasil: Intelectuais e

    representao geogrfica da identidade nacional. Rio de Janeiro : Revan : IUPERJ, UCAM, 1999.

  • 11

    palidamente, e com alguma timidez declarada do autor, um ensaio narrativo-histrico

    sobre os sertes brasileiros.

    Em um livro que se quer mais que um simples relato dos acontecimentos, mas

    um estudo da formao das pessoas que viviam na terra afastada das cidades do litoral,

    uma das grandes caracterizaes da peculiaridade que o espao sertanejo apresenta

    definido pela sua posio no tempo. Ao longo do livro, na descrio e na narrao dos

    fatos relacionados com as populaes sertanejas, encontra-se forte caracterizao

    temporal dessas como pertencentes ao tempo passado.

    Desde a Nota Introdutria do livro, o autor expe seus pressupostos quanto

    as gentes do serto. Nas paragens isoladas da costa habitavam os tipos populares

    sertanejos, o jaguno destemeroso, o tabaru ingnuo e o caipira simplrio.2 A

    justificativa para o esboo seria que ante o inevitvel triunfo da civilizao o

    prximo desaparecimento daquelas populaes sertanejas era certo e sua existncia

    efmera.3 Importava, logo, o registro das caractersticas sertanejas, pois o autor

    antevia sua desapario eminente. Ele acreditava que elas seriam suplantadas pelo

    avano civilizatrio do progresso. Logo, ele apresenta o serto e o homem que o habita

    como traos de um mundo evanescente, que sobrevivia apenas por estar escondido no

    interior. Aqui a questo temporal se manifesta de forma clara. Aps elencar os tipos

    sertanejos na Nota Introdutria de Os Sertes, Euclides afirma:

    Alm disto, mal unidos queles extraordinrios patrcios pelo solo em parte

    desconhecido, deles de todo nos separa uma coordenada histrica o tempo.

    Aquela campanha lembra um refluxo para o passado4.

    Mais do que a distncia geogrfica, todavia superada pela viagem, a maior

    distncia que Euclides apontava entre os civilizados modernos e os populares sertanejos

    era uma coordenada histrica. O travesso indica a peculiaridade da coordenada

    histrica em causa, o tempo. Ao longo do livro, de fato, encontramos a definio dos

    sertanejos que pelejaram contra as tropas do Exrcito da I Repblica como refratrios

    2 CUNHA, Euclides da. Os Sertes: edio crtica por Walnice Nogueira Galvo. So Paulo : Brasiliense,

    1985. [1902]. p. 85

    3 Idem.

    4 Ibidem. p.86

  • 12

    marcha da Histria, e de Antnio Conselheiro como um herege da Idade Mdia fora de

    sua poca.

    O que permite a Euclides da Cunha estabelecer essa distncia temporal, tomando

    a civilizao como pertencente ao presente e ao futuro e encarar o sertanejo como

    passado?

    A questo evidencia uma complexidade. Pois, cronologicamente, ambos,

    narrador-observador e sertanejo-observado, so simultneos. No entanto, Euclides

    revela uma conscincia histrica que o faz tomar o serto como lugar do passado. De

    outra forma, encontramos durante a leitura do livro imagens de deserto e solido que

    contrastam com imagens da civilizao e da cidade. Cabe perguntar, que espcie utopia

    ao avesso esta, que se projeta em uma fuga no para o futuro mas para o passado,

    como no para uma sociedade melhor mas para o deserto. Analisando como o tempo

    configurado em sua narrativa, formando o sentido para a histria, pode-se desvelar a

    conscincia histrica de Euclides da Cunha.5 Embora trate-se de um autor e sua obra,

    essa operao analtica relaciona-se com um problema de cultura, pois por seu meio

    podemos entender como uma poca lida e quais problemas coloca histria. Assim,

    alm do livro em causa, optou-se por considerar os escritos do autor como um bloco de

    sentido, que se define com o contexto do final do sculo XIX e a primeira dcada do

    sculo XX.

    Quando em 1902 Euclides da Cunha lana no mercado sua narrativa histrica

    sobre a Campanha militar da guerra de Canudos, ocorrida entre 1896 e 1897, o ttulo de

    Os Sertes evocava o imaginrio j ento bem estabelecido quanto ao espao do

    interior. Pode-se entend-lo como o ponto culminante de toda a literatura sobre o serto,

    elaborada com os traos romnticos desde a segunda metade do sculo, afora a

    referncia aos autores coloniais, nos tratados de terras e gentes e nas descries de

    viagem.6 Ponto culminante, pois, aps sua publicao, ele persistir como uma sombra

    ou fundo de tudo o que se falou desde ento sobre o serto. No apenas na criao

    5 A noo de hermenutica da conscincia histrica, baseada nas categorias temporais, surge do trabalho

    do historiador alemo Reinhart Koselleck. Cf. KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado. Rio de Janeiro:

    Contraponto, Puc Ed-Rio, 2006.

    6 BONATO, Tiago. O serto, Os sertes: a construo da regio Nordeste do Brasil a partir da interface

    entre histria e literatura IN: Histria: Debates e Tendncias v. 8, n. 1, jan./jul. 2008, publ. no 1o sem. 2009. pp. 195-214.

  • 13

    literria, mas no pensamento sobre os problemas sociais do pas, que se costuma nomear

    pensamento social brasileiro.7

    H um debate quanto a sua categoria, se seria um livro de antropologia,

    sociologia, histria, ou literatura. Luiz Costa Lima demonstrou como sua recepo na

    poca de lanamento o considerou sobre duplo aspecto, tanto cientfico quanto literrio,

    sem indicar nenhum problema quanto ao misto de cincia e arte.8 Posteriormente,

    partindo de oficiais do exrcito veio a crtica de que Euclides da Cunha teria

    poetizado e assim desvirtuado a verdade dos fatos da guerra, no podendo, portanto,

    ser considerado dignamente um livro cientifico, mas apenas literatura. Neste trabalho,

    considera-se Os Sertes dentro da categoria de ensaio e do ensaismo latino-americano,

    cujas caractersticas so a liberdade de composio garantidas pela forma livre. Nesse

    sentido, o ensaio permite mltiplas vias de significao, e tambm de leitura. Seu

    sentido nunca fechado, mas aberto s possibilidades de explorao, tanto quanto sua

    composio permitiu ao autor a possibilidade de explorar e integrar os aspectos

    contraditrios de sua cultura. Isto , na Amrica Latina, entre a civilizao europeia e a

    cultura colonial, o ensasta lida com mundos hbridos, que se refletem em seu texto.9

    Euclides da Cunha autor que se revela cheio de paradoxos. Esses paradoxos

    so interessantes para sua leitura. Era um autor comprometido com o cientificismo de

    sua poca, ao mesmo tempo em que, espaadamente, em sua obra, encontramos

    questionamentos da validade da prpria cincia. Republicano exaltado na sua juventude,

    crente na ideia do progresso e do carter redentor da civilizao, acabaria criticando os

    rumos tomados pelo governo. Entre adepto da modernizao e antimodernista que chora

    a destruio do arcaico trazido pelo progresso, surgem rompantes utpicos

    necessidade de esperana que o autor busca satisfazer escrevendo. Euclides tinha um

    ideal ilustrado de humanidade, provindo da sua leitura da revoluo francesa feita pelo

    romantismo Victor Hugo, Carlyle, Guizot.

    7 SCOVILLE, Andr Luiz Martins Lopes de. Literatura das Secas: Fico e Histria. Tese Doutorado.

    Universidade Federal do Paran, 2011. pp. 55 100.

    8 LIMA, Luiz Costa. Terra Ignota. A construo de Os Sertes. Rio de Janeiro : Civilizao Brasileira,

    1997.

    9 Cf. WEINBERG, Liliana. El ensayo, entre el paraso y el infierno. Mxico : Universidad Nacional

    Autnoma de Mxico, Fondo de Cultura Econmica, 2001.

  • 14

    Na recente produo crtica sobre a obra de Euclides da Cunha, existem alguns

    comentrios sobre a relao de Os Sertes com a histria. Ronald Machado faz um

    ensaio em que aplica a potica da histria de Hayden White anlise do livro de

    Euclides da Cunha. O resultado da anlise presa pelos aspectos lingusticos de

    configurao da narrativa enquanto arte de composio do enredo. Segundo Ronald

    Machado, o texto euclidiano apresenta um enredo trgico, de explicao

    mecanicista, para o conflito de Canudos. Sua posio poltica, de acordo com as

    categorias de White, se mostraria como conservadora, pois segundo Machado, o

    processo de mudana temporal no texto euclidiano tido como natural e necessrio,

    concebendo a evoluo histrica como o aperfeioamento progressivo da sociedade

    vigente10. O tropo predominante no livro seria a metonmia. Formando uma

    sequncia, nas categorias de White, da seguinte maneira: potica metonmica, modo

    verbal trgico, forma mecanicista e ideologia conservadora. No entanto, segundo

    Ronald Machado, o carter literrio do livro modularia essa estrutura, fazendo com que

    o texto acabasse por fugir dela, tendendo a se manifestar como uma composio mais

    complexa.11

    Entraria no decorrer da narrativa de Euclides o elemento irnico,

    sinalizando com isto, o autor, uma descrena, simultaneamente explcita e implcita, na

    verdade de seus prprios enunciados.12

    O efeito dessa ironia seria construir argumento narrativo autocrtico com

    respeito as suas prprias convices13. Logo, Ronald Machado conclui que as

    categorias de construo meta-histricas do livro no so restritas a uma regra

    combinatria nica. O texto, assim, considerado hbrido, polissmico,

    caleidoscpico.14 A ironia autocrtica redundaria na desconfiana quanto a seus

    prprios enunciados, conjugando a elaborao lingustica conhecida crtica social

    pertinente ao contedo sociolgico do livro. Isto , o texto espelharia, quanto a si

    10

    MACHADO, Ronald. A narrativa da histria em Os Sertes. In: GOMES, Gnia Maria. Euclides da

    Cunha: literatura e histria. Porto Alegre : Ed. UFRGS, 2005. p.100.

