HERMENÊUTICA DA PAISAGEM [2005]

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  • 7/29/2019 HERMENUTICA DA PAISAGEM [2005]

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    Universidade Tcnica de Lisboa

    Instituto Superior de Agronomia

    Contributos para uma hermenutica da paisagem

    Relatrio do Trabalho de Fim de Curso de Arquitectura Paisagista

    Andreia de Sousa Saavedra Cardoso

    Orientador: Prof. Arquitecta Paisagista Manuela Raposo Magalhes

    Orientador externo: Prof. Adriana Verssimo Serro

    Lisboa

    2005

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    Universidade Tcnica de Lisboa

    Instituto Superior de Agronomia

    Contributos para uma hermenutica da paisagem

    Relatrio do Trabalho de Fim de Curso de Arquitectura Paisagista

    Andreia de Sousa Saavedra Cardoso

    Orientador: Prof. Arquitecta Paisagista Manuela Raposo Magalhes

    Orientador externo: Prof. Adriana Verssimo Serro

    Lisboa

    2005

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    AGRADECIMENTOS

    Ao meu pai, pela curiosidade insatisfeita que me soube nutrir, desde cedo, pela sabedoria

    inscrita nos livros e pelo fascnio s palavras para a dizer.

    minha me, sempre atenta paisagem em tempo real, livro aberto aos livros que abriu

    quando estudante e professora-estudante, com os quais aprendeu a ver e a ensinar-me o

    mundo, tambm pelos olhos das cincias naturais. A ambos, pela contnua confiana e pela

    oportunidade de escolher o meu caminho.

    minha irm, desde sempre companheira da vida quotidiana, presente, disponvel,

    participante e ouvinte paciente dos novelos emaranhados de pr-ideias e ideias, de que este

    trabalho tambm foi tecido, nem sempre claras e sobretudo digerveis, orientadora nas

    perguntas e na calmia sbia que a experincia traz.

    orientadora e coordenadora Prof. Arquitecta Paisagista Manuela Raposo Magalhes pela

    oportunidade de realizar o projecto de Reabilitao do B Social da Bela Vista em Setbal,

    primeira e enriquecedora incurso na experincia profissional acalentada pela confiana,

    entusiasmo, responsabilidade e elevadas expectativas, que em mim e na restante equipa

    envolvida soube depositar; bem como pela orientao prestada e pelo interesse que a sua

    abordagem concepo da paisagem me suscitou, desde os primeiros anos do curso, pelas

    temticas tericas abordadas.

    orientadora Adriana Verssimo Serro, pela disponibilidade, interesse e empatia

    demonstradas, contribuindo para o adensar da motivao, importante no redigir do trabalho,

    como pela curiosidade suscitada para as prximas leituras.

    equipa de trabalho do Centro de Estudos de Arquitectura Paisagista Caldeira Cabral, pela

    ajuda e motivao nos momentos cruciais, mas em particular ao Duarte Mata exemplar nos

    conselhos e na participao activa na fase terminal do projecto, companhia nas

    preocupaes e guia nas escolhas, sempre sem interferir com a autonomia necessria ao

    aprender; assim como Ana Mller, como profissional, companheira e amiga que descobri,

    ao longo do desenrolar do projecto, que acompanhou e coloriu, com a sua forma particular

    de encarar a vida.

    Aos amigos em geral, que sempre me perguntaram pelo decorrer do trabalho e me

    souberam escutar e sobretudo esperar pelo trminos, at que o meu tempo e entrega

    voltasse a ser tambm ou de novo, um pouco mais deles; e em particular aos que pela sua

    disponibilidade e envolvimento pessoal me auxiliaram na crucial fase de preparao final

    para a entrega.

    s bibliotecrias e funcionrios da Biblioteca Municipal Central do Palcio Galveias, pelo

    profissionalismo e companhia nesse lugar singular, cenrio vivido onde tornei visvel a

    pesquisa feita.

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    (...) estejamos atentos velha e perigosa fbula conceptual que pressups um sujeito de

    conhecimento puro, sem vontade, sem dor, sem tempo, estejamos atentos aos tentculos de

    conceitos contraditrios como razo pura, a espiritualidade absoluta, o conhecimento em si;

    pois eles pedem-nos sempre que imaginemos um olho que impossvel de imaginar, um olho que

    supostamente no olha em nenhuma direco concreta, um olho que supostamente reprime ou no

    tem poderes activos de interpretao que comeam por fazer a viso ver qualquer coisa pois aqui,

    ento, pedido um disparate e um no conceito ao olho. A viso perspectivada a nica espcie de

    viso que existe, o conhecimento perspectivado a nica espcie de conhecimento; e quantomais sentimentos em relao a um assunto deixamos tomar expresso, mais olhos, olhos diferentes

    atravs dos quais conseguimos ver este mesmo assunto, mais completa ser a nossa concepo

    dele, a nossa objectividade. (Nietzsche, 2002, p.107)

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    RESUMO

    A abordagem complexidade da paisagem, decorre da interpretao da sua face visvel

    enquanto constelao objectiva de sinais que a arquitectura paisagista procura codificar,deles inferindo a actuao dos processos sistmicos como resultantes da actualizao de

    padres ou configuraes mutveis de relaes existentes entre o mosaico de

    ecossistemas, que na sua relao com os sistemas socio-culturais humanos se expressam

    estruturalmente na paisagem.

    O presente trabalho esclarece a necessidade de uma hermenutica da paisagem gerada

    pela sua complexidade, abordando o conceito de evolues por instabilidade, implcito na

    teoria dos sistemas auto-eco-organizados e elevada conexo entre escalas espaciais e

    temporais, que caracteriza as interaces complexas e o determinismo-indetermismoenvolvido no seu comportamento autopoitico, que causa a necessidade de narrativas

    ambientais.

    Mas se a complexidade da paisagem patente na sua representao ecolgica considera as

    interaces sujeito objecto, concebendo os sistemas socioculturais enquanto construtores

    do conhecimento cientfico, reala-se igualmente a carncia de uma hermenutica, que

    analise as representaes da paisagem como projectos possveis da paisagem real, que a

    nossa aco deve considerar como obra aberta, pela integrao das dimenses ecolgica e

    fenomenolgica, encarando a interveno na sua complexidade resultante de uma

    estruturao ecolgica e de uma configurao existencial, como espao-tempo vivido eco-

    estesiolgico.

    Palavras-chave: filosofia da natureza, ps-modernismo, paisagem, auto-organizao,

    complexidade, fenomenologia.

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    ABSTRACT

    The approach to landscape complexity, elapses from the interpretation of its visible face

    while constellation of objective signs, which landscape architecture engages to code,

    inferring the action of the systemic processes as the result of the actualization of patterns or

    changeable configurations of existing relations between the mosaic of ecosystems, that in its

    relation to socio-cultural systems have a particular expression on landscape structure.

    The present work clears the need of a landscape hermeneutics generated by its complexity,

    approaching the concept of evolutions by instability, implied on the self-organizing-systems

    theory due to the high connection between spatial and temporal scales, that characterize the

    complex interactions and the determinism-indeterminism involved in its autopoietic

    behaviour, causing the need of environmental narratives.

    But if the landscape complexity as an ecological representation takes into account the

    subject object interactions, by conceiving the socio-cultural systems as builders of the

    scientific knowledge, highlights the lack of an hermeneutics, that analyzes landscape

    representations as possible projects of the real landscape, that our action must consider as

    an open work, by the integration of ecology and phenomenology, as means to view the

    intervention process in its complexity, and the landscape itself as a lived eco-aesthesiological

    space-time.

    Key-words: philosophy of nature, post-modernism, landscape, self-organization, complexity,

    phenomenology.

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    NDICE GERAL

    0. INTRODUO 9

    I A COMPLEXIDADE DA PAISAGEM COMO REALIDADE ECOLGICA12

    01. Paisagem de realidade experienciada a representao cientfica 13

    02. o naturalismo moderno o homem: observador ausente da natureza 16

    02.1 O nascimento das cincias modernas e o materialismo mecanicista 16

    02.2 A natureza do romantismo e o positivismo cientfico 21

    02.3 Da natureza como paisagem paisagem como objecto cientfico 24

    03. O naturalismo ps-moderno o papel do homem como conceptor da natureza 28

    03.1 O ps-modernismo cientfico e a ideia de natureza contempornea 28

    03.2 O aparecimento da ecologia: o conceito de ecossistema: para alm do reducionismo e doholismo sistmico

    39

    04. A concepo ecossistmica da paisagem do ecossistema paisagem

    multidimensional

    43

    04.1 A paisagem como resultado de interaces entre sistemas auto-eco-organizados 44

    04.1.1 Autopoiesis: a auto-eco-organizao sistmica 46

    04.1.2 Estruturas dissipativas: a morfognese aberta e bifurcante 50

    04.2 A paisagem multidimensional: integrao sistmica da bio-geo-noosfera 56

    II A ECO-ESTESIOLOGIA DA PAISAGEM COMO ESPAO-TEMPO VIVIDO 59

    01. A fenomenologia como hermenutica do mundo contribuies para uma teoriaps-moderna da paisagem

    60

    01.1 A intencionalidade do corpo prprio: enraizamento existencial e constituio metafrica 60

    01.2 A complexidade da natureza como paisagem: estruturao ecolgica e configuraoexistencial 71

    0.Concluses 88

    Bibliografia 95

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    LISTA DE FIGURAS

    1. SILVA, M. H. Vieira da (1937) La scala - Les yeux. In LASSAIGNE, Jacques; WEELEN(1978) Vieira da Silva. [s.l.]: Publicaes Europa-Amrica. p.119.

    2. TELLES, Gonalo Ribeiro [s.d.] [s.n.]. In TELLES, Gonalo R. (2000) Por umapaisagem global. Arquitectura e Vida. 3 28-35. p.31.

    3. [s.a.] [s.d.] Colina da grande serpente. In JANSON, H. W. (1992) Histria da Arte.Trad. de J. A. Ferreira de Almeida e Maria Manuela Rocheta Santos. 5. ed. Lisboa :Fundao Calouste Gulbenkian. p.35.

    4. POUSSIN, Nicolas (1660-1664) Le quatro stagioni La Primavera. In THUILLIER,Jacques (1974) Lopera completa di Poussin. Milano: Rizzoli Editore.p.71.

    5. COURBET, Gustave (1870) O vale do Loue sob cu tempestuoso. In BARDI, P.M.(1968) Gustave Courbet. So Paulo : Abril Cultural. p.21.

    6. TURNER, William (1842) Chuva, vapor e velocidade O grande caminho-de-ferroOcidental. In SHANES, Eric (1995) Turner. Trad. de Isabel Teresa Santos. Lisboa :Editorial Estampa; Editorial Circulo de Leitores. p.127.

