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UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA FACULDADE DE HISTÓRIA MESTRADO Renato Fagundes Pereira A ciência na historiografia do Renascimento: de Jacob Burckhardt a Alexandre Koyré

Historioagrafia do Renascimento

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOISDEPARTAMENTO DE HISTRIAFACULDADE DE HISTRIA

MESTRADO

Renato Fagundes Pereira

A cincia na historiografia do Renascimento: de Jacob Burckhardt a Alexandre Koyr

Goinia2013

Renato Fagundes Pereira

A cincia na historiografia do Renascimento:de Jacob Burckhardt a Alexandre Koyr

Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Histria da Universidade Federal de Gois, como requisito parcial obteno do ttulo de Mestre em Histria. rea de Concentrao: Culturas, Fronteira e Identidades. Linha de Pesquisa: Identidades, Fronteiras e Culturas de Migrao.Orientao: Dr. Marlon Jeison Salomon

Goinia2013

Ao meu filho, Joo Pedro Nunes Fagundes.

A cincia na historiografia do Renascimento: de Jacob Burckhardt a Alexandre Koyr

Dissertao defendida no Programa de Ps-Graduao em Histria da Faculdade de Histria da UFG, para obteno do ttulo de Mestre em Histria, aprovada em _______ de ___________ de 2013, pela Banca Examinadora constituda pelos professores:

________________________________________________Prof. Dr. Marlon Salomon (Presidente) (UFG)Membro________________________________________________Prof. Dr. Luiz Carlos Soares (UFF)Membro________________________________________________Prof. Dr. Fbio Ferreira de Almeida (UFG)Membro________________________________________________Prof. Dr. Rodrigo Vieira Marques (UFG) Suplente

AgradecimentosApenas percebemos a importncia dos agradecimentos, no para os outros, mas para ns, quando comeamos a escrev-los. Reservo o meu primeiro agradecimento a minha me, que nos dois ltimos anos, mesmo na luta contra o cncer, mostrou compreenso sem limite com seu filho nico, que, por vezes, esteve ausente-presente. Raquel Chaves, minha esposa querida, pelo seu afeto e dedicao nos dias mais difceis, mesmo grvida, quando voc precisava mais de mim do que eu de voc, por ser sempre a primeira a estender as mos quando precisei de apoio. Senti suas mos vrias vezes digitando o teclado, tecendo essa dissertao comigo.Ao meu pai, minha irm Raquel, meus tios, tias e av, pelo amor incondicional, pelos exemplos de hombridade.Meu agradecimento especial, ao meu professor orientador Marlon Salomon, pela pacincia em explicar as coisas mais simples, pela sua dedicao constante, pela inestimvel ajuda bibliogrfico, enviando, quando necessrio, de Paris, pelos puxes de orelhas aplacadores e positivos. Devo-lhe muito.Aos professores Rodrigo Marques e Fbio Almeida, pelas leituras atenciosas e caminhos frutferos sugeridos na banca de qualificao.Aos professores Luiz Carlos Soares e Fbio Almeida, por gentilmente terem aceitado participar da banca examinadora da dissertao.Aos meus amigos Dianari Moraes e Mohana Barbosa, pelas conversas sinceras, por ajudarem a superar minhas frustraes.Aos professores do departamento de histria da UFG, pelas aulas estimulantes, por me apresentarem a aventura que a pesquisa histrica.

SumrioApresentao10

Captulo I: O conceito de Renascimento e o lugar da cincia em seu interior: Burckhardt, Duhem e Cassirer17

1.1 O Renascimento em Jacob Burckhardt17

1.2 A cincia no Renascimento italiano21

1.3 O Renascimento em Ernst Cassirer27

1.4 Entre Burckhardt e Cassirer: Pierre Duhem44

1.5 De Duhem a Cassirer passando por Panofsky52

Captulo II: O Renascimento e o problema filosfico da Cincia Moderna: Burtt, Mieli, Febvre e Koyr62

2.1 Edwin Arthur Burtt: as bases metafsicas da cincia moderna no Renascimento62

2.2 Lucien Febvre: da impossibilidade da cincia no sculo XVI69

2.3 Aldo Mieli e o Renascimento cientfico73

2.4 Alexandre Koyr e a histria do pensamento cientfico82

2.4.1 Elementos de sua trajetria: um breve parnteses82

2.4.2 Os Humanistas: de Arqueiros da Luz a Compiladores Cegos ou pode se falar em uma contribuio cientfica da Renascena?85