    11 Ibidem. p. 101.

    12 Ibidem, p. 102.

    13 Ibidem, p. 105.

    14 Ibidem, p. 106.

  • 15

    mesmo, a crtica social dirigida aos rumos da Primeira Repblica e atuao criminal do

    exrcito nacional na guerra.15

    J para Marlia Papalo Fitchner, Os Sertes mergulharia no mago de ns

    mesmos, no mago de nossa Terra ignota, que no outra coisa do que o espao de

    representao mental chamado memria16 Portanto, esta anlise concebe o livro como

    uma viagem de autodescoberta, para o interior de nossos medos, nossas imagens

    reprimidas e monstruosas, que se manifesta quando nos deparamos com o outro, o

    sertanejo. Memria, aqui, tratada como uma espcie de alucinao que sofreu o

    apagamento. O serto esquecido revivido, pois, pela narrativa de Euclides da Cunha.17

    O livro, traria, desta forma, a imagem do mar extinto, figura da memria perdida,

    resgatando uma dimenso que a autora do ensaio no sabe explicar seno dizendo ser o

    inconsciente, o subterrneo a nossa dimenso cultural.18

    O enigmtico dessa dimenso permanece nas explicaes da autora. Ao longo

    do livro, apresentados vida sertaneja, no meio de tanta secura e dor, vamos

    decodificando simultaneamente, dentro dessa teratologia, a narrao de coisas

    maravilhosas, maravilhosas mas perdidas, quem sabe?, para sempre....19 A autora

    finalmente identifica a narrativa histrica de Euclides como uma viso da histria que

    seria a da evoluo regressiva.20 O rumo evolucionrio seria o rumo da memria

    esquecida, do passado perdido, da imagem do serto que alucina e faz ver no meio da

    seca a iluso do mar que um dia aquele lugar teria sido.21

    Para o crtico e tradutor alemo Berthold Zilly, Euclides da Cunha apresenta

    uma concepo trgica mas alentadora da histria. O sertanejo morreu na realidade,

    15

    Ibidem, pp. 104 - 105.

    16 FITCHNER Marlia Papalo. Os Sertes: memria, imagem, representao visual. In: GOMES, M.G.

    Op. Cit., p. 252.

    17 Idem.

    18 Idem.

    19 Ibidem, p. 253.

    20 Ibidem, p. 254.

    21 Os comentrios da autora sobre esse aspecto da alucinao do mar se baseiam no trecho de Os Sertes

    chamado Fantasia de Gelogo, cujo tema exatamente a existncia no serto do norte de um mar na era

    terciria. A autora do ensaio discutido sugere uma curiosa interpretao: o relato de Euclides encarna um choque de mentalidades e de civilizaes que produz mais metforas do que argumentos racionais. Ento,

    para no enlouquecer, acho que ele acabou enlouquecendo o mestio Ibidem, p. 255.

  • 16

    (...) morreu tambm no livro de Euclides, mas neste, e s neste, ele tambm revive,

    sendo ressuscitado e imortalizado como utopia e mito.22 Percebemos, portanto, que o

    texto cumpriria uma funo histrica de memria, mito e esperana. De fato, para Zilly,

    o livro seria expresso da violncia da colonizao, segundo o ponto de vista de um

    autor latino-americano. O embate de Canudos assume essa dimenso, que eleva o

    conflito ponto fulminante de toda histria brasileira. Em seu aspecto mais importante,

    Zilly considera que Euclides faz a crtica da razo colonialista.23 Sua histria da

    guerra de Canudos projetou e perpetuou um flagrante dessa performance fugaz do

    sertanejo no palco da Histria.24 Registro e memria, seriam a funo que a narrativa

    cumpriria, ao nvel da observao subjetiva e da configurao esttica..25 Ele no

    tem disposio uma cincia social que possa ser ferramenta de anlise e compreenso

    da populao sertaneja, de modo que a literatura, a potica e retrica, apoiadas pela

    histria e mitologia do Velho Mundo26 se tornam o meio mais apropriado para

    representar o serto.

    J para Lus Fernando Valente, Os Sertes situa-se entre a histria e a

    memria, no sentido que lhe empresta Piere Nora27. Este comentador empresta de Nora

    a reflexo sobre os lugares da memria, para interpretar Os Sertes como um livro

    memria que escreve a histria brasileira em face do evento da Guerra de Canudos. O

    autor v, assim, o livro de Euclides como uma suma instituidora de uma identidade

    nacional. No considera a literalidade ou ficcionalidade do texto euclidiano como

    impedimentos da participao do livro na escrita da histria.28 No que concerne ao

    tempo, o autor do comentrio assinala em Os Sertes uma utopia, restaurada da

    continuidade entre o passado isto , as nossas origens o presente e o futuro29. O

    autor parece referir-se ao entrelaamento das trs dimenses temporais que compe a

    22

    ZILLY, Berthold. Um patriota na era do imperialismo: o brilho cambiante de Os sertes In: GOMES,

    M.G. Op. Cit., p. 46.

    23 Ibidem, p. 35.

    24 Ibidem, p, 44.

    25 Ibidem p. 36.

    26 Idem.

    27 VALENTE, Luiz Fernando. Os Sertes: Entre a memria e a histria. In: BERNUCCI, L.M. (org.)

    Discurso, Cincia e controvrsia em Euclides da Cunha. So Paulo: EdUSP, 2008. p. 160.

    28 Ibidem, p. 169.

    29 Ibidem, p. 163.

  • 17

    dimenso histrica do livro. A utopia designaria, desta maneira, simplesmente a

    superao dos problemas identificados por Euclides da Cunha na sociedade brasileira do

    final do sculo XIX.

    Por sua vez, Francisco Foot Hardman denomina a esttica histrica de Euclides

    da Cunha de potica das runas.30 Tal denominao origina-se da recorrente referncia

    s runas, encontrada nos textos euclidianos. O gosto do autor pelo passado derrudo,

    preservado porm decadente, indicaria, para Hardman, a influncia da obra do

    iluminista francs Volney Les ruines, ou meditation sur les revolutions des empires, de

    179131

    . No se encontra nos textos de Euclides da Cunha uma referncia direta

    Volney, mas Hardman insiste que o tema teria chegado ao autor brasileiro diludo pelas

    obras de historiadores como Buckle, idelogos como Chateubriand, poetas como

    Byron, Wordsworth, Victor Hugo32. A presena dos lxicos mais recorrentes em Os

    Sertes para designar essa atmosfera geral de desgaste e desolao33 so: "atraso";

    "retardatrio"; "tardio"; "serdio"; "ruinaria"; "runa"; "ruiniforme"; "restos";

    "destroos"; "decado"; e "destruio.34 O que essa esttica ou potica das runas

    indicaria, seria, de acordo com Hardman um romantismo de base, de matriz hugoniana,

    que provoca em sua prosa e poesia uma interessante combinao entre esttica do

    sublime, dramatizao da natureza e da histria e discurso socialmente empenhado.

    30

    HARDMAN, Francisco Foot. A potica das runas nOs Sertes. In: BERNUCCI, L.M. (org.)

    Discurso, Cincia e controvrsia em Euclides da Cunha. So Paulo: EdUSP, 2008. pp. 117 - 124.

    31 Tambm conhecido como as Runas de Palmira. As Runas ou Meditao sobre a Revoluo dos

    Imprios, no ttulo traduzido por Pedro Ciriaco da Silva, de acordo com a edio portuguesa de 1822.

    Note-se, contudo, que esta edio portuguesa foi livremente traduzida. Cf. VOLNEY, C. F.C de. As Runas ou Meditao sobre a Revoluo dos Imprios. Typografia de Diziderio Marques Leo Lisboa

    : 1822. Disponvel em: www.brasiliana.usp.br. O professor Hardman faz um comentrio interessante

    sobre a difuso de Volney: Domingo Sarmiento, em Facundo o civilizacin y barbarie (1845) constri uma paisagem arruinada e oriental em torno dos pampas, inspirada diretamente em Volney. Taunay cita

    Volney no elenco de suas leituras: este e outros aspectos da relao entre historia, memorialismo e fico

    na obra do autor de Inocncia vm sendo pesquisados por Maria Ldia Maretti, orientanda do programa

    de doutorado em teoria literria do IEL/Unicamp. Se em A retirada da Laguna, h traos evidentes do

    binmio histria-runa, na sua narrativa histrica A cidade do ouro e das runas, cuja primeira edio data

    de 1891, contando o episdio da morte do pintor e tio Adrien Taunay no rio Guapor, numa Vila Bela j

    decadente do ciclo aurfero, durante a malfadada expedio Langsdorff, as afinidades com a linhagem de

    Volney so profundas. HARDMAN, Francisco Foot. Brutalidade antiga: sobre histria e runa em Euclides. In: Estudos Avanados, 10 (26). 1996. P. 308.

    32 HARDMAN, Francisco Foot. A potica das runas nOs Sertes. In: Op. Cit. p. 118.

    33 HARDMAN, Francisco Foot. Brutalidade antiga: sobre histria e runa em Euclides. In: Estudos

    Avanados, 10 (26). 1996. P. 307.

    34 Idem.

  • 18

    Todavia, Hardman prefere designar o tema das runas Volney, e esquece de mencionar

    a Bblia, como fonte de imagens poderosas de runas e destruio.

