S exta P arte
A saga da ra inh a das ciências: Os escolásticos reavivam e
entronizam a teologia 317
21. A nselmo e Abelardo especulam sobre os cam inhos de D eus
323
22. Tomás de A qu ino resu m e a verdad e cristã 339
23. O s nom inalistas, os reform adores e os hum anistas desafiam a
síntese escolástica 357
Sét ima P arte
Uma nova guinada na narrativa: A igreja ocidental é reformada
e
dividida 379 24. Lu tero redescob re o evang elho e divide a
igreja 385 25. Zu íng lio e Calvino organizam o pen sam ento
protestante 407 26. O s anabatistas voltam às raízes do
cristianism o 425 27. Rom a e C antuária seguem cam inhos
separados, mas
para le los 441
O itava P arte
O ce ntro do en redo se fragm enta: Os protestantes seguem
caminhos diferentes 463
28. O s arm inianos tentam reform ar a teologia reformad a
465
29. O s pietistas procu ram reno var a teologia luterana 485
30. O s pu ritanos e os m etodistas esforçam -se para
reavivar
a teologia inglesa 505 31. O s deístas tentam transfo rm ar a
teologia pro testan te 531
N ona P arte
A tram a ge ral se divide: Os liberais e os conservadores respondem
positivamente à modernidade 547
32. A teologia liberal ajusta-se à cu ltura m od erna 553 33. A
teologia conse rvado ra consolida as categorias
tradicionais 569 34. A neo -ortod ox ia transcend e a divisão 585
35. A teologia con tem porâ nea enfren ta a diversidade 607
C onclusão: O futu ro de um a história inacabada 629 N otas
633
índ ice remissivo 661
Abreviaturas e informações gerais ao leitor
LN os prim eiro s cap ítulos de ste livro são freqü en tes as
referências aos escritos dos
prim eiros pais da igreja, conform e contidos nas seguin te s
coleções: The atite-Nicene
fathers: translations o f the writings o f the fathers down
to A .D . 325, ed., Alexander Roberts
e Jam es D onaldso n, 10 vols., G rand Rapids, Eerdm ans,
1988; A select library o f the
Nicene and post-Nicene fathers o f the Christian
Church, ed., Philip Schaff, 14 vols.,
G rand Rapids, Eerdm ans, 1984; c A select librar) of Nicene
and post-Nicenefathers o f the
Christian Church, segu nda série, ed., Philip S cha ff e H en
ry Wace, 14 vols. Grand
Rapids, Eerdmans, 1984 (coletâneas idênticas também são publicadas
pela editora
Hendrickson, de Peabody, Massachussets.). Essas coleções estão
geralmente à dis
posição nas bib liotecas de sem in ários e univers id
ades.
A documentação nas notas no fim do volume fará referência a essas
coletâneas
m ediante o em prego das iniciais e dos núm eros dos volum es. a n
i ; refere-se à série
de Ante-Nicenefathers, n p n í : refere-se à
série Nicene and post-Nicenefathers ofthe
Christian
Church e a segunda série de Nicene and
post-Nicene fathers o f the Christian Church será
designada po r n c p f 2 . Essas abreviaturas serão seguidas
pelo n úm ero do volum e.
Todas as datas deste livro são d.C., exceto quando especificadas
pelo contrá
rio, a.C. N a m aioria dos casos, os anos do n ascim ento e da m
orte de um a pessoa
são registrados um a ún ica vez en tre p arênteses logo após a
primeira menção do seu
nom e. O s anos en tre parênteses após o nom e de governantes e
papas referem -se
ao período de reinado e não ao tempo de vida. Os termos técnicos
teológicos e
filosóficos em geral são definidos quando aparecem pela primeira
vez. Use o
índice para localizar a primeira aparição e definição de qualquer
termo que lhe
pareça estranho.
Prefácio
J A s pessoas vivem das histórias qu e m oldam suas
identidades. Aqu eles de ntre nós
que se chamam de cristãos são moldados pela história cristã. A
história cristã, no
entanto, inclui mais do que apenas a narrativa bíblica. A narrativa
e cada uma de
suas histórias, salmos, cartas e outras peças literárias que ajudam
a comunicá-la
tem certa primazia para a maioria dos cristãos. E nossa
metanarrativa, a história
abrangente dos caminhos de Deus com o seu povo na criação e
redenção. Cristão
é tod o aque le que se identifica com essa história e proc ura
viver segu nd o a visão da
realidade que ela expressa. Infelizmente, muitos ignoram quase que
totalmente a
continuaçã o da narrativa secundária da obra de D eus com o seu
povo — o corp o de
C risto — após o térm ino da narrativa bíblica. Este livro é um a
tentativa de p ree n
cher a lacuna no conhecimento de muitos cristãos sobre essa
história. A lacuna
começa com o fim do Novo Testamento e a conclusão da vida e
ministério dos
apóstolos e vai até o cristianism o contem po râneo . O qu e D eus
fez du ran te dois
mil anos para levar seu pov o ao en tend im en to da verdade? A
teologia é exatamente
isso: a fé buscando o entendimento da verdade de Deus.
A fé buscando o entendimento: há dois mil anos os cristãos se
esforçam nessa
tarefa e procuram cumpri-la. A narrativa dessa busca da verdade
dentro da igreja é
praticam ente desconhecid a de m uitos cristãos contem
porâneos, ainda que sua his
tória pessoal de cren te em Jesus C risto seja profu nd am ente
afetada po r ela. Estamos
na mesma situação que a das pessoas que nada sabem sobre suas
origens — de
ond e vieram e que m eram seus parentes. Só qu e o nosso caso é
ainda mais grave. E
semelhante ao dos indivíduos que querem ser bons cidadãos, mas
pouco ou nada
sabem sobre a história de sua nação, inclusive de seu
descobrimento, guerras, he
róis, princípios e gov ernantes.
Viver com o seguidor pleno e operante de Jesus C risto é com o ser
um bom
cidadão de u m a nação. E preciso con hec er a história das pessoas
qu e proc uraram
seguir a C risto e ser discípulos dele nas diversas cultura s e
períod os da h istória. Ao
H i s t ó r i a d a t e o l o g i a c r i s t ã12
cristãs — espero estar co ntribu indo para seu discipulado cristão,
bem com o para a
compreensão de si mesmos. Também espero e oro para que ela
fortaleça a igreja
universal de Jesus C risto, qu e precisa urge ntem en te recu pera
r seu senso de parti
cipação na grande história da obra de D eus com o seu povo n o de
co rrer de cente
nas de anos.
A idéia deste livro surgiu a partir do curso Pais e
reformadores da igreja: a história da
teologia cristã que administrei por quinze anos na Faculdade
Bethel (St. Paul,
M innesota). En con trei livros excelentes a respeito da história
do pe nsa m ento c ris
tão, mas nenhum satisfez completamente a mim ou a meus alunos.
Usamos os
livros disponíveis, mas sempre sentimos a necessidade de alguma
coisa diferente.
Conversando com amigos, colegas e com Rodney Clapp, então
redator-chefe da
InterVarsity Press, a idéia geral e o esboço deste livro foi
ganhando forma e final
m ente deu seu fruto.
Os capítulos baseiam-se nas aulas que ministrei repetidas vezes,
mas acrescen
tei-lhes m uitas pesquisas antes e du ran te m inh a licença
sabática no ou ton o de 1997,
concedida tão generosamente pelos curadores da faculdade Bethel.
Gostaria de
agradecer a meu amigo e co-autor Stanley G. Grenz pelo seu
encorajamento e
orientação du ran te a concepção deste livro e o início do
trabalho. G ostaria tam bém
de expressar o grande apreço por meu editor, Rodney Clapp, que me
deu toda
liberdade, além de seu apo io e conselhos. A Associação dos Ex-A
lunos da faculda
de Bethel providenciou uma doação generosa para a compra da coleção
completa
das escrituras dos pais da igreja, que foi de valor inestimável
para as pesquisas e o
desenvolvimento dos primeiros capítulos deste livro. Agradeço à
Associação pelo
apoio. M inh a qu erida esposa, Becky, e nossas filhas, Am anda e
Sonja, ofereceram -
me seu amor e compreensão nos meses que f iquei t rabalhando prat
icamente
acorrentado à mesa do computador em meu escritório doméstico. Elas
me deram
o espaço e o encorajamento de que precisava para continuar sempre
em frente.
Acima de tudo, gostaria de agradecer ao hom em que m e orien tou d
ura nte os anos
de doutoramento na Universidade Rice, em Iiouston, Texas. Meu
conselheiro e
presidente do D epartam ento de Estudos Religiosos, o dr. N
ie ls C . N ie lsen. M esm o
depois de eu estar form ado e ele, aposentado, não deixou de ser m
entor, exe mplo e
amigo para mim. Respeito-o como a um pai. Ele é, sem dúvida alguma,
o homem
mais qu erido e im portante de m inha vida e, em grande parte, o
responsável por tudo
Introdução A teologia cristã como história
X inq u an to a história é considerada com o ossos secos por m
uitos leitores m od er
nos, um a “peque na história” é sem pre acolhida com ânim o e
interesse. Mas, afinal
das contas, a história é feita de “pequenas histórias”. Nesse
sentido, história não
significa ficção ou fábula, mas “narrativa”. Contar a história é
narrar cronologica
mente as histórias, as narrativas que relatam (com tanta exatidão
quanto possível,
segundo esperamos) os eventos, movimentos, idéias e vidas de
pessoas que cria
ram culturas, religiões e nações.