2.4.3 Tudo possvel: Teratologia, astrologia e magia na Renascena92

2.4.4 O caminho margem da Renascena: Revoluo cientfica e suas Rupturas100

Consideraes Finais108

ResumoO presente estudo tem como propsito analisar o modo como o nascimento da cincia moderna foi articulado no interior da historiografia do Renascimento e particularmente a relao entre a cincia, o pensamento filosfico e as diversas formas de escrita da histria do pensamento na primeira metade do sculo XX. Na primeira parte, analisamos o debate entre Burckhardt e Cassirer e suas diferenas interpretativas. Na segunda analisamosum conjunto de interpretaes fundamentais: do Renascimento cientfico at a inexistncia de cincia no Renascimento. Pretendemos, por meio do estudo desse percurso historiogrfico, refletir sobre a singularidade da interpretao e da historiografia do pensamento de Alexandre Koyr. Palavras-chave: Pensamento cientfico, Renascimento, Filosofia, Alexandre Koyr.

AbstractThe present study has the proposal to analyze the way in which the birth of modern science was articulated within Renaissances historiography, particularly the relationship between science, philosophical thought and the various forms of writing history of thought in the first half of twentieth century. The first part we analyze the debate between Burckhardt and Cassirer and theirs interpretive differences. In the second we analyze a set of fundamental interpretations: from scientific Renaissance to absence of science in the very Renaissance. By studying this historiographical route we intend to think over the peculiarity of Alexandre Koyrs interpretation and historiography of thought. Keywords: scientific thought, Renaissance, Philosophy, Alexandre Koyr.

Rsum

Apresentao

imensa a distncia entre o livro impresso e o livro lido, entre o livro lido e o livro compreendido, assimilado, sabido! Mesmo na mente mais lcida, h zonas obscuras, cavernas onde ainda vivem sombras. Gaston Bachelard[footnoteRef:1] [1: Bachelard, Gaston. A formao do esprito cientfico: Contribuio para uma psicanlise do conhecimento. Traduo de Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996, p. 10.]