    Seguindo outro vis, Raimundo Nonato Pereira Moreira demonstrou, em sua

    tese de doutorado, a influncia dos historiadores franceses romnticos, como Michelet,

    Thiers, Thierry, Quinet, Guizot, na construo narrativa de Os Sertes. Assim, o

    romantismo francs seria a grande matriz de concepo da histria para Euclides da

    Cunha. Raimundo Nonato, partindo de uma interessante questo, no que literatura se

    assemelha histria, mas que influncia a historiografia tem sobre a literatura

    (considerando Os Sertes, como narrativa, disso advir maiores consequncias),

    buscou nos registros dos livros lidos por Euclides da Cunha aqueles de historiografia. A

    grande influncia historiogrfica teria sido a consolidao de uma imagem da

    Revoluo francesa, que foi operacionalizada na referncia de Canudos como a Vendia

    brasileira.35

    Raimundo Nonato identifica essa imagem como sobretudo dependente do

    livro Histria de Frana Popular e Illustrada, do historiador Henri Martin, numa

    edio portuguesa lida por Euclides da Cunha em 1884.36

    Outra importante influncia

    historiogrfica foram os livros de Thomas Carlyle e Hippolite Taine, com The French

    Revolution, On Heroes, Hero-Worship and the Heroic in History, do primeiro; e Essai

    sur Tite-Live, Le positivisme anglais: tude sur Stuart Mill, Page Choisirs, Les Origines

    de la France contemporaine, do segundo.37

    Embora a prtica da citao e indicao da

    referncia da informao sejam raras vezes encontradas nos Escritos de Euclides da

    Cunha, podemos supor que constelao dos eventos histricos que o autor dispunha em

    35

    Trato dessa identificao no Captulo 2 da dissertao, como primeira interpretao e constituio

    histrica se sentido atribudo Canudos por Euclides da Cunha.

    36 MOREIRA, Raimundo Nonato Pereira. E Canudos era a Vendia... O imaginrio da Revoluo

    Francesa na construo da narrativa de Os Sertes. So Paulo : Annablume, 2009. p. 255.

    37 Ibidem, p. 262. Raimundo Nonato reconstri, alm disso, um quadro das possveis leituras de Euclides,

    de acordo com as edies disponveis no mercado durante a elaborao de Os Sertes. Segue a lista

    encontrada: Dix ans detudes historiques, de Thierry; Histoire de la Rvolution franaise, de Thiers;

    Histoire de la Rvolution franaise, de Mignet; Histoire de la civilisation em France e Essais sur

    lhistoire de France, de Guizot; Histoire de France Populaire, de Henri Martin; Histoire parlementarie

    de la Rvolution franaise, de Philippe Buchez; Histoire de Girondins, de Lamartine; Histoire de la

    Revolution Franaise, e Histoire de France, de Michelet; Histoire de la Revolution, de Louis Blanc;

    LAncien Regime et la Rvolution, de Tocqueville; La Revolution, de Edgar Quinet. A pesquisa de

    Raimundo Nonato foi balizada pelo tema da histria da Frana e da Revoluo Francesa, e no pretende

    ser um levantamento exaustivo das respectivas obras historiogrficas. Indicam, contudo, o grande

    interesse no mercado editorial brasileiro pela histria francesa. Era esta historiografia que orientava o

    passo em que estava o centro da civilizao. Cf. Ibidem. pp. 254-255.

  • 19

    sua bagagem advinha dessas obras. Segundo Raimundo Nonato, isso certo para

    imagem da Revoluo Francesa que Euclides se valia em sua narrativa.38

    Isso leva a discusso para o lado do estatuto discursivo de Os Sertes. Assim,

    Luiz Costa Lima parte de uma indeterminao para explorar a questo se o texto de

    Euclides seria cientfico ou ficcional.39

    Conclui optando pelo cientfico, onde o ficcional

    entra como adorno retrico. Porm, o mais interessante do estudo que consagra a este

    problema, ter notado que o texto pertence a era anterior da consolidao da

    historiografia como cincia, no qual prevaleciam ainda uma velha concepo retrica da

    histria, herdada, em ltimo caso, pelo idioma portugus, da pennsula ibrica.40

    Portanto, segundo Luiz Costa Lima, Os Sertes se inscreveria como uma obra

    sobre um duplo carter, cientfico e literrio.41

    Euclides seria pois cientista por sua

    fidelidade factual, historiador por sua fidelidade aos fatos e romancista pelo tom pico-

    trgico que empresta sobretudo a A Luta.42 O crtico defende que tal duplo carter

    pode ser identificado na construo das frases euclidianas, sendo o ncleo destas o fato

    positivo, adornado, logo depois, pela construo literria, cumprindo a funo de borda

    ou contorno potico.43

    Luiz Costa Lima aproxima, corretamente, esse amalgama entre

    cincia e arte dos propsitos do naturalista Alexander von Humboldt, cujos escritos

    buscavam exatamente a descrio cientfica porm dotada de funo esttica.44

    38

    Idem.

    39 LIMA, Luiz Costa. Terra Ignota. A construo de Os Sertes. Rio de Janeiro : Civilizao Brasileira,

    1997.

    40 Ibidem, p. 17; pp. 213 238.

    41 Tal dupla inscrio corresponderia, ademais, ao prprio modo pelo qual o livro foi recebido em sua

    poca. Sobre o carter de dupla inscrio da obra ento se levantara que ela parece indicar que nossos crticos do comeo do sculo no distinguiam entre a concepo retrica das belas-letras, que, no

    levando em conta o trabalho dos antiqurios, inclua a histria entre os seus objetos, e a concepo

    romntica de literatura, diferenciada enquanto expresso e explorao do infinito individual. Ibidem, p. 128. Ou seja, no havia maiores problemas, entre os crticos que resenharam a obra, no momento de seu

    lanamento, com o amalgama da pretenso cientfica com a construo literria. Essa questo, portanto,

    teria surgido na crtica posteriormente, no decorrer do sculo XX.

    42 Ibidem, p, 132.

    43 Ibidem, p. 137.

    44 Ibidem, p. 143. Sobre Alexander von Humboldt e a unio entre cincia e esttica, com propsito

    romntico de reunificar o homem com a natureza, Laura Dassow Walls explica: For the Humboldtian sicentist, the doing of science combined rigorous and exacting labor with the joy of poetic creation and an

    almost spiritual sense of revelation, as if nature borrowed the mind and hand of the scientist to describe its

    own most beatiful laws and structures. WALLS, Laura Dassow. The Passage to Cosmos. Alexander von Humboldt and the Shaping of America. Chigago, London : The University of Chicago Press, 2009. p.

    8.

  • 20

    Estas so, entre as obras crticas mais recentes, as que se relacionam de algum

    modo com a temtica explorada neste trabalho. Nota-se que embora tragam comentrios

    instigantes e elucidativos, pouco ou no relacionam o tema da histria, narrativa e

    tempo de Os Sertes de forma integrada. Os comentrios sobre a memria, por

    exemplo, ficam como que pairando no ar, sem esclarecer qual sua funo para uma

    compreenso dos elementos em jogo na construo cultural do passado. De igual modo,

    no lanam luz questo aqui construda, sobre a projeo de um tempo retrgrado em

    cima dos sertanejos.

    Neste trabalho a teoria da histria deve ser usada como instrumento heurstico

    de crtica e interpretao. Sua capacidade de explicitar os procedimentos constitutivos

    do pensamento histrico moderno pode ser empregada para a leitura de textos literrios

    e histricos.45

    Com a matriz disciplinar do pensamento histrico elaborado por Jrn

    Rsen, na qual so elucidadas as etapas e funes da orientao da vida humana no

    tempo, pode-se pensar o problema aqui levantando acerca do livro Os Sertes.

    Segundo Rsen, historias cumprem sua funo ao orientarem temporalmente o

    agir da vida prtica. Elas so dependentes, todavia, de uma carncia fundamental: a

    necessidade de dar sentido para a ao e paixo sofridas no tempo. O agir e sofrimento

    humanos que ocorrem no tempo precisam ser inteligveis para serem empreendidos e

    suportados. Isso significa que a experincia do tempo necessita ser elaborada

    culturalmente de alguma forma. Linguisticamente a experincia da passagem do tempo

    elaborada por uma narrativa histrica. O tempo assim humanizado, o passado

    retomado e o futuro esperado pelo presente. A conscincia da mudana temporal

    elaborada por uma histria chamada de conscincia histrica. Para Rsen,

    o homem necessita estabelecer um quadro interpretativo do que experimenta

    como mudana de si mesmo e de seu mundo, ao longo do tempo, a fim de

    poder agir nesse decurso temporal, ou seja, assenhorear-se dele de formal tal

    que possa realizar as intenes do seu agir. (...) A conscincia histrica ,

    assim, o modo pelo qual a relao dinmica entre a experincia do tempo e

    inteno no tempo se realiza no processo da vida humana.46

    45

    Com resultados positivos, ela j foi testada, entre outros, por ASSIS, Arthur. A teoria da histria como

    hermenutica da historiografia: uma interpretao de Do Imprio Repblica, de Srgio Buarque de

    Holanda. Revista Brasileira de Histria. So Paulo, v. 30, n 59, 2010. p. 91-120. e PEREIRA, Ana

    Carolina B. Que objetividade para a Cincia da Histria? : o ndio brasileiro e a revoluo francesa

    luz da teoria da histria, de Rsen a Hayden White. Dissertao (mestrado)Universidade de Braslia, Departamento de Histria, 2007.

