Upload
phungliem
View
237
Download
0
Embed Size (px)
Citation preview
ENCICLOPÉDIA JURÍDICA DA PUCSP DIREITO ADMINISTRATIVO E CONSTITUCIONAL
0
COORDENAÇÃO GERAL
Celso Fernandes Campilongo
Alvaro de Azevedo Gonzaga
André Luiz Freire
ENCICLOPÉDIA JURÍDICA DA PUCSP
TOMO 2
DIREITO ADMINISTRATIVO E
CONSTITUCIONAL
COORDENAÇÃO DO TOMO 2
Vidal Serrano Nunes Júnior
Maurício Zockun
Carolina Zancaner Zockun
André Luiz Freire
ENCICLOPÉDIA JURÍDICA DA PUCSP DIREITO ADMINISTRATIVO E CONSTITUCIONAL
1
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA
DE SÃO PAULO
FACULDADE DE DIREITO
DIRETOR
Pedro Paulo Teixeira Manus
DIRETOR ADJUNTO
Vidal Serrano Nunes Júnior
ENCICLOPÉDIA JURÍDICA DA PUCSP | ISBN 978-85-60453-35-1
<https://enciclopediajuridica.pucsp.br>
CONSELHO EDITORIAL
Celso Antônio Bandeira de Mello
Elizabeth Nazar Carrazza
Fábio Ulhoa Coelho
Fernando Menezes de Almeida
Guilherme Nucci
José Manoel de Arruda Alvim
Luiz Alberto David Araújo
Luiz Edson Fachin
Marco Antonio Marques da Silva
Maria Helena Diniz
Nelson Nery Júnior
Oswaldo Duek Marques
Paulo de Barros Carvalho
Ronaldo Porto Macedo Júnior
Roque Antonio Carrazza
Rosa Maria de Andrade Nery
Rui da Cunha Martins
Tercio Sampaio Ferraz Junior
Teresa Celina de Arruda Alvim
Wagner Balera
TOMO DE DIREITO ADMINISTRATIVO E CONSTITUCIONAL | ISBN 978-85-60453-37-5
Enciclopédia Jurídica da PUCSP, tomo II (recurso eletrônico)
: direito administrativo e constitucional / coord. Vidal Serrano Nunes Jr. [et al.] - São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017
Recurso eletrônico World Wide Web (10 tomos) Bibliografia.
1.Direito - Enciclopédia. I. Campilongo, Celso Fernandes. II. Gonzaga, Alvaro. III. Freire,
André Luiz. IV. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
ENCICLOPÉDIA JURÍDICA DA PUCSP DIREITO ADMINISTRATIVO E CONSTITUCIONAL
2
HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL
Lenio Streck
INTRODUÇÃO
A hermenêutica jurídica, analisada a partir da matriz que venho denominando
Crítica Hermenêutica do Direito, tem como ponto de partida o estudo da interpretação
jurídica, levando em consideração que, na medida em que o Poder Judiciário aplica o
Direito constituído sob as bases de um Estado Democrático de Direito, não tem
legitimidade para que interprete o Direito conforme suas preferências políticas, morais ou
econômicas, mas encontrar a resposta adequada à Constituição. Não há espaço, em uma
democracia, para decisões arbitrárias. Desse modo, a questão da hermenêutica jurídica
está intimamente relacionada com uma Teoria da Decisão Judicial preocupada em
preservar as condições intersubjetivas pelas quais se permita chegar a melhor
interpretação do Direito. Assim, a Crítica Hermenêutica do Direito se desenvolve através
de uma imbricação entre o pensamento de Hans-Georg Gadamer e Ronald Dworkin,
preocupando-se em especial com os problemas da discricionariedade judicial da maneira
como se mostram no país, na busca da construção de uma teoria que possibilite apontar
qual a interpretação adequada do Direito, ou, em outras palavras, o modo como os juízes
devem decidir.
SUMÁRIO
Introdução ......................................................................................................................... 2
1. Hermenêutica constitucional ................................................................................... 2
Referências ..................................................................................................................... 23
1. HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL
Partindo da concepção de que hermenêutica não é método e que não existem
hermenêuticas “regionais”, trabalhar com a concepção de hermenêutica constitucional
ENCICLOPÉDIA JURÍDICA DA PUCSP DIREITO ADMINISTRATIVO E CONSTITUCIONAL
3
tem apenas o sentido de situar com mais especificidade a “coisa” Constituição. Assim,
hermenêutica não é algo que operamos (apenas) para uma determinada finalidade ou
somente para alguns momentos. Ao contrário, faz parte do modo como somos. Gadamer
explica que a ideia de verdade nas ciências humanas tão apegada ao método estaria
equivocada, uma vez que Hermenêutica é filosófica e não (metodo)lógica. Nesta senda o
filósofo afirma que na leitura do maior de todos os “livros” é possível demonstrar a tensão
e a solução que estruturam o compreender e a compreensibilidade, talvez também a
compreensão, e nesse sentido não se pode duvidar da universalidade do problema
hermenêutico. Não se trata de um tema secundário. A hermenêutica não é uma mera
disciplina auxiliar das ciências românticas do espírito.1
A linguagem não sendo um instrumento, portanto, não sendo uma terceira coisa
entre o sujeito e o objeto, mas sim a condição de possibilidade de acesso ao mundo (da
vida), também aponta para a universalidade do labor hermenêutico, que, por isso, não
poderia/deveria ser pensado de forma regionalizada nem limitada a textos de determinada
natureza. Do mesmo modo, A universalidade da hermenêutica é confirmada pelo fato de
que qualquer compreensão do ser sobre qual os intérpretes chegam a concordar ocorre na
linguagem, e a compreensão da linguagem requer interpretação e aplicação, ou seja,
hermenêutica.2
Dito isto, sempre é relevante lembrar que a palavra hermenêutica deriva do grego
hermeneuein, adquirindo vários significados no curso da história. Por ela, busca-se
traduzir para uma linguagem acessível aquilo que não é compreensível. Daí a ideia de
Hermes, um mensageiro divino, que transmite – e, portanto, esclarece – o conteúdo da
mensagem dos deuses aos mortais. Ao realizar a tarefa de hermeneus, Hermes tornou-se
poderoso. Na verdade, nunca se soube o que os deuses disseram; só se soube o que
Hermes disse acerca do que os deuses disseram. Trata-se, pois, de uma (inter)mediação.
Desse modo, a menos que se acredite na possibilidade de acesso direto às coisas (enfim,
à essência das coisas), é na metáfora de Hermes que se localiza toda a complexidade do
problema hermenêutico. Trata-se de traduzir linguagens e coisas atribuindo-lhes um
determinado sentido.
1 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método II, p.271. 2 SCHMIDT, Lawrence K. Hermenêutica, p. 180.
ENCICLOPÉDIA JURÍDICA DA PUCSP DIREITO ADMINISTRATIVO E CONSTITUCIONAL
4
Na história moderna, tanto na hermenêutica teológica como na hermenêutica
jurídica, a expressão tem sido entendida como arte ou técnica (método), com efeito
diretivo sobre a lei divina e a lei humana. O ponto comum entre a hermenêutica jurídica
e a hermenêutica teológica reside no fato de que, em ambas, sempre houve uma tensão
entre o texto proposto e o sentido que alcança a sua aplicação na situação concreta, seja
em um processo judicial ou em uma pregação religiosa. Essa tensão entre o texto e o
sentido a ser atribuído ao texto coloca a hermenêutica diante de vários caminhos, todos
ligados, no entanto, às condições de acesso do homem ao conhecimento acerca das coisas.