    7. BRAQUE, Georges (1908) Casas de LEstaque . In BARDI, P.M. (1967) Braque. SoPaulo : Abril Cultural. p.12.

    8. STEENBERGEN, Clemens (2000) [s.n.]. In STEENBERG, Clemens (2000) Doingresearch on the fatlands. Topos: European Landscape Magazine. Mnchen : CallweyVerlag. 32 86-93. p.87.

    9. DERAIN, Andr (1905) LEstaque. In BERNARD, Edina (2000) 1905-1945 : A artemoderna. Trad. de Jos Lima. Lisboa : Edies 70. p.16.

    10. GORMLEY, Antony (1984) Home. In CAUSEY, Andrew (1998) Sculpture since1945. Oxford : Oxford University Press. (Oxford History of Art).p.253.

    11. FABRO, Luciano (1986) La doppia facia del cielo. In PRADEL, Jean-Louis (2001) Aarte contempornea. Trad.de Fernando Brazo. Lisboa : Edies 70. p.83.

    12. HORN, Rebecca (1970)

    Measure box. In CAUSEY, Andrew (1998)

    Sculpture since1945. Oxford : Oxford University Press. (Oxford History of Art).p.165.

    13. HEPWORTH, Barbara (1946) Pelagos. In CAUSEY, Andrew (1998) Sculpture since1945. Oxford : Oxford University Press. (Oxford History of Art). p.43.

    14. HORN, Rebecca (2000) Ocean in my heart. In ZWEITE, Armin [et al.] (2005) Rebecca Horn : Bodylandscapes Desenhos, esculturas, instalaes 1964 - 2004 .Lisboa : Fundao Centro cultural de Belm. p.77.

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    0. INTRODUO

    A explicitao da complexidade da paisagem define-se consensualmente, no mbito da

    arquitectura paisagista, pela sua representao cientfica como realidade ecolgica,decorrente da interpretao da sua face visvel, enquanto constelao objectiva de signos,

    dos quais se infere a actuao dos processos sistmicos; concepo que se pretendeu

    abordar atravs da incurso nas recentes abordagens da ecologia da paisagem, acometidas

    no estudo da sua morfologia e da relao fundadora com os padres de organizao que a

    geram, tidos como configuraes mutveis de relaes existentes entre os componentes de

    um ecossistema e entre a multiplicidade de ecossistemas, na sua relao com os sistemas

    socio-culturais humanos, que actuam numa determinada rea do territrio.

    A actualizao processual destas inter-relaes e a no-linearidade introduzida no contextodo naturalismo ps-moderno pela teoria dos sistemas auto-eco-organizados, permitiu

    conceber a necessidade de explicitao da existncia de uma causalidade complexa ou

    finalidade interna, no seu dilogo com a causalidade externa e os determinismos e

    aleatoriedades da envolvente polissistmica de um tracto de paisagem, influenciadora da

    sua dinmica. Esta apesar de gerada por ligaes locais considera-se actualmente auto-

    organizada, no sentido de estas relaes resultarem num comportamento coerente e guiado

    por uma finalidade mutvel e indeterminada, devido elevada conexo, que caracteriza as

    interaces resultantes da reconhecida ordem complexa, gerada sob o efeito das flutuaes

    e seu cruzamento de escalas espaciais e temporais diferenciadas e mutveis consoante osprocessos em estudo.

    A interveno da arquitectura paisagista deve procurar a compreenso do funcionamento

    que permite a manuteno da identidade estrutural da paisagem em que opera, no sentido

    de clarificar ou pelo contrrio conceber a incapacidade de prever deterministicamente a sua

    evoluo face s intervenes projectuais directas sobre a paisagem ou indirectas, no

    mbito do ordenamento do territrio, caso tipo em que no se projecta directamente na

    paisagem, mas institui-se uma representao eminentemente funcional, que afecta

    directamente a sua evoluo, ao determinar parcialmente as prticas humanas, procurandoo alcance no apenas dos factores antrpicos, mas tambm dos restantes produtores da

    paisagem real e tanto quanto possvel concebendo a integrao sistmica e as

    potencialidades da inscrio no linear de marcas estruturais no decorrer evolutivo dessa

    paisagem determinarem a necessidade de uma hermenutica ou interpretao

    reconstituinte, quer dos possveis passados da paisagem como objecto projectual, como dos

    cenrios que o presente parece deixar em aberto, sobretudo em face das intervenes

    concebidas.

    No entanto, apesar da direco a dar ao trabalho parecer clara ao inico, a considerao dosconceitos de causalidade complexa remeteu para a necessria explicitao dos seus

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    reversos contraditrios, cuja hegemonia gerou a tardia conceptualizao da complexidade,

    que a abordagem inicial deste trabalho s filosofias da natureza anteriores ao ps-

    modernismo procurou acometer, como gerada pela conflitualidade inerente ideia de

    natureza, concebida na histria do pensamento ocidental, alternadamente sob a alada de

    vises finalistas, ou por outro lado dominadas por uma causalidade linear, passvel deencerrar numa narrativa indiferente ao espao e intemporal, na ausncia plena de um tempo

    diferenciador e expressivo de uma finalidade intrnseca.

    Ao inflectir no sentido de uma narrativa das concepes passadas da natureza evidenciou-

    se a relevncia de procurar a gestao da dissociao sujeito/objecto no pensamento

    filosfico e na aurora da constituio das cincias, por constituir esta antinomia outro

    impedimento paradigmtico plena emergncia conceptual da paisagem, procurando o

    destrinar do parentesco e a distino entre esta e o conceito de natureza na histria do

    pensamento ocidental; consideraes necessrias na constituio do percurso desta tese

    gerada na interrogao da paisagem e da procura de uma concepo terica da sua

    complexidade, necessariamente mais ampla que a ideia de natureza identificvel na sua

    independncia da experincia esttica, legitimada pela ciso moderna entre o domnio do

    sensvel e uma pretensa conscincia universal, legitimadora da existncia de um real em si

    acessvel exclusivamente ao conhecimento positivo e absoluto das cincias.

    Se as abordagens complexidade da paisagem efectuadas pela ecologia permitiram desde

    o comeo acentuar a dialgica sujeito - objecto concebida de forma sistmica, considerando

    os sistemas socioculturais enquanto construtores do conhecimento ou projectos possveis

    do real, resultantes do encadeamento sistmico do objecto-sistema com o sujeito tido como

    observador-conceptor, assumiram-se no decorrer da pesquisa restritivas na sua anlise

    apenas materialidade da paisagem, focando o seu interesse sobre a forma como as

    interaces natureza - cultura se expressam sob a forma de marcas no territrio, enquanto

    usos do solo, condicionantes da sustentabilidade e biodiversidade; concebendo a

    complexidade funcional e estrutural, inerentes ao funcionamento ecossistmico da

    paisagem, mas insuficientes na concepo da complexidade da paisagem, por a exclurem

    sob a forma de espao vivido, resultado de uma insero fenomenolgica e existencial.

    Se a primeira parte do trabalho assumiu a sua relevncia pela compreenso do conceito de

    complexidade esboado pelo pensamento do ps-modernismo cientfico e sua aplicao

    paisagem, a segunda assumiu-se pela necessria exegese das representaes da

    paisagem enquanto fundadas nos lugares de existncia, formados na inerncia paisagem

    real, no sentido de colmatar a estreiteza da representao cientfica, que sempre est

    latente como paradigma pronto a obliviar outras formas de aproximao ao real, procurando

    clarificar a criao concreta da paisagem, que se podendo tomar como experincia inter-

    subjectiva, esteada numa singularidade criada pelo indivduo, enquanto hermeneuta de

    uma paisagem, reflexo das ligaes natureza-sociedade mas traduzidas numa vivncia

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    corporal e nica, que a arquitectura paisagista enquanto interveniente na paisagem s mais

    diversas escalas deve procurar abordar.

    O caso prtico de reabilitao urbana do Bairro da Bela Vista, apresentado em apndice,

    constituiu a experincia mesma de como as representaes da paisagem, neste casoeminentemente sociais, podem afectar no apenas a experincia do habitar, mas tambm

    limitar a capacidade interventiva e insinuadora de paisagens possveis pelo projecto

    arquitectnico, pelo que a hermenutica das representaes deve insurgir-se na descrena

    gensica na universalidade e pretensa legitimidade absoluta de qualquer forma de

    conhecimento, que face complexidade do real constitui sempre uma proposta ou

    construo conceptual parcial e por isso inibidora de uma formalizao arquitectnica,

    assente na leitura complexa das potencialidades inscritas na experincia da paisagem,

    enquanto interpretao compsita de uma natureza espacializada por uma existncia

    individual que, em suma, apenas se aproxima da complexidade pela considerao da

    existncia dos outros e das suas representaes.

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    I A COMPLEXIDADE DA PAISAGEM COMO REALIDADE ECOLGICA

    2. Gonalo Ribeiro Telles [s.d.] [s.n.]

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    01. PAISAGEM DE REALIDADE EXPERIENCIADA A REPRESENTAO CIENTFICA

    As primeiras designaes de paisagem foram descobertas nas lnguas germnicas, emmanuscritos datados da Idade Mdia, encontrando-se ligadas traduo da palavra latina

    regio, tida por rea, territrio, ou pas (Cf. Tress, B.;Tress, G., 2001, p.144), envolvendo um

    cariz administrativo, que permitia a identificao da posse e regncia de uma determinada

    extenso de terras, numa altura em que o traar de limites ou fronteiras, defensivas, assim o

    exigia; mas o timo da palavra acumula outros sentidos, que j esboados nas designaes

    anteriores permitem antever uma relao de apropriao, ao associarem-se a uma

    ocupao humana, enquanto lugar ou local habitado, circunscrito a um horizonte de vida.

    Assim, se inicialmente o termo paisagem surgiu pela necessidade prtica do registo escrito

    da posse de terras, quer em manuscritos ou sob a forma de marcas no territrio, traduzia-seespacialmente na interligao do homem com este suporte fsico, sob a forma de prticas

    concretas, que antecedendo o conceito, de alguma forma, o tero sucessivamente

    ampliado. Na Idade Mdia, o termo alemo landschaft referia-se assim (...) a uma

    associao entre o stio e os seus habitantes, ou se preferirmos de uma associao

    morfolgica e cultural (...) (Holzer, 1999, p.152), j presente na palavra Landschaffen, que

    resulta dos termos land ou terra e schaffen que significa criar, trabalhar ou produzir;

    associao entre as caractersticas tangveis de uma regio e a sua modelao pelo

    homem, resultando numa integrao espacial destas duas dimenses a natureza e a

    cultura.