    46 RSEN, Jrn. Razo Histrica. Teoria da Histria: os fundamentos da cincia histrica. Braslia: Ed.

    UNB, 2001. p.58

  • 21

    Pode-se tambm entender a conscincia histrica como constituio de

    sentido da experincia do tempo.47 Com histrias, o sentido da experincia do tempo

    elaborado narrativamente. Ou seja, a narrativa o modo lingustico pelo qual se domina

    a contingncia de viver no tempo, transformando o agir e sofrer em histrias com

    sentido. O carter de um enunciado, de uma articulao ou manifestao de sentido,

    histrico se o sentido intencionado abrange um contexto narrvel entre o passado, o

    presente e (tendencialmente) tambm o futuro, sentido esse no qual a experincia do

    passado interpretada de forma que o presente possa ser entendido e o futuro esperado.

    Assim, o sentido histrico necessita formalmente de uma estrutura narrativa,

    cujo contedo deve vir da experincia do passado, e precisa cumprir sua funo de

    orientar a vida humana nas demandas de seu presente. Uma historia narra o passar do

    tempo, e supre com sentido as transformaes ocorridas. Conceitos, perspectivas,

    categorias, mtodos e procedimentos com que se olha e investiga o passado encontram

    formas de representao do passado.

    Pode-se estabelecer a relao entre texto e contexto tambm mediante a teoria

    da histria. Histrias nascem da carncia de se orientar temporalmente a vida. A

    dimenso temporal de toda experincia articulada pela histria. O mundo da vida

    perpassado pelas relaes interpessoais, e signos e sentidos so compartilhados pela

    cultura. Isso significa que as carncias de orientao so elaboradas a partir dos

    elementos de sentidos de uma cultura, e logo passam pela mediao social. Pode-se

    referir a isto com a noo de cultura histrica. Com o conceito de cultura histrica, a

    conscincia histrica remetida a um mbito maior. Passa a referir a cultura, que assim

    pode ser localizada tanto geogrfica como temporalmente, e desta forma particularizada.

    O conceito de cultura histrica tem funo de categorizar fenmenos distintos e

    mltiplos que envolvem a memria histrica na esfera pblica. Explora e denomina um

    amplo campo de processos que entretecem as relaes sociais com a cultura, no modo

    particular do pensamento histrico. O conceito refere-se a prtica cultural orientada

    historicamente para o agir, isto , ao com sentido orientada temporalmente entre

    passado presente e futuro. Ele tem assim a estimativa de ligar o pensamento histrico de

    47

    Ibidem, p. 59

  • 22

    uma sociedade com a ao concreta dos indivduos, mostrando que a histria influi

    neles com sua funo de orientao temporal da vida. Cultura histrica seria a

    conscincia histrica de uma sociedade, isto , sua maneira de entender-se e reproduzir-

    se a partir de uma conscincia cultural orientada historicamente. Como a define Rusen:

    Assim a cultura histrica pode ser definida como a articulao prtica e operativa da

    conscincia histrica na vida de uma sociedade48

    Com o instrumento heurstico fornecido pela teoria da histria, pode-se abordar

    o problema do tempo e da historicidade no livro de Euclides da Cunha.49

    Os Sertes foi publicado em contexto de rpidas mudanas, vividas tanto no

    plano poltico quanto no social com a modernizao e advento da indstria. O Captulo

    1 desta dissertao situa o lugar de enunciao de Euclides da Cunha em sua poca. Um

    autor que tomou posio nos assuntos polticos e assumiu a tarefa da civilizao como

    engenheiro. O Captulo 2 trata do tema do serto como contraposio civilizao.

    fundamental para entender a urdidura da concepo de histria do Brasil que se

    encontra em Os Sertes. alm disso, crucial como elaborao da situao apontada no

    captulo 1, a modernidade, se refletindo em uma orientao histrica que toma a

    contrarrevoluo de Vendia como parmetro de interpretao. O presente do autor

    props problemas para os quais ele buscou na histria uma resposta. O Captulo 3

    finalmente entra no livro Os Sertes, procurando desvendar o sentido histrico atribudo

    ao serto e ao sertanejo. O pensamento histrico aqui conscientemente elaborado por

    um autor, que se via como um escritor de ensaios que misturavam a cincia, em

    concepo positiva e racional, com arte, em concepo subjetiva e fantasista. Depois de

    que a situao e a concepo de histria do autor foram elucidadas, ficar mais claro

    porque sua representao do serto como lugar do passado. Se o objetivo for cumprido,

    o texto agora deve retornar ao contexto e o contexto iluminar texto.

    48

    RSEN, Jrn. Qu es la cultura histrica?: Reflexiones sobre una nueva manera de abordar la

    historia. Disponvel em: http://www.culturahistorica.es/ruesen/cultura_historica.pdf Acesso em:

    09/10/2011.

    49 Alm de Rsen e Koselleck, cf. Cf. RICOEUR, Paul. A memria, a histria, o esquecimento.

    Campinas, SP.: Ed. Unicamp, 2008. ANKERSMIT, Frank. Truth in Literature and History. Cultura

    Histrica, 2009. disponvel em

    http://www.culturahistorica.es/ankersmit/truth_in_literature_and_history.pdf Acesso em 31/03/2012.

  • 23

    CAPTULO 1 - MODERNIDADE COMO CONTINGNCIA

    TEMPORAL

    Para Euclides da Cunha a civilizao o caminho percorrido pela humanidade.

    Segui-lo a tarefa da sua poca, encontrar na civilizao o fim dos injustos problemas

    do homem. A cincia e a razo triunfavam com a II Revoluo Industrial, seus xitos

    tcnicos obtidos no sculo XIX provavam ser possvel uma grande transformao do

    mundo, capaz de ser moldado palmo a palmo pela engenharia do homem. O engenheiro

    o homem por excelncia que domina a cincia determinada obteno de fins pela

    manipulao de seus meios - a tcnica. Eram os engenheiros desde o comeo do sculo

    XIX os responsveis por construir e administrar os novos meios tcnicos da Revoluo

    Industrial. Erigiam redes de telegrfo, pontes metlicas, estradas de ferro, ruas e

    projetos que atendiam modernizao da sociedade. Enquanto escrevia Os Sertes,

    Euclides da Cunha trabalhava como engenheiro da Superintendncia de Obras Pblicas

    do Estado de So Paulo. Entre o fim da Guerra de Canudos em 1897 e a publicao do

    livro em 1902, decorreu um perodo durante o qual o autor manteve-se no interior de

    So Paulo, em So Jos do Rio Pardo. Retirado da grande capital do Rio de Janeiro, e

    tambm do centro paulista, Euclides da Cunha escrevia sobre o interior afastado da

    costa litornea, o serto.

    No era uma novidade. Nem literria, pois Bernardo Guimares j iniciara em

    1865 com O Ermito de Muqum o romance histrico sobre os sertes brasileiros, nem

    cientfica, pois tanto os institutos de cincia, geogrficos e histricos, como o governo

    mantinham seus interesse por uma terra desconhecida, nos modelos administrativos

    modernos. A regio de Canudos j havia sido percorrida e parcialmente estudada pela

    comisso da qual fizera parte Teodoro Sampaio, outro engenheiro pblico.50

    Capistrano

    de Abreu j publicara artigos sobre a histria das entradas, rumo dos bandeirantes de

    penetrao da terra por veias fluviais, cuja audcia nos primeiros tempos da colnia

    50

    SAMPAIO, Theodoro. O Rio So Francisco e a Chapada Diamantina: trechos de um dirio de

    viagem (1879-80). So Paulo : Escolas Profissionaes Salesianas, 1905.

  • 24

    tinham garantido a posse portuguesa.51

    Euclides da Cunha fazia de Os Sertes um livro

    libelo, era a denncia dos crimes humanitrios cometidos pela Repblica em uma guerra

    civil nos confins da Bahia. Embora compartilhasse de teses raciais e de determinismos

    do meio sobre a ao dos homens, seguindo a linha narrativa do livros, a medida que se

    avana nos acontecimentos da guerra, o autor vai perdendo seu primeiro entusiasmo

    com a civilizao, para uma cada vez maior postura de desconfiana em relao ao

    prometido sonho civilizatrio.

    O interior do pas era objeto de interesse desde que uma tese sobre a histria

    brasileira foi lanada. Com o processo de Independncia, interrogou-se o passado para

    fins de provir o sentido ao agrupamento poltico. Sob o Imprio, tal tarefa foi

    coordenada especialmente pelo Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro. A

    monografia de Karl Friedrich Von Martius, Como se deve escrever a histria do

    Brasil52

    , definia as diretrizes para uma historiografia cuja tarefa era explicar a formao

    da nao brasileira. Nesse escrito, fixava-se um padro que se veria consagrado: vias de

    penetrao do territrio pelos rios eram o caminho da colonizao, empresa que

    proporcionara o encontro e cruzamento de trs raas o portugus, o africano e o

    indgena da terra. Desse encontro embalado pela aventura da expanso ultramarina

    portuguesa dava-se a experincia que constitua o Brasil, das trs raas miscigenadas

    originava-se o brasileiro.53

    A preocupao com a essncia da nacionalidade foi clara na Amrica a partir

    dos processos e lutas de Independncia. Incorporando da Europa as matrizes,

    necessidade de definio nacional e os meios para tanto, foi desenvolvida uma literatura

    romance e histria que localizava, resgatava, definia os tipos, os costumes, e

    particularidades de cada regio, e da regio prosseguiam, por analogia, identificao

    51

    ABREU, Joo Capistrano de. Os caminhos antigos e o povoamento do Brasil. [1899] In: PAIM,

    Antonio (org.) Capistrano de Abreu. Descobrimento do Brasil e Povoamento. [s.l] : Centro de

    Documentao do Pensamento Brasileiro [s.d] Disponvel em

    http://www.cdpb.org.br/capistrano_de_abreu%5B1%5D.pdf Acesso em 02/05/2012.