Assim, a) demonstra-se que é possível colocar regras que possam guiar o hermeneuta no
ato interpretativo, mediante a criação, p. ex., de uma teoria geral da interpretação; b)
reconhece-se que a pretensa cisão entre o ato do conhecimento do sentido de um texto e
a sua aplicação a um determinado caso concreto não são de fato atos separados, ou c)
reconhece-se, finalmente, que as tentativas de colocar o problema hermenêutico a partir
do predomínio da subjetividade do intérprete ou da objetividade do texto não passaram
de falsas contraposições fundadas no metafísico esquema sujeito-objeto.
A viragem hermenêutico-ontológica, provocada por Sein Und Zeit (1927) de
Martin Heidegger, e a publicação, anos depois, de Wahrheit Und Methode (1960), por
Hans-Georg Gadamer, foram fundamentais para um novo olhar sobre a hermenêutica
jurídica. A partir dessa viragem ontológica (ontologische Wendung), inicia-se o processo
de superação dos paradigmas metafísicos objetivista aristotélico-tomista e subjetivista
(filosofia da consciência), os quais, de um modo ou de outro, até hoje têm sustentado as
teses exegético-dedutivistas-subsuntivas dominantes naquilo que em sendo denominado
de hermenêutica jurídica.
A hermenêutica jurídica praticada no plano da cotidianidade do Direito deita
raízes na discussão que levou Gadamer a fazer a crítica ao processo interpretativo
clássico, que entendia a interpretação como sendo produto de uma operação realizada em
partes (subtilitas intelligendi, subtilitas explicandi,subtilitas applicandi, isto é, primeiro
compreendo, depois interpreto, para só então aplicar). A impossibilidade dessa cisão
implica a impossibilidade de o intérprete retirar do texto algo que o texto possui-em-si-
mesmo, numa espécie de Auslegung, como se fosse possível reproduzir sentidos; ao
contrário, para Gadamer, fundado na hermenêutica filosófica, o intérprete sempre atribui
sentido (Sinngebung). O acontecer da interpretação ocorre a partir de uma fusão de
ENCICLOPÉDIA JURÍDICA DA PUCSP DIREITO ADMINISTRATIVO E CONSTITUCIONAL
5
horizontes, porque compreender é sempre o processo de fusão dos supostos horizontes
para si mesmo. Veja-se que, já desde sempre, a hermenêutica exsurgida a partir da invasão
da filosofia pela linguagem coloca em cheque a cisão dual-estrutural que mantém o
positivismo, isto é, de que existam descrições e prescrições. Na descrição já existe
prescrição. O olhar externo do positivismo exclusivo, para falar apenas do “positivismo
duro” já vem impregnado por aquilo que o positivismo quer evitar: a impregnação do
direito pela moral. Assim, ter uma posição que exclua a moral do direito já é, por si, uma
posição moral.
Tudo isto porque temos uma estrutura do nosso modo de ser no mundo, que é a
interpretação. Podemos dizer, então, que estamos condenados a interpretar. O horizonte
do sentido nos é dado pela compreensão que temos de algo. Compreender é um
existencial, que é uma categoria pela qual o homem se constitui. A faticidade, a
possibilidade e a compreensão são alguns desses elementos existenciais. É no nosso modo
da compreensão enquanto ser no mundo que exsurgirá a norma, produto da síntese
hermenêutica, que se dá a partir da faticidade e historicidade do intérprete.
A superação da hermenêutica clássica – ou daquilo que tem sido denominado de
hermenêutica jurídica como técnica no seio da doutrina e da jurisprudência praticadas
cotidianamente –, implica admitir que há uma diferença entre o texto jurídico e o sentido
desse texto, isto é, que o texto não carrega, de forma reificada, o seu sentido (a sua
norma). As palavras não “carregam” o seu próprio sentido ou seu sentido próprio. Trata-
se de entender que entre texto (lei) e norma (sentido da lei) não há uma equivalência e
tampouco uma total autonomização. Entre texto e norma há, sim, uma diferença, que é
ontológica, isto porque – e aqui a importância dos dois teoremas fundamentais da
hermenêutica jurídica-filosófica – o ser é sempre o ser de um ente e o ente só é no seu
ser. O ser existe para dar sentido aos entes. Por isso há uma diferença ontológica (não
ontológico-essencialista) entre ser e ente, tese que ingressa no plano da hermenêutica
jurídica para superar, tanto o problema da equiparação entre vigência e validade, como o
da total cisão entre texto e norma, resquícios de um positivismo jurídico que convive com
uma total discricionariedade no ato interpretativo. A incorporação da diferença ontológica
da fenomenologia hermenêutica foi incorporada pela Crítica Hermenêutica do Direito
(ver Lições de Crítica Hermenêutica do Direito, segunda edição, pela Livraria do
Advogado) para melhor podermos compreender a diferença entre Lei e Direito. Em
ENCICLOPÉDIA JURÍDICA DA PUCSP DIREITO ADMINISTRATIVO E CONSTITUCIONAL
6
Hermenêutica jurídica e(m) crise (décima primeira edição, pela Livraria do Advogado)
essa questão está explicitada amiúde.
Nesse sentido, a afirmação de que o “intérprete sempre atribui sentido
(Sinngebung) ao texto”, nem de longe pode significar a possibilidade de este estar
autorizado a atribuir sentidos de forma arbitrária aos textos, como se texto (lei) e norma
(sentido atribuído) estivessem separados (e, portanto, tivessem existência autônoma).
Como bem diz Gadamer, quando o juiz pretende adequar a lei às necessidades do
presente, tem claramente a intenção de resolver uma tarefa prática (veja-se, aqui, a
importância que Gadamer dá ao programa aristotélico de uma praktische Wissenschaft).
Isso não quer dizer, de modo algum, que sua interpretação da lei seja uma tradução
arbitrária.
Portanto, ficam afastadas todas as formas de decisionismo, discricionariedade e
teses como “a interpretação do Direito é um ato de vontade”. O fato de não existir um
método que possa dar garantia a correção do processo interpretativo – denúncia presente,
aliás, já no oitavo capítulo da Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen – não autoriza o
intérprete a escolher o sentido que mais lhe convém, o que seria dar azo à
discricionariedade, característica do positivismo. Sem textos, não há normas. A vontade
e o conhecimento do intérprete não permitem a atribuição arbitrária de sentidos, e
tampouco uma atribuição de sentidos arbitrária. Afinal, e a lição está expressa em
Verdade e Método (Wahrheit und Methode), se queres dizer algo sobre um texto, deixe
que o texto te diga algo.
Dito de outro modo, podemos fazer uma relação entre a concepção clássica da
metafísica com o “segundo nível” da Teoria Pura de Kelsen. Nesses paradigmas o
sujeito/intérprete está aprisionado por estruturas das quais não lhe resta nada a se não ser
aceitar as essências, no primeiro caso, e a descrição das normas jurídicas como uma forma
de fazer ciência, no segundo. A aproximação se dá pelo fato de que o sujeito está preso a
determinada estrutura, sem qualquer tipo de interferência sobre ela. No entanto, para o
Direito, a construção deste “segundo nível” acaba esquecendo dos problemas práticos,
como a discricionariedade interpretativa dos juízes. Enquanto o “cientista” descreve o
Direito – aqui o resquício da metafísica clássica objetivista –, o juiz o aplica conforme
sua vontade, o que implica a possibilidade de lançar mão de argumentos morais, políticos,
pessoais, etc. (Kelsen chama a isso, efetivamente, de ato de vontade). Essa problemática
ENCICLOPÉDIA JURÍDICA DA PUCSP DIREITO ADMINISTRATIVO E CONSTITUCIONAL
7
se estende aos positivismos pós-hartianos, em especial os “positivismos duros”, que
cindem moral e direito a partir de um pretenso ato descritivo (ato externo), deixando o
ato de aplicação do direito a cargo de raciocínios práticos, espaço inexorável do poder
discricionário, seja o nome que se dê a esse ato subjetivista.