A história da teologia cristã pode, e deve, ser contada com o se
fosse um a h istó
ria. Está repleta de tramas complexas, fatos emocionantes, pessoas
interessantes e
idéias fascinantes. Este livro é fruto do esforço de contar bem
essa história e de
tratar com imparcialidade cada uma das suas tramas
secundárias.
Existe um denominador comum que percorre toda a história da
teologia
cris tã e une as pequenas histórias em uma única e grande narrat
iva do desen
volvim ento do pen sam ento cris tão. E o interesse que todos os
teólogos cr is tãos
(profissionais e leigos) têm pela salvação: o gesto red en tor de D
eus de p erdo ar
e t ransform ar os pecadores. Sem dúvida, outras preocupaçõ es
entram em jogo
no decurso da história , mas, aparentemente, o interesse em
compreender e
explicar adequadamente a salvação subjaz a quase todos os outros.
Um histo
r iador contem porân eo da teologia afi rm ou com razão que “gera
lmente , o teó
logo enco ntra n os prob lem as da soteriologia [a do utrin a da
salvação] o alicerce
sobre o qual edifica todas as suas opin iões d ou triná rias ”.1 A
história da teologia
cristã, portanto, é a história da reflexão cristã sobre a salvação.
Inevitavelmen
te, também envolve reflexão sobre a natureza de Deus e da revelação
que ele
fez de si me sm o, na pessoa de Jesu s C risto, e sobre m uitas ou
tras crenças liga
das à salvação. N a realidade, po rém , tud o se resum e na
salvação: o que é, com o
acontece e quais os papéis a ser desempenhados por Deus e pelo
homem para
que ela se concretize.
H i s t ó r i a d a t e o l o g i a c r i s t ã14
Essa preocupação com a salvação ficou evidente principalmente nas
etapas
formativas e reformativas do desenv olvime nto da do utrina cristã.
O s grandes de
bates so bre o que se deveria crer em re lação a Deus, Jesus
C ris to , ao pecado e à
graça que consumiam a atenção dos primeiros pais da igreja, entre
aproximada
m en te 3(H) e 500, basicam ente visavam resgua rdar e pro teger o
evangelho da salva
ção. As divisões que ocorreram dentro da cristandade e na sua
teologia durante o
século xvi e que levaram às reformas pro testan te c católica na E
uropa deve ram-se,
em grande parte, às diferentes interpretações do evangelho. Em
outros períodos, a
questão da salvação, de tudo o qu e está ligado a ela e de com o se
deve guardá-la e
pro tegê-la, ficou re legada ao segundo pla no, enquan to os
lídere s e teólogos da
igreja debatiam ou tras questões e se esforçavam para desc ob rir
as respostas de o u
tras perguntas. Mesmo nessas ocasiões, 1 1 0 entanto, o eco
da preocupação com a
salvação propaga-se através das reflexões e con trovérsias
teológicas. N ão seria ju s
to impor um tema rígido de “preocupação com a salvação” para cada
teólogo e
perío do da histó ria da teologia, de m odo que, em certo s m
om entos, esse tem a será
o grande destaque desta narrativa e, em outros, será praticamente
imperceptível.
Mas e qua nto à teologia? Assim com 1 1 0 caso da história,
muitos leitores m od er
nos estão convencidos de que ela é necessariamente enfadonha,
desinteressante,
impraticável e extrem am ente distante da vida cotidiana — e m esm
o do viver cris
tão. StanleyJ. G ren z e eu, em livro anterior, tentam os corrigir
essa impressão errô
nea. A teologia é inevitável na m edida em qu e o cristão (ou q ua
lqu er ou tra pessoa)
procura pensar de m odo coerente e inte ligente a re speito
de Deus. E não som ente
é inevitável e universal, como também valiosa e necessária. Sem a
reflexão formal
a respeito do significado do evangelho da salvação que é parte da
teologia, ele se
degeneraria rapidam ente para a cond ição de m era religião
folclórica e perderia toda
a sua convicção da verdade e sua influên cia sob re a igreja e a
sociedade. Aos leitores
que não acreditam na importância e 1 1 0 valor da teologia,
recomendo meu livro
anterior Quem precisa de teologia? Um convite ao estudo acerca de
Deus e de sua relação
com 0 ser humano (São Paulo: Vida, 2001).
1 lá m uitos livros sobre a história do pensame nto e teologia
cristãos escritos em
diversos níveis. Histórias do cristianismo também são numerosas e
facilmente dis
poníveis. O presente volum e não tem o propósito de
substituir nenhum deles, mas
antes fazer nova con tribuição à coleção. Sem qu ere r atribuir a
este livro a qua lida
de de exclusivo, diria que são poucos os livros sobre o assunto q
ue pod em ser lidos
por pessoas com uns — aquelas que tê m pouco 0 1 1
nenhum conhecimento da his
tória e do desenvolvimento da teologia cristã. Este livro foi
escrito para leigos e
15Introdução
apresentar novas propostas para o debate acadêmico. É um pan oram a
m od esto dos
ponto s de especial in te resse da teologia his tó rica
cristã, para le itores que talvez não
tenham o m eno r conhec im ento o u noção dessa história
fascinante.
D en tro das limitações de u m livro que trata da teologia
histórica, procurei, p or
tanto, tornar este volum e simpático ao leitor. Ele é quase qu e to
talm en te destituído
de jargões técnicos de teologia e, nos p ou cos casos em qu e não
se pôde evitar o uso,
os termos são definidos com clareza dentro do contexto em que são
usados. Em
bora consis ta basic am ente de idéias (c renças, doutrinas,
teorias), este livro procura
vinculá-las a even tos con cretos e pessoas reais, e explicar do m
od o mais claro pos
sível por qu e elas eram relevantes e com o surgiram. Em geral,
nasciam de co ntro
vérsias e conflitos a respeito das crenças e da espiritualidade
cristãs. Não existe
nen hu m a dou trina do cristianismo que tenha surgido do nada.
Cada crença, quer
considerada “ortodoxa” (teologicamente correta) ou “herética”
(teologicamente
incorreta), nasceu de um desafio. O desafio pode ter sido um a
distorção do ev an
gelho com m ensagem pretensam ente cristã ou um a crença po pular
ou prática es
pir itual consid erada não-bíb lica ou anti té tica à fé
cristã autentica. Pode tam bém te r
sido uma filosofia ou crença cultural não-cristã que desafiava os
pensadores cris
tãos a respo nde r com um a alternativa m elh or com base em fontes
cristãs.
De qu alqu er forma, a história da teologia cristã não é um a
história de pe nsad o
res profissionais em torre de m arfim inven tando do utrinas ob
scuras e especulativas
a fim de confundir os fiéis cristãos simples. Sem negar que algo
assim possa ter
acontecido de tempos em tempos na história do cristianismo, quero
refutar essa
imagem popular demonstrando aqui que toda crença cristã relevante
surgiu por
razões urgentes e práticas. Mesmo uma pergunta aparentemente
estranha, como:
“Quantos anjos conseguem dançar na cabeça de um alfinete?”, não era
debatida
pelos pensadore s cris tãos 1 1 0 passado apenas para
matar o tempo, nem para dar a
impressão de serem erud itos. A qu estão era explorar a na tureza
de seres espirituais
não-humanos, como os anjos, e refutar a idéia de que seriam seres
materiais que
ocupam espaços. Existe uma lenda famosa (ou infame) da história da
teologia cris
tã que conta que os bispos e teólogos da tradição ortodoxa oriental
estavam deba
tendo essa mesma questão 1 1a grande catedral de Constantinopla
(Bizâncio) en
qu anto os invasores sarracenos irrom piam pelos portões da cidade
e destruíam os
últim os vestígios do im pério cristão antes tão poderoso. A
veracidade o u não dessa
lenda é irrelevante para o que tenciono provar, que é simplesmente
que todas as
questões debatidas, e todas as crenças que foram desenvolvidas, não
aconteciam à
toa, mas tinham sua razão de ser.