    52 MARTIUS, Karl Friedrich Von. Como se deve escrever a Historia do Brasil. In: Revista de Histria

    de Amrica, No. 42 (Dec., 1956), pp. 433-458. Disponvel em http://www.jstor.org/stable/20137096.

    Acesso em 10\06\2012.

    53Cf. GUIMARES, Manoel Luis Salgado. Nao e Civilizao nos Trpicos: O Instituto Histrico e

    Geogrfico Brasileiro e o Projeto de uma histria nacional. In: Estudos Histricos, Rio de Janeiro. n. 1,

    1988. pp.5-27.

  • 25

    do ser nacional. Constituio simblica do estado nacional, que devia transpor a

    unidade poltica unidade cultural.54

    Um historicismo romntico de base, considerado em amplo sentido, com a

    instituio da histria como provedora de sentido da experincia do coletivo singular a

    nao constitua o modelo para a busca da excentricidade, a peculiaridade, o tpico, a

    sntese dos costumes da terra, amoldurados pela experincia do passado sedimentada

    atravs dos sculos e vividas na maneira de ser das pessoas da terra no presente e futuro.

    Contava-se atravs da escrita o que era a identidade cultural, formando um conjunto de

    smbolos e signos, intersubjetivamente partilhados, do Estado nacional. Os Sertes de

    Euclides da Cunha mantinha ainda, no contexto da viragem do sculo XIX para o XX,

    as preocupaes sobre a nao, que se encontravam nos escritores americanos.

    POSIO DE EUCLIDES DA CUNHA NO CONTEXTO DA I REPBLICA.

    O contexto histrico em que Euclides da Cunha viveu foi um perodo de

    grande desestabilizao, com uma srie de crises polticas e econmicas que

    acompanham a queda da monarquia e o reajustamento da ordem sob o regime

    republicano.

    Euclides da Cunha situava-se no seio da efervescncia poltica, contribuindo

    com o movimento de ideias e confabulando para um novo regime poltico. Era cadete

    do exercito, como aluno do curso de engenharia, da Escola Militar da Praia Vermelha,

    quando o golpe de 15 de Novembro de 1889 foi proclamado. Nos dias anteriores a

    proclamao, Euclides escrevia para a imprensa, colaborando com artigos para a

    54

    Otto Maria Carpeaux aponta a ironia dos nacionalismos que se difundiram desde o romantismo Embora

    buscassem definir a unidade nacional, foram basicamente os mesmos princpios que serviram a todos: A

    literatura romntica, que tantas vezes se gabava de ser mais nacional e mais nacionalista do que o

    classicismo, constituiu, no entanto, o movimento literrio mais internacional de quantos a Europa at

    ento tinha visto. [...] O romance histrico maneira de Scott, o poema narrativo maneira de Byron, o

    teatro maneira de Hugo, aboliram todas as fronteiras literrias. E aqueles elementos nacionais

    combinaram-se, criando os tipos da literatura romntica internacional. CARPEAUX, Otto Maria. Histria

    da Literatura Ocidental. V. 4. Rio de Janeiro : Edies O Cruzeiro, 1962.p.1652.

  • 26

    Provncia de So Paulo, peridico da linha republicana, nos quais atacava a instituio

    monrquica e previa as glrias de uma repblica. Desde esta poca, quando ainda era

    um jovem estudante, formava-se como um homem de letras, um escritor que fazia da

    palavra a voz de uma causa social. O modelo acompanhava, a seu modo, a formao, na

    Europa, do homem letrado que engaja-se no debate pblico, em nome da verdade e do

    humanismo universalista o intelectual.55

    Euclides nascera no interior do Rio de Janeiro, na fazenda chamada Saudade,

    no distrito de Cantagalo. Seu pai, Manuel Pimenta da Cunha, era guarda-livros,

    empregado nas fazendas de caf do Vale do Paraba. Sua me, Eudoxia da Cunha,

    morrera quando Euclides tinha trs, deixando o menino aos cuidados das tias. Os

    bigrafos de Euclides, Olmpio de Souza Andrade e Roberto Ventura, atribuem

    infncia passada na fazenda, o ambiente rural serrano do Rio de Janeiro, a melancolia

    frente natureza rural que o autor expressaria nos seus escritos na vida adulta.

    Para Olmpio de Sousa Andrade, Euclides da Cunha era filho da roa, tocado

    pela natureza quando viveu no Vale do Paraba. Do tempo vivido entre fazendas,

    Euclides da Cunha levaria o gosto pela vida do campo. Segundo Andrade, dos quatorze

    aos vinte anos, j no rio de Janeiro, lembrou muito esse tempo perdido, ao rabiscar o

    primeiro artigo para um jornal de estudantes e ao escrever versos que valem como

    documentos.56 Sua posio concorda com a de Roberto Ventura. Segundo Ventura, as

    serras fluminenses marcaram a infncia do futuro escritor. De Terespolis, cidadezinha

    atravessada pelo riozinho Paquequer e cercada pelas serras e neblina nas manhs e

    tardes, guardou a lembrana de infncia mais remota. Seria a terra sagrada onde passara

    o seus mais verdes anos, como confessava, em carta a Lucio Mendona, o cenrio mais

    55

    De fato, Emile Zola era um autor atual no Brasil no fim do sculo XIX, era acompanhado e debatido

    nas resenhas do crculo letrado. O Caso Dreyfus foi noticiado na imprensa local, e para Euclides era um

    modelo do homem que lutava no campo das ideias. O caso Dreyfus teve grande repercusso no Brasil. Vrios jornais, dentre eles o Estado, publicaram os artigos de Zola, que transformou a imprensa em

    tribuna de acusao ao Exrcito e Terceira Repblica franceses. O tom inflamado de Zola teve ecos em

    Euclides, que morava nesta poca em So Jos do Rio Pardo, onde escreveu grande parte de Os Sertes. VENTURA, Roberto. Retrato interrompido da vida de Euclides da Cunha. So Paulo : Companhia

    das Letras, 2003. pp. 189-190.

    56 ANDRADE, Olmpio de Souza. Historia e Interpretao de Os Sertes. 4.ed. Rio de Janeiro :

    Academia Brasileira de Letras, 2002. p. 20.

  • 27

    longnquo de suas recordaes e suas saudades.57

    Euclides lembrava-se das paisagens

    vistas na infncia com serras envoltas na cerrao, rochedos banhados por filetes de

    gua, vises do sol entre as montanhas58, quando remetia epistolas a seus amigos.

    Ademais, para Roberto Ventura, Euclides voltava-se para a natureza para se consolar

    da morte da me e da difcil instabilidade de sua infncia e juventude, em que teve de

    trocar, por inmeras vezes, de casa e colgio.59 O menino mudava-se frequentemente,

    pois viveu a infncia entre Terespolis, So Fidlis, Rio de Janeiro, Salvador, e Rio de

    Janeiro.

    A percepo dos bigrafos valiosa, Euclides da Cunha nascera no meio rural,

    e viveu sua fase adulta na cidade. A diferena entre o campo, a fazenda, a serra e a rua,

    a vitrine da mercadoria, a cidade drstica. Seguindo os bigrafos, seria uma fase

    infantil que retornaria como lembrana longnqua de uma amena natureza, que se

    contraporia turbamulta urbana e a dureza da vida adulta. Mais do que um dado

    biogrfico a indicao de uma condio social. Em um pas de populao rural, o

    processo de modernizao impulsionado desde meados do sculo XIX incentivava a

    transformao da sociedade, sendo fato significativo o crescimento da vida urbana.

    Revelava uma condio social, um escritor engenheiro, cuja profisso e atividade

    letrada estava intimamente associada com a vida citadina, dependente da instaurao da

    civilizao industrial e da circulao de ideias por meio do papel no crculo literrio

    formado por revistas e jornais. No entanto, nascera e vivera a infncia no campo, em um

    pas que herdava do meio rural sua mais forte caracterstica cultural.

    Em um carto postal Machado de Assis, que encontrava-se na ocasio em

    Nova Friburgo, Euclides da Cunha dizia:

    O sr. Est numa cidade que eu vi na mais remota juventude, e bem perto do

    pequenssimo vilarejo onde nasci Santa Rita do Rio Negro. No a conheo mais. Mesmo dessa encantadora Nova Friburgo tenho uma impresso

    exagerada. Foi a primeira cidade eu vi; e conservo-lhe neste rever na idade

    57

    Roberto Ventura afirma o fato com base na mencionada carta a Lcio Mendona. Para o bigrafo,

    importante fixar a cena da infncia para desvendar a personalidade do escritor Euclides da Cunha. Cf.

    VENTURA, Roberto. Op. Cit. p. 37.

    58 Ibidem p. 38.

    59 Idem.

  • 28

    viril, uma impresso de criana, a imagem desmesurada de uma quase

    Babilnia...60

    A impresso de uma quase Babilnia frente a uma cidade do interior

    simblica, enuncia o impacto causado pela urbana em um menino da fazenda. O sentido

    desmesurado dado no postal cidade uma imperial Babilnia revela o choque, que

    pode ser considerado em amplo sentido social, vivido pela transformao do pas na

    direo da urbanidade, da civilizao e das tcnicas da sociedade industrial, como o

    telegrafo e a linha de ferro.