    Apesar deste significado de paisagem, enquanto sedimentao das prticas sobre a terra

    encontrar um liame com o timo latino regio, e com a concepo de espao de produo

    romano, segundo alguns autores, a palavra surge nas lnguas latinas, apenas no

    Renascimento, mas com um horizonte semntico limitado, pela sua origem nas artes

    plsticas (Cf. Holzer, 1999, p.152); acepo contestada pela clara relao etimolgica

    existente entre o termo latinopagus e a palavra paisagem em todas as lnguas latinas, com

    o mesmo significado que a raiz Land, presente nas lnguas germnicas (Cf. Amaral, 2001,

    p.75), indiciando antes um aditamento do termo, pela acentuao da componente visualatravs da pintura.

    Da raizpagus possvel derivar uma profuso de ideias sobre o que a paisagem poderia ter

    significado antes da prpria necessidade de demarcao militar, que remetem pelo verbo

    pango ao acto de enterrar os mortos, estabelecendo sobre a paisagem visvel, as silhuetas

    das pedras tumulares, com o sentido que o culto dos mortos poderia assumir nas

    civilizaes pags ou praticantes do paganismus, similarmente derivado do timo pagus;

    mas tambm o cultivo do campo, plantao e limitao por marcos, na sua ligao a um

    paganicus, povoado ou aldeia, enquanto forma de sedentarismo e vnculo necessrio ao

    acto de habitar.

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    Pagus dsigne donc dabord la borne fiche, plante, dun champ, la marque de sa limite, pierreenterre demi, terme, stle qui, dans sa premire version, sleva sur la tombe de lanctre gisantl. Par cette trace verticale dont la fondation pntre sous le sol, le lieu se rfre la mort et le tre-lau ci-gt. Les sites apparaissent sur lespace ainsi rfr. Culte funraire des anctres, la religion laplus ancienne, notre langue lappelle, juste titre, paenne, de ce paganisme issu de nouveau dupagus.(Serres, 1999, p.58)

    No entanto, alguns autores1 insistem numa origem ou inveno da paisagem ocidental

    considerando apenas o liame com a pintura renascentista, qui merge au XVe sicle (...)

    lorsquapparat ce moment incroyable u lhomme dcide de contrler ltendue spatiale

    partir de son point de vue projet sur le tableau comme signe infini de sa matrise (...)

    slectionne lintrieur du tableau un segment de pays et le transforme en paysage. (Tin,

    2002, p.4); evidenciando a recriao pela perspectiva do espao tridimensional e dos

    enquadramentos e estruturao perceptiva prprios do homem. A tcnica de representao

    elaborada exigiria um cdigo pictrico, e uma seleco de elementos, que se pretendia

    identificar com a realidade percebida ou institu-la e a paisagem passou assim,sucessivamente de fundo, para sujeito ou figura principal, na pintura paisagista do sc.XVIII.

    Mas a perspectiva, enquanto tcnica, actualmente interpretada em estreita relao com o

    paradigma de afastamento do sujeito, em relao ao seu meio, que teria caracterizado o

    paradigma ocidental da cincia moderna, como refere Berque (Cf. Panofsky Ap. Berque,

    2000, p.66).

    Le milieu est alors devenu un environnement objectifi, donc objectivable par la science, doncmanipulable par la technique, et reprsentable par lart selon des rgles rigoureuses, non moinsmathmatiques que les lois de la nature daprs Galile (Berque, 2000, p.67).

    Estes enunciados pictricos constituram ento, uma retrica da paisagem como refere

    Cauquelin (2000), que derivava no apenas da tcnica de representao visual, entendida

    na sua acepo de transcrio positiva da realidade, mas de uma traduo cultural, (...)

    mobilizao dos sentidos, aprendizagem de cdigos de seleco, apreciao e valorizao

    (...) (Salgueiro, 2001, p.38), que reflectia tanto o paradigma cientfico dominante, como o

    que era entendido, por uma elite, como paisagem.

    Ainsi le paysage, sa ralit sociale, une construction qui est pass par des filtres symboliques,hritages anciens. Une forme mixte, dautant plus prgnante quelle est finement tresse, au pointquon nen voit pas le dbut, et quelle peut passer pour originelle, nayant pas dorigine reprable.(Cauquelin, 2000, p.84)

    Enquanto reflexo de uma ideia de natureza, a paisagem assume plenamente pelo

    romantismo, no sc.XIX a categoria de objecto de fruio esttica, emergindo pela primeira

    vez na literatura, e a sua expresso (...) tanto na pintura como nos modelos de cidade ideal

    (...), passa a procurar (...) uma representao da natureza, tal e qual ela , na sua verso

    natural, ou com uma reduzida interveno do homem. (Magalhes, 2001, p.51) Atravs da

    pintura paisagista pretendia-se reproduzir a natureza, () comme si stablissait une

    1 Sobre este assunto vid. Andresen (1992), Cauquelin (2000), Salgueiro (2001) e Tin (2002).

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    transparence entre la nature et nous, sans intermdiaire. Nous aurions grce au paysage,

    un regard vrai sur les proprits de la nature. (Cauquelin, 2000, p.108)

    Entre territrio concreto, atravessado por fronteiras administrativas e naturais, espao rural

    resultante da interveno humana, representao pictrica de espao rural, espao de lazerou de natureza; os conceitos de paisagem at ao sc.XIX, apareceram como um nexo entre

    natureza e cultura, atravessando a concretude das prticas sobre a terra para chegar a ser,

    apenas e tanto, a intangvel interpretao da natureza.

    Se enquanto enunciado pictrico, a paisagem v-se reduzida a uma representao,

    pretensa traduo da natureza para uma linguagem artstica, a desconsiderao desta

    dimenso, como parte integrante do conceito, rejeita as componentes intangveis ou

    simblicas da paisagem, enquanto construo mental, que se encontram inerentes a essa

    traduo e fazem portanto parte do imaginrio individual do artista e ou do imaginrio

    colectivo. Ser este o corte efectuado sobre o conceito de paisagem, aps a sua introduo

    e necessidade de legitimao nas cincias, o que levaria a uma identificao redutora com

    a envolvente natural objectivada, atravs da obliterao da ideia de cena e de

    representao, que ao remeter para o simblico, estaria para alm do mbito circunscrito

    destas. De facto, a partir da segunda metade do sc. XIX, a aparente pluralidade

    contraditria do termo paisagem seria decomposta pela anlise cientfica, reduzindo a

    complexidade inerente ao conceito apenas sua imediaticidade fsica, ela prpria

    desarticulada, segundo as fronteiras recentemente delineadas entre as diversas reas

    disciplinares (Cf. Tress, B.;Tress, G., 2001, p.145).

    3. Colina da grande serpente (2000

    a.C. - ?) colinas-efgies

    Neolticas, realizadas pelos ndios

    da Amrica do Norte, esculturas em

    que o medium a prpria rocha da

    colina, ilustrao de uma

    interveno que se inscreve na

    paisagem e que advm de umarelao de leitura especfica da

    envolvente natural; arquitectura

    paisagista que precede o conceito,

    mas no ignora decerto a paisagem

    experienciada-instituda por uma

    cultura.

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    02. O NATURALISMO MODERNO O HOMEM: OBSERVADOR AUSENTE DA

    NATUREZA

    02.1 O nascimento das cincias modernas e o materialismo mecanicista

    A compreenso da conflitualidade inerente ao conceito de paisagem, enquanto objecto das

    cincias, tem inevitavelmente de considerar, a caracterizao dessas mesmas cincias e a

    viso de natureza, que o pensamento moderno descreveu e tornaria dominante, durante

    cerca de trs sculos. De facto, o estabelecimento de uma concepo complexa de

    paisagem tem de se fundar na compreenso da concepo simplificadora de natureza

    mecanicista difundida pelas cincias modernas e na exigncia do paradigma de

    objectividade inerente a estas, base legitimadora de um conhecimento, que se assumiu pela

    necessria excluso do homem dessa mesma realidade; passvel de anlise apenas por

    exumao das componentes subjectivas ou fenomnicas, intrnsecas apreenso humana

    do real.

    O materialismo mecanicista constituiu o projecto comum s mltiplas correntes do

    pensamento moderno, insurgidas contra a escolstica e o naturalismo pr-moderno (Cf.

    Lenoble, 1990, p.15), que desde o sc.XIII, atravs de Toms de Aquino, instituam a

    reunio da doutrina crist com a viso de natureza orgnica, que caracterizava a filosofia

    aristotlica. O pensamento medieval decorrente de uma adaptao das filosofias

    naturalsticas gregas, baseava-se na projeco das qualidades humanas na natureza,

    enquanto macrocosmo idealizado semelhana do homem, mediado por uma racionalidade

    imanente (Cf. Collingwood, 1986, p.107), contra a qual se havia insurgido no sc.XIII, a

    concepo teolgica de Toms de Aquino; atravs da distino do ser mundano da

    natureza, do ser divino e eterno, causa do devir ou mudana, intrnsecos ao mundo

    imperfeito da realidade terrestre.

    Tal como no pensamento grego o devir ou processo inerente a toda a matria, decorria de

    uma forma cclica, supondo-se uma interdependncia entre todas as coisas ditas naturais,

    que permeadas por uma causa final, se desenvolviam processualmente, no sentido de uma

    actualizao em direco a um forma ou essncia precisa, que proventa do acto criador

    divino, seria primeira e transcendente a toda a matria. Ao movimento ordenado do mundo

    celeste, perfeito na sua previsibilidade, distinguia-se a incompletude do mundo terrestre,

    mutvel e imprevisvel, numa cosmologia apenas unificada pela ideia de causa final,

    directora do devir imperfeito das coisas ditas naturais e terrenas; que tinham como nica

    condio de inteligibilidade, o pressuposto da obedincia aos desgnios divinos.

    O materialismo negaria este pressuposto de finalidade transcendente a toda a matria

    postulando uma metafsica ausente de causas imateriais, e desde a desprovida da ideia de

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    desenvolvimento, dando lugar a uma concepo da mudana, baseada meramente em

    causas eficientes, distintas de uma orientao teleolgica, mas antes marcadas pelo acaso

    do embate, atraco ou repulsa existente entre os corpos. (Cf. Collingwood, 1986, p.93)

    A cincia moderna nasceu da ruptura de uma aliana animista com a natureza; no seio do mundoaristotlico, o homem parecia encontrar o seu lugar, simultaneamente como ser vivo e serconhecedor; o mundo era sua medida; o conhecimento intelectual atingia o prprio princpio dascoisas, a causa e razo ltima do seu devir, o fim que as habita e organiza. (Prigogine; Stengers,1986, p.128)

    A concepo mecanicista da realidade encontrou os seus princpios fundadores, (...) no

    atomismo antigo e nas concepes astronmicas dos Gregos e Alexandrinos (...) (Cabral,

    [et al.], 1991, p.761), alcanando no entanto, a sua expresso mais desenvolvida apenas no

    sc.XVII, mais concretamente na doutrina fsica do Iluminismo de Newton. Este

    desenvolvimento implicou a ruptura da viso de natureza finalista da idade mdia e

    renascena, imbuda ainda do pensamento aristotlico, em que o homem projectava a suaalma, dando lugar a uma natureza matematizada, por Galileu e objecto da mestria do

    conhecimento cientfico, baseado no dilogo experimental, cuja veracidade era garantida

    pela racionalidade divina. A experincia consistia para Galileu no estudo directo da

    natureza, que deveria purificar-se no sentido de uma objectividade, apenas possvel pela

    excluso das componentes subjectivas das qualidades sensveis, isto no quantificveis.