Reconhecidamente, algumas razões para o debate e desenvolvimento
teológi
cos são melhores do que outras, mas não imagine, por favor, que só
porque uma
H i s t ó r i a d a t e o l o g i a c r i s t ã16
do nada. Boa parte da história narrada aq ui pre tend e exp licar
as tensões, conflitos e
controvérsias que subjaziam às idéias aparentem ente especulativas,
com o a na ture
za trina e una de De us (a Trindad e) e a un ião hipostática (hu m
an idad e e divindade)
de C risto. N en hu m a dessas duas crenças é claramen te
articulada na Bíblia. Além
disso, enq ua nto estavam sen do desenvolvidas pelos principais
pensadores da igre
ja prim itiva (séculos iv e v), o cânon das Escritura s C ris
tã s era identific ado e fo r
malizado.2
Por que foram desenvolvidas essas doutrinas cristãs que pareciam
ser técnicas
mas que são totalmente cruciais? Certamente não porque os bispos e
os demais
líderes não tivessem mais o que fazer. A razão é simplesmente por
que idéias
subversoras do evangelho a respeito de Deus e de Jesus Cristo
estavam surgindo
rapidam ente e con qu istando p opularidade, e se fossem aceitas po
r m uitos criariam
um “evangelho diferente”, uma religião diferente da ensinada pelos
apóstolos e
difundida nos primeiros séculos da igreja. Em quase todos os casos,
as doutrinas
foram propostas e desenvolvidas porque alguém percebeu que o
próprio evange
lho estava em jogo .
A tualmen te, temos as doutrinas da Trindade e das duas naturezas
de Jesu s C ris
to, e a maioria das ramificações do cristianism o, ho je dividido,
as aceita sem m uita
relutância. Aliás, são amplamente aceitas como verdadeiras, mesmo
quando não
são bem-entendidas. No entanto, a maioria das crenças falsas que
surgiram na
igreja prim itiva e que fo ram a causa do de sen vo lvim en to
dessas do utrinas ainda se
encontra hoje em pleno vigor, ora dentro das ramificações do
cristianismo que
oficialmente confessam a crença na doutrina da Trindade e na da
humanidade e
divindade de Jesus Cristo, ora nas seitas e entre os liberais e
livres-pensadores às
m argens do cristianismo. E nten de r com o e po r que essas e
outras crenças cruciais
do cristianismo foram desenvolvidas e definidas com tanta exatidão
ajuda a impe
dir que sejam negligenciadas no presen te a po nto de chegarem m
esm o a se perder.
E bom que o leitor conheça os pressupostos básicos deste livro. O
primeiro
deles é o de qu e as crenças têm imp ortância. A esta altura, isso
já deve estar claro. O
que as pessoas acreditam afeta o modo como vivem. Nenhum
discipulado cristão
que seja vital, dinâm ico e fiel se encon tra com pletam ente d
esprovido de en ten di
mento doutr inário. Nunca houve nem nunca haverá. Ninguém consegue
servir
fielmente a Deus sem saber alguma coisa a respeito da natureza e
vontade divinas.
D uran te boa parte da história do cristianismo, as crenças eram
mais im po rtan
tes do que hoje o são para muitos cristãos contemporâneos. Ler e
compreender a
história da teologia cristã requer a consciência prévia de que os
cristãos das eras
passadas que se debatiam com as questõ es doutrinária s realm
ente se preocupavam
em crer as coisas certas a respeito de De us. Este era o caso não
so m en te dos bispos
17Introdução
N o século iv, o grande pai capadócio da igreja, G regório de
Nissa, queixava-se
de não poder ir a ne nh um lugar e nem fazer qualqu er coisa em C
onstantinopla —
a nova capital do Im pério R om ano — sem ser envolvido pelos
cidadãos em deba
tes a respeito da Trindade. Em sua obra seminal sobre a Trindade,
Da divindade do
Filho e do Espírito Santo, escreveu: “Se a gente pe dir
um trocado , alguém irá filosofar
sobre o G erado e o N ão-gerad o. Se pe rgun tar o preço do pão,
dirão: ‘O Pai é m aior
e o Filho é inferior’. Se perguntar: ‘O banho está pronto?’, dirão:
‘O Filho foi
criado do nada”’.3
G regório de Nissa certamen te não estava reclam ando do env olvim
ento de cris
tãos com un s nas disputas teológicas. Se seu com entário tem tom
de queixa é por
qu e a maioria dos leigos naqu eles tem po s parecia simp atizar
com a posição oposta:
a heresia ariana ou sem i-ariana que rejeitava a igualdade total en
tre Jesus o F ilho e
Deus Pai. Como em muitas outras controvérsias doutrinárias antes e
depois da
quela, tanto leigos como líderes eclesiásticos e teólogos
profissionais encontram-
se ativamente envolvidos no debate sobre as crenças cristãs
corretas. As crenças
tinham importância naquela época e devem con tinuar tendo
agora.
O segundo pressup osto é o de que, às vezes, as crenças adquirem
impo rtância
demais! N o dec orrer de dois mil anos de teologia cristã, houve m
uitos debates, co n
flitos e até m ortes, tudo com pletam ente desnecessário no tocante
a diversas questões
realmente secundárias da doutrina cristã. Sem querer, de modo
algum, aviltar os
reformadores protestantes na sua grande obra da reforma 1 1 0
século xvi, diria que a
falta de união devida em grande parte à falta de consen so sobre a
presença de C risto
na Ceia do S enh or é um escândalo e uma m ancha 1 1a história da
teologia protestante.
É claro que Lutero, Zu ínglio, Calvino c outros reformadores tam
bém discordavam a
respeito de outras coisas, mas essa questão do utriná ria parece te
r sido o grande divisor
de águas que tudo destruía e impedia a união dos protestantes. E
não há desculpa
para se queim ar, afogar e decapitar pessoas por serem
consideradas hereges.
Às vezes, o acerto doutrinário e teológico tem importado demais.
Nos nossos
dias, porém , parece que o p ênd ulo já chegou à extrem idade
oposta, já que m uitos
cristãos sabem pou co o u nada a respeito das dou trinas cristãs ou
de com o e po r que
se desenvolveram. O cristianismo está co rrend o o risco de se torn
ar u m a religião
folclórica de culto terapêutico e sentimentos pessoais.
O terceiro pressu po sto é o de que as crenças cristãs válidas — as
qu e são consi
deradas verdadeiras — não têm o m esm o grau de importância.
Algumas são dogmas
e merecem ser defendidas séria e até me sm o calorosam ente.
Acredito que a Trin
dade e a encarnação p erten çam a essa categoria. P or essa razão,
consid ero Atanásio,
bispo e teólogo egípcio do século iv, u m gra nde herói. Ele
foi exilado de A lexandria,
sua cidade natal e diocese cinco vezes, por ser intransigente em
relação a essas
H i s t ó r i a d a t e o l o g i a c r i s t ã18
Há outras crenças que são verdadeiras e não são tão cruciais para o
evangelho
ou para a identidade do cristianismo e de sua mensagem. Mas têm sua
importân
cia. Cha m o-as d ou trinas em contraposição aos dogm as.4
Tratam-se de crenças que
poucos ou talvez nenhum grande grupo cris tão im põe com o
essencia is para um a
pessoa ser c onsid erada cristã, mas que por alguns são
consid eradas te ste s de com u
nhão. Isto é, para pertencer a determinada tradição, denominação ou
igreja, a pes
soa deve confessá-las ou, pelo m eno s, não negá-las. Po r exe m
plo, os batistas — os
da minha tradição, que se originou 1 1 0 século xvn —
insistem que o batismo dos
crentes (também cham ado batismo de adultos), norm alm ente m
ediante a imersão
na água, é o modo normativo do batismo. No entanto, os batistas não
negam o
cristianismo autêntico das pessoas que acreditam no batismo de
bebês e o prati
cam. Para os batistas, portanto , o batism o p or im ersão dos
crentes é um a d ou trina
mas não um dogma.
Finalmente, há uma terceira categoria de crenças que chamo opiniões
teológi
cas ou interpretações individuais. Durante a Reforma, alguns
líderes protestantes
classificaram essa categoria de adiájora, palavra qu e provém
de um term o em latim
que significa “coisas que não são m u ito im po rtan tes” ou “qu
estões de ind iferença”.
Pelo que en tend o, u m exem plo disso seriam os porm eno res das
crenças a respeito
da natureza exata dos anjos e os detalhes dos eventos associados à
segunda v inda de
Cristo. Em grande parte da história eclesiástica, essas e outras
questões bem mais
insignificantes foram debatidas, mas sem m uito entusiasmo.
Em bora não aprove a perseguição de um a pessoa po r causa das suas
crenças (sen
do batista, creio firm em ente na liberdade de consciência),
realmente ac redito que os
dogmas genu ínos foram d efendidos da m elho r maneira — às vezes
até à m orte —
pelos pais da igreja c pelos re fo rm adore s. Esta é um a
histó ria que poucos cristãos
conhecem e contá-la é um dos propósitos deste livro. N ão fosse
pelo que rido Ataná-
sio — o “santo da teim osia” do século rv — , os dogm as da plena e
verdade ira divin
dade de Cristo e a natureza trina e una de Deus teriam sido
provavelm ente engolfados
num pântano de meios-termos políticos dentro do império e da
igreja. Embora o
grande cronista da queda de Rom a, Edward Gibb on, achasse qu e a
união do Imp ério
Romano foi destruída indevidamente pela recusa obstinada em ceder,
para mim, o
que estava em jog o era a integridade do próprio evangelho.