    Na poca do colgio, Euclides da Cunha lia os autores romnticos. Segundo

    Roberto Ventura, ele admirava sobretudo Fagundes Varela. O modelo seguido pelos

    romantismo brasileiro era essencialmente francs. Tanto Varela como Castro Alves

    seguiam o modelo do negro nobre, vivificado pela literatura francesa, como o

    personagem Bug-Jargal de Victor Hugo. A causa abolicionista tambm tornava-se tema

    da poesia romntica, e o carter social desta marcava nos estudantes a vontade de

    empregar a palavra em nome de uma causa pblica. Euclides e seus colegas da escola

    empolgavam-se com a defesa social da abolio, influenciados por Joaquim Nabuco,

    Jos do Patrocnio, Andr Rebouas e Lus Gama. Segunda Ventura, a denuncia dos

    horrores do trfico ou a exposio da crueldade dos senhores, comuns na poesia

    romntica, evocavam temas caros aos colegiais e estudantes: a perda de razes, a

    nostalgia das origens e a ausncia de liberdade.61

    Segundo seu bigrafo, o sentimento romntico incutira-se no futuro escritor.

    Adotava uma postura romntica diante da vida e da histria, com sentimentos que

    oscilavam entre a utopia e a melancolia.62 Formando-se um leitor dos autores

    romnticos, brasileiros, portugueses e franceses principalmente, Euclides da Cunha

    absorvia do romantismo um ethos. Entre os autores que mais influenciaram Euclides,

    encontram-se Victor Hugo no romance; Carlyle, Guizot, Thiers, Thierry, Lamartine,

    Michelet, na historiografia, Alexander von Humboldt na literatura de viagem. Estes

    proveram ao jovem estudante o ideal da justia social, matizada por uma histria magna

    60

    . CUNHA, Euclides da. A Machado de Assis. Santos, 15 de fevereiro de 1904. In: Obra Completa:

    volume 2. Organizado por Paulo Roberto Pereira, 2ed. Rio de Janeiro : Nova Aguilar, 2009. p. 920.

    61 VENTURA, Roberto. Op. Cit. . P. 43

    62 Ibidem, p. 47

  • 29

    da Revoluo Francesa como passo decisivo no avano ao futuro da humanidade,

    guiada pela cincia.63

    Havia, entretanto, um inconveniente que acompanhava o desenvolvimento

    civilizatrio. De fato, escrevera para o historiador Oliveira Lima, em 1908: Reivindico

    o belo ttulo de ltimo dos romnticos, no j do Brasil apenas, mas do mundo todo,

    nestes tempos utilitrios A progresso do mundo tcnico, com o avano das novas

    tecnologias e de um novo sentimento de estar no mundo, refletido nas artes no final do

    sculo XIX, nas variadas correntes de vanguarda, que geralmente consideravam-se

    modernas ou modernistas, era tambm sentido por Euclides da Cunha.

    Euclides aps o ginsio tornara-se cadete, como aluno da Escola Militar.

    Cursava a carreira de engenharia, em uma instituio que seguia um modelo francs de

    ensino, ilustrado, advindo da Escola Politcnica fundada em 1794 durante a Revoluo.

    O objetivo da implantao desse modelo de escola era prover quadros civis e militares

    para o Estado, formar tcnicos, treinados nas funes doravante requisitadas. Coincidia,

    tanto no caso da Politcnica francesa como no caso brasileiro da Real Academia Militar,

    fundada por D. Joo VI, com o advento do mundo industrial e com a formalizao de

    um incipiente estado nacional.64

    Euclides da Cunha entrava na Escola Militar da Praia Vermelha no bojo da

    movimentao republicana, quando o exercito, em vias de profissionalizao, tornava-se

    um ator social cuja ao repercutiria efeitos fundamentais. Recebera, na Escola, aulas

    com Benjamin Constant de Botelho Magalhes, seguidor do positivismo de Auguste

    Comte e defensor de uma repblica baseada no modelo da III Republica francesa de

    1870. Euclides deixou-se influenciar por seu professor, como atestam os bigrafos,

    absorvendo o positivismo, Comte, Spencer, e partilhava do ideal de cincia como

    provedora da verdade e ordenadora do mundo.65

    Como membro do exercito, mesmo

    como jovem aluno, seguia a disciplina militar, com sua ordem de formao, exerccios e

    treinos. Tal aspecto importante, pois mais tarde em sua vida, quando escreveu Os

    63

    Cf. MOREIRA, Raimundo Nonato Pereira. E Canudos era a Vendia... O imginrio da Revoluo

    Francesa na construo narrativa de Os Sertes. So Paulo : Annablume, 2009.

    64 GALVO, Walnice Nogueira. Euclides e a Escola Militar. In: Euclidiana. Ensaios sobre Euclides da

    Cunha. So Paulo: Companhia das Letras, 2009, pp. 99-133

    65 ARMORY, Frederic. Euclides da Cunha: Uma Odissia nos Trpicos. Cotia, SP : Ateli Editorial,

    2009. pp. 65-67.

  • 30

    Sertes, sua crtica aos desmandos e crimes de guerra se assomam a uma ironia frente a

    ordem militar, suas regras e tticas, importadas do exercito francs e prussiano.

    Como aluno, Euclides engajara-se junto com os cadetes na movimentao

    republicana. Um ato seu ganhou notoriedade. Enquanto o ministro da Guerra da

    monarquia, em visita a Escola, passava em revista os alunos formados, Euclides da

    Cunha sai de formao dirigindo-se ao ministro, d vivas republica, tenta quebrar sem

    sucesso seu sabre no joelho, e termina o atirando ao cho. O ato de protesto solitrio era

    parte de um suposto plano estabelecido entre os alunos, que previa a sublevao contra

    o ministro da guerra, sua priso na Escola, donde o levante seguiria para derrubar a

    monarquia. Como apenas Euclides aderiu ao plano na ltima hora, o mesmo foi preso,

    levado ao hospital, e expulso da Escola. Posteriormente, depois do proclamao de 15

    de Novembro de 1889, seu antigo professor, Benjamin Constant de Botelhos Magalhes

    assume o ministrio da guerra, e reincorpora Euclides Escola.

    Devido ao ato, foi convidado por Jlio Mesquita, ento diretor do jornal A

    provncia de So Paulo, rgo de imprensa que apoiava o republicanismo pondo-se ao

    lado do partido republicano paulista, a colaborar no jornal. Escreve uma srie de artigos

    atacando a monarquia, nos quais se destaca a linguagem que utiliza para qualifica-la.

    Era uma instituio retrgrada, no condizente com a marcha do progresso e da

    civilizao, era o descompasso brasileiro frente aos outros povos de primeira linha.

    Propagava o republicanismo como uma mudana no curso da histria brasileira,

    encarando a implantao de um novo regime como o meio de se retirar o Brasil atraso e

    p-lo nos devidos trilhos da histria.

    A retrica utilizava-se de exemplos e tentava seguir uma lgica histrica. Seu

    pressuposto era a Revoluo Francesa, como marco da poca. Tinha sido a grande

    Revoluo que dera inicios aos tempos modernos vividos pelas naes do mundo, e sua

    bandeira de justia social era assumida como um dever humanitrio por Euclides.

    Servia-se tambm do positivismo, como doutrina que embasaria cientificamente o

    grande sentido dado histria desde a Revoluo de 1789. As fases de evoluo

    humana prognosticavam, com certeza, um futuro realizado, poca de uma humanidade

    plenamente satisfeita, auxiliada pelo domnio cientifico da natureza, pela tcnica, e

    organizao racional da sociedade. Era uma linha evolutiva traada, desde as

  • 31

    concepes rudimentares da humanidade, o misticismo, a religio, a metafsica, s

    conquistas do sculo XIX, que indicavam a idade da cincia, e baseado nela,

    prometiam, solucionar os problemas sociais e prover a humanidade de bem-estar. Essa

    utopia positivista cultuava a razo, e colocava-se ao lado da verdade, cientificamente

    alcanvel. A cincia sempre foi um ideal para Euclides, mesmo em sua fase mais

    tardia, quando recuava do positivismo estrito para formas hibridas mais sutis de

    sociologia e literatura.66

    Frente aos bacharis em direito, e aos mdicos, situava-se como um letrado nos

    assuntos cientficos e tcnicos. Desde a sociologia, passando pela geografia, geologia,

    botnica, conquistas da tcnica industrial, e mais tudo que se pudesse contar numa

    linguagem cientifica, cabia a pena do escritor engenheiro. Interferia como um mediador,

    entre o conhecimento tcnico-cientfico e o pblico leigo. Assim, sua posio era a de

    um comentador qualificado, a explicar e discorrer para um pblico amplo, porm

    instrudo, sobre a situao, o progresso do conhecimento, o estado do saber da

    humanidade, e as valias que se poderiam ter com os fatos. Como comentador de

    assuntos sociais, investia-se da autoridade do socilogo, homem dos fatos e mtodos

    corretos com que se interpretar os eventos caticos da sociedade, dando-lhe correta

    feio e significao, com a certeza de uma verdade positiva. Segundo Jos Carlos de

    Barreto Santana, mediante seus trabalhos como escritor, o contedo cientfico

    exposto a um pblico mais amplo que o normalmente associado ao que consumiria o

    contedo veiculado pelos livros e peridicos especficos das cincias.67 Donde a

    autoridade de seus juzos, no do reles mundo das opinies, mas do reino exato de uma

    cincia, pois falava como especialista.

    O noviciado de Euclides da Cunha na imprensa adere, assim, ao contexto da

    histria da Primeira Repblica brasileira e as mudanas sociais pelas quais passam o

    pas entre o final do sculo XIX e as primeiras dcadas dos sculo XX. Interferindo no

    debate pblico por meio dos seus artigos para os jornais, Euclides da Cunha tornava-se

    66

    Em especial nos escritos amaznicos, sobretudo na crnica Judas Ashverus, o carter literrio parece

    predominar sobre as consideraes sociolgicas. Cf. HATOUM, Milton. Expatriados em sua prpria

    ptria. In: CUNHA, Euclides da. Obra completa. Vol. 1. 2.ed. Rio de Janeiro : Nova Aguilar, 2009. pp.