    A matemtica torna-se o critrio de objectividade e Galileu procede efectiva (...)

    eliminao de toda e qualquer considerao finalstica ou antropomrfica do mundo natural

    (...) realizou completamente a reduo da natureza objectividade mensurvel e conduziu a

    cincia moderna sua maturidade. (Abbagnano, 1982,p.19)

    A excluso de todas as caractersticas que no pudessem ser quantificveis tratou-se da

    eliminao, das qualidades fenomenais ou dependentes da observao, e da sensibilidade

    esttica, que caracterizam a experincia sensorial e vivida da realidade; destituda assim de

    existncia objectiva e reduzida, pelo conhecimento cientfico emergente, a aparncia sem

    lugar designvel no mundo real. Ao contrrio da cincia aristotlica, na dependncia de uma

    atitude contemplativa, prpria da apreciao intrnseca relao humana de mundanidade

    com a natureza, a cincia moderna procede exumao dos dados qualitativos da

    experincia, que (...) pertencem unio dos espritos com os corpos. (Descartes Ap.Collingwood, 1986, p.116) e limita-se (...) a desenvolver e a consumar aquilo que j est

    em grmen na metafsica; (...) a tarefa que consiste em denunciar as opinies ingnuas,

    sensveis, em nome de uma verdade oculta acessvel apenas razo do homem da

    cincia. (Ferry, 2003, p.191)

    A unio grega da matria e do esprito deu lugar, com o pensamento teolgico

    transcendncia do esprito em relao ao corpo, pela necessria introspeco que o

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    encontro com o divino, tido como imanente ao esprito2, exigia, gerando um pensamento

    dualista, que tornado pleno com a doutrina das substncias cartesiana, opera uma disjuno

    na realidade; patente na incapacidade de conjugar o pensamento cientfico e a reflexo

    filosfica, a fsica e a metafsica, a natureza e a cultura ou sociedade, atravs da eliminao

    positivista do sujeito pelo realismo das cincias e pela negao metafsica do objectoatravs do idealismo moderno, e consequentemente do corpo, enquanto constitutivo do

    nosso lugar de encontro com o real.

    A natureza desta realidade cientfica poderia ser totalmente determinada pelo conhecimento

    das leis da mecnica, articulantes dos acontecimentos naturais tidos como independentes

    entre si, que formuladas matematicamente por Newton, atravs do clculo diferencial,

    resultavam da sntese de dois desenvolvimentos anteriores da fsica as leis do movimento

    de Kepler e a queda dos corpos formulada por Galileu (Cf. Prigogine; Stengers, 1986, p.99).

    O carcter reducionista, implcito nesta formulao independente dos fenmenos, teria sido

    primeiramente delineado por Francis Bacon (1620), atravs da sua teoria da induo das

    formas, segundo a qual o esclarecimento da forma caracterstica de uma propriedade

    natural implica o isolamento, (...) eliminando progressivamente, por sucessivas

    experincias, tudo o que, na realidade no tem relao com ela. (Ducass, 1963, p.63), at

    obter o resduo ou forma experimental da caracterstica em estudo. A induo requeria

    portanto uma fragmentao prvia, para que pudesse prosseguir atravs da eliminao das

    diferenas, sob o controle da experincia, ao entendimento do que era similar e compunha

    as leis gerais explicativas, da aparente diversidade dos fenmenos.

    Mas, apenas a sntese newtoniana permitiu o abandono da metafsica aristotlica,

    combinando o experimentalismo de Galileu e Bacon, com (...) a cincia das mquinas

    ideais, onde o movimento se comunica entre peas j em contacto, sem choques, nem

    atritos, e a cincia dos astros que se influenciam distncia (...) (Prigogine; Stengers, 1986,

    p.108), permitiria a reduo de todos os fenmenos aco de foras, constituindo uma

    explicao total e coerente, que caracterizaria o paradigma da cincia moderna. A

    concepo do mundo, enquanto massa inerte em movimento, poderia ser explicitada

    atravs da (...) reduo da mudana a um conjunto de trajectrias (...) (Prigogine;

    Stengers, 1986, p.102), cuja totalidade de estados, passados e futuros, o determinismo e a

    reversibilidade, como atributos fundamentais do sistema, permitiriam determinar, a partir do

    conhecimento de um dado inicial e da aplicao directa das leis universais.

    O espao dos fenmenos fsicos descritos pela dinmica, correspondia ao espao abstracto

    da geometria euclideana, destitudo de propriedades e inaltervel pelos prprios fenmenos

    fsicos, que nele ocorriam, absoluto, uniforme e matematizvel que, assim como o tempo,

    2 Na fsica pr-socrtica supunha-se a pertena e unio ntima do esprito ao corpo, mas o pensamentomoderno vai designar a transcendncia da alma em relao matria, seguindo uma orientao platonista,

    presente na obra filosfica de Santo Agostinho (sc. IV), em que o conhecimento de Deus e da verdade soconsiderados os objectivos nicos da reflexo e forosamente inacessveis sem uma procura unicamenteinterior.(Cf. Abbagnano, 1999, p.122-123)

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    constitua uma dimenso vazia, com funo apenas referencial, onde os elementos se

    movimentavam perpetuamente. De facto, o sistema newtoniano no [daria] sentido algum

    diferenciao do espao, constituio de limites naturais, apario de um funcionamento

    organizado, em resumo, a nenhum dos processos que o desenvolvimento de um ser vivo

    implica. (Prigogine; Stengers, 1986, p.136)

    Em contraponto a uma mudana ou devir orientados para uma viso aristotlica de

    actualizao de uma tendncia estruturante, organizadora da matria e origem da

    diversidade da natureza, o mecanicismo substitui uma ordem imutvel, a das (...) mquinas

    simples de movimento perptuo e igualmente as trajectrias dos planetas, que de ora em

    diante, so assimilados a seres naturais.(Prigogine; Stengers, 1986, p.362) semelhana

    da legalidade eterna, que antes definia o movimento dos corpos celestes em redor da terra,

    o mecanicismo postula a previsibilidade do mundo terreno, unificando-o esfera celeste,

    atravs da necessria universalidade das leis, que passam a determinar integralmente a

    evoluo do sistema a partir do conhecimento das condies iniciais; expressando uma

    causalidade linear, em que causa e efeito so equivalentes ou proporcionais, no

    determinismo prprio da natureza descrita pela dinmica clssica, (...) desprovida de

    histria e inteiramente determinada pelo seu passado; uma natureza indiferente, para a qual

    todo o estado equivalente, uma natureza sem relevo, plana e homognea (...)(Prigogine;

    Stengers, 1986, p.130).

    A fsica clssica realizaria a omisso do homem nesta descrio da natureza enquanto

    sistema dinmico, (...) totalmente independente da actividade experimental, da escolha dos

    pontos de vista e da seleco das propriedades pertinentes [mas tambm] o homem, na

    qualidade de habitante num devir natural nele inconcebvel (...). (Prigogine; Stengers,

    1986, p.131) A actividade cientfica desenvolvia-se sobre as fundaes do realismo

    moderno, na considerao dos factos isentos da sua interpretao, numa acepo positiva

    da independncia do dado em relao ao sujeito; o objecto de conhecimento no reside no

    sujeito, nem afectado pelas diferentes aproximaes, que consideram assim uma

    individualidade ahistrica, unidimensional e annima. Existe uma total transcendncia do

    objecto em relao ao sujeito, este reside para alm dele, atravs de uma identificao

    moderna do sujeito com a conscincia, com o pensamento, (...) por oposio ao objecto,

    que realidade em si das coisas independentemente do pensante que as pensa ou

    conhece. (Cabral [et al.], 1991, p.1339) Esta eliminao do sujeito emprico do prprio

    processo de conhecimento, efectuada pela cincia clssica, viria a ser assumida pela

    filosofia transcendental de Kant, cuja reflexo sobre as cincias culminaria na distino

    destas da filosofia, atravs da delimitao precisa dos seus objectos as cincias tratavam

    o fenomnico, encarregando-se a filosofia do numnico.

    O fenomnico, objecto do conhecimento cientfico para Kant, no corresponderia s coisas

    em si, mas sim ao que dado experincia, enquanto material ou emprico, e que

    modelado por uma ordem a priori, que determina (...) a linguagem nica que a cincia

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    decifra na natureza, o conjunto nico de pressupostos, que condicionam a fsica (...)

    (Prigogine; Stengers, 1986, p.146) e que caberia a uma crtica da razo esclarecer. Kant

    reconhecia a autenticidade do conhecimento fsico-matemtico da natureza e justificaria o

    realismo cientfico atravs do seu idealismo transcendental, j que este assentava nos

    elementos formais do conhecimento, a priorida experincia e logo imanentes ao esprito,garantiam uma veracidade e uniformidade universais, que (...) a crtica da razo pura

    [deveria] alcanar e realizar a possibilidade fundamentadora da cincia, o autntico saber

    humano. (Abbagnano, 2000a, p.111)

    Ainda que considerando os limites da experincia e reconhecendo a cincia, enquanto

    actividade activa de imposio de um cdigo sobre o real, este deriva das categorias a priori

    da razo o que lhe doaria a sua validade e carcter positivo, j que, segundo o filsofo, a

    investigao da razo (...) estar em grau de justificar a prpria experincia na sua

    totalidade, portanto tambm os conhecimentos universais e necessrios que se encontram

    no seu mbito. (Abbagnano, 2000a, p.111) Estaria, no entanto reservada filosofia a

    reflexo sobre o numnico, isto a realidade em si, ou antes o pensamento sobre os limites

    e possibilidades do conhecimento fenomnico ou cientfico, determinando a incapacidade

    reflexiva da (...) empresa cientfica como muda e sistemtica, fechada sobre si prpria.

    (Prigogine; Stengers, 1986, p.146) A filosofia consagra e estabiliza assim a situao de

    ruptura, abandona cincia o campo do saber positivo a fim de reservar para si a meditao

    sobre a existncia humana (...) (Prigogine; Stengers, 1986, p.146), ao rematar o que havia

    sido comeado, no sc.XVII, por Descartes, atravs da disjuno entre o sujeito pensante

    ego cogitans, tornado transcendente pela sua excluso do mundo objectivo, e a matria ou

    res extensa.