O consagrado livro do historiador suo Jacob Burckhardt criou, de uma s vez, um conceito e um mito. Sua interpretao de que a Itlia dos sculos XIV, XV e XVI vivenciou o re-nascer da arte, da cincia e do indivduo, forjou no pensamento historiogrfico um novo espao-tempo caracterizado por uma ruptura profunda com o esprito da Idade Mdia. Essa descrio de uma Renascena que tudo fez foi colocada prova, principalmente, na primeira metade do sculo XX nas vrias formas de escritas da histria.O presente trabalho prope uma leitura da cincia atravs da histria do Renascimento e as vrias formas que ela assumiu na historiografia, de Burckhardt a Alexandre Koyr. Concentrar-nos-emos no papel desempenhado pela filosofia na constituio do pensamento da Renascena e sua relao com o pensamento cientfico. Para ns, a histria das cincias no permite que se descarte a filosofia. Acreditamos que essa relao, que assumiu diferentes formas, foi fundamental nas interpretaes historiogrficas.No entanto, s era possvel pensar, na historiografia das cincias, a relao entre pensamento filosfico e cientfico a partir de histrias das cincias que permitissem delimitar esse objeto. A compreenso de que o pensamento filosfico est associado ao pensamento cientfico, na historiografia das cincias, foi, por vezes, questionada. No era estranha a afirmao de que ao historiador cabia estabelecer os fatos histricos de uma cincia ou de um cientista e a ligao entre eles, enquanto que o estudo do sistema filosfico da poca dessa cincia caberia ao filsofo. Em sntese, existia uma fronteira no interior da histria das cincias que impedia a realizao de uma histria do pensamento cientfico, pois se os fatos histricos so objetos do historiador, o pensamento era objeto do filsofo; ou fazia-se uma historia dos acontecimentos cientficos ou uma filosofia do passado da cincia. Uma nova relao foi estabelecida entre a filosofia[footnoteRef:2] e a histria das cincias no final do sculo XIX. Outro fator que determinou para que nosso percurso iniciasse nesse perodo o surgimento do conceito de Renascimento, que s apareceu no pensamento historiogrfico em 1860. No era possvel escrever uma histria das cincias no Renascimento antes do prprio conceito de Renascimento. [2: No sculo XIX, a histria das cincias fora agenciada pela filosofia positivista. Na Frana, pela filosofia positiva de Augusto Comte e, na Alemanha, pela Naturphilosophie de Ernst Mach. Para Comte, existe uma conjugao entre a histria da cincia e a humanidade. A histria da cincia representava a marcha do esprito humano com destino ao esprito positivo. A sociedade progride para o estado positivo, assim como a cincia j o fez, e a histria da cincia a representao desse movimento. Com o impulso de Augusto Comte, anos aps sua morte, foi criada a primeira cadeira de histria das cincias no Collge de France, ento ocupada por seu discpulo, Pierre Laffite. A partir da institucionalizao da disciplina na Frana, a histria das cincias ganha um novo flego. Ela no se restringiu ao crculo da filosofia positivista, pois ganhou novos problemas. Surgem, ento, outras formas de interpret-la, entre elas, os chamados convencionalistas. nesse contexto que podemos destacar personagens como Ernst Mach, Pierre Duhem e Paul Tannery. So historiadores das cincias que marcam trs momentos diferentes na relao entre histria das cincias e a filosofia na virada do sculo XX. O historiador da mecnica e fsico alemo, Ernst Mach, descreve em seu livro o desenvolvimento histrico-crtico da mecnica, a narrativa de acontecimentos que permitem o desenvolvimento da esttica e da dinmica para a consolidao da mecnica. Existe uma aproximao na concepo histrica de Mach, Duhem e Tannery. Eles tm em comum a concepo de histria das cincias como instrumento para a compreenso do desenvolvimento cientfico. A histria tornou-se, para eles, um espao para a reflexo dos mtodos, conceitos e noes da cincia. Para Thomas Kuhn, o objetivo dessas histrias era: clarificar e aprofundar a compreenso dos mtodos ou conceitos cientficos contemporneos, mediante a exibio da sua evoluo. Esses historiadores mantinham a ideia positivista de que a cincia foi resultado de uma evoluo realizada por acumulao de conhecimento. No entanto, importante ressaltar que se a concepo continusta e funcionalista aproximou esse historiadores; dois deles foram fundamentais para a superao dessa concepo: Duhem e Tannery. Se a Idade Mdia era interpretada como perodo de atraso, superstio e misticismo prprio do estado teolgico comteano, essa forma de olhar a Idade Mdia foi rompida por Pierre Duhem e com ela, consequentemente, a teleologia positivista. Outra contribuio decisiva foi dada por Paul Tannery, que insistiu no argumento de que o historiador deve abdicar dos seus preceitos e se colocar no estado de esprito da poca que estuda. As contribuies histria das cincias de Duhem e Tannery, somadas aproximao da histria das cincias por filsofos e historiadores da filosofia, vo proporcionar uma inflexo na concepo de histria das cincias. Uma dessas modificaes teve como resultado a emergncia das noes de ruptura e descontinuidade epistemolgica na histria das cincias, na Frana e na Alemanha, com a noo kantiana de revoluo do pensamento. Essas noes diferenciaram o passado de uma cincia atual da cincia atual no seu passado. Portanto, quando falamos em aproximao da filosofia com a histria das cincias, estamos nos referindo principalmente a esse segundo momento. Cf. Kuhn, Thomas. A Tenso Essencial. Traduo de Rui Pacheco. Lisboa: Edies 70, 1989; Duhem, Pierre. Salvar os fenmenos: Ensaio sobre a noo de teoria fsica de Plato a Galileu. Cadernos de Histria e Filosofia da Cincia (suplemento 3). Traduo de Roberto Andrade Martins. Campinas: UNICAMP, 1984.]