    CLV-CLXXII.

    67SANTANA, Jos Carlos Barreto. Cincia e Arte: Euclides da Cunha e as Cincias Naturais. So

    Paulo : Hucitec, Feira de Santana : Universidade Estadual de Feira de Santana, 2001. p.35.

  • 32

    um dos incipientes escritores que, no dizer de Nicolau Sevcenko, tentavam fazer de sua

    palavra escrita a valia de uma causa pblica.68

    Mais que mero articulista que comentava os fatos polticos da sua poca,

    Euclides da Cunha manteve-se muito prximo das mudanas por que passava o Brasil.

    Fazia parte, como aluno-cadete, do exercito, confabulando junto com seus colegas a

    favor do republicanismo. Como articulista, publicara na imprensa de So Paulo e Rio de

    Janeiro, centro da opinio publica que girava em torno da capital federal. Como

    engenheiro, participava da linhagem de Andr Rebouas e Teodoro Sampaio, em uma

    profisso que era requisitada pela modernizao do pas.69

    Ainda, foi colega, na escola

    militar, de Alberto Rangel, Lauro Mller, Tasso Fragoso e Cndido Rondon. O nome de

    Rondon exemplar da turma de tcnicos-militares que achavam nos quadros

    burocrticos da Nova Republica uma funo importante. Carregava como tcnico, em

    nome do governo, o desenvolvimento para o interior do pas com linhas de telgrafo,

    smbolo da integrao do territrio nos modernos quadros de funcionalidade e

    administrao.70

    Conforme Csar Guilhermino sustenta, a preocupao com o espao interior

    relata-se conjuntura que envolve a Guerra do Paraguai (1864 1870), o movimento

    abolicionista, a propaganda republicana, as ondas imigratrias e os projetos de expanso

    da malha ferroviria e martima para as zonas rurais, numa preocupao de afirmar e

    garantir os limites do territrio nacional.71

    Projeto de construo de nao moderna, de

    civilizao, que necessitava tanto do empreendimento da engenharia quanto uma

    engenharia simblica, que construsse a identidade da nao. 72

    Euclides da Cunha forma-se em 8 de janeiro de 1892, concluindo o curso de

    Estado-Maior e engenharia militar, da ento Escola Superior de Guerra, sendo com isso

    promovido ao posto de tenente, o ltimo de sua carreira militar. Recebe com a

    68

    SEVCENKO, Nicolau. Literatura como misso: tenses sociais e criao cultural na Primeira

    Repblica. 2.ed. So Paulo : Companhia das Letras, 2003.

    69 Sobre a modernizao brasileira no perodo, cf. GRAHAM, Richard. Britain and the onset of

    modernization in Brazil 1850-1914. Cambridge: At the Univ. Press, 1968.

    70 Cf. CESAR, Guilhermino. A viso prospectiva de Euclides da Cunha. In: CESAR, Guilhermino;

    SCHULER, Donaldo; CHAVES, Flavio Loureiro. Euclides da Cunha. Porto Alegre: UFRS, 1966.

    71 Ibidem, p.15

    72 GRAHAM, Richard. Op. Cit.

  • 33

    formatura o diploma de bacharel em matemtica e cincias fsicas e natural, de onde o

    vocativo de Doutor que iria sustentar ao longo da vida. Participa como engenheiro

    militar da Revolta da Armada, no Rio de Janeiro, em 1893, construindo trincheiras e

    fortificaes na orla martima. Permanece trabalhando como engenheiro para o exercito

    at 1895, quando obtm licena, abandonando a carreira militar com a qual se sentia

    desconfortvel. Assume no mesmo ano o posto de engenheiro na Superintendncia de

    Obras Pblicas de So Paulo. Neste cargo, trabalhar supervisionando obras, viajando

    muito pelo interior do estado.73

    Dizia-se de si prprio nas cartas aos amigos um

    engenheiro errante, pois se sentia transeunte entre uma obra e outra, vagando pelas

    estradas do estado de So Paulo.74

    Euclides da Cunha trabalhava como engenheiro quando irrompeu a o conflito

    em Canudos em 1896. Com a derrota da terceira expedio comandada pelo coronel

    Moreira Cesar, que morrera abatido por uma bala, o conflito toma propores maiores,

    repercutindo na imprensa do Rio de Janeiro e So Paulo. Com a mobilizao de foras

    nacionais para a composio da quarta expedio, os peridicos passam a acompanhar o

    dirio do campo de batalha.75

    Fervilhavam rumores sobre uma conspirao monarquista,

    por trs do grupo de Antnio Conselheiro. Era um boato que se espalhava, explicando a

    derrota das expedies enviadas e a resistncia inflexvel que encontrava a quarta

    expedio, a mais bem armada e provida de praas at ento.

    Nesse ambiente, Euclides publica em 14 de maro e 17 de julho de 1897 um

    artigo em duas partes, em O Estado de So Paulo, intitulado A nossa Vendia. Era

    seu primeiro pronunciamento pblico sobre a guerra que acontecia nos sertes da Bahia.

    Neles podemos ver o prottipo do livro que escreveria aps o fim do conflito, entre

    1897 e 1902. De fato, embora fossem escritos tendo mo informaes parcas, manter-

    se- em Os Sertes a mesma postura discursiva, o mesmo interesse temtico sobre a

    terra e o homem que nela habita, girando em torno do conflito que ocorreu, em uma

    semelhante tese histrica - Canudos entrava para a Histria, e o embate entre o jaguno

    73

    VENTURA, Roberto. Op. Cit. p. 290-291.

    74 CUNHA, Euclides da. Correspondncia Ativa. 1890 1909. In: Op. Cit. v.II, 2009. pp. 771 1112.

    75 Cf. GALVO, Walnice Nogueira. No calor da hora: a guerra de Canudos nos jornais: 4. Expedio. 3.

    ed. So Paulo: Atica, 1994.

  • 34

    e a Repblica era o embate entre a barbrie e civilizao. Em Os Sertes, contudo,

    mudar-se-ia o sentido narrativo, do triunfo para a tragdia da histria.

    Graas a esses dois artigos, e aos promissores conhecimentos que o engenheiro

    detinha quanto a natureza da terra a explicar a natureza da guerra, foi escalado por Jlio

    Mesquista, diretor de O Estado de So Paulo, para cobrir a 4 expedio contra

    Canudos. nomeado, para desencarregar tal funo, adido do Estado-Maior do ministro

    da Guerra, marechal Carlos Machado de Bittencourt, em 31 de julho de 1897. Parte do

    Rio de Janeiro no vapor Esprito Santo rumo a Salvador, aonde observa a

    movimentao que a guerra provoca na cidade e escreve suas primeiras reportagens.

    Nelas vemos ainda o tom laudatrio da Repblica, arroubos de patriotismo e exaltao

    de um ideal que se representa numa heroicidade atribuda aos soldados convalescentes,

    sacrificados ao futuro da nao. As grandes vtimas obscuras do dever76, soldados

    mutilados que retornam da luta, anima-os, porm, heris adventcios, o entusiasmo de

    se guerrear em nome da ptria, numa corrente de mrtires que chegam e de valentes

    que avanam, em dias que lembram as lutas da Independncia.77 Nestas expresses

    reportava ao jornal as notcias da guerra. Euclides planejava, de antemo, recolher

    material para um livro com o ttulo de A nossa Vendia. O projeto que se tornaria Os

    Sertes. O conflito transmudava-se em um smbolo histrico, a significar o sentido

    assumido na histria da constituio da nao. O engenheiro empolgava-se com o

    testemunho de tal processo, narrando ao jornal de So Paulo e seu leitores os fatos do

    grande acontecimento.78

    De Salvador, parte aps esperar a organizao das tropas com as quais seguiria,

    para Monte Santo, em 30 de agosto; de Monte Santo segue em 13 de setembro a

    Canudos, aonde chega na tarde do dia 16 de setembro. Euclides passa 18 dias na frente

    de batalha, observando a ltima fase da guerra, quando o arraial de Canudos j estava

    parcialmente tomado, e os sertanejos ofereciam ainda resistncia at o completo

    esgotamento. Ao observar a guerra acontecendo diante de seus olhos, em um povoado

    de casas de pau-a-pique e contra gente em extrema condio de misria, presenciou a

    76

    Reportagem enviada da Bahia em 12 de agosto de 1897. In: CUNHA, Euclides da. Obra Completa.

    V.II, 2.ed. Rio de Janeiro : Nova Aguilar, 2009. p. 511.

    77 Reportagem enviada da Bahia em 10 de agosto de 1897. In: CUNHA, Euclides da. Op. Cit v. II. pp.

    507 - 508.

    78 CUNHA, Euclides da. Canudos Dirio de uma Expedio. In: Op. Cit, v. II, 2009. pp. 495 - 602.

  • 35

    prtica do exrcito republicano de degolar brutalmente os prisioneiros, num desenlace

    de barbrie pelos supostos civilizados portadores do grande ideal de uma repblica feliz.

    Nessas condies, vivenciando a guerra, entre exploses de granadas e estampidos de

    fuzis, Euclides da Cunha muda seu jeito de entender a guerra.