O quarto pressuposto im portante deste livro é o de que realmente
existe um a
linha de pensadores cristãos e idéias influentes q ue vem desde o N
ov o T estame n
to até os dias de hoje e qu e, em bo ra esteja aberta ao debate, à
correção e à revisão,
não se trata de um bando de “homens brancos mortos” reconhecidos
por uma
elite poderosa den tro da igreja qu e visa apoiar a do m inânc ia
de determ inad o gru
19Introdução
tendência crescente nos círculos acadêmicos de rejeitar a idéia de
uma coleção
restrita de clássicos de uma certa área de estudo em benefício de
algo mais inclu
sivo e que m elhor represente m inorias e mu lheres. Esse mo vim
ento tem sua cota
de razão. Certamente, o cânon tradicional de clássicos culturais,
heróis e ícones
precisa se r am pliado. Mas isso não significa que a influ
ência legít im a não vá deter
m inar quais escritores e pensad ores do passado devem ser estudad
os. E u gostaria
m uito de en co ntrar registros de teólogas influentes da igreja
prim itiva, da era m e
dieval e da Reforma. Mas embora as mulheres certamente estivessem
presentes e
tenham influído na vida espiritual do cristianismo durante toda a
sua história,
antes dos tempos modernos, nenhuma conseguiu influenciar
marcadamente o
rumo e a tendência da teologia da igreja.
Para alguns críticos, a falta de m ães da igreja5 é um a pro va do
preco nc eito dos
teólogos m asculinos 0 1 1 da inevitável natureza patriarcal
do próprio cristianismo.
Acredito que seja uma prova da natureza patriarcal da cultura
ocidental em geral
(da qual o cristianismo faz parte) e de uma acomodação cultural da
igreja cristã e
das suas instituições. D everiam ter havido mães da igreja
paralelam ente aos pais da
igreja. O fato de isso não ter acontecido c u m escân dalo para a
igreja, mas não é
m otivo para as histórias revisionistas que as inven tam .
As minorias étnicas, como são chamadas popularmente nos Estados
Unidos
hoje em dia, estavam bem representadas na igreja primitiva e na sua
teologia. Por
exemplo, o herói já m encionado, Atanásio, era cham ado por seus
contem po râne
os, sem ofensa, de “o anão ne gro ” po r causa de sua altura e co r
da pele. Era africa
no, assim como muitos outros grandes pensadores da igreja
primitiva. Vários eram
semitas — de descend ênc ia e iden tidade árabe ou juda ica. Aliás,
poderia ser levan
tado o forte argum en to de que os pensad ores mais formativos e
influentes do cris
t ianismo primitivo — tanto heréticos quanto ortodoxos — moravam e
trabalha
vam no Egito e em outras partes da África do N orte . C ertam en te
eles não po deri
am ser chamados “homens brancos mortos”!
Em boa parte da década de 80, um movimento que visava negar a
existência de
qu alque r tipo de linha principal de pensado res e idéias influen
tes ganh ou po pula
ridade e causou muita controvérsia. Sem rejeitar a legitimidade dos
apelos pela
ampliação e m aior abrangênc ia das listas de pensadores influen
tes, creio qu e existe
uma lista objetivamente identificável de pensadores cristãos
influentes à qual me
conce ntrei neste livro a fim de oferecer aos leitores um a base
para qu e co m pre en
dam a história da teologia cristã. Por exemplo, se alguém quiser en
ten de r com o os
cristãos chegaram a crer 1 1 0 dogma da Trindade, seria
desonesto da minha parte
negar que O rígen es, Atanásio e os três pais capadócios foram os
protago nistas des
se drama. O utro s po dem ter desem penh ado papéis secundários
mas, sem dúvida,
esses homens foram os atores principais.
esses homens foram os atores principais.
H i s t ó r i a d a t e o l o g i a c r i s t ã20
Alguns leitores talvez questionem essa linha principal de
pensadores cristãos
mais influentes sob um po nto de vista bastante diferente: “Por que
ler sobre pesso
as das quais nunca ouvi falar? Como podem ser tão importantes se
meu pastor
nunca as m encion ou? ”.
C om o resposta, apelo à m inha “teoria do efeito em cascata”.6 M
esm o q uem
nun ca ouviu falar de Atanásio, po r exem plo, pode estar pro fun
da m en te influen ci
ado por ele. Entre outras coisas, Atanásio escreveu um pequeno
tratado sobre a
divindade de Jesus Cristo intitulado De incarnatione ou
Da encarnação do Verbo, no
qual apresentou um argum ento sólido em favor da divindade de Jesus
C risto em
pé de igualdade com a própria div indade do Pai e, com isso,
ajudou a estabelecer o
dogma da Trindade contra a crescente onda de simpatia por um tipo
de crença
seme lhante à das Testem unhas de Jeová qu e enxerga Cristo com o
um a grandiosa
criatura de Deus. Uma longa l inhagem de pensadores cris tãos,
incluindo os
reformadores protestantes, considerava a obra de Atanásio
conclusiva e decisiva.
Além disso, Atanásio compilou a primeira lista autorizada de 66
livros inspirados
da Bíblia cristã na sua carta da Páscoa, dissem inad a en tre os
bispos cristãos em 367.
Identificou uma lista de livros secundários que posteriormente
surgiriam na igreja
ocidental (latina, católica romana) como os apócrifos inspirados.
Finalmente, Ata
násio tam bém visitou os eremitas cristãos que habitavam em
cavernas no deserto
do Egito e escreveu uma hagiografia (biografia de um santo) a
respeito de um
deles, Antão, o Ermitão. A vida de santo Antão chegou à
Europa po r interm édio do
exílio de Atanásio e torn ou -se um a base im po rtante para a
ascensão do m onasticismo
e dos mosteiros que, por sua vez, influenciaram profundamente o
cristianismo
ocidental por muitos séculos.
Levando tudo em consideração, portanto, Atanásio é um bom exemplo
da mi
nha teoria do efeito em cascata que explica po r que os cristãos da
atualidade devem
estudar e compreender os pensadores cristãos do passado distante,
de nomes que
nunca ouviram falar. Apesar de os atuais cristãos desconhecerem
esses teólogos,
foram eles que influenciaram o cristianismo que os nutriu
espiritualmente e lhes
deu identidade. Eles fazem parte da “grande nuvem de testemunhas”
de todos os
cristãos (I lb 12.1). São nossos antepassados espirituais e
teológicos. Aprender sua
história e o papel que d esem penh avam na grande h istória da
teologia é um exercí
cio de enten dim ento de si mesm o. E o m esm o que co nhe cer as
raízes da própria
família.
Mas para que estudar os hereges, como Ario, cujas idéias foram
condenadas
como distorções graves do evangelho e rejeitadas por grandes
pensadores como
Atanásio? N ão seria m elh or conc entrar a atenção som ente n os
da nuv em de teste
munhas que contavam a verdade? Essa história da teologia cristã
incluirá muitos
21Introdução
da igreja, que freqü en tem en te prom oviam falsos evangelhos ou
versões distorcidas
do evan gelho de Jesus C risto. Q ual é o valor de tal
estudo?
Uma concepção popular errônea — talvez uma lenda urbana do
cristianismo
— é a de que o Serv iço Secre to dos Estados U n idos nunca m
ostra aos funcio nários
dos bancos as cédulas falsificadas quando querem ensiná-los a
identificar dinheiro
falso. D iz a lenda que os agentes que adm inistram o treinam en to
só m ostram aos
bancários exempla res verdadeiros de d inheiro e, assim ,
quando o d inheiro falsifi
cado aparecer diante deles, reconhecerão como é diferente. A moral
da história é
que o cristão deve estudar so m ente a verdade e nun ca
heresias.
N a prim eira vez em que ouvi essa his tó ria em um serm ão,
percebi que era falsa.
Ao verificar com o agente do Serviço Secreto do Departamento do
Tesouro de
Minneapolis, encarregado de treinar os bancários a identificar o
dinheiro falsifica
do, foi confirmada a minha suspeita. Ele ridicularizou a história e
achou estranho
que alguém a tivesse inventado e que ou tros tivessem acreditado
nela. Atend end o
a um pedido meu, enviou-me uma carta confirmando que o Serviço
Secreto na
verdade mostra aos bancários exemplares de dinheiro
falsificado.
C reio qu e é im portan te e valioso para os cristãos conhecer não
som ente a do utri
na teológica correta (a ortodoxia) mas também as idéias dos que são
considerados
hereges dentro da história da igreja. Uma razão para tanto é que é
quase impossível
apreciar o significado da ortodoxia sem entender as heresias que a
forçaram a se
definir. O que agora con hecem os po r ortodoxia (não a “O rtodo
xia O rien tal”, mas a
ortodoxia com o “dou trina teológica co rreta”) não nasceu de rep
ente na igreja como
Atena saiu da cabeça de Zeus na mitologia grega. Ela foi crescendo
como resultado
dos desafios que a heresia impôs. A fim de compreender corretamente
o dogma
ortodoxo da Trindade, é necessário enten de r os ensinos de Ario de
Alexandria, que
desafiou seriamente, n o com eço do século rv, a crença na eterna
trindad e de Deus.