Por tudo isso, não basta dizer que o Direito é concretude, e que cada caso é um
caso, como é comum na linguagem dos juristas. Afinal, é mais do que evidente que o
Direito é concretude e que é feito para resolver casos particulares. O que não é evidente
é que o processo interpretativo é applicatio, entendida no sentido da busca da coisa
mesma (Sache selbst), isto é, do não esquecimento da diferença ontológica (de novo,
sempre apontando a impossibilidade de se cindir descrição da prescrição). O Direito é
parte integrante do próprio caso e uma questão de fato é sempre uma questão de Direito
e vice-versa, Hermenêutica não é filologia. É impossível cindir a compreensão da
aplicação. Uma coisa é deduzir de um topos ou de uma lei o caso concreto; outra é
entender o Direito como aplicação: na primeira hipótese, estar-se-á entificando o ser; na
segunda, estar-se-á realizando a aplicação de índole hermenêutica, a partir da ideia de que
o ser é sempre ser-em (in Sein).
Assim, embora os juristas – nas suas diferentes filiações teóricas – insistam em
dizer que a interpretação deve se dar sempre em cada caso, tais afirmações, infelizmente,
não encontram comprovação na cotidianidade das práticas jurídicas. Na verdade, ao
construírem pautas gerais, conceitos lexicográficos, verbetes doutrinários e
jurisprudenciais (hoje existe uma verdadeira fetichização em torno de “precedentes”) ou
súmulas aptas a resolver casos futuros, os juristas sacrificam a singularidade do caso
concreto em favor dessas espécies de pautas gerais, fenômeno, entretanto, que não é
percebido no imaginário jurídico. Daí a indagação de Gadamer: existirá uma realidade
que permita buscar com segurança o conhecimento do universal, da lei, da regra, e que
encontre aí a sua realização? Não é a própria realidade o resultado de sua interpretação?
A rejeição de qualquer possibilidade de subsunções ou deduções aponta para o próprio
cerne de uma hermenêutica jurídica inserida nos quadros do pensamento pós-metafísico.
Trata-se de superar a problemática dos métodos, considerados pelo pensamento
exegético-positivista como portos seguros para a atribuição dos sentidos. Compreender
não é produto de um procedimento (método) e não é um modo de conhecer. Compreender
ENCICLOPÉDIA JURÍDICA DA PUCSP DIREITO ADMINISTRATIVO E CONSTITUCIONAL
8
é, sim, um modo de ser, porque a epistemologia é substituída pela ontologia da
compreensão.
Uma hermenêutica jurídica capaz de intermediar a tensão inexorável entre o
texto e o sentido do texto não pode continuar a ser entendida como uma teoria ornamental
do Direito, que sirva tão-somente para colocar capas de sentido aos textos jurídicos. No
interior da virtuosidade do círculo hermenêutico, o compreender não ocorre por dedução.
Consequentemente, o método (o procedimento discursivo) sempre chega tarde, porque
pressupõe saberes teóricos separados da realidade.
Antes de argumentar, o intérprete já compreendeu. Esta é uma conquista da
Critica Hermenêutica do Direito (ver Lições de Crítica Hermenêutica do Direito,
segunda edição, pela Livraria do Advogado), pela qual não se interpreta para
compreender, mas, sim, compreende-se para interpretar. A compreensão antecede, pois,
qualquer argumentação. Ela é condição de possibilidade. Consequentemente, quando as
teorias analíticas (como o positivismo) dizem que o teórico descreve e o juiz-aplicador
faz raciocínios práticos, ali está nitidamente posta o esquecimento da diferença
ontológica. Aliás, essa falha filosófica acaba sendo repetida como um vício profissional:
as petições dos advogados sempre começam expondo os fatos, para só depois
“encaixarem” o Direito.
Do mesmo modo, é equivocado afirmar, por exemplo, que o juiz, primeiro
decide, para só depois fundamentar; na verdade, ele só decide porque já encontrou, na
antecipação de sentido, o fundamento (a justificação). Fundamento e finalidade não são
a mesma coisa. Caso contrário, estaríamos diante do sacrifício de qualquer intermediação
linguística, tendo o intérprete, assim, “acesso direito aos entes, às coisas”. A “busca da
verdade real” sustentada por parcela da comunidade jurídica espelha claramente esse
atravessamento epistêmico, que anula a linguagem. A “verdade real” acaba sendo um
sonho ontológico-essencialista dos juristas.
Todavia, somente é possível compreender isso a partir da admissão da tese de
que a linguagem não é um mero instrumento ou terceira coisa que se interpõe entre um
sujeito (cognoscente) e um objeto (cognoscível). O abismo gnosiológico que separa o
homem das coisas e da compreensão acerca de como elas são, não depende – no plano da
hermenêutica jurídico filosófica (e, portanto, da Crítica Hermenêutica do Direito) – de
ENCICLOPÉDIA JURÍDICA DA PUCSP DIREITO ADMINISTRATIVO E CONSTITUCIONAL
9
pontes que venham ser construídas - paradoxalmente - depois que a travessia (antecipação
de sentido) já tenha sido feita. É o que denomino de “aporia da ponte”.
Daí a importância da pré-compreensão (Vorverständnis), que passa ao patamar
à de condição de possibilidade nesse novo modo de olhar a hermenêutica jurídica. Nossos
pré-juízos que conformam com nossa pré-compreensão não são jamais arbitrários. Pré-
juízos não são inventados; eles nos orientam no emaranhado da tradição, que pode ser
autêntica ou inautêntica. Mas isso não depende da discricionariedade do intérprete e
tampouco de um controle metodológico. O intérprete não domina a tradição. Os sentidos
que atribuirá ao texto não dependem de sua vontade, por mais que assim queiram os
adeptos do esquema representacional sujeito-objeto. E se o intérprete impuser sua
vontade, já não haverá hermenêutica. Não haverá compreensão. Haverá uma extorsão de
sentido. Evidente que pré-compreensão não deve ser confundida com subjetivismo,
ideologia, opinião pessoal, etc. Isso seria confundir a pré-compreensão com preconceitos
no sentido ruim da palavra.
Uma das preocupações fundamentais da hermenêutica filosófica e, por
consequência, da CHD, é enfrentar as críticas do risco do relativismo. Essas acusações se
dão pela errônea compreensão de que, contra o formalismo dedutivista do positivismo
clássico, bastaria colocar qualquer coisa em seu lugar, como fizeram, por exemplo, as
diversas teorias voluntaristas no final do século XIX e no início do século XX, chegando
até mesmo ao século XXI, como se pode ver pelas posturas neoconstitucionalistas. Longe
disso, a hermenêutica é uma postura não-positivista ou, se quisermos, pós-positivista. A
teoria hermenêutica não é uma mera especificação para o Direito de propostas
procedentes de um plano filosófico mais geral, lembra bem Rodrigues Puerto (2011). E
Ulfried Neumann (1984) e Ulrich Schroth (1989) também advertem para a agregação que
o jurídico fez à hermenêutica filosófica. Há, pois, uma especificidade nisso: o texto
jurídico. A lei. A jurisprudência.
Nesse sentido, é importante entender que a hermenêutica jurídica, que exsurge
desse viés, é parte de uma vertente de racionalidade prática preocupada com o Direito e
com o que este tem a ver com os diversos campos de conhecimento no qual se abebera.
Por isso, pode-se dizer que foi a ciência jurídica que foi absorvendo a fenomenologia
hermenêutica, a partir dos elementos fulcrais como o círculo hermenêutico, a diferença
ENCICLOPÉDIA JURÍDICA DA PUCSP DIREITO ADMINISTRATIVO E CONSTITUCIONAL
10
ontológica, a noção de pré-compreensão (que, insisto, não é uma mera subjetividade e
nem ideologia) e a própria noção de verdade.