    O momento que ocorre a mudana de um tom exclusivamente laudatrio em

    favor do triunfo de uma Repblica idealizada pelas vias da civilizao para uma viso

    trgica que suspende seu otimismo na humanidade assumindo uma voz proftica que

    anuncia a runa de todos, pode ser observada na Caderneta de Campo de Euclides, dirio

    pessoal, em que recolhia dados e anotava causos que se destinava a compor o futuro

    livro. No fulgor da batalha, escrevia em minutos de descanso Euclides sobre os fatos

    que conseguia compor em ordem. Dizia: tudo incompreensvel nesta campanha: a

    batalha continuava, mais tenaz e mortfera, se possvel.79 As investidas do exrcito

    republicano eram resistidas pelos jagunos, criando uma situao que no era possvel

    compreender - como tamanho poder destruidor mobilizado, em contas de canhes,

    baionetas e soldados, no arrasava Canudos de vez?. Nesta ocasio trs estampidos

    mais violentos que a exploso das granadas fizeram-se ouvir no ponto em que mais

    tenaz se mostrava a resistncia do inimigo prximo a latada80, contava Euclides na

    caderneta. Do seu posto de observao, vivenciava a luta, causando-lhe forte impresso,

    que se transferia para suas anotaes: Mais violenta, mais forte, mais mortfera, se

    possvel prosseguia a batalha.81 A histria que alevantava a Repblica guerra era

    encarada frente morte do homem, tolhido a bala. Observando a investida de um

    batalho, atentou para o gesto de um capito, que valente e dedicado tirou o chapu

    alevantando um viva ardente e entusistico Republica!.82 Donde extraia do ato uma

    considerao sobre o dispndio da vida a favor da guerra: e essa saudao custou-lhe a

    vida e a vida escapou-se-lhe do peito atravessado por uma bala precisamente no

    momento em que a sua alma sincera e nobilssima ansiava pela existncia eterna da

    Repblica.83

    79

    CUNHA, Euclides da. Caderneta de Campo. In: Op. Cit, v. II, 2009. p. 631.

    80 Idem.

    81 Ibidem, p. 632

    82 Idem.

    83 Idem..

  • 36

    Nesse ambiente, atravessado por soldados feridos, inimigos capturados e

    degolados entre o som de balas e estampidos de granadas, Euclides incorre numa

    reflexo sobre a guerra e seus horrores. Ponto, pois, de mutao e de reavaliao de seus

    ideais sobre a Repblica e sua causa, em nome da qual e a favor da qual se

    disponibilizara como cronista da guerra, detrator dos brbaros sertanejos, e homem de

    cincia, com que contribuiria para um futuro melhor. , desta forma, notrio o seguinte

    trecho, que por si descreve a sua viso, em aspecto tenebroso, inserindo a guerra em

    uma referncia ao inferno de Dante:

    Quando, 1 hora da tarde, da porta da Farmcia contemplei o quadro

    comovedor e extraordinrio achei pequeno o gnio sombrio e formidvel de

    Dante. Porque h uma coisa que ele no soube pintar e que eu vi naquela

    sanga estreitssima, abafada e ardente, mais lgubre que o mais lgubre vale

    do Inferno: a blasfmia orvalhada de lgrimas, rugindo nas bocas

    simultaneamente com os gemidos de dor e os soluos extremos da morte...

    Feridas de toda sorte, em todos os lugares, bizarras e extravagantes muitas,

    dolorosas todas, progredindo numa continuidade perfeita dos pontos apenas

    perceptveis das Mannlichers aos crculos maiores deixados pelas

    Comblains84

    , aos rombos largos e profundo das balas grosseiras dos trabucos

    Enchia o ar um coro sinistro de imprecaes, gemidos, queixas e pedidos. Alguns contorciam-se sob o ntimo acleo de dores profundas, arrastavam-se

    outros disputando um resto de sombra das barracas, quedavam-se outros,

    imveis, as mos cruzadas sobre a fronte, resguardando-a do sol, imveis,

    num estoicismo heroico, numa indiferena mrbida pelo sofrimento e pela

    vida. No fundo das barracas, arrimados sobre os cotovelos os antigos doentes,

    os feridos de combates anteriores olhavam assustados para os novos

    companheiros de desdita, concorrentes s mesmas horas de desesperana e

    martrio. Ao fundo, deitados sobre o cho duro, francamente batidos pelo sol,

    alinhavam-se trs cadveres o coronel Tupi, o major Queirs e o alferes Raposo.

    Felizes os que no presenciaram nunca um tal quadro. Quando eu voltei,

    percorrendo lentamente, sob os ardores da cancula, o vale tortuoso e longo

    que leva ao acampamento, senti a mesma mgoa indefinvel, o mesmo

    desapontamento que deve sentir um nababo opulento expulso bruscamente

    dos sales dourados em que nasceu e obrigado a pedir uma esmola na praa

    pblica.

    Quanto ideal ali deixei perdido, naquela sanga maldita e quanta aspirao l

    ficou, morta, absolutamente extinta, compartindo o mesmo destino dos que

    agonizavam cheios de poeira e sangue.85

    De uma posio inicial como defensor dos atos praticados em nome do ideal de

    Repblica, passa-se a outro, mais pessimista, em que o fato da guerra situado numa

    reflexo dantesca sobre o destino da humanidade sobre a face da terra, tendo em

    84

    Mannlicher fuzil de fabricao alem; Comblain fuzil de fabricao belga. Armas modernas adquiridas pelo exercito brasileiro, empregadas na guerra.

    85 Caderneta de Campo. In: CUNHA, Euclides da. Op. Cit. v. I.. p P.632-633.

  • 37

    considerao a omisso de um criador, num mundo regido pela lei do mais forte ou da

    arma mais poderosa.86

    Em Os Sertes, o narrador, pela palavra, assume os trajes de um

    pantommico a copiar o narrador absoluto da existncia, o demiurgo supremo da histria

    chamada vida, e num rogo de perdo pela fatalidade de ser homem, a percorrer um

    longo vale de tormentos, com tarefa de contar a criao e a queda, d vazo a uma

    esperana redentiva a ser alcanada no fim da histria.87

    Tal posio deve ser mantida em mente. Ser analisada nos captulos seguintes

    a maneira como se insere na narrativa de Os Sertes a reverso do triunfo para a

    decadncia, crucial para entender o que Euclides nomeava de vingana, as vezes

    chamava justia, que fazia com seu livro aos sertanejos de Canudos, estropiados pela

    fora de um exercito racionalmente organizado pelo estado-nacional que seguia o

    caminho da Histria.

    Antes da derrocada do arraial de Canudos, Euclides da Cunha retirou-se do

    campo de batalhas. O biografo Roberto Ventura acredita que por motivo de doena, que

    o forou a voltar para Salvador, donde retornou ao Rio de Janeiro. Retirando-se do

    trabalho, por licena mdica, instala-se na fazenda de seu pai, em Descalvado, interior

    de So Paulo. Nesse retiro interiorano inicia a escrita de Os Sertes, num trabalho que

    duraria at os fins de 1901, data com que subscreve a Nota Introdutria do livro.

    Durante a composio do livro, em 1898, o autor retornou ao trabalho como engenheiro

    na Superintendncia de Obras Pblicas. Sua tarefa era a reconstruo de um ponte

    metlica que havia cado, em So Jos do Rio Pardo, interior de So Paulo. 88

    86

    A referncia a Hobbes na nota Introdutria de Os Sertes remete a frase o homem o lobo do homem; Ludwig Gumplowicz, socilogo judeu, que fez carreira na ustria, entendia a luta entre raas, no qual o poder do mais forte prevalece, como mvel da histria.

    87 Tanto Berthold Zilly como Roberto Ventura noticiam a concepo trgica que caracteriza a histria

    para Euclides da Cunha a narrativa histrica funciona como drama trgico, cujas cenas se apresentam como num teatro ou palco (Ventura), transfigurando o sertanejo de bandido a heri numa apoteose quase

    milagrosa (Zilly). Cf. VENTURA, Roberto. Euclides da Cunha no Vale da Morte. In: FERNANDES,

    Rinaldo de. O clarim e a Orao. So Paulo : Gerao Editorial, 2002. p. 451. ZILLY, Berthold. Um

    depoimento brasileiro para a Histria Universal: traduzibilidade e atualidade de Euclides da Cunha. In:

    Humboldt (Bonn), 72: 8-12, 1996. p.12. e ZILLY, Berthold. A guerra como painel e espetculo. A

    historia encenada em Os Sertes. In: Histria, Cincias, Sade: Manguinhos (Rio de Janeiro), v. 1, 1:

    13-37, 1997. Sobre o serto em Euclides da Cunha, cf. GALVO, Walnice Nogueira. Anseios de

    Amplido. In: Euclidiana. Ensaios sobre Euclides da Cunha. So Paulo Companhia das Letras, 2009.

    p.59

    88 VENTURA, Roberto. Op. Cit. p. 292.

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    Segundo Roberto Ventura, as condies do trabalho de engenheiro durante a

    reconstruo da ponte incorporam-se na escrita do livro. Por exemplo, na questo

    geolgica, enquanto Euclides perscrutava o leito do Rio Pardo para encontrar terreno

    grantico slido, ao mesmo tempo descrevia o sertanejo como rocha viva da

    nacionalidade. Tal como a formao geolgica de camadas sucessivas de material

    sedimentrio a constituir a dura unidade rochosa, a formao de diferentes estratos

    raciais constituiria na arquitetura argumentativa de Os Sertes a unidade racial do tipo

    brasileiro por excelncia, encontrado nos sertes do pas. Tal como uma escavao

    tcnica do solo, perscrutao do substrato profundo a fornecer alicerce para a

    construo, o estudo de Os Sertes procedia a decifrao dos elementos constitutivos

    histricos e biolgicos, encontrados no interior, no mago do territrio, que garantiam

    ao pas sua definio enquanto povo e seu futuro enquanto nao.89

    O trabalho com metal, ao fundido e rebitado, tcnica essencialmente provinda

    da revoluo industrial, possibilita uma arquitetura nela baseada, que empregada tanto

    em edifcios como em pontes e carrilhes, em um estilo tpico dos meados do sculo

    XIX que encontraria na belle poque nas fachadas e interiores art noveau sua grande