Outro bom motivo para estudar as heresias e os hereges é que nunca
se sabe
quando Deus pode golpear violentamente com uma vara torta. A
linguagem figu
rada de Lu tero nessa expressão inculca a lição de que até m esm o
um herege pode
contribuir de alguma forma para o entendimento cristão apropriado
da verdade.
Quase todos os pensadores cristãos tradicionais a partir do século
xvi concordam
com João Calvino e com o conselho da cidade de Genebra em relação a
Miguel
Scrveto ser um herege segundo os padrões da ortodoxia protestante.
Ele negava a
divindade de Cristo e da Trindade (assim como Ario no século iv),
bem como
m uitos o utro s itens da crença cristã tradicional. M as seu
desafio profético contra a
dom inância pre po nd eran te da cidade pelo R eformador Joã o C
alvino conquistaria
forte apoio da maioria dos amantes da liberdade hoje em dia.
Muitos dos considerados hereges nos tempos de Lutero e Calvino
defendiam a
H i s t ó r i a d a t e o l o g i a c r i s t ã22
rom ano cristão, Constan tino, n o século iv, e os mov imentos do
século xvii i em favor
da tolerância religiosa na G rã-Bretanha e nos Estados Un idos, os
chamados hereges
eram uns dos poucos que a rgum entavam em favor da liberdade
religiosa.
O quinto e último pressuposto que subjaz esse relato da história da
teologia
cristã é que Deus opera de modos misteriosos para estabelecer o seu
povo na ver
dade e para reformar a teologia quando necessário. Não uso nenhum
pretexto do
historicismo — o pressuposto metodológico de que todas as idéias
podem ser re
duzidas a seus contextos histórico-culturais e por eles explicadas.
Como cristão
convicto e dedicado, creio na orientação (e não nec essariam ente
no con trole) p ro
videncial de Deus para todos os eventos. A história da teologia
cristã é, segundo
acredito, mais do que uma história humana. Ela faz parte da
história da interação
de Deus com seu povo, o corpo de Cristo. Assim como o teólogo
contemporâneo
Hans Küng, creio que Deus mantém a igreja na verdade, mas não na
evolução
tranqüila da sua descoberta progressiva. Deus opera através de
agentes humanos
cuja mente e coração são anuviados pelo pecado. Há períodos na
história da igreja
e de sua teologia nos quais perceber a mão de D eus m anten do -a
na verdade é pu ro
ato de fé. Existem o utros períodos ou capítulos da história que
não exigem m uita
fé para perceber D eus o peran do na restauração da verdade.
A questão é simp lesm ente q ue este livro não deve ser lido com o
um a descrição
histórico-científica e neutra da evolução da teologia cristã.
Outrossim, também
não deve ser lido como o tipo de relato altamente preconceituoso
que existe em
algumas das histórias eclesiásticas mais famosas ou infames. A
primeiríssima his
tória eclesiástica a ocu pa r um livro inteiro foi escrita pelo
bispo E usébio no século
iv e tinha a clara intenção de demonstrar a mão de Deus por detrás
da ascensão ao
poder do im perador C onstan tino — o prim eiro im perador
rom ano que aceitou o
cristianismo. Esforcei-me ao m áxim o aqui para ser fiel aos fatos
e para apre sentar a
história da teologia cristã com o m ínim o de d istorção possível.
Ao m esm o tem po,
não consigo ocultar o fato de q ue creio qu e D eus nun ca esteve
ausente da igreja,
mesmo nas eras de trevas durante as quais a luz da verdade tinha
pouco brilho. Se
há algum “heró i” nesta história, não é C on stan tino nem
Atanásio, po r mais grandi
osos ou influentes que tenham sido, mas o próprio Deus, a quem
pertence toda a
ho nra e glória.
A história da teologia cristã exige, inevitavelmente, certa
consideração sobre a
filosofia e as influências filosóficas. A partir do século ii,
quando começa a nossa
história, a filosofia torna-se a principal interlocutora da
teologia. As vezes, ela parece
ser mais do q ue simples interlocuto ra. Ela faz parte da história
— o papel da filosofia
no desenvolvimento das crenças cristãs formais. O teólogo cristão n
ortc-africano,
Tertuliano, perguntou retoricam ente: “O que Atenas tem qu e ver
com Jerusalém ?”.
23Introdução
cristãos que deveriam ter se fun dam entad o exclusivamente nas
Escrituras e em fon
tes cristãs (Jerusalém). O pai da igreja e apologista (defen sor da
fé) Ju stin o M ártir
referiu-se ao cristianismo como a “filosofia verdadeira”, ao passo
que o mestre cris
tão do século ui, Clemente de Alexandria, identificou o pensador
grego Sócrates
com o um “cristão antes de C risto”. O m aior de todos os pensado
res católicos da
Idade Média, Tomás de Aq uino (século xi i i), freqüentemente
apelava ao “Filósofo”,
referindo -se ao filósofo pré -cristão Aristóteles, lado a lado com
os pais da igreja, ou
até m esm o no lugar deles, para resolver questões polêmicas. Po
steriormente, o pe n
sador católico, Blaise Pascal (século x v i i) asseverou qu e “o
deus dos filósofos não é o
Deus de Abraão, de Isaque e de Jacó!”.
O relacionamento entre a reflexão cristã e a filosofia constitui
uma parte muito
im po rtante da história da teologia cristã. Fo rnece algum as das
tensões mais em oc i
onantes dessa história. Mas seu estudo às vezes pode parecer
bastante técnico e
confuso. Procurarei simplificá-lo, mas sem deixar de lado seu
significado. Peço
paciência, tanto aos estudantes in ic iantes e aos le itores
em gera l, quan to aos cole
gas professores e acadêmicos. Os primeiros podem achar esse aspecto
da narrativa
com plicado, enqu an to qu e os últim os talvez o conside rem
excessivamente simplista.
A história da teologia cristã começa no século n, cerca de cem anos
depois da
m orte e ressurreição de C risto, com o início da confusão entre os
cristãos no Im
pério Rom ano, tanto den tro quanto fora da igreja. O s desa
fios in ternos principais
eram semelhan tes à cacofonia de vozes que m uitos cristãos em
nossos dias cham a
riam “seitas”, ao passo que os desafios externos eram semelhantes
às vozes que
muitos hoje chamariam “céticos”. E dessas vozes desafiadoras que
surgiu a neces
sidade e os prim órdios da ortodoxia — um a declaração definitiva
daq uilo que é
teologicamente correto. A única opção era a confusão total.
Q ue a história comece...
Visões cristãs conflitantes no século n
A história da teologia não se inicia no com eço. Isto é: a teologia
cristã com eçou
m uito tem po depois de Jesus C risto ter cam inhado na terra com
seus discípulos e
m esm o depois de ter m orrido o ú ltim o d iscípulo e apóstolo. A
teologia é a reflexão
da igreja a respeito da salvação trazida por Cristo e a respeito do
evangelho da
salvação proclam ada e explicada pelos apóstolos do século
i.1
O últim o ap óstolo de Jesus a m orre r foi João “o Am ado”, o m
ais jov em deles,
que morreu por volta de 90, embora a data exata seja incerta. Uma
tradição fide
digna, deixada pelos próprios discípulos de João no século n, diz
que ele m orreu
em Efeso e que foi bispo (episkopos, “superintendente”) de
todos os cristãos e de
todas as igrejas cristãs daquela região na Ásia Menor (moderna
Turquia). João é o
pivô da histó ria da teologia cristã, porque sua m orte m
arcou um m om ento decis i
vo. Pelo que sabemos, nenhum apóstolo reconhecido ou amplamente
aceito so
bre viveu a João. C om a sua m orte, o cris tia nism o en
trou num a nova era, para a
qual não estava inteiramente preparado. Já não seria possível
solucionar debates
doutrinários, ou quaisquer que fossem, apelando para um
apóstolo.
Os apóstolos eram homens e mulheres de grande prestígio e
autoridade 1 1 0
cristianism o primitivo.. Eram testem un has oculares de Jesus, ou
pelo m eno s pes
soas intim am en te ligadas ao seu m inistério, o u aos m
inistérios de seus discípu los.2
En qu anto viviam, não havia necessidade da teologia no m esm o sen
tido que depois
de sua mo rte. A teologia nasceu à medida q ue os h erdeiros dos
apóstolos com eça
ram a refletir sobre os en sina m en tos de Jesu s e deles a fim d
e explicá-los em novos
contextos e situações e resolver controvérsias quanto à crença e
conduta cristãs.
E claro que os apóstolos deixaram obras escritas. João, por
exemplo, deixou um
Evangelho de Jesus Cristo, algum as cartas e a visão que recebeu q
ua nd o estava exila
do na ilha de Patmos.3 Esses escritos apostólicos não foram , porém
, encadernados
com capas de couro estampadas com o título “Bíblia Sagrada” e, no
ano 100, ainda
H i s t ó r i a d a t e o l o g i a c r i s t ã26
cristãs. N ão querem os dizer com isso que ne nhu m cristão pensava
nos escritos dos
apóstolos como as Escrituras. A maioria dos cristãos daque le tem
po provave lmente
considerava os escritos au tênticos dos apóstolos m uito especiais
em certo sen tido e,
ocasionalmente, os pais da igreja no século 11 re alm ente os
citavam com o Escrituras.