Quem interpreta já compreendeu e sempre tem uma pretensão de verdade. Como diz
Gadamer, mais do que combater o relativismo, é necessário destruí-lo. Em termos
jurídicos, o relativismo é inimigo da autonomia do Direito e da própria democracia.
Gadamer deu uma enorme contribuição para um novo tipo de hermenêutica jurídica. A
filosofia que brotou de sua obra inundou o Direito e contribuiu sobremodo para limpar a
falsa imagem de irracionalidade que a prática jurídica tinha em relação a uma certa
epistemologia moderna. A hermenêutica veio para ficar, exatamente porque é esse
intermédio filosófico entre o objetivismo e o subjetivismo.
Por tudo isso, é fácil afirmar que uma sentença judicial é um ato de decisão e
não de escolha. É um ato de poder, em nome do Estado. Dworkin diz que a sentença é um
ato de responsabilidade política. Por isso mesmo é que a sentença não é uma mera opção
por uma ou mais teses. Nesse sentido, Heinrich Rombach deixa claro que a análise
autêntica do fenômeno da decisão exige um desprendimento com relação às
representações e modelos habituais do fenômeno. Afirma que tanto o decisionismo
irracional quanto o racionalismo – e as correspondentes teorias da decisão que se formam
a partir deles – acabam por entulhar o problema na medida em que tornam indiferentes o
fenômeno da decisão e o fenômeno da escolha. Segundo o autor, decidir é diferente de
escolher. E essa diferença não se apresenta em um nível valorativo (ou seja, não se trata
de afirmar que a decisão é melhor ou pior que a escolha), mas, sim, estrutural. “Respostas
de escolha são respostas parciais; respostas de decisão são respostas totais, nas quais entra
em jogo a existência inteira”.3
No caso da decisão jurídica (sentença), é possível adaptar a fórmula proposta por
Rombach para dizer que ela pressupõe um comprometimento por parte do agente
judicante com a moralidade da comunidade política. Isso significa, em termos
dworkinianos que a decisão é um ato de responsabilidade política. É por isso que a
jurisdição, em um quadro como esse, não efetua um ato de escolha entre diversas
possibilidades interpretativas quando oferece a solução para um caso concreto. Ela
efetua “a” interpretação, uma vez que decide – e não escolhe – quais os critérios de ajuste
3 DWORKIN, Ronald. Decisión. Conceptos fundamentales de filosofía, vol. I., pp. 476-490.
ENCICLOPÉDIA JURÍDICA DA PUCSP DIREITO ADMINISTRATIVO E CONSTITUCIONAL
11
e substância (moralidade) que estão subjacentes ao caso concreto analisado. Portanto, há
uma diferença entre o decidir, que é um ato de responsabilidade política e o escolher, que
é um ato de razão prática. O primeiro é um ato estatal; o segundo, da esfera do cotidiano,
de agir estratégico.
Para uma hermenêutica (constitucional) preocupada com a democracia, é
necessário evitar discricionariedades, decisionismos e a correção moral do direito. Nessa
seara, o dever de fundamentar – que é mais do que motivar – não é simplesmente um
adereço que será posto na decisão. Tampouco será uma justificativa para aquilo que o juiz
decidiu de forma subjetivista-solipsista, substituindo o direito pela moral, política ou
economia ou até mesmo suas opiniões pessoais. O Estado Democrático e a Constituição
são incompatíveis com modelos de motivação teleológicos do tipo “primeiro decido e só
depois busco o fundamento”. Superado o paradigma subjetivista, é a intersubjetividade
que será a condição para o surgimento de uma decisão (ver Verdade e consenso, sexta
edição, pela Saraiva). Nesse sentido, o juiz deve controlar a sua subjetividade por
intermédio da intersubjetividade proveniente da linguagem pública (doutrina,
jurisprudência, lei e Constituição). As suas convicções pessoais são – e devem ser –
irrelevantes para a decisão. Por isso, a decisão judicial não é fruto do pensamento pessoal
ou da “consciência do julgador”. Se a decisão jurídica for fruto de uma “hermenêutica
pessoal-solipsista”, obviamente já estaremos falando de hermenêutica, e, sim de uma
“interpretação como ato de vontade”. Decisão nesse sentido será nula. Como bem lembra
Arruda Alvim, o juiz não decide arbitrariamente, em função de sua mera vontade.4 Como
se pode ver pela leitura do art. 371, o novo Código de Processo Civil aboliu a livre
apreciação da prova e qualquer forma de livre convencimento. A expulsão do livre
convencimento é um elemento de extrema relevância para demonstrar o significado
democrático da hermenêutica. Uma hermenêutica apta para implementar a Constituição
não pode depender de livres convicções, mesmo que sucedidas da falácia “livre convicção
ou livre convencimento motivado”. De novo, a aporia da ponte desmonta a tese do livre
convencimento, que, aliás, já desde há muito nada tem a ver com a superação da prova
tarifada, passando a ser uma “tese” que nada mais faz do repristinar o protagonismo
judicial do final do século XIX e início do século XX.
4 ARRUDA ALVIM, José Manoel de. Manual de direito processual civil, p. 1133.
ENCICLOPÉDIA JURÍDICA DA PUCSP DIREITO ADMINISTRATIVO E CONSTITUCIONAL
12
O advento da Constituição de 1988 exigiu um novo olhar sobre a hermenêutica
(constitucional). Por óbvio já não se pode(ria) pensar em trabalhar com
instrumentalizações pós-exegéticas, que, sincreticamente, passaram a incorporar posturas
como a jurisprudência dos valores alemã, o ativismo judicial norte-americano, a
metodologia de Savigny, a ponderação advinda da teoria da argumentação jurídica (não
há pistas de que a teoria alexyana tenha sido, efetivamente, aplicada em alguma decisão
no Brasil) e outras correntes voluntaristas que, em vez de centrar o olhar na Constituição
e seu propósito, passaram a apostar em elementos criteriais, naquilo que Dworkin tão bem
denunciou como “aguilhões semânticos”.
Dito de outro modo, se até o advento da Constituição de 1988 apostava-se em
um certo ativismo judicial baseado, por exemplo, nas diversas formas de positivismo
fático (realismos jurídicos dos mais variados) como forma específica de luta por espaços
no interior do “sistema” na busca de inclusões sociais – mormente no que diz respeito aos
direitos de liberdade em um regime político-jurídico autoritário/ditatorial que deixou de
fora do direito os conflitos e aspirações sociais –, na sequência, já na vigência da nova
Constituição, não foram construídas as condições necessárias para a concretização de um
direito agora produzido democraticamente e com feições nitidamente transformadoras da
sociedade. Destarte, parece óbvio que a solução para (ess)as novas demandas não adviria
de uma aposta nas velhas posturas acionalistas.
Exsurge, assim, a necessidade de se dar novos contornos à interpretação do
direito (constitucional), sem que se confundam, contudo, os princípios da interpretação
constitucional com os princípios jurídico-constitucionais. Fundamentalmente – e a
lembrança é de Gomes Canotilho – há que se ter claro que uma hermenêutica ligada ao
caráter compromissório do constitucionalismo contemporâneo terá que construir as
condições de possibilidade para que a retórica dos juristas adquira positividade, abrindo
“caminhos hermenêuticos capazes de auxiliarem a extrinsecação do direito
constitucional”.5 E essa tarefa é indelegável.
Diante disso, uma nova perspectiva hermenêutica vem se forjando a partir de
duas rupturas paradigmáticas: a revolução do constitucionalismo, que institucionaliza um
5 Ver CANOTILHO, J. J. Gomes. O direito constitucional como ciência de direção. Revista da Academia Brasileira de Direito Constitucional, v. 10, p. 118.