Nossa investigao comeou com o estudo da participao do desenvolvimento cientfico no conceito de Renascimento de Burckhardt, com sua ideia de uma histria do esprito de uma poca. Um dos elementos que permitiu ao historiador suo definir o conceito de Renascimento o renascer das cincias, que foi resultado da atuao dos humanistas e do ressurgimento do esprito de observao. O historiador basilense destaca a atuao dos humanistas no processo de renascimento cientfico como aqueles que sintetizaram o esprito antigo e o esprito moderno e libertaram o esprito ocidental dos grilhes da Idade Mdia. possvel visualizar a influncia burckhardtiana na interpretao desse perodo em vrios estudos historiogrficos. Destacamos em nosso trabalho a histria das cincias no Renascimento de George Sarton e Aldo Mieli, que nas dcadas de 1940 afirmavam a existncia de um Renascimento cientfico nos sculos XV e XVI.Vrios historiadores se posicionaram contra essa imagem triunfalista do Renascimento diante da Idade Mdia. Na dcada de 1920, destacamos a interpretao de Ernst Cassirer. Sua interpretao foi importante, pois um dos elementos que tornou possvel sua desconstruo do conceito de Renascimento de Burckhardt foi fazer uma histria da filosofia que discordasse da ideia de que no Renascimento houve o renascer cientfico. A histria do filsofo neokantiano se distancia da histria da Civilizao do Renascimento italiano por fazer uma histria das formas de pensar, das metafsicas e das filosofias do Renascimento, claramente diferente de uma histria do esprito de uma poca. O nascimento da forma de pensar moderna ocorreu, para Cassirer, no em ruptura com a Idade Mdia, mas no final dessa poca e, em certo sentido, contra sua filosofia, por um pensamento paralelo de origem escolstica que realizou uma revoluo na forma de pensar. Para a interpretao cassireriana, o pensamento moderno surge de uma revoluo no sentido kantiano.O filsofo norte-americano Edwin Arthur Burtt, na sua histria das origens metafsicas da cincia moderna, descreveu que a Cincia Moderna surgiu a partir de um pano de fundo submisso, mas ativo no Renascimento. Esse plano de tradio platnica, somado ao esprito emprico de Tycho Brahe, produziu a Cincia Moderna, cuja sntese foi realizada pelo astrnomo alemo Kepler. Os dois principais problemas no surgimento da Cincia Moderna, na interpretao de Burtt, so de dimenses filosficas: ele no distingue no pano de fundo platnico da pluralidade das interpretaes platnicas e, consequentemente, vai interpretar formas de pensamento como superstio.Na dcada de 1940, a imagem burckhardtiana do Renascimento viu seu contraponto. Lucien Febvre, um dos fundadores do movimento do Annales, a partir de uma histria das mentalidades, excluiu a possibilidade de cincia no sculo XVI. O cone de um Renascimento glorioso foi substitudo por uma descrio caduca. Na histria do quadro do pensamento de Lucien Febvre, o sculo XVI est longe do rompimento com a Idade Mdia; muito pelo contrrio, existe na interpretao do historiador francs uma aproximao do pensar do Renascimento com as estruturas do processo intelectual da mentalidade primitiva. Para alguns historiadores, o mtodo de anlise de Febvre, a histria do estado do pensamento, seria inspirado na histria do esprito da poca de Burckhardt.[footnoteRef:3] [3: Lucien Febvre situava Jacob Burckhardt como um dos seus mestres. Cf. Burke, Peter. A Escola dos Annales (1929 - 1989): A Revoluo Francesa da Historiografia. Traduo de Nilo Odalia. So Paulo: Editora Unesp, 1997, p.24.]