O problema é que n enh um a igreja ou região do cristianismo, com o
R oma, Efeso ou
o Egito, tinha um a coletânea com pleta dos escritos apostólicos e
havia falta de con
senso geral sobre que livros e cartas tinham sido realmente
escritos pelos apóstolos.
C om o tem po, a necessidade de um registro e interpretação
escritos dos ensinos
de Jesus e dos apóstolos torno u-se tão urgen te que igrejas
indepen den tes, grupos de
igrejas e, finalmente, todos os líderes cristãos reuniram, traçaram
e definiram os
escritos dos apóstolos e das pessoas estreitamente ligadas a eles.
Portanto, a Bíblia
cristã, ou o cânon das Escrituras, evolveu lenta e dolorosamente
depois de muitas
controvérsias. N o século n, no en tanto , esse processo estava
apenas começando.
O s p rimeiros teólogos cristãos foram os bispos e outros m
inistros e líderes de
congregações cristãs no Império Romano. Chegaram a ser conhecidos
por pais
apostólicos porque, supostamente, conheceram um ou mais dos
apóstolos, mas
não eram apóstolos. Sua con tribuição para a história da teologia
cristã será contada
nesta seção. A seção terminará ao estudarmos Ireneu, o bispo do
final do século n
que, provavelmente, foi o primeiro cristão a apresentar um relato
completo da
teologia cristã. Alguns con sideram -no o p rime iro teólogo
sistemático cristão. En
tre as considerações sobre os pais apostólicos e Ireneu aparecerá o
tratamento de
um grup o de pensadores cristãos do século n geralm ente agrupados
sob o no m e de
apologistas. Foram homens que se esforçaram para defender o
cristianismo, no
início de sua existência, contra mal-entendidos e perseguições e,
ao fazerem isso,
freqü ente m ente atribuíam -lhe u m a perspectiva filosófica
grega.
A teologia em si, co m o a busca da ortodox ia (a do utrin a
teológica correta), su r
giu dos desafios impostos aos ensinamentos cristãos por sectários
que se apresen
tavam diante da igreja e do mundo pagão como cristãos mais genuínos
ou impor
tantes do que os principais herdeiros dos apóstolos. Esses desafios
à mensagem
apostólica e à autoridade dos sucessores nomeados pelos apóstolos
tiveram tanto
sucesso em criar caos e confusão q ue se torno u imp rescindível o
desen volvim ento
de uma reflexão teológica formal para combatê-los. Os bispos, que
no segundo
século do cristianismo eram simples supervisores de u m grup o de
igrejas em um a
cidade ou território, respon deram aos críticos e sectários lem
brand o o qu e os após
tolos tinham ensinado, reunindo, preservando e interpretando os
legados escritos
e escrevendo cartas e opúsc ulos para circular en tre as igrejas. N
o de co rrer desse
pro cesso nasceu a teologia cristã . C om os pais apostó
licos, a teologia con tinuou
sua infância e, somente mais tarde, depois do século 1 1, com
Ireneu e os pais da
igreja, começou a caminhar rumo à maturidade.
Críticos e sectários provocam confusão
U s grandes per turbadores do cr is tianismo apostó lico no século
li foram os
gnósticos, M on tano e os mo ntanistas e o orad or anticristão
Celso. O utro s desafia
ram o fluxo de ensina m entos e práticas dos apóstolos po r m eio
de bispos po r eles
nomeados mas, aos olhos dos bispos, aqueles eram os principais
oponentes a ser
com batidos e vencidos.
O gnosticismo é um rótulo genérico aplicado a uma grande variedade
de mes
tres e escolas cristãs que existiam às m argens da igreja prim
itiva e q ue chegaram a
se tornar u m grande p roblem a para os líderes cristãos no sécu lo
li. O no m e p ro
vém da palavra grega gnosis, que significa “conhecimento”
ou “sabedoria”.
O gnosticismo C erta tradição do século 11 descreve o embate
entre o discípulo João e um em inen
te m estre gnóstico de Éfeso p or volta de 90 a.C. C erin to talvez
tenh a sido um dos
prim eiros m estres gnósticos e pertu rbadores do cristianism
o do final do século i.
C on form e a tradição, João foi ao balneário p úblico de Éfeso com
alguns dos seus
discípulos e, ao entrar, percebeu qu e C er into estava ali. En tão
saiu apressado de lá,
sem se banhar, exclam ando: “Saiamos depressa para que ao m eno s o
b alneário não
desabe sobre nós, pois C erinto , o inim igo da verdade, ali se enc
on tra”.1
A antipatia de João pelo mestre gnóstico Cerinto perpetuou-se com
os líderes
cristãos nos séculos 11 e ui. Por quê? Q u em foram os
gnósticos e po r que João e os
sucessores dos apóstolos na igreja primitiva consideravam-nos os
principais “ini
migos da verdade”? Farei uma descrição breve do gnosticismo do
século n e de
alguns de seus herdeiros modernos e, no fim do capítulo, retornarei
a um estudo
mais porm enorizado dos ensinos do gnosticismo.
O s gnósticos não tinham organização unificada e discordavam en tre
si a respei
to de mu itos assuntos, mas todos acreditavam p ossuir um conh ecim
ento o u sabe
H i s t ó r i a d a t e o l o g i a c r i s t ã28
eclesiásticos do século n. Em resumo, acreditavam ser a matéria,
incluindo o cor
po, um a prisão ineren tem ente lim ita nte ou até m esm o um
obstá culo m alig no para
a boa alma ou espírito do ser hu m ano e que o espírito,
essencialmen te divino, um a
“centelha de Deus”, habitava o túmulo do corpo. Para todos os
gnósticos, a salva
ção significava alcançar um tipo especial de co nh ecim en to q ue
não seria geralm en
te conh ecido pelos cristãos com un s n em seque r estaria à sua
disposição. Tal gnosis
ou conhecimento, implicava reco nh ece r a verdade ira origem
celestial do espírito, sua
natureza divina essencial, como uma parte do próprio ser de Deus, e
Cristo como
o mensage i ro esp i r i tua l imate r ia l env iado por esse Deus
desconhec ido e
incognoscível para buscar e resgatar as centelhas dispersas de seu
ser, agora aprisi
onadas em corpos materiais. Todos os gnósticos acreditavam que
Cristo não havia
encarnado em Jesus na realidade, mas que simplesmente tinha a
aparência de um
ser humano.
Esse é um simples esboço do gnosticismo d o século n. Po steriorm
ente, ele será
descrito com mais detalhes. Por en qu an to basta dizer q ue essa
form a esotérica de
cristianismo era encarada pelos cristãos primitivos c om o um a m
ensagem especial
para as pessoas da elite e com o um evangelh o secre to de
Jesus, mais verdadeiro e
sublime, transm itido oralm ente p or u m grupo de discípulos m ais
íntim o. E certo
que os cristãos poderiam en co ntrar leves ecos e vestígios da m
ensagem gnóstica no
que ouviam de seus bispos e pastores sobre o ensino apostólico e
nas epístolas
apostólicas qu e circulavam e m seu m eio. M as o evangelho gn
óstico extrapolava os
ensinam entos dos apóstolos n o tocante ao con flito entre a “carn
e” e o “esp írito”.
Muitos cristãos do século n foram atraídos para o gnosticismo por
ele se mos
trar com o u m a form a especial da verdade cristã, m ais sublime,
m elho r e mais espi
ritual do que a qu e os bispos ensinavam às massas incultas e
impuras. O gnosticismo
apelava para e estim ulava o elitismo esp iritual, o sigilo e a
divisão den tro da jov em
igreja cristã que começava a desabrochar.
N o século xx, diversos grupos e indiv íd uos que se procla m
am “cristãos da Nova
Era” ressuscitaram a mensagem gnóstica do século n. Na realidade,
os ecos do
gnosticismo nas igrejas cristãs atravessaram os séculos, mas foram
silenciados pela
supressão oficial dos im peradore s cristãos e das igrejas
estatais. C om o plura lismo
moderno e a tolerância a opiniões conflitantes e, ainda, com a
separação entre a
igreja e o estado, o g nosticism o vo ltou a levantar a cabeça para
desafiar o evange lho
apostólico da salvação. Raras vezes é identificado co m o “gnostic
ism o”. E apre sen
tado freqü entem ente p or cristãos que se auto-intitulam
esotéricos com o um a for
ma m ais pura do cristianismo para pessoas gen uina m ente
espirituais que toleram o
dogmatismo sufocante e a institucionalização das igrejas
oficialmente ortodoxas.
Q uan do o cham ado m ovim ento da Nova Era ganhava força na Grã-B
retanha e
29Críticos e sectários provocam confusão
fundir o pensamento da Nova Era e o cristianismo gnóstico: George
Trevelyan e
Elizabeth Clare Prophet.