ENCICLOPÉDIA JURÍDICA DA PUCSP DIREITO ADMINISTRATIVO E CONSTITUCIONAL
13
elevado grau de autonomia do direito, e a revolução copernicana provocada pelo giro-
linguístico-ontológico. De um lado, a existência da Constituição exige a definição dos
deveres substanciais dos poderes públicos que vão além do constitucionalismo liberal-
iluminista, diminuindo-se o grau de discricionariedade do Poder Legislativo, assim como
do Poder Judiciário nos denominados “casos difíceis”. De outro, parece não restarem
dúvidas de que, contemporaneamente, a partir dos avanços da teoria do direito, é possível
dizer que não existem respostas a priori acerca do sentido de determinada lei que
exsurjam de procedimentos ou métodos de interpretação. Nesse sentido, “conceitos” que
tenham a pretensão de abarcar, de antemão, todas as hipóteses de aplicação, nada mais
fazem do que reduzir a interpretação a um processo analítico, que se caracteriza pelo
emprego “sistemático” da análise lógica da linguagem, buscando descobrir o significado
dos vocábulos e dos enunciados.
Nesta quadra da história, já não pairam dúvidas de que os métodos de
interpretação propalados pela teoria geral do direito – mesmo que esta se ocupe apenas
da estrutura dos diversos sistemas jurídicos, e não propriamente do conteúdo normativo
– são incompatíveis com esse novo paradigma compreensivo. Não percebemos, de forma
distinta (cindida), primeiro os textos para, depois, acoplar-lhes sentidos. Ou seja, na
medida em que o ato de interpretar – que é sempre compreensivo/aplicativo – é unitário,
o texto (pensemos, fundamentalmente, na Constituição) não está, e não nos aparece,
desnudo, como se estivesse à nossa disposição. Com isso também desaparece qualquer
distinção entre estrutura e conteúdo normativo. Destarte – insisto – não podemos esquecer
que mostrar a hermenêutica como produto de um raciocínio feito por etapas foi a forma
que as diversas formas de subjetivismo encontraram para buscar o controle político-
ideológico do “processo” de interpretação. Daí a importância conferida ao método, que
sempre teve/tem a função de “isolar” a norma (sentido do texto) de sua concretização.
Uma questão, assim, é vital para a hermenêutica de cariz constitucional. Se alguém tem
que decidir por último, a pergunta que se põe obrigatoriamente é: de que modo podemos
evitar que a legislação – suposto produto da democracia representativa (produção
democrática do direito) – seja solapada pela falta de legitimidade da jurisdição? Ou,
melhor dizendo, com Miranda Coutinho, não propriamente uma “falta de legitimidade”,
mas uma “possível” expropriação de um espaço de poder que ele – o juiz – não tem e,
portanto, para tal “atribuição” é que não encontra legitimidade. Aponte-se, ademais, que,
ENCICLOPÉDIA JURÍDICA DA PUCSP DIREITO ADMINISTRATIVO E CONSTITUCIONAL
14
à diferença da compreensão de outros fenômenos, a hermenêutica jurídica contém uma
especificidade: a de que o processo hermenêutico possui um vetor de sentido, produto de
um processo constituinte que não pode ser alterado a não ser por regramento próprio
constante no próprio processo originário. E isso faz a diferença. A Constituição é o elo
conteudístico que liga a política e o direito, d’onde se pode dizer que o grande salto
paradigmático nesta quadra da história está exatamente no fato de que o direito deve servir
como garantia da democracia. Trata-se, no fundo, de um paradoxo: a Constituição é um
remédio contra maiorias, mas, ao mesmo tempo, serve como garantia destas.
Assim, na medida em que estamos de acordo que a Constituição possui
características especiais exsurgidas de um profundo câmbio paradigmático, o papel da
hermenêutica passa a ser, fundamentalmente, o de preservar a força normativa da
Constituição e o grau de autonomia do direito diante das tentativas usurpadoras
provenientes do processo político (compreendido lato sensu). Nesse contexto, a grande
engenharia a ser feita é, de um lado, preservar a força normativa da Constituição e, de
outro, não colocar a política a reboque do direito. E não permitir que a moral corrija o
direito produzido democraticamente.
Essa (inter)mediação é o papel a ser desempenhado pelos princípios forjados na
tradição do Estado Democrático de Direito. Princípios funcionam, assim, como Leitmotiv
do processo interpretativo, como que a mostrar que cada enunciado jurídico possui uma
motivação (Jede Aussage ist motiviert, dirá Gadamer). Princípios têm a função de
mostrar/denunciar a ruptura com a plenipotenciaridade das regras; o direito não isenta o
intérprete de qualquer compromisso com a realidade.
Por tais razões, é fundamental que se passe a entender que “metodologia” ou
“principiologia” constitucional não querem dizer “cânones”, “regras” ou “metarregras”,
mas, sim, um modo de concretizar a Constituição, isto é, o modo pelo qual a Constituição
deve ser “efetivamente interpretada”. Afinal, a fragilidade dos “cânones” reside
precisamente no fato de que não existe um “método” ou uma “regra” que estabeleça o
modo de aplicá-los, a menos que se acredite na possibilidade de um “método dos
métodos” ou de um metafísico “método fundamental” (Grundmethode). Do mesmo
modo, não há um metaprincípio apto a servir de norte para a aplicação dos diversos
princípios cunhados nas diversas fases do constitucionalismo.
ENCICLOPÉDIA JURÍDICA DA PUCSP DIREITO ADMINISTRATIVO E CONSTITUCIONAL
15
Desse modo, propõe-se, aqui, um conjunto mínimo de princípios
(hermenêuticos) a serem seguidos pelo intérprete. Tais princípios, sustentados na
historicidade da compreensão e na sedimentação dessa principiologia, somente se
manifestam quando colocados em um âmbito de reflexão que é radicalmente prático-
-concreto, pois representam um contexto de significações históricas compartilhadas por
uma determinada comunidade política, uma vez que abarcam e apontam para além dos
diversos princípios, subprincípios, pontos de vista, standards interpretativos, postulados
etc. forjados na tradição do Estado Democrático de Direito, tais como a inviolabilidade
da Constituição, da vinculação do direito, da rigidez do direito constitucional, da
segurança jurídica, da delimitação normatizada de funções, da unidade da Constituição,
do efeito integrador, da máxima efetividade, da conformidade funcional, da concordância
prática, da força normativa da Constituição e da interpretação conforme, para citar apenas
os principais. Mas, se as diversas tentativas de autonomizar esses critérios interpretativos
fracassaram – em face da própria impossibilidade de se construir uma “teoria geral dos
princípios” ou dos cânones – visando a conceder autonomia a estes ou a alguns destes,
isso não quer dizer que a interpretação do direito deva ficar à mercê de procedimentos
ad hoc ou de atitudes pragmatistas. Por essas razões é que a interpretação do direito
somente tem sentido se implicar um rigoroso controle das decisões judiciais, porque se
trata, fundamentalmente, de uma questão que atinge o cerne desse novo paradigma: a
democracia. E sobre isso parece não haver desacordo.