    A identificao da cincia com a vertente mecanicista, presente nas mltiplas correntes do

    pensamento moderno, viria a afectar todos os ramos do conhecimento, na sociedade

    iluminista do sc. XVIII e XIX, desde as cincias da natureza s cincias da sociedade, que

    ao se basearem no seu modelo de cientificidade, assimilavam as vicissitudes do

    determinismo e reducionismo, que lhe eram inerentes, participando da ntida excluso do

    homem, enquanto sujeito emprico e participante na construo desse mesmo

    conhecimento.

    4. Nicolas Poussin (1660-1664) Le

    quatro stagioni La Primavera, obra do

    pintor classicista, que procurava

    representar a paisagem atravs de uma

    natureza ideal, rigidamente ordenada

    como cenrio ou fundo para enredos

    mitolgicos, acentuando as

    preocupaes formais, ligadas

    inteligibilidade, em detrimento da

    exuberncia cromtica, relacionada pelopintor com os sentidos.

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    02.2 A natureza do romantismo e o positivismo cientfico

    O paradigma mecanicista, permaneceria a base dominante do pensamento cientfico do

    sc.XIX, usufruindo dos desenvolvimentos posteriores, que aplicavam o seu modelo s mais

    diversas reas do conhecimento, mesmo entre aquelas, que na tentativa de compreenso

    do funcionamento dos seres vivos, supunham a existncia de uma fora vital, inerente ao

    desenvolvimento vivo, mas entendiam, que esta no podia ser objecto de estudo cientfico,

    por no intervir de forma causal (Cf. Prigogine; Stengers, 1986, p.149).

    Mas, nos finais do sc.XVIII - incios do sc. XIX, surgem na Alemanha os indcios de um

    movimento literrio, artstico e filosfico, que pela sua transversalidade, se oporia a umaviso meramente materialista da natureza, enquanto puro sistema de foras mecnicas,

    constituindo a base do movimento romntico, enquanto (...) primeiro grande protesto contra

    o mundo moderno, isto a, civilizao cientfico-racional que comeara a formar-se no

    sc.XVII, e que assumira grandes propores no sc.XVIII. (Baumer, 1990, p.23).

    Designado por Sturm und Drang ou tempestade e impulso, este movimento procurava a

    (...) compreenso e esclarecimento daquilo que a razo no abarca, a vida, o sentimento, a

    arte e a natureza. (Abbagnano, 1978, p.223) Schiller e Goethe, seriam as principais figuras,

    que perfilhando este movimento, desenvolveram o tema da unidade entre natureza e

    esprito, e ao afirmarem a impossibilidade de alcanar a alma seno atravs do corpo (Cf.Abbagnano, 1978, p.228), desafiariam a ruptura cartesiana entre alma e matria, num

    revivalismo clssico da ideia de imanncia do esprito na substncia corprea.

    A ideia da irredutibilidade da experincia sensvel e esttica razo, consistiria a base

    fundamental do pensamento Romntico, que via nestas a forma privilegiada de

    compreenso profunda do mundo, reconhecendo, no seguimento do pensamento iluminista,

    os limites da razo, j formulados por Kant, no conhecimento das coisas ditas superiores ou

    identificadas com o numnico. Ao contrrio de Kant, que considerava a finalidade da

    natureza uma questo sem validade objectiva, Goethe cria que esta finalidade constitua aprpria estrutura dos fenmenos naturais (Cf. Abbagnano, 1978, p.229), definindo a

    existncia de um arqutipo ou linguagem da natureza, uma origem comum a todas as

    formas vivas e a partir da qual se processaria o desenvolvimento e metamorfose inerente a

    uma ideia romntica de natureza como processo, formulada pelo autor na obra A

    metamorfose das plantas.

    A ideia de evoluo inerente aos estudos naturais de Goethe, tornar-se-ia, fundamental no

    pensamento do sc.XIX, baseada no pensamento sobre a histria introduzido nas cincias

    naturais, atravs das descobertas da geologia e estudo dos fsseis, nomeadamente atravsdos trabalhos precursores de Hutton (1785), Lyell (1830) e Cuvier (1815), que indicavam o

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    pressuposto inegvel do desenvolvimento da terra, derivado da aco no tempo das foras

    naturais. De facto, at cerca do sc.XIX, como refere Engels (1882), na obra Dialctica da

    natureza, esta (...) no era, de forma alguma, considerada como algo que se desenvolvia

    historicamente, que tinha uma histria em termos de tempo; somente a extenso no espao

    era tida em conta; (...) a histria natural era vlida para todos os perodos, tal como asrbitas elpticas dos planetas. (Engels Ap. Baumer, 1990, p.103) A ideologia do

    evolucionismo relacionou-se ainda com a revoluo burguesa, que se expressou no declnio

    da sociedade feudal, atravs da alterao das relaes sociais e formas de ascenso ao

    poder, que implicitamente veicularam uma imagem de sociedade, que j no se pautava por

    relaes fixas, permitindo uma concepo dos sistemas naturais, sujeitos constncia das

    leis da mudana, numa perptua competio pela vida. (Cf. Lewontin; Levins, 1985, p. 236)

    A formulao em biologia do pensamento evolucionista, seria avanada por Lamark, no

    comeo do sc. XIX, que ao considerar a evoluo como resultado da aco do meio sobreos organismos, desencadeou a falncia da at ento aceite teoria da mudana, que

    postulava um universo esttico e imutvel desde a criao, sujeito apenas a alteraes

    infligidas pontualmente por aco divina. (Cf. Lewontin; Levins, 1985, p. 234) O papel dado

    ao meio, na diferenciao tanto dos organismos vivos como na alterao da superfcie

    terrestre, definia uma interaco, que permitiu conceber o devir dos seres, assim como

    traduzia a capacidade de um contexto mutvel influir sobre este mesmo desenvolvimento,

    servindo como contraponto viso de espao amorfo descrita pela dinmica. Darwin, em

    A origem das espcies (1859), ao sintetizar as obras anteriores do pensamento

    evolucionista, forneceria as provas necessrias para o abandono da concepo cartesianade mundo finalizado, como mquina construda pelo criador, sugerindo um universo

    enquanto sistema em evoluo e em permanente mudana, no qual a complexidade

    organsmica se desenvolvia a partir de formas mais simples, mas ainda assim, no

    cumprimento de leis fixas. (Cf. Capra, 1982, p.67)

    A ideia de evoluo em filosofia, desencadearia ainda no perodo romntico, uma viso da

    histria enquanto progresso, cedendo lugar substituio da razo limitada de Kant, por

    uma razo infinita existente em potncia e em estado de realizao contnua (Cf.

    Abbagnano, 1978, p.246). A cincia recupera o seu estatuto de actividade paradigmtica,desta razo ilimitada, atravs do positivismo, que enquanto manifestao filosfica do

    romantismo, abraa a ideia de progresso e identifica-o com a cincia tornada alvo de culto e

    expresso mxima das possibilidades humanas; ideia acentuada pelos avanos

    tecnolgicos, que sustentavam o auge da poca industrial, enquanto domnio humano da

    natureza atravs da mquina.

    Se o mecanicismo presidiu constituio de uma cincia positiva, isto uma cincia, que

    determina as relaes causais entre factos, depurados pelo mtodo cientfico da observao

    e manipulao humanas, seria a partir do sc. XIX, que o positivismo, enquanto exaltaoromntica da cincia (Abbagnano, 2000, p.70), determinaria a convico de que (...) o

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    homem deve regular-se pela natureza; e uma vez que a natureza no depende seno da

    cincia, da resulta que a cincia diz tudo e que as nossas certezas j no carecem de

    metafsica (Lenoble, 1990, p.317).

    5. Gustav Courbet (1870) O vale do Loue sob cu tempestuoso, este pintor exemplo do movimento

    realista assumia a representao do real em si, procurando silenciar, alis como o positivismo

    cientfico seu contemporneo, o acto representativo como interpretao baseada neste caso num

    cdigo icnico, procurando a similaridade com a paisagem real acedida pela experincia perceptiva,sempre parcialmente limitada pelo conhecimento ou representaes do real.

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    02.3 Da natureza como paisagem paisagem como objecto cientfico

    Paralelamente s representaes de natureza veiculadas pelo pensamento cientfico da

    realidade, que atravs do evolucionismo haviam encontrado uma ordem histrica e

    genealgica na realidade, j desde o Quattrocento as artes haviam descoberto na realidade

    uma ordem espacial representada na pintura, atravs da tcnica da perspectiva, que se

    assumiu como paradigma de representao no mundo ocidental. Enquanto tcnica, que

    visava a similitude com o real objectivo atravs de uma viso unidimensional e restrita a um

    ponto de vista fixo, no espao e no tempo, tornar-se-ia smbolo precedente da viragem, que

    constituiu a formao do individualismo moderno ou a (...) metafsica da subjectividade em

    que o homem ocupa um ponto de vista sobre o mundo a partir do qual este ltimo aparececomo um material manipulvel e dominvel sua vontade. (Francastel Ap. Ferry, 2003,

    p.230) As representaes pictricas viram o seu realismo acentuado, atravs das regras da

    perspectiva e a paisagem enquanto espao pictrico pode emergir, segundo o conceito

    positivo de espao tridimensional, onde o posicionamento dos objectos ou elementos definia

    a deformao segundo linhas de fuga e a atribuio de cor e valor, que permitiam a

    recriao da profundidade e distncia prprias de uma percepo esttica da realidade; tida

    enquanto espectculo que se desenvolvia defronte ou para alm do observador, numa

    relao de distanciamento caracterstica do paradigma de subjectividade moderno.

    Devido esttica naturalista do romantismo, a paisagem enquanto objecto esttico j

    presente na pintura, encontra um lugar proeminente na literatura, na transio do sc.XVIII-

    XIX, inicialmente sob influncia das narrativas de viagens, tornadas populares pelos estudos

    em geografia, rcem-criada disciplina cientfica, na Alemanha do sc.XIX.. (Cf. Salgueiro,

    2001, p. 40) A cristalizao da noo de paisagem veiculada pelas representaes

    pictricas, v-se assim ampliada ao campo do texto narrativo, onde a sua expresso

    encontra uma formulao distinta do sentimento de natureza, identificado por Buescu

    (1990), como situao de distanciamento entre o sujeito e o exterior natural. (Cf. Buescu,

    1990, p.88)

    Segundo a autora, o organicismo, desencadeou na esttica romntica, um progressivo apelo

    s sensaes, enquanto forma de contacto com a paisagem, sobrevindo o incio de uma

    indefinio entre o sujeito e o espao, que deixa de constituir o cenrio sobre o qual as

    personagens evoluem, para passar a ser um espao ou paisagem vivenciados (Cf. Buescu,

    1990, p.86). O pitoresco associado viso e j patente na pintura paisagista assim

    seguido no texto narrativo, de um investimento na descrio das sensaes de todos os

    sentidos, e a sinestesia surge como forma fundamental de expressar uma paisagem

    romntica corporizada atravs do sujeito. Esta integrao do sujeito romntico na natureza

    evidenciada pela literatura de fico, permitiu a explorao de uma dimenso at a oculta

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    da paisagem, enquanto forma de experincia sensorial, mas esta permaneceria reservada

    ao campo das artes, adiando a formulao de um conceito de paisagem, que ao abranger

    as vivncias humanas, considerasse esta, enquanto construo de sentido ou apreenso

    simblica.