Sir George Trevelyan, com um ente co nhecido por “o pai
do m ovim ento da N ova
Era britânica”, escreveu livros populares co m o /l vision o f the
Aquarian Age: ati emerging
spiritual world view [Uma visão da Era Aquariana: a visão de
um mundo espiritual emergente]
na tentativa de promover o despertar e a renovação do gnosticismo.
Ele escreveu:
U m a mudança notável está acontecendo no ambiente intelectual dos
nossos
tempos. A cosinovisão holística está toman do nossa consciênc ia e
substituin-
do o m aterialismo racional que certam ente está se mostrando
inadequado ao
explicar o nosso universo fantástico. Realmente estamos recuperando
o que
era chamado Sabedoria Eterna dos M istérios da Antigüidade, q ue
sabia que o
Universo é Mente e não mecanismo, que a Terra é uma criatura com
senti-
m entos e não apenas mineral morto, que o ser hum ano é, cm
essência, espi-
ritual, uma gotícula da Deidade abrigado no templo do corpo. Essa
visão,
uma vez captada, remove da nossa cultura eivada pela morte o m edo
prim iti-
vo da morte. O corpo pode ser destruído, mas a alma/espírito ein
cada um de
nós é imortal e eterna.2
Assim com o os gnósticos do século n, Trevelyan não fun do u um a
deno m inação
nem um a igreja. Preferiu apenas ser professor dessa sabedoria sup
erior da divinda
de da alma humana.
Elizabeth Clare Prophet, conhecida pelos seus seguidores “Guru Ma”,
fundou
seu m ovim ento religioso distinto conh ecido pelo no m e de Igreja
Universal e Triun
fante. Sua men sagem de u m cristianismo da N ova Era form a
paralelos quase exa
tos com o gnosticismo cristão da Antigüidade. Ela pesquisou
profundamente os
escritos gnósticos conhecidos por biblioteca de Nag Hammadi,
descoberta no de
serto do Egito em 1945 e encontrou neles basicamente a mesma
mensagem que
alega ter-lhe sido revelada pelos “mestres ascen sos” com o Jesu s
e Saint G erm ain.
Em Reincarnation: the missing link in Christianity
[Reencantação: o elo perdido do cristia
nismo], P rop het argum enta qu e os gnósticos eram os
cristãos verdadeiros qu e he r
daram e passaram aos seus seguidores os ensin am en tos m ais
sublim es e m ais espi
rituais de Jesu s e dos apóstolos, com o a reencarnação e a iden
tidade da alma com
De us.3 O relato que Pro ph et apresenta do cristianism o p
rimitivo é o inverso da
quele contado pela maioria dos historiadores eclesiásticos e
teólogos históricos.
Para ela, os verdadeiros h eróis e m ártires da igreja prim itiva
foram gnósticos co m o
Cerinto, Valentino e Basílides, ao passo que os vilões hereges
foram os bispos e
pais da igreja que os crit icaram e que acabaram co n tribu
indo para a sua supre ssão.4
Trevelyan, Prophet e muitos outros que apóiam várias formas do
cristianismo
H i s t ó r i a d a t e o l o g i a c r i s t ã30
Nova Era — estão m ostrando que o gnosticism o está vivo e
forte no cris tianism o
hodierno. Mas ele também aparece em manifestações menos descaradas.
Sempre
qu e as pessoas dep reciam a existência material e física em no m e
da “espiritualidade”
ou, pela mesm a razão, elevam a alma ou esp írito h um an o à cond
ição de divindade,
a heresia do gnosticismo volta a invadir a mensagem apostólica e a
contaminar o
cristianismo.
O montanismo Embora os líderes eclesiásticos do século 1 1 ,
herdeiros e sucessores dos apóstolos,
vissem no gnosticismo o m aior perigo, eram tamb ém confrontados
por um m ovi
mento fanático entre os seus seguidores, que parecia ter surgido do
nada. Seus
partidário s o chamavam N ova Revelação c N ova Pro fecia e
seus oponentes o cha
mavam m ontanism o, por causa do no m e do fund ado r e principal
profeta: M ontano.
Montano foi um sacerdote pagão da região da Ásia Menor chamada
Frigia que se
converteu ao cristianismo em meados do século n. N ão se enco ntrou
ne nhu m a bi
blioteca dos seus esc ritos com o a deixada pelos gnósticos.
A m aio r parte do que se
sabe a respeito do m ov im ento e dos seus ensinam entos nos foi
transm itida pelos pais
da igreja do século n qu e contra eles escreveram e de Eusébio, que
escreveu no século
rv uma história da igreja cristã. Montano rejeitava a crescente fé
na autoridade espe
cial dos bispos (com o herde iros dos apóstolos) e dos escritos
apostólicos. Consid era
va as igrejas e seus líderes esp iritualm ente m orto s e
reivindicava um a “nova profecia”
com todos os sinais e milagres dos dias ideais da igreja primitiva
no Pentecostes.
Para os bispos e líderes das igrejas o problema não era tanto a
crítica feita por
M on tano à falta de vida espiritual e seus apelos em prol do reav
ivam ento, m as sua
auto-identificação com o o porta-voz incomparável de D eus. M on
tano referia-se a
si m esm o com o “P orta-voz d o E spírito Sa nto” e acusava os
líderes oficiais da igreja
de p ren de r o Espírito Santo de ntro de um livro, ao ten tar
limitar a inspiração divi
na aos escritos apostólicos. Op un ha -se ene rgicam ente a qualq
ue r limitação ou res
trição desse tipo e parecia enfatizar o poder contínuo e a
realidade de vozes inspi
radas como a dele.
M on tano reu niu à sua volta um grupo de seguidores em Papuza e co
nstru iu ali
uma comunidade. Duas mulheres, Priscila e Maximila, uniram-se a
ele, e o trio
passou a pro fetizar o breve re to rno de C risto à sua com
unidade e a condenar os
bispos e líderes das princip ais sés m etropolitanas (áreas
dir ig idas por bispos) com o
destituído s de vida, co rrup tos e até m esm o apóstatas. M on tan
o e as duas profetisas
entravam em transe c frenesi espirituais, falando na prim eira
pessoa co m o se Deus,
o Espírito Santo, falasse diretamente através deles. Em certa
ocasião, o Espírito
Santo supostam ente falou através de M on tano a respeito dele
próprio: “Eis que o
31Críticos e sectários provocam confusão
O hom em do rm e e eu vigio. Vejam! É o Senh or que m ove o coração
do ho m em ”.
Em seus discursos, Montano, ou o Espírito dentro dele, dizia a seus
seguidores:
“Eu sou o Sen hor D eus, nascido entre os hom ens. N ão sou anjo,
nem sacerdote.
Sou Deus Pai, vindo até vocês”.5
Durante décadas a igreja mostrou-se extremamente desconfiada quanto
a pro
fetas autoproclamados, temendo que talvez pretendessem substituir
os apóstolos
com o auto ridades especiais suscitadas po r D eus, à parte das
estru tura s da igreja. As
igrejas principais do Im pé rio R om ano e seus bispos, a fim de
prese rvar a un ião em
uma estrutura visível e nos ensinos, decidiram adotar um conceito
de “sucessão
apostólica” semelhante ao posteriormente criado. Se um bispo
pudesse demons
trar qu e sua linhagem de ordenação, po r assim dizer, remo ntava a
um dos apósto
los do século i, então seria um bispo digno e legítimo. Caso
contrário, não seria
considerado legítimo.
Mas, entre os cristãos da metade do século 1 1, ainda havia
profetas carismáticos
itinerantes e estacionários. E, por vezes, podiam ser bem
problemáticos, como
revela um dos escritos pós-apostólicos mais antigos, o
Didaquê. Esse texto anôni
m o do com eço d o século li oferece conselhos con flitantes aos
cristãos sobre com o
lidar com tais profetas aventureiros que falavam em no m e de De
us.
A dura resposta dos líderes eclesiásticos a Montano não foi tanto
porque ele e
suas companheiras proclamavam palavras da parte de Deus ou
defendiam o
ascetism o rigoroso (proibição do casam ento e das relações
sexuais, jeju n s severos),
mas sim po rqu e rejeitavam os he rdeiros d os apóstolos e
reivindicavam inspiração e
autoridade especiais para as próprias mensagens. Q ua nd o os
seguidores de M on tano
com eçaram a fund ar congregações separadas que rivalizavam com
bispos de todas
as partes do Im pé rio R om ano , estes reagiram com rapidez e
severidade. Talvez até
com severidade demais.
Alguns diriam que se trata de u m caso clássico de jog ar o bebê
fora ju n to com a
água suja do banho. Como não tinham o apoio do estado (o Império
Romano) e
tamb ém corriam o perigo de serem perseguidos, um grupo de bispos
das proximida
des da região ond e morava M on tano reun iu-se secretam ente c
lavrou um do cu m en
to excomungando-o, assim como às duas mulheres e a todos os seus
seguidores.
Talvez esse tenha sido o primeiro cisma, ou divisão organizacional,
real dentro
do cristianismo. Desde o ano de 160, em muitas cidades do Império
Romano,
havia duas congregações cristãs distintas: uma seguia a liderança
de um bispo na
sucessão apostólica e outra seguia a Nova Profecia de
Montano.