Desse modo, a partir da Crítica Hermenêutica do Direito estabeleci cinco
princípios-padrões interpretativos como suportes epistêmicos. Princípios não devem ser
vistos como um conjunto de topoi argumentativos, nem como componentes de uma
hermenêutica (jurisprudencialista) baseada na tópica ou na nova retórica (por todos,
lembremos Theodor Viehweg e Chaïm Perelman), ou, ainda, dependentes, para a sua
aplicação, das fórmulas para resolver “casos difíceis” (é o caso, v.g., da ponderação de
valores, que não escapa às fortíssimas críticas advindas de autores que vão de Friedrich
Müller a Jürgen Habermas). Princípio é, assim, condição de possibilidade de qualquer
interpretação, estando presente, de forma transcendental, em cada relação regra-princípio
(por isso, não há distinção estrutural entre regra e princípio). Por isso, o princípio funciona
como um acentuado grau de “blindagem” contra os desvios hermenêuticos
(conveniências políticas, argumentos morais, etc.). Talvez o principal problema da
ENCICLOPÉDIA JURÍDICA DA PUCSP DIREITO ADMINISTRATIVO E CONSTITUCIONAL
16
compreensão do princípio esteja em localizá-lo ou confiná-lo no plano analítico, como se
fosse uma regra “com adereços” e “comandos de otimização”. E, à medida que essa
circunstância, segundo determinadas leituras, leva à “abertura” da interpretação e ao
aumento do poder discricionário do intérprete, tem-se, inexoravelmente, um segundo
problema: o enfraquecimento da autonomia do direito diante de discursos “corretivos”
que, assim compreendido o papel de abertura dos princípios, “penetram” nestas “frestas”,
configurando a aludida correção interpretativa com fulcro na moral, na economia, na
política, etc. (STRECK, Lenio. Comentários à Constituição do Brasil). Na mesma linha,
a (simples) equiparação dos princípios a valores significa negar a historicidade da
compreensão. Somente podemos falar no conteúdo dos princípios constitucionais quando
nos apropriamos do horizonte histórico hermeneuticamente correto. No caso, p. ex., do
due process of law, sua determinação concreta na decisão judicial não poderá obedecer
às simples opiniões e aos preconceitos do intérprete-juiz, mas, sim, prestar contas a uma
carga histórica complexa que se arrasta no tempo histórico.
Assim, tem-se o primeiro princípio/padrão: a preservação da autonomia do
direito, que abarca vários padrões compartilhados pelo direito constitucional a partir do
segundo pós-guerra, denominados de métodos ou princípios, tais como o da correção
funcional (designado por Müller como princípio autônomo que veda a alteração, pela
instância decisória, da distribuição constitucionalmente normatizada das funções nem por
intermédio do resultado dela), o da rigidez do texto constitucional (que blinda o direito
contra as convicções revolucionárias acerca da infalibilidade do legislador), o da força
normativa da Constituição e o da máxima efetividade (sentido que dê à Constituição a
maior eficácia, como sustentam, por todos, Pérez Luño e Gomes Canotilho). Mais do que
sustentáculo do Estado Democrático, a preservação do acentuado grau de autonomia
conquistado pelo direito é a sua própria condição de possibilidade e por isso é erigido,
aqui, à condição de princípio basilar, unindo, conteudisticamente, a visão interna e a visão
externa do direito. Trata-se, também, de uma “garantia contra o poder contramajoritário”,
abarcando a garantia da legalidade na jurisdição. Trata-se de uma autonomia entendida
como ordem de validade, representada pela força normativa de um direito produzido
democraticamente. Afinal, não se pode perder de vista que as palavras que o legislador
escolhe são aquelas e não outras, mas são sempre palavras (textos), cuja relação com os
objetos dependerá de um longo processo de sedimentação hermenêutico (tradição,
ENCICLOPÉDIA JURÍDICA DA PUCSP DIREITO ADMINISTRATIVO E CONSTITUCIONAL
17
coerência, integridade, fusão de horizontes, etc.). Por isso, a validade do direito perante a
política, a economia e a moral, não pode depender de uma jurisprudencialização do direito,
isto é, não é a jurisprudência que garante o indispensável grau de autonomia do direito, e,
sim, é a autonomia do direito, sustentada em um denso controle hermenêutico, que
assegura as possibilidades de a Constituição ter preservada a sua força normativa. Ou
seja, não se pode confundir o direito (e suas possibilidades autônomas) com a instância
judiciária e, tampouco, a política com a lei (vontade geral sem controle) (Ver Comentários
à Constituição do Brasil). Para aferir esse grau de autonomia estabeleci as seis hipóteses
pelas quais um juiz pode deixar de aplicar uma lei (texto jurídico), explicitadas em
Jurisdição constitucional e decisão jurídica (quarta edição, pela Revista dos Tribunais). O
segundo princípio é o controle hermenêutico da interpretação constitucional (ratio final,
a imposição de limites às decisões judiciais – o problema da discricionariedade),
desenvolvido em vários textos e livros, como O que é Isto – decido conforme minha
consciência? (quinta edição conforme o novo CPC, pela Livraria do Advogado). Aqui
deve ser respondida a pergunta que atormenta os juristas desde o século XIX: o que fazer
com a moral e como resistir ao canto da sereia do subjetivismo. Em outras palavras, o que
se chama de discricionariedade judicial nada mais é que do que uma abertura criada no
sistema para legitimar, de forma velada, uma arbitrariedade, não mais cometida pelo
administrador, mas pelo judiciário. Veja-se o exemplo das interceptações telefônicas, em
que o STF (QO no Inquérito n. 2.424-RJ) vem autorizando, com base em um juízo de
proporcionalidade, o exercício da interceptação telefônica também na esfera civil para ser
utilizada como prova emprestada em processos de outra natureza que não processos
criminais. Por isso, a afirmação de que o “intérprete sempre atribui sentido (Sinngebung)
ao texto” nem de longe pode significar a possibilidade de ele estar autorizado a atribuir
sentidos de forma discricionária/arbitrária, como se texto e norma estivessem separados
(e, portanto, tivessem “existência” autônoma). Se a partir da autonomia do direito
apostamos na determinabilidade dos sentidos como uma das condições para a garantia da
própria democracia e de seu futuro, as posturas axiologistas e pragmatistas – assim como
os diversos positivismos stricto sensu – apostam na indeterminabilidade. É por tais
caminhos e condicionantes que passam as novas demandas de uma renovada
hermenêutica constitucional.
ENCICLOPÉDIA JURÍDICA DA PUCSP DIREITO ADMINISTRATIVO E CONSTITUCIONAL
18
O terceiro princípio é o respeito à integridade e à coerência do direito, agora
colocados no art. 926 do Código de Processo Civil, conforme explicitado em
Hermenêutica e jurisprudência no novo Código de Processo Civil: coerência e
integridade, a integridade está umbilicalmente ligada à democracia, exigindo que os
juízes construam seus argumentos de forma integrada ao conjunto do direito.6 Trata-se,
pois, de “consistência articulada”. Com isso, afasta-se, de pronto, tanto o ponto de vista
objetivista, pelo qual “o texto carrega consigo a sua própria norma” (lei é lei em si), como
o ponto de vista subjetivista-pragmatista, para o qual – aproveitando a relação “texto-
norma” – a norma pode fazer soçobrar o texto. Nesses casos – e estaríamos sucumbindo
ao realismo jurídico – esse texto acaba encoberto não pela nova norma (sentido), mas,
sim, por outro (novo) texto, o que pode facilmente ocorrer quando da edição de súmulas
vinculantes. Ou seja, esse respeito à tradição, ínsito à integridade e à coerência, é
substancialmente antirrelativista e deve(ria) servir de blindagem contra sujetivismos e
objetivismos. Na verdade, a tese hermenêutica da integridade coloca-se contra os dois
polos do positivismo – e a feliz observação é de Blackburn (Verdade e consenso, p. 251):
um polo é a visão positivista de que a prática legal é inteiramente ditada por fatos
preexistentes, tal como estatutos e decisões em letra gótica que estão, por assim dizer, na
folha, ou “simplesmente seja lá como for”; o outro polo, confusamente chamado de
“realismo” na filosofia do direito, é, no fundo, o ponto de vista subjetivo ou puramente
pragmático, segundo o qual o que os juízes e advogados fazem a nada corresponde, exceto
às próprias percepções que eles têm das necessidades momentâneas da sociedade (ou até
mesmo apenas às próprias necessidades dos juízes).