Em 1951, o historiador-filsofo francs de origem russa Alexandre Koyr descreveu uma tese singular sobre a cincia na Renascena. Como ele mesmo disse, poderia parecer uma temeridade, mas ele asseverava uma contribuio cientfica da Renascena. Para entendermos sua ousadia, na qual se encontra sua singularidade, devemos compreender como o historiador se coloca. Se, de um lado, ele segue a esteira da leitura filosfica da histria do Renascimento, como Cassirer, de outro, ele afirma uma contribuio cientfica tal como se observa no conceito de Renascimento de Burckhardt. Mas, a novidade de sua leitura do Renascimento no se restringe a esse aspecto: para chegar a sua tese ele escreveu sua histria atravs das duas categorias de histria do pensamento. Sua histria do pensamento da Renascena tanto uma histria dos pensamentos em movimento, na acepo cassireriana, como uma histria do esprito de uma poca. Ele forja para si uma noo de mentalidade distinta da de Febvre. A sua anlise da contribuio cientfica da Renascena s foi possvel porque ele no interpretou a histria do pensamento em movimento separada da histria do estado do pensamento.Como se pode observar, no pretendemos escrever uma histria do conceito de Renascimento tal empreendimento exigiria outros materiais de anlise, um recorte bastante distinto e uma anlise que se desdobraria sobre a trajetria da historiografia, sobretudo, da arte. No pretendemos tampouco afirmar que nosso recorte e os autores aqui estudados esgotam o problema que propomos analisar as historiografias de Leonardo e Coprnico nos lembram do nmero importante de historiadores que no foram aqui considerados. No entanto, acreditamos que o recorte e os autores que decidimos estudar constituem uma trajetria importante para pensar o modo como, no pensamento histrico e filosfico da primeira metade do sculo XX, a reflexo sobre a origem da cincia moderna foi articulada com o conceito de Renascimento.Determinando essas linhas de fora, passamos estrutura formal do trabalho. A dissertao se divide em dois captulos. O primeiro destina-se a diferenciar a interpretao do Renascimento de Jacob Burckhardt e Ernst Cassirer. Para isso, fundamental determinarmos o conceito de Renascimento do historiador suo, para depois descrevermos os argumentos do filsofo alemo, apresentando em seguida duas leituras complementares do filsofo neokantiano que, em nosso entender, colaboraram com os seus argumentos: as de Pierre Duhem e Erwin Panofsky. De Pierre Duhem, Cassirer utilizou a ideia de um plano de pensamento que estabelece uma continuidade da Idade Mdia at a Cincia Moderna. Do historiador da arte, o filsofo se inspira na ideia do platonismo no pensamento tcnico-artstico como base para a cincia moderna. Essas ideias so fundamentais na interpretao do historiador da filosofia, pois, para ele, o pensamento que produzir a revoluo na forma de pensar, que foi a Cincia Moderna, est nesse plano de pensamento paralelo dos artistas do Renascimento. Pretendemos mostrar como dois fatores so fundamentais para distanciar a interpretao de Burckhardt e Cassirer: a concepo de histria do pensamento e a acuidade filosfica.O segundo captulo ser dividido em dois momentos. No primeiro, analisamos a cincia no Renascimento em trs autores: Burtt, Febvre e Mieli. So trabalhos que possuem um dilogo claro e direto com as interpretaes de Burckhardt ou Cassirer. Ao analisar esses autores, situamo-los diante de um problema que chamamos de filosfico. Por vezes, esses autores no diferenciaram a multiplicidade do pensamento filosfico no Renascimento e sua participao no pensamento cientfico. Essas diferentes percepes contriburam, decisivamente, com suas leituras sobre a histria da cincia no Renascimento.No segundo momento, descrevemos como a leitura de Koyr, isto , sua histria do pensamento cientfico da Renascena, no pode ser confundida com uma histria das mentalidades, no sentido dos Annales. Sua preocupao com as nuances do pensamento filosfico no uma simples tentativa de unir a histria da filosofia histria das cincias; para ele, o pensamento cientfico indissocivel do pensamento filosfico. Para Alexandre Koyr, a histria das cincias , antes de tudo, uma histria do pensamento, o pensamento filosfico no s colabora com o desenvolvimento cientfico como tambm no se separa desse.Foi nessa perspectiva que pensamos duas questes que so imanentes nessas leituras do Renascimento, mas apresentam cenrios que nos permitem mostrar uma concepo distinta de histria do pensamento: o papel dos humanistas. Os humanistas so aqueles que encarnam o Renascimento, logo, discutir qual a sua participao no pensamento cientfico dar contornos histria das cincias no Renascimento. No poderamos falar em cincia no Renascimento sem discutir a atuao dos humanistas. Foram eles que deram nome prpria poca.Outra ideia que analisamos na historiografia foi a mxima de que tudo possvel no Renascimento. De fato, na Renascena que os astrlogos desempenham um papel poltico, so conselheiros dos prncipes e monarcas, e os livros de magia e demonologia so os mais vendidos. no sculo XVI que Pomponazzi e Cardano afirmam que os astros velam pelo nosso destino. Na natureza mgica nada acontece por acaso. A poca da Renascena uma poca de credulidade infinita. So os diferentes olhares para esse problema que nos permitem pontuar desvios na relao entre histria e filosofia na concepo de histria do pensamento. a concepo de histria do pensamento que nos permite descrever a diferena entre a noo de Revoluo cientfica de Alexandre Koyr e a Revoluo na forma de pensar de Cassirer que , antes de tudo, a distncia entre essas rupturas. justamente nesse aspecto que tentamos demonstrar a singularidade da leitura de Alexandre Koyr: fazer uma histria da Renascena, na qual foi possvel uma contribuio cientfica, fazer tambm uma histria dos valores negativos.Esperamos, nas pginas que se seguiro, poder demonstrar ao leitor que a histria do Renascimento tem sua positividade justamente naquilo que para muitos reside seu aspecto negativo, no fato de ser um perodo no qual os pensamentos so mltiplos, por vezes, contraditrios e indeterminados. Esse aspecto torna a historiografia do Renascimento um canteiro frutfero para reflexes do mtier do historiador.