N um a reação contra os excessos e as re iv indicações
exclusivistas de M ontano e
de seus seguidores, os líderes da igreja procuraram se apoiar cada
vez menos em
manifestações verbais sobrenaturais, como línguas, profecias e
outros dons, sinais
e milagres sobrenaturais do Espírito. Finalmente, tais
manifestações carismáticas
H i s t ó r i a d a t e o l o g i a c r i s t ã32
passaram a ser, in ju sta m ente, tão id entificadas com M
ontano e o cisma m ontanista
que quase se extinguiram sob a pressão de bispos temerosos e dos
imperadores
cristãos posteriores.
Estaria o m ontan ismo , ou algo semelhante, ainda em pleno vigor
na era m oderna?
A matéria de capa da edição de 14 de agosto de 1991 da revista
Christianity Today era
sobre um movimento, semelhante ao dos montanistas , chamado Kansas
City
Fellowship [Irmandade da Cidade de Kansas].6Esse mo vim ento em
particular, que é
dirigido por um grupo carismático de profetas autoproclamados,
tinha muitas das
características do montanismo do cristianismo primitivo, mas sem
alguns dos exces
sos. A essência do movimento, assim como de muitas seitas
carismáticas semelhan
tes, era uma profecia pessoal feita por profetas especiais a fim de
orientar a vida dos
indivíduos e pred izer o futu ro do m un do . Sem rejeitar a
Bíblia, esses profetas consi
deravam-se capacitados para falar em nome de Deus com palavras de
igual peso e
importância. U m deles se au to-intitulou “sucessor de Paulo”
(referindo-se ao após
tolo Paulo).
O utro s m ovim entos carismáticos recentes enfatizam um a suposta
diferença entre
logos e rlietua, dois termos gregos que significam
“palavra”, de tal maneira que as
mensagens de Deus através das profecias nos dias modernos (rhetna)
podem su
plantar e até m esm o corrig ir escri to s proféticos que era
m verdadeiros e re levantes
no século i. (logos). S em pre e on de qu er qu e a profecia for
elevada a um a posição
igual, ou superior, às Escrituras, lá estará o montanismo em ação.
Assim como o
gnosticismo, o m on tan ism o desafiou a igreja primitiva e desafia
a igreja m od erna a
pensar e reagir teolo gic am ente para im pedir que o cris
tia nism o se tr ansform e em
tudo e nada e, portanto , em um a coisa qualquer.
Celso O gnosticism o e o m on tanism o c onstituíam duas ameaças
internas à igreja e à sua
mensagem apostólica, ou seja, à união c à integridade do
cristianismo primitivo.
U m desafio externo de gran de peso surgiu de escritores e oradores
ju d eu s e pa
gãos, com o F ronto, T ácito, Luciano, Porfírio e especialmente C
elso.7
O mais famoso desses polêm icos opositores do cristianism o foi o
filósofo pagão
Celso que, por volta de 175 ou 180, escreveu um livro contra essa
fé intitulado/I
verdadeira doutrina: um discurso contra os cristãos. O
conteúdo do livro foi preservado,
na íntegra, para a posteridade p elo filósofo e teólogo cristão
Orígenes d e Alexandria,
que deu sua resposta em Contra Celsum [Contra Celso],
Pouca coisa se sabe a respeito de Celso. T endo p or base as poucas
inform ações
que os estudiosos puderam juntar, Celso foi um cidadão romano culto
e auto-
intitulado o rador filosófico que talvez tenh a sido criado em um
lar cristão e qu e, na
33Críticos c sectários provocam confusão
do século li. N o p eríod o cm q ue aum entav am os boatos e as
falsas acusações con tra
os cristãos e em que eram extensivame nte perseguidos e
considerados ignorantes e
supersticiosos, senão até desleais, tanto pelos imperadores quanto
pelos plebeus,
Celso fez uma crítica extremamente brilhante e articulada contra a
fé cristã. Em
vez de se envolver em boatos, sim plesm ente d estacou o q ue
pareciam ser as inco n
sistências e os elem entos supersticiosos da do utrin a cristã do
po nto de vista de um
homem comprometido com uma combinação eclética da filosofia grega,
“a dou
trina v erdadeira”.
U m a coisa era os cristãos refutar boatos obv iamente falsos, com
o o de se envo lver
em rituais de sangue nos quais assavam e comiam criancinhas (um
boato popular
en tre os romano s a respeito dos “sacrifícios” cristãos, que na
realidade eram ce rim ô
nias eucarísticas, inocentes porém reservadas). Outra coisa bem
diferente era res
ponder racional e até filosoficamente a um orador rom ano
culto e bem -a rt iculado.
Mas era preciso res po nd er pois, ao que parece. Ce lso tinha a
atenção do imperador.
Marco Aurélio, imperador romano do final do século 1 1 , era
filósofo e opositor do
cristianismo. Refutar Celso era um a m aneira de acalmar a ira do
im perador con tra o
cristianismo, que em grande m edida se baseava na suposição,
possivelmente alim en
tada por Celso, de que os cristãos eram uma ralé ignorante que
acreditava em tolices
e superstições e eram um perigo para o iinpério.
O ataque de Celso ao cristianismo é rico em informações sobre a
vida e a fé
cristã do século n. A despeito de distorções óbvias e descrições
equivocadas, A
doutrina verdadeira ajuda os historiadore s eclesiásticos a en
ten de r no qu e os cristãos
acreditavam e como essa crença era vista pelos não-cristãos. Por
exemplo: Celso
deixou absolutamente claro que os cristãos de sua época criam cm
Jesus Cristo e
adoravam esse homem como um Deus:
Ora, sc os cristãos adorassem um único Deus, poderiam ter a razão a
seu
lado. Mas a pura verdade é que adoram um homem que apareceu não faz
muito tempo. Não consideram que aquilo que fazem é uma violação do
monoteísmo; p elo contrário, acham perfeitamente consistente adorar
ao grande
Deus e também adorar como Deus o servo deste. E a adoração deles
por esse
Jesus c ainda mais ultrajante porque se recusam a escutar qualquer
conversa
a respeito de Deus, o pai de todos, a não ser que se faça
referência a Jesus —
basta dizer que Jesus, o autor da insurreição cristã, não era filho
de Deus e
eles não vão querer escutar. E quando chamam Jesus Filho de Deus,
não
estão realmente prestando homenagem a Deus; pelo contrário, estão
tentan-
do exaltar Jesus até às alturas .8
H i s t ó r i a d a t e o l o g i a c r i s t ã34
za”.‘J Foi esse o desafio de Celso . P orta nto , a principa l “co
n trib u içã o” de C elso ao
cristianismo foi o desafio de pensar cuidadosamente sobre duas
declarações apa
rentemente conflitantes e, de alguma forma, torná-las coerentes. Os
cristãos ale
gavam ser mon oteístas, crentes nu m só D eus, da m esm a forma qu
e os jud eu s e a
maioria dos cidadãos romanos cultos. Celso era monoteísta, embora
sua idéia de
D eus fosse bem diferente d aque la dos ju d eu s o u d os cristãos
e se baseasse mais na
“forma do b em ” de Platão. O s cristãos tamb ém declaravam que
Jesus era De us,
ou pelo menos o Logos (Palavra, Sabedoria) de Deus,
semelhante ao Pai celestial,
criador de todas as coisas. Nessa dupla declaração, Celso só
enxergava contradi
ção paten te e ofensa contra a perfeição da natureza imutável de De
us.
Celso atacou os ensinam ento s cristãos com essa e outras apa
rentes contradições
e inconsistências. Ele tentou mostrar que a cosmovisão cristã era
tola e infinita
mente inferior à filosofia espiritual genérica e eclética de um só
Deus acima de
todos, conforme ensinavam os filósofos platônicos. Os cristãos se
viram diante de
um dilema: ou ignoravam Celso e outros críticos semelhantes a ele e
retraíam-se
em uma religião folclórica sem apresentar uma defesa lógica ou
enfrentavam o
desafio e criavam doutrinas coerentes que reconciliariam crenças
aparentemente
contraditórias como o monoteísmo e a divindade de Jesus
Cristo.
O m esm o desafio e dilema confrontam os cristãos mod ernos. U m “C
elso” do
século xx foi o filósofo britânico Bertrand Russell (1872-1970),
que criticou o
cristianismo com base na visão de sua filosofia, mais bem descrita
como uma for
ma de hu m anism o secular. Assim co m o C elso, seu equivalente do
século 1 1 , Russell,
escreveu o livro Porque não sou cristão, tentand o exp
or o cristianismo com o inculto
e supersticioso. Enquanto Celso considerava a filosofia geral
platônica “a doutrina
verd ade ira” e o cristianism o, por sua vez supersticioso, R
ussell recon hec ia a ve rda
de do humanismo secular como a doutrina verdadeira para as pessoas
cultas do
século xx. Talvez nen hu m a o utra polêm ica anticristã sozinha
foi tão influente q uan to
a de Russell, e numeros