A integridade faz respeitar a comunidade de princípios, colocando efetivos
limites às atitudes solipsistas-voluntaristas. Mas, será a integridade apenas coerência
(decidir casos semelhantes da mesma maneira) sob um nome mais grandioso? Dworkin
responde que isso dependerá do que entendemos por coerência ou casos semelhantes. Se
uma instituição política só é coerente quando repete suas próprias decisões anteriores o
mais fiel ou precisamente possível, então a integridade não é coerência; é, ao mesmo
tempo, mais e menos. Há um direito fundamental a um tratamento equânime. Uma
instituição que aceite esse ideal às vezes irá, por esta razão, afastar-se da estreita linha das
6 Cf. DWORKIN, Dworkin. Law’s empire, p. 176.
ENCICLOPÉDIA JURÍDICA DA PUCSP DIREITO ADMINISTRATIVO E CONSTITUCIONAL
19
decisões anteriores, em busca de fidelidade aos princípios mais fundamentais da
comunidade política como um todo. A integridade é uma norma mais dinâmica e radical
do que parecia de início, pois incentiva um juiz a ser mais abrangente e imaginativo em
sua busca de coerência com o princípio fundamental. Fundamentalmente – e nesse sentido
não importa qual o sistema jurídico em discussão –, trata-se de superar as teses
convencionalistas e pragmatistas a partir da obrigação de os juízes respeitarem a
integridade do direito e a aplicá-lo coerentemente.
O quarto princípio quatro é o dever fundamental de justificar/fundamentar as
decisões. Se nos colocamos de acordo que a hermenêutica a ser praticada no Estado
Democrático de Direito não pode deslegitimar o texto jurídico-constitucional produzido
democraticamente, parece evidente que a Sociedade não pode ser “indiferente às razões
pelas quais um juiz ou um tribunal toma suas decisões. O direito, sob o paradigma do
Estado Democrático de Direito, cobra reflexão acerca dos paradigmas que informam e
conformam a própria decisão jurisdicional”.7 Há, pois, uma forte responsabilidade
política dos juízes e tribunais, circunstância que foi albergada no texto da Constituição,
na especificidade do art. 93, IX, que determina, embora com outras palavras, que o juiz
explicite as condições pelas quais compreendeu. O dever de fundamentar as decisões (e
não somente a decisão final, mas todas as do iter) está assentado em um novo patamar de
participação das partes no processo decisório. A fundamentação está ligada ao controle
das decisões, e o controle depende dessa alteração paradigmática no papel das partes da
relação jurídico-processual. Por isso, o protagonismo judicial-processual – que, como já
se viu, provém das teses iniciadas por Büllow, Menger e Klein ainda no século XIX –
deve soçobrar diante de uma adequada garantia ao contraditório e dos princípios já
delineados. Decisões de caráter “cognitivista” (em termos de meta ética, “não-
cognitivistas”), de ofício ou que, serodiamente, ainda buscam a “verdade real” se
pretendem “imunes” ao controle intersubjetivo e, por tais razões, são incompatíveis com
o paradigma do Estado Democrático. Veja-se que a Corte de Cassação da Itália (n.
14.637/02) recentemente anulou decisão fundada sobre uma questão conhecida de ofício
e não submetida pelo juiz ao contraditório das partes, chegando a garantir que o recurso
deve vir já acompanhado da indicação da atividade processual que a parte poderia ter
7 CATTONI, Marcelo. Jurisdição e hermenêutica constitucional, p. 50.
ENCICLOPÉDIA JURÍDICA DA PUCSP DIREITO ADMINISTRATIVO E CONSTITUCIONAL
20
realizado se tivesse sido provocada a discutir. Em linha similar – e em certo sentido indo
além –, o Supremo Tribunal de Justiça de Portugal (Rec. 10.361/01) assegurou o direito
de a parte controlar as provas do adversário, implementando a garantia da participação
efetiva das partes na composição do processo, incorporando, no decisum, doutrina8 no
sentido de que o contraditório deixou de ser a defesa, no viés negativo de oposição ou
resistência à atuação alheia, para passar a ser a influência, no sentido positivo do direito
de influir ativamente no desenvolvimento do processo. O Supremo Tribunal Federal do
Brasil (MS 24.268/04, Rel. Min. Gilmar Mendes) – embora venha impedindo,
historicamente, a análise de recursos extraordinários que invoquem o aludido princípio –
dá sinais sazonais da incorporação dessa democratização do processo, fazendo-o com
base na jurisprudência do Bundesverfassungsgericht, é dizer, a pretensão à tutela jurídica
corresponde à garantia consagrada no art. 5º, LV, da CF, contendo os seguintes direitos:
(a) direito de informação (Recht auf Information), que obriga o órgão julgador a informar
a parte contrária dos atos praticados no processo e sobre os elementos dele constantes;
(b) direito de manifestação (Recht auf Äusserung), que assegura ao defensor a
possibilidade de manifestar-se oralmente ou por escrito sobre os elementos fáticos e
jurídicos constantes do processo; (c) direito de ver seus argumentos considerados (Recht
auf Berucksichtigung), que exige do julgador capacidade, apreensão e isenção de ânimo
(Aufnahmefähigkeit und Aufnahmebereitschaft) para contemplar as razões apresentadas.
O mesmo acórdão da Suprema Corte brasileira incorpora a doutrina de Durig/Assmann,
sustentando que o dever de conferir atenção ao direito das partes não envolve apenas a
obrigação de tomar conhecimento (Kenntnisnahmeplicht), mas também a de considerar,
séria e detidamente, as razões apresentadas (Erwägungsplicht). Portanto, a historicidade
da compreensão gera, para o intérprete-juiz, uma série de compromissos a serem
cumpridos na fundamentação de sua decisão. A necessidade da fundamentação impede
que as decisões se resumam à citação de enunciados assertóricos, anti-hermenêuticos na
origem, por obnubilarem a singularidade dos casos (veja--se que o princípio é o mundo
prático do direito; nem mesmo o princípio pode ser resumido a um enunciado assertórico).
Este princípio – que é um dever fundamental – vem a ser complementado por outro
igualmente fundamental: o do direito de obter uma resposta constitucionalmente
8 FREITAS, José Lebre de. Introdução ao processo civil: conceito e princípios gerais, p. 96.
ENCICLOPÉDIA JURÍDICA DA PUCSP DIREITO ADMINISTRATIVO E CONSTITUCIONAL
21
adequada à Constituição, isto é, o do direito a obter uma resposta baseada em pretensões
juridicamente tuteladas. Advirta-se, por relevante, que o trabalho do intérprete não exclui
a dimensão pessoal-valorativa inerente a qualquer atividade compreensiva. Como já
referido, o controle rigoroso da interpretação, a preservação da autonomia do direito, o
respeito à integridade do direito e o dever fundamental de justificar detalhadamente às
decisões não implicam uma “vedação de atribuir sentidos aos textos jurídicos”, ou seja –
e me permito insistir nisso –, nada disso implica uma “proibição de interpretar”. Longe
disso! Insista-se: a superação (morte) do esquema sujeito-objeto acarretou também o fim
da filosofia da consciência, pensada como elemento de fundamentação transcendental.
Mas tal circunstância – e isso é de fundamental importância, para evitar mal-entendidos –
, não representou a eliminação do sujeito, que evidentemente está presente em qualquer
relação de objeto que faz parte de qualquer enunciado (jurídico ou não). Que fique bem
claro: não se pode confundir pré-compreensão com visão de mundo, preconceitos ou
qualquer outro termo que revele uma abertura para o relativismo.