Captulo I: O conceito de Renascimento e o lugar da cincia em seu interior: Burckhardt, Duhem e Cassirer1.1 O Renascimento em Jacob BurckhardtDesde que a categoria de Renascimento foi criada no sculo XIX, e inmeras questes da escrita da histria e de sua metodologia se colocaram, esse espao terico o Renascimento tornou-se um lugar privilegiado para pensar a histria e suas problemticas. Para a histria das cincias no foi diferente, pois o Renascimento cientfico se tornou parte basilar do argumento de que, nos sculos XIV, XV e XVI, o mundo moderno foi resultado no de um Renascimento, mas de Renascimentos, entre eles o cientfico. Durante as dcadas de 1930 e 1940, algumas correntes de pensamento debateram sobre esta questo, sobre a existncia, limites e possibilidades da cientificidade do saber renascentista.A imagem do Renascimento tomou forma com a anlise clssica do historiador suo Jacob Burckhardt.[footnoteRef:4] Esse historiador publicou, em 1860, A Civilizao do Renascimento Italiano,[footnoteRef:5] ensaio que tinha por objetivo apreciar o esprito de uma civilizao - empreendimento raro entre os historiadores do perodo e que colaborou para a consolidao do Renascimento enquanto conceito. A maior contribuio do ensaio de Burckhardt dar condio e a altura de conceito, de categorias histricas, possuidoras a um s tempo de unidade e abrangncia, de contedo e forma, de espao e tempo.[footnoteRef:6] Em outras palavras, o autor inicia o movimento que, posteriormente, consolida o termo Renascimento como categoria histrica. Como definiu Peter Gay, criando de uma s feita o que a poucos - pouqussimos - historiadores dado a criar: um novo campo de estudos.[footnoteRef:7] Na sua anlise, Burckhardt descreve a formao do esprito moderno. Esse novo esprito criou uma relao diferente com o mundo, com o homem e com o Estado. Esse esprito moderno, cujo primeiro exemplo seria Frederico II, resultou de uma singularidade, o conflito entre os papas e a dinastia Hohenstaufen, na Itlia do sculo XIII. Singularidade que propiciou na Itlia o surgimento de uma nova concepo de Estado uma criao calculada, voluntria, como uma mquina cientfica.[footnoteRef:8] [4: A contribuio de Burckhardt para a histria do conceito de Renascimento destacada por vrios autores. Eugenio Garin, historiador italiano disse: Jacob Burckhardt, construtor de uma imagem duradoura do Renascimento. Garin, Eugenio. O Homem Renascentista. Traduo de Maria Jorge Vilar de Figueiredo. Lisboa: Editorial Presena, 1991, p. 11. Na mesma linha Hlne Vdrine, historiadora francesa, afirma: Aps as anlises clssicas de Burckhardt, a imagem do Renascimento transformou-se. Vdrine, Hlne. As Filosofias do Renascimento. Traduo de Marina Alberty. Lisboa: Publicaes Europa-America, 1974, p.7. ] [5: Preferimos manter o ttulo da edio portuguesa, da qual nos utilizamos. No entanto, normalmente, nas edies brasileiras o ttulo A Cultura do Renascimento Italiano. Como: Burckhardt, Jacob. A Cultura do Renascimento Italiano. Traduo de Srgio Tellaroli. Rio de Janeiro: Cia das Letras 1991. O ttulo original, em alemo, Die Kultur der Renaissance in Italien.] [6: Florezano, Modesto. Notas sobre a tradio e ruptura no Renascimento e na primeira Modernidade. In: Revista de Histria. So Paulo, nmero 135, 2 semestre, 1996, p. 19.] [7: Ibidem, p. 20.] [8: Burckhardt, Jacob. A Civilizao do Renascimento Italiano. Traduo de Antnio Borges Coelho. 2 ed. Lisboa: Editora Presena, 1983, p.10.]

Se na primeira parte do seu ensaio Burckhardt se concentra no nascimento do esprito poltico moderno, na relao entre tiranos, Estado e papado, nas outras cinco partes ele se dedica ao desenvolvimento do esprito moderno e sua relao com o Renascimento italiano. No captulo intitulado O desenvolvimento do indivduo, que nos informa as principais diferenas entre esse novo esprito que surge no Renascimento e o esprito da Idade Mdia, ele afirma:[...] na Idade Mdia, as duas faces da conscincia, a face objetiva e a