    A ordem genealgica pressuposta pelo pensamento evolucionista da natureza, adoptada no

    domnio do pensamento cientfico, seria coetnea da emergncia nas artes, e

    nomeadamente na literatura, do conceito de nature as landscape (Maltzahn, 1994, p.109),

    motivado pela enfse dada ao sentimento e experincia esttica como complementares da

    razo; sendo possvel a irrupo da experincia sensorial como intencionalidade, ou

    construo mediada pelo imiscuir das categorias sujeito-objecto, na estruturao perceptiva

    da paisagem.

    Sob esta mesma herana da esttica naturalista do romantismo, a paisagem passa a ser

    considerada enquanto objecto de estudo cientfico (Cf. Salgueiro, 2001, p.38), na geografia

    de Humboldt e Vidal La Blache, mas como acepo reduzida soma total das

    caractersticas fsicas de uma regio (Cf. Humboldt Ap. Tress, B.; Tress, G., 2001, p.145).

    No seguimento destes estudos, a paisagem estudada pela geografia clssica, enfatizava a

    tipificao de morfologias, que derivadas de variveis fsico-naturais e culturais pediam uma

    sntese entre as cincias naturais e humanas, necessria a uma explicitao das marcas

    sedimentadas, com base na actuao de uma cultura e expresso da sua identidade.

    Da influncia da geografia clssica decorreu a abordagem morfolgica, que caracterizou a

    escola de Berkeley, identificada com Sauer (1925), que considerava o conceito de

    paisagem, enquanto associao de formas naturais e culturais: El paisaje cultural se crea,

    por un grupo cultural, a partir de un paisaje natural. La cultura es el agente, el rea natural el

    medio, y el paisaje cultural el resultado. (Sauer Ap. Anschuetz [et al.], 2001, p.164). O

    estudo da paisagem, deveria no entanto, restringir-se ao seu carcter material concreto,

    adoptando unicamente um ponto de vista cientfico, que restringia o estudo da interveno

    humana na paisagem aos aspectos visveis desta aco. Este trabalho de sntese

    naturalista e historicista, que inicialmente caracterizou o estudo descritivo das paisagens, foi

    cedendo lugar a abordagens segmentadoras, devido emergncia de um paradigma neo-

    positivista, que ao denunciar a subjectividade do discurso paisagstico, introduziu as noes

    de territrio e espao geogrfico, enquanto objectos de estudo principais, na geografia do

    sc.XX (Cf. Domingues, 2001, p.57).

    De facto, a dualidade do conceito, seria criticvel pela comunidade cientfica, por evocar a

    cultura enquanto agente interveniente na paisagem, o que introduzia dificuldades na procura

    de uma definio directa, consensual e quantificvel do que participava da constituio

    efectiva do objecto de estudo, que deveria necessariamente manter-se ao nvel da

    concretude dos seus aspectos materiais. Este debate expressaria de forma significativa a

    polmica, que caracterizou a procura e abandono da definio de paisagem ao longo do

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    sc.XX, devido influncia de uma viso moderna da natureza, da qual o homem se

    exclua, atravs da eliminao das componentes simblicas, enquanto parte integrante do

    conceito. Apenas assim seria possvel uma definio total e nica, como o paradigma de

    simplificao moderno assim o exigia, adoptando a via da racionalizao, que como Morin

    refere, procura encerrar a realidade num sistema coerente, desviando as contradies aesse sistema pr-definido, em favor de uma viso unidimensional (Cf. Morin, 1991, p.85).

    A persistncia do conceito, enquanto objecto disciplinar deve-se sobretudo emergncia da

    arquitectura paisagista, presente enquanto escola paisagista desde o sc. XVIII, com um

    mbito de aco restrito ao projecto de parques e jardins, viria a integrar na Europa os

    cursos universitrios apenas a partir dos anos 30, incidindo sobre a interveno na

    paisagem humanizada, tida como (...) figurao da biosfera [que] resulta da aco

    complexa do homem e de todos os seres vivos (...) em equilbrio com os factores fsicos do

    ambiente. (Cabral, 1984, p.1072) Enquanto figurao, a paisagem expressa no conceito de

    Cabral (1984) apela para a sua dimenso esttica, pressupondo o homem enquanto agente

    de uma cultura e origem dessa imagem, que integra j (...) significados ecolgicos e

    culturais [ao] incluir por um lado os ecossistemas que lhe esto subjacentes e lhe deram

    origem, e, por outro, os processos de humanizao (...) (Magalhes, 2001, p.51), numa

    sntese que indicia o incio da superao da contradio fundamental inerente ao conceito

    de paisagem; enquanto espao concreto e enquanto apreenso simblica da realidade, em

    que sujeito e objecto se integram dialogicamente. A maior abrangncia do conceito, tida no

    mbito da arquitectura paisagista, deriva necessariamente do facto de se ter constitudo, em

    alguns pases da Europa, entre os quais Portugal, enquanto actividade assente numa

    perspectiva transdisciplinar, englobando conhecimentos das cincias naturais e do

    funcionamento ecossistmico subjacente paisagem, num mtodo que ao ter por objectivo

    final a formalizao, inclui as disciplinas artsticas por mediadoras.

    A concepo do funcionamento complexo inerente a uma perspectiva ecossistmica da

    paisagem, emergeria apenas a partir da segunda metade do sc. XX, atravs da

    constituio de uma ecologia holstica apoiada pelos avanos cientficos, que dispersos por

    diversas reas, convergiram na reificao da sistmica, contribuindo para a construo de

    uma acepo de natureza ps-moderna. O paradigma de objectividade das cincias

    modernas afectaria, assim as abordagens da paisagem, ao longo do sc. XX, tida enquanto

    territrio ainda actualmente, ignorando os pressupostos ecolgicos e os simblicos; quer por

    uma concepo redutora do seu funcionamento, quer pela incapacidade de conceber o seu

    carcter complexo, retalhado pelas fronteiras disciplinares ou pela coerncia, que privilegia

    a unidimensionalidade contradio, respeitando a doutrina cartesiana de definio dos

    conceitos pelos seus limites, em favor da clareza e distino, caracterizadoras do

    pensamento disjuntivo (Cf. Morin, 1991, p.9).

    A acepo de paisagem enquanto resultado da integrao criadora entre sujeito e espao-

    objecto, exigiria assim uma nova concepo de objectividade cientfica ps-modernismo

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    cientfico, que ao supor a interaco com a realidade derivada da observao da realidade

    microfsica colocar, ao nvel da fsica a relatividade inerente observao, da at a

    considerada, uniformidade do real. A expanso desta ruptura, teria por sua vez

    consequncias, que reverberariam por todas as reas de conhecimento e levariam

    sobretudo, a partir do aparecimento do paradigma da complexidade, na dcada de 70, noseio das disciplinas cientficas, viso das consequncias derivadas da mutilao de

    conceitos, devida fragmentao operada no interior das cincias, mas sobretudo ciso

    entre as cincias, filosofia e artes. Esta ocasionou a incapacidade de descrever o carcter

    plural da paisagem, enquanto experincia corporal, esttica, e marcadamente cultural,

    derivada de uma criao sujeito-objecto, fruto de experincias perceptivas singulares. Estas

    primeiramente esboadas pela natureza como paisagem do romantismo literrio, sendo

    claramente no redutveis s descries objectivas das disciplinas cientficas, sero a tempo

    oportuno abordadas neste trabalho.

    6. WilliamTurner (1844) Chuva, vapor e velocidade O grande caminho-de-ferro Ocidental, uma

    das paisagens mais conhecidas do movimento romntico, que expressou o sublime da natureza, esse

    excesso que preside a uma experincia da paisagem, em que imiscuindo as emoes do autor narepresentao,como forma de exaltao da sensibilidade, instituinte de uma paisagem intencional,

    enquanto resultado da integrao criadora entre sujeito e espao-objecto.

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    03. O NATURALISMO PS-MODERNO O PAPEL DO HOMEM COMO CONCEPTOR

    DA NATUREZA

    03.1 O ps-modernismo cientfico e a ideia de natureza contempornea

    A transio do sculo XIX para o XX, seria caracterizada pela dominante perspectiva neo-

    iluminista, mas assistiria formao de correntes antagnicas ao positivismo, que

    designadas por fin-de-sicle (Cf. Baumer, 1990, p.129), incidiam criticamente sobre a

    interpretao mecanicista da teoria darwiniana e implcito determinismo da natureza,

    caracterizada pela permanente sujeio a leis fixas, num automatismo reactivo sperturbaes do ambiente, na qual a criao no encontrava lugar. A filosofia da mudana

    de Bergson, presente na sua obra A evoluo criadora (1907) e influenciada pelo

    pensamento de devir nietzscheano, constitui um dos focos da enfse dada por este grupo

    de pensadores, ao papel da criatividade, que embora mencionada por Darwin, havia sido

    ignorada em favor de uma viso mais consentnea com o pensamento cientfico; que

    vinculado directamente com o progresso tecnolgico simbolizado pela mquina, persistia

    numa viso da natureza rgida, sujeita mudana apenas pela actuao de mecanismos.

    O cientismo, ou reduo de todas as formas de conhecimento ao modelo cientfico-racionalista, permitia assegurar a estabilidade e ocultava as ideias de indeterminao

    natural, que persistiam com um carcter marginal, pela imposio da ideia de progresso,

    num mundo onde a mudana ou devir j haviam, no entanto, irrompido e eram acentuados

    pelas filosofias vitalistas, que como a bergsoniana contestavam a ideia de tempo, enquanto

    (...) essncia eterna e inerte (...) uniforme como espao (...) (Baumer, 1990, p.138), que

    patente nas ideias de mecanismo e tambm de finalidade rgida e necessariamente

    progressista, impunham uma imagem de natureza onde (...) tudo dado; as foras pelas

    quais a natureza animada esto todas determinadas e organizadas previamente.

    (Bergson Ap. Baumer, 1990, p.138) Em contraponto ao tempo reversvel marcado pelahomogeneidade dos estados, que dominava ainda o pensamento cientfico, Bergson define

    a durao real, insistindo na persistncia de um devir espiritual, que derivado da sua

    interpretao do evolucionismo naturalista, seria ao mesmo tempo conservao e criao

    total, (...) uma vez que nela [memria] cada momento, embora seja resultado de todos os

    momentos anteriores, absolutamente novo em relao a eles. (Abbagnano, 2000b, p.69)

    O conceito de irreversibilidade intrnseco ao pensamento de Bergson, j havia sido

    introduzido no pensamento cientfico, pela termodinmica, cincia da energia, emergida em

    pleno sc.XIX, com os trabalhos de Sadi Carnot (1824), mas esta contribuiu inicialmente,

    pela formulao do princpio de conservao da energia, para assegurar (...) a exignciageral de inteligibilidade da natureza (...) o postulado de uma invarincia fundamental para

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    alm das transformaes naturais. (Prigogine; Stengers, 1986, p.179) Seria, no entanto a

    partir desta cincia nova, que ocorreria a associao inovadora entre conservao e

    irreversibilidade, como caso ampliador da dualidade conservao-reversibilidade tida como

    conceito base da mecnica, que se provou no ser aplicvel s transformaes fsico-

    qumicas, marcadas pela irreversibilidade; abordada por Clausius (1850) na suainterpretao do ciclo de Carnot, mas primeiramente conceptualizada atravs da segunda lei

    da termodinmica por William Thomson (1852), ao acentuar a existncia de uma dissipao

    irreversvel de calor, ou degradao da energia inerente s transformaes em sistemas

    fechados, caractersticos desta termodinmica clssica (Cf. Prigogine; Stengers, 1986,

    p.182-187). Os sistemas tenderiam para um estado final, caracterizado pela cessao de

    toda a actividade e de todas as diferenas originrias passveis de gerar efeitos o estado

    de equilbrio trmico. Essa dissipao tendencial a toda a transformao termodinmica,

    seria associada por Clausius (1865) ao timo grego entropia, operando a introduo na

    fsica de um objecto, que (...) contrariamente ao objecto dinmico, nunca controladoseno parcialmente; pode acontecer-lhe escapar-se numa evoluo espontnea, porque

    para ele nem todas as evolues se equivalem. (Prigogine; Stengers, 1986, p.195) Este

    princpio de degradao da energia, ou perda da capacidade de trabalho, seria associado

    por Boltzman (1877), a um estado de desordem molecular, j que o calor a energia

    prpria aos movimentos desordenados das molculas (...) todo o aumento da entropia um

    aumento da desordem interna (...) [formulando-se] em termos de organizao e

    desorganizao, visto que a ordem de um sistema constituda pela organizao

    (...)(Morin, 1997, p.39)

    Nos finais do sc.XIX, assumem-se desta forma duas vias diametralmente opostas e

    complementares ao conceito de evoluo reversvel da mecnica o tempo entrpico e a

    probabilidade crescente e irreversvel da desordem e desorganizao, caracterstica dos

    sistemas fechados e a evoluo criadora da organizao viva. Esta ambiguidade

    permaneceria em parte silenciada, pela crena na distino entre organizao fsica,

    associada a uma evoluo irreversvel para a desorganizao entrpica e organizao viva,

    que baseada numa matria especfica, tenderia inversamente para o desenvolvimento (Cf.

    Morin, 1991, p.74). Essa especificidade permaneceu ignorada pela necessria

    universalidade das leis, que evidentes no mbito da organizao fsica, permitiriam aindaexplicitar os processos naturais, que reduzidos ao nvel fsico, exprimiriam uma similar

    simplicidade. A universalidade determinava uma equivalncia das leis inerentes a

    fenmenos operados a escalas diferentes e ainda que se pudessem verificar nveis de

    organizao distintos, como por exemplo os verificados no domnio biolgico, a contnua

    reduo ao qumico e ao fsico, permitiria encontrar a inteligibilidade suficiente e completa. A

    complexidade inerente s transformaes naturais era portanto encarada como apenas uma

    dificuldade de clculo, inerente a um sistema em que o maior nmero de interaces,

    constitua a nica diferena, mas apenas de uma forma quantitativa e logo passvel de ser

    reduzida.

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    A generalidade das leis clssicas, seria no entanto enfraquecida, no campo prprio da fsica

    atravs da teoria da relatividade, formulada por Einstein no primeiro decnio do sc.XX,

    atravs da descoberta da existncia de um comportamento diferenciado qualitativamente,

    consoante a escala fsica dos objectos, ligado por sua vez sua velocidade, o que

    determinava a impossibilidade da homogeneidade do universo (Cf. Prigogine; Stengers,1986, p.304). Segundo este autor, o isomorfismo de escala, que era implcito ideia da

    universalidade, havia permitido explicitar comportamentos de objectos a escalas diferentes,

    segundo leis comuns, e a mecnica newtoniana teria sido assim ampliada do domnio dos

    objectos dinmicos, como os corpos celestes e os pndulos, a todo o universo; o que partir

    da relatividade foi realado pela incapacidade de (...) imaginar o tomo como um pequeno

    sistema planetrio. Os electres pertencem a uma escala diferente da dos planetas e do

    conjunto de seres macroscpicos, macios e lentos, de que ns fazemos parte. (Prigogine;

    Stengers, 1986, p.304)

    Mas a teoria da relatividade, mais concretamente a relatividade restrita definida por Einstein

    (1905), colocou em causa o prprio estatuto da objectividade cientfica, atravs da afirmao

    (...) de que a distncia espacial ou temporal no uma entidade ou valor em si, sendo

    antes relativa ao corpo que se escolhe como sistema de referncia; (...) [negando] a

    existncia de qualquer sistema de referncia privilegiado. (Abbagnano, 2000c, p.101) Esta

    formulao explicitava a dependncia de todos os conceitos fsicos em que o espao-tempo

    intervinha, do sistema de referncia em que se encontrava o observador, sendo possvel a

    passagem entre dois sistemas de referncia atravs das equaes definidas por Einstein.

    Esta relao entre referenciais diferentes, consistia na abertura da ideia de que a

    uniformidade no era inerente aos fenmenos, que de facto seriam percebidos de forma

    diversa, por observadores diferentes, mas constitua atributo das prprias leis cientficas,

    (...) transferindo assim a prpria noo de objectividade dos fenmenos para as leis.

    (Abbagnano, 2000c, p.102)

    Operava-se assim uma mudana fundamental no conceito de objectividade, que

    pressupunha pela primeira vez a referncia ao observador, enquanto ser fsico, investido na

    descrio dos fenmenos, em contraponto ao seu total apagamento na fsica clssica,

    estabelecendo a entrada dos (...) procedimentos e mtodos de medida, assim como a

    prpria aco do observador (...) na verdadeira anlise cientfica. (Abbagnano, 2000c,

    p.101) A relatividade restrita, constituiu igualmente uma reforma, pela ruptura da ideia de

    espao esttico, atravs da associao das duas variveis espao e tempo, no conceito

    de acontecimento, onde estas constituam dimenses indestrinveis. A aplicao da teoria

    precedente a sistemas gravitacionais, mediante a teoria da relatividade geral (1912),

    permitiu completar esta mutao do conceito de espao, atravs da perda da

    homogeneidade, pela assuno da sua descrio mediante geometrias no-euclideanas,

    anteriormente formuladas por Riemann e agora aplicadas por Einstein, como modelo de

    toda a realidade fsica.

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    A confirmao do papel do observador/conceptor, na constituio da realidade cientfica

    proposta pela relatividade de Einstein, seria efectuada pelos estudos dedicados fsica

    atmica, nomeadamente atravs da interpretao da constante de Planck (1900) elaborada

    por Heisenberg no princpio de indeterminao (1927), segundo o qual, escala do tomo, a

    descontinuidade dos fenmenos tornaria imprevisveis os efeitos da observao, o queimpedia a clssica atitude de negligenciar os resultados dessa interaco (Cf. Abbagnano,

    2000c, p.103). Desta forma, o determinismo absoluto banido das explicaes que

    envolvem o esclarecimento do comportamento das partculas, pois devido aco do

    observador sobre elas, introduzida uma indeterminao, que permite apenas uma

    descrio probabilitria dos futuros estados possveis, inibindo a possibilidade de previso

    rigorosa, como a causalidade inerente ao mecanicismo permitia.

    A objectividade dos sistemas qunticos, estabeleceu-se assim pela acentuao no apenas

    do papel do observador, mas numa dependncia das interaces entre partculas do todo

    contextual, de uma forma tal, que as caractersticas do tomo no podiam ser induzidas das

    partculas, mas os caracteres das partculas que s poderiam ser compreendidos em

    referncia organizao do tomo (Cf. Morin, 1997, p.95). As partculas tidas enquanto

    entidades ltimas e estveis, s podiam ser concebidas segundo inter-relaes ou

    acontecimentos, verificando-se a existncia de relaes no-locais e no causais entre

    elementos distantes (Cf. Bohm, 1983, p.175), portanto dependentes da dinmica total do

    contexto envolvente e assumindo padres de comportamento duais enquanto corpsculo

    ou onda, ou estados intermdios, sem que houvesse uma necessria continuidade entre

    estados. Esta dualidade de comportamento introduziu uma contradio lgica, que aodesafiar o princpio da identidade indiciava a persistncia do domnio microfsico reduo a

    um modelo ordenado, que se conformasse coerncia das leis; revelando uma desordem,

    que segundo Morin, ao contrrio da desordem termodinmica associada a uma degradao

    da energia, seria de carcter constitucional, inerente prpria existncia da matria fsica.

    (Cf. Morin, 1991, p.42)

    A descoberta da linguagem que permite a descrio do sistema quntico passa a ser

    considerada como uma proposta parcial, ao contrrio da ideia clssica da possibilidade de

    definio de uma frmula total, de onde seria possvel deduzir a diversidade dos fenmenos

    naturais, encerrando a pluralidade de pontos de vista possveis de conceber, acerca daquele

    aspecto da realidade. Seria a ideia de parcialidade da escolha da linguagem conceptual, que

    Bohr (1928) esboa no princpio da complementaridade, segundo o qual, nenhuma

    representao matemtica, (...) pode esgotar a realidade do sistema; as diferentes

    linguagens possveis, os diferentes pontos de vista tomados sobre o sistema, so

    complementares, todos tratam da mesma realidade, mas no podem ser reduzidos a uma

    descrio nica. (Prigogine; Stengers, 1986, p.319) Esta incapacidade de unir

    conceptualmente as vrias formas de manifestao do sistema reflecte apenas a forma

    singular como cada observao afecta a realidade microfsica, excluindo-se assim a

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    possibilidade de distinguir uma conexo causal entre acontecimentos, que legitime a

    infinitude total de estados passveis de serem provocados.

    Operou-se assim atravs da teoria dos quanta, a distino que marcaria a ruptura do ideal

    descritivo da cincia, da capacidade de descobrir a realidade fsica em si, isto independente do modelo que a actividade cientfica prope na forma escolhida de se lhe

    dirigir; permitiu a considerao dos mtodos utilizados, introduzindo uma reflexividade num

    conhecimento, que desde as suas origens no sc.XVII, sob o desgnio da legitimidade

    divina, ou da razo infinita, se permitiu ver como decifrador das coisas em si. Mas esta

    indeterminao no considerada como inerente ao real, ela releva da interaco das

    condies de observao com o sistema alvo, pelo que passam a elaborar-se (...)

    esquemas explicativos nos quais a conexo necessria entre os acontecimentos

    substituda pelas conexes possveis e pela considerao do clculo dos seus respectivos

    graus de possibilidade, isto pela sua probabilidade relativa. (Abbagnano, 2000c, p.104)

    A alterao do quadro epistemolgico desencadeada pela mecnica quntica abrangeu no

    apenas o conceito de objectividade cientfica, mas definiu um abandono do reducionismo,

    numa acepo dupla, por conceber a organizao do tomo, como explicativa das

    propriedades das partculas e escala da experincia, atravs da descoberta da inevitvel

    integrao do observador, como interveniente na organizao do sistema quntico, no

    apenas do ponto de vista formal, mas sobretudo fenomenalmente. A reforma permitida pela

    teoria quntica, introduziria assim no campo da fsica, uma viso holstica da realidade,

    enquanto composta por (...) estruturas cujos membros constituem funes relacionais.(

    Cabral [et al.], 1991, p.1181)

    A impossibilidade de um conhecimento positivo e infinito da realidade seria igualmente

    confirmada pelas formulaes de Sahnnon (1948), na designada teoria da informao, que

    ao demonstrar a deformao das mensagens pelo rudo durante o processo de transmisso,

    viria a generalizar a existncia necessria da desordem, devido s inevitveis perdas de

    informao, geradas por interferncia do acaso (Cf. Abbagnano, 2001, p.104). Ordem e

    desordem surgem pela primeira vez associadas num modelo terico, que pautado pela

    objectividade, previa a ampliao transversal aos vrios domnios do conhecimento e as

    derivadas implicaes filosficas, inerentes a uma viso da experincia humana como

    parcial, j que (...) uma informao infinita impensvel e impossvel (...) (Brillouin Ap.

    Abbagnano, 2001, p.105). As perdas de informao seriam comparadas por Shannon,

    Wiener e Brillouin degradao da energia nos sistemas fsicos fechados, exposta na

    segunda lei da termodinmica (Cf. Abbagnano, 2001, p.104), associando-se assim a

    informao efectivamente transmitida, a uma forma de entropia negativa, resduo de

    significado que soobraria aps os efeitos do rudo, sendo de carcter improbabilitrio.

    perda da capacidade de realizar trabalho devido degradao da energia sob a forma de

    calor, estipulada pela termodinmica do equilbrio, equivale assim, na teoria da informao,

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    perda da capacidade de comunicar, devido introduo perturbadora de elementos de

    desordem no processo de transmisso da mensagem.

    Atravs dos trabalhos de Wiener (1948), a teoria da informao foi associada pela

    ciberntica ao estudo dos processos de comunicao, enquanto forma de auto-regulao econtrolo em sistemas artificiais ou naturais, introduzindo a noo de feedback, enquanto

    forma de retardar os efeitos do rudo. Esta regulao estaria na base do funcionamento dos

    organismos vivos, dependentes de um padro de organizao circular ou recursivo, que

    Wiener (1950) supunha, numa analogia mecanicista, comum s mquinas e que permitia

    quebrar a linearidade da relao entre causa e efeito. Atravs deste padro, os organismos

    podiam corrigir erros, ou adequarem-se a alteraes, atravs da aco ou antes retroaco,

    dos efeitos sobre as causas. Esta recursividade estaria na base do comando ou regulao,

    baseado num sistema de informao fechado, que ao pressupor a influncia ou ligao

    entre os seus elementos, mais uma vez assumia a ideia de interdependncia, interaco e

    transformao das partes na constituio qualitativa do comportamento do todo.

    A questo da organizao biolgica e a resoluo da aparente contradio inerente sua

    evoluo, quando equacionada com a tendncia irreversvel para a desordem

    termodinmica, seria abordada pelo bilogo Bertalanffy nos anos 40, ao efectuar uma

    sntese dos conceitos da teoria da informao e da ciberntica, e sua aplicao ao estudo

    dos sistemas vivos, considerados como sistemas abertos. Segundo os desenvolvimentos

    desta concepo na sua obra Teoria geral dos sistemas dos anos 50, a evoluo para

    ordens de crescente complexidade, intrnseca ao desenvolvimento dos sistemas vivos,estaria relacionada com a sua condio de abertura ao meio envolvente, que permitindo a

    importao de matria, compensaria o acrscimo de entropia devida aos processos

    irreversveis ocorridos no seu interior (Cf. Bertalanffy, 1968, p.106). Este tipo de sistemas,

    ao contrrio dos definidos pela termodinmica, caracterizavam-se pela tendncia a procurar

    um estado estacionrio de no-equilbrio, possvel por uma auto-regulao, que semelhante

    definida pela ciberntica e formulada por Cannon (1932) sob a designao de

    homeostasia, estabelecia uma aparente constncia possvel apenas, atravs de um

    contnuo estabelecimento de fluxos de matria e energia com a sua envolvncia,

    assegurando uma permanente regenerao dos constituintes.

    Um dos caracteres definidores da singularidade da organizao viva, seria a equifinalidade,

    propriedade que permitia, perante uma pluralidade de condies iniciais diferenciadas e

    sujeio a perturbaes, o alcance sistmico de um estado estacionrio semelhante,

    provento de fenmenos de auto-regulao. Este estado estacionrio de no-equilbrio havia

    sido definido por Onsager (1931), ao esboar as primeiras formulaes da termodinmica

    linear de no equilbrio, descrevendo o estado estacionrio, enquanto um comportamento

    geral e previsvel, caracterizado por uma produo de entropia constante, possvel atravs

    da compensao da entropia derivada dos processos irreversveis, por um fluxo de calor ou

    matria vindo do meio (Cf. Prigogine; Stengers, 1986, p.215). A independncia do tempo

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    que define o estado estacionrio, encontrava-se implcita na noo de equifinalidade,

    mencionada por Bertalanffy, como caracterstica dos sistemas abertos, mas (...) como a

    evoluo para o equilbrio a evoluo para o estado estacionrio significa o esquecimento

    das condies iniciais particulares (...) [representando] uma evoluo para um estado

    inteiramente dedutvel a partir de leis gerais (...) [identificando-se] com um devir geral, e demodo algum com um devir complexo (...) (Prigogine; Stengers, 1986, p.216).

    A estabilidade que caracteriza o estado estacionrio implica que o comportamento do

    sistema seja em si to simples, no que respeita ao papel do tempo, quanto o que se verifica

    no estado de equilbrio, pelo facto de no se operarem alteraes singulares nas

    propriedades estruturais It is therefore also impossible for him [the system] to develop an

    intrinsic conception of time, for the perception of time involves an awareness of change, and

    there is no change. (Prigogine; Nicolis, 1989, p.10) A irreversibilidade no seria portanto

    considerada, enquanto condio da morfognese; o tempo irreversvel no possui em si umcarcter diferenciador, j que a evoluo para o estado estacionrio independente do

    tempo, pressupe alis o esquecimento das condies iniciais e estabelece a indiferena ao

    percurso de estados passados do sistema. A equifinalidade, enquanto regularidade e

    previsibilidade inerente e caracterstica do comportamento dos sistemas vivos, surge como

    expresso residual do paradigma clssico, que estabelece a invarincia entre estados

    futuros de sistemas com diferentes histrias, como condio fundamental de controle, de

    conhecimento total e absoluto. As cincias da mudana puderam nascer apenas enquanto

    cincia do invariante (...)(Ceruti, 1995, p.167), disciplinadas por uma quadro epistemolgico

    em que dominava: (...) uma perspectiva tendente a considerar a mudana como dedutvel, e mais, como controlvel, apartir do conhecimento o nico verdadeiramente cientfico dos aspectos invariantes enecessitantes dos fenmenos (...) [e] se viram na estranha condio de serem obrigadas a tentarreduzir a variedade e multiplicidade dos processos evolutivos por elas estudados a uma srie dencleos substancialmente invariantes e atemporais (Ceruti, 1995, p.167)

    A termodinmica linear do no-equilbrio constitua a nica formulao matemtica

    contempornea desta primeira sistmica, pelo que se encontrava adiada a resoluo, da

    considerada dissidncia, entre a ordem e complexidade da organizao viva e a desordem

    tendencial da fsica, que permaneciam assim, conceitos antagnicos e inconciliveis. Aformulao dos sistemas vivos enquanto abertos, permitiu conceber os fluxos enquanto

    capazes de contrabalanar os efeitos da produo de entropia, atravs dos processos

    irreversveis, mas na primeira sistmica encontra-se ainda ausente a funo basilar da

    desordem, enquanto pr-condio gensica para o estabelecimento da organizao. O

    paradigma da ordem clssica, com estatuto de lei, e da estabilidade permaneciam, ainda

    que houvesse o salientar do estado de desequilbrio, enquanto caracterizador dos sistemas

    vivos; a irreversibilidade no possui, na formulao inicial da sistmica, papel determinante

    na criao ou morfognese, mas constitui antes facto inevitvel, da necessria conciliao

    terica com a termodinmica, mero condicionamento solucionado pelo sistema, atravs dagesto dos fluxos dissipativos.

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    S atravs da unio entre as ideias de coaco ou imposio e singularidade ou acaso, se

    estabeleceria a base do pensamento da organizao viva ou complexa, cuja originalidade, j

    para Von Neumann (1950), residia na capacidade para funcionar com a desordem. O papel

    da desordem, seria tambm desta forma abordado no campo da ciberntica, atravs de VonFoerster (1959), que caracterizou a ordem prpria da organizao viva na dependncia

    constitucional da desordem, atravs da expresso order from noise, mostrando (...) que o

    encontro entre algumas coaces elementares e energias no-direccionais produz novas

    formas de organizao, ou seja, desenvolve ordem. (Morin, 1984, p.84). O apelo

    reconciliao destas antinomias, considerado desde os anos 50 como crucial na

    compreenso dos funcionamento das estruturas vivas, em reas diversas do pensamento

    cientfico, veio a ser confirmado nas ltimas dcadas, sendo actualmente assente, que no

    existe uma ordem eterna, h antes um dilogo ordem-desordem pela organizao, uma vez

    que (...) a inovao, que comporta um aspecto aleatrio, vai, suscitando a formao de uma

    estrutura-forma estvel, [e inscreve-se] na repetio, ou sej