Por último, o quinto princípio: o direito fundamental a uma resposta
constitucionalmente adequada, tese central para a Crítica Hermenêutica do Direito. Esse
princípio/padrão tem uma relação de estrita dependência do dever fundamental de
justificar as decisões e daqueles princípios (ou subprincípios) – cunhados pela tradição
constitucionalista – que tratam do efeito integrador (ligado ao princípio da unidade da
Constituição), da concordância prática ou da harmonização, da máxima efetividade e da
interpretação conforme a Constituição. Como princípio instituidor da relação jurisdição-
democracia, a obrigação de fundamentar – que, frise-se, não é uma fundamentação de
caráter apodítico – visa a preservar a força normativa da Constituição e o caráter
deontológico dos princípios. Consequentemente, representa uma blindagem contra
interpretações deslegitimadoras e despistadoras do conteúdo que sustenta o domínio
normativo dos textos constitucionais. Trata-se de substituir qualquer pretensão solipsista
pelas condições histórico-concretas, sempre lembrando, nesse contexto, a questão da
tradição, da coerência e da integridade, para bem poder inserir a problemática na superação
do esquema sujeito-objeto pela hermenêutica jurídica. Se o desafio de uma metódica
jurídica, no interior desse salto paradigmático, é “como se interpreta” e “como se aplica”,
as próprias demandas paradigmáticas do direito no Estado Democrático apontam para
uma terceira questão: a discussão acerca das condições que o intérprete/aplicador possui
ENCICLOPÉDIA JURÍDICA DA PUCSP DIREITO ADMINISTRATIVO E CONSTITUCIONAL
22
para encontrar uma resposta que esteja adequada ao locus de sentido fundante, isto é, a
Constituição. Quem está encarregado de interpretar a Constituição a estará concretizando,
devendo encontrar um resultado constitucionalmente justo (a expressão é de Gomes
Canotilho). E esse resultado deve estar justificado, formulado em condições de aferição
acerca de estar ou não constitucionalmente adequado.
Há, assim, um direito fundamental ao cumprimento da Constituição. Mais do que
isso, trata-se de um direito fundamental a uma resposta adequada à Constituição ou, se
assim se quiser, uma resposta constitucionalmente adequada (ou, ainda, uma resposta
hermeneuticamente correta em relação à Constituição). Essa resposta (decisão) ultrapassa
o raciocínio causal-explicativo, buscando no ethos principiológico a fusão de horizontes
(Horizontverschmelzung) demandada pela situação que se apresenta. Antes de qualquer
outra análise, deve-se sempre perquirir a compatibilidade constitucional da norma jurídica
com a Constituição e a existência de eventual contradição. Deve-se sempre perguntar se, à
luz dos princípios e dos preceitos constitucionais, a norma é aplicável ao caso. Mais ainda,
há de se indagar em que sentido aponta a pré--compreensão (Vor-verständnis), condição
para a compreensão do fenômeno. Para interpretar, é necessário compreender (verstehen)
o que se quer interpretar. Este “estar diante” de algo (ver-stehen) é condição de
possibilidade do agir dos juristas: a Constituição.
A decisão constitucionalmente adequada é applicatio (superada, portanto, a
cisão do ato interpretativo em conhecimento, interpretação e aplicação), logo, a
Constituição só acontece enquanto “concretização”, como demonstrado por Friedrich
Müller a partir de Gadamer. Isso porque a interpretação do direito é um ato de
“integração”, cuja base é o círculo hermenêutico, sendo que o sentido hermeneuticamente
adequado se obtém das concretas decisões por essa integração coerente na prática jurídica,
assumindo especial importância a autoridade da tradição (que não aprisiona, mas funciona
como condição de possibilidade). A tradição é ponto de partida e não de ponto de chegada,
por isso os sentidos, ainda que atualizados, sempre guardam um “DNA”, uma história a
ser (re)construída. Não esqueçamos que a constante tarefa do compreender consiste em
elaborar projetos corretos, adequados às coisas, como bem lembra Gadamer.
Por fim, o direito fundamental a uma resposta constitucionalmente adequada não
implica a elaboração sistêmica de respostas definitivas. Isso porque a pretensão de se
buscar respostas definitivas é, ela mesma, anti-hermenêutica, em face do congelamento
ENCICLOPÉDIA JURÍDICA DA PUCSP DIREITO ADMINISTRATIVO E CONSTITUCIONAL
23
de sentidos que isso propiciaria. Ou seja, a pretensão a esse tipo de resposta sequer teria
condições de garanti-la. Mas o fato de se obedecer à coerência e à integridade do direito,
a partir de uma adequada suspensão da pré-compreensão que temos acerca do direito,
enfim, dos fenômenos sociais, por si só já representa o primeiro passo no cumprimento
do direito fundamental que cada cidadão tem de obter uma resposta adequada à
Constituição. Veja-se, nesse sentido, que Habermas, em seu Era das transições, embora
a partir de uma perspectiva não propriamente próxima à hermenêutica, mas,
evidentemente antirrelativista – e esse ponto interessa aos propósitos da hermenêutica
aqui trabalhada –, afirma que a busca da resposta correta ou de um resultado correto
somente pode advir de um processo de autocorreções reiteradas, que constituem um
aprendizado prático e social ao longo da história institucional do direito. O direito a uma
resposta constitucionalmente adequada será, assim, consequência da obediência aos
demais princípios, isto é, a decisão (resposta) estará adequada na medida em que for
respeitada, em maior grau, a autonomia do direito (que se pressupõe produzido
democraticamente), evitada a discricionariedade (além da abolição de qualquer atitude
arbitrária) e respeitada a coerência e a integridade do direito, a partir de uma detalhada
fundamentação. O direito fundamental a uma resposta adequada à Constituição, mais do
que o assentamento de uma perspectiva democrática (portanto, de tratamento equânime,
respeito ao contraditório e à produção democrática legislativa), é um “produto” filosófico,
porque caudatário de um novo paradigma que ultrapassa o esquema sujeito-objeto
predominante nas duas metafísicas (clássica e moderna).
REFERÊNCIAS
ARRUDA ALVIM, José Manoel de. Manual de direito processual civil. 16. ed.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.
CANOTILHO, J. J. Gomes. O direito constitucional como ciência de direcção.
Revista da Academia Brasileira de Direito Constitucional, v. 10. Curitiba: Academia
Brasileira de Direito Constitucional, 2008, pp. 105-127.
__________________; MENDES, Gilmar Ferreira; STRECK, Lenio Luiz;
SARLET, Ingo Wolfgang. Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva:
ENCICLOPÉDIA JURÍDICA DA PUCSP DIREITO ADMINISTRATIVO E CONSTITUCIONAL
24
Almedina, 2013.
CATTONI, Marcelo. Jurisdição e hermenêutica constitucional. Belo Horizonte:
Mandamentos, 2004.
DWORKIN, Ronald. Decisión. Conceptos fundamentales de filosofía. Hermann
Krings, Hans Michael Baumgartner, Christoph Wild (orgs.). Barcelona: Editorial Herder,
1977. Volume I.
DWORKIN, Dworkin. Law’s empire. Cambridge: Harvard University Press,
1988.
FREITAS, José Lebre de. Introdução ao processo civil: conceito e princípios
gerais. Coimbra: Coimbra Editora, 1996.
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método II. Petrópolis: Vozes, 2002.
SCHMIDT, Lawrence K. Hermenêutica. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2013.
STRECK, Lenio. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração
hermenêutica da construção do direito. 11. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2014.
__________________. Lições de crítica hermenêutica do direito. 2. ed. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2016.
__________________. O que é isto – Decido conforme minha consciência? 5.
ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015.
__________________. Verdade e consenso. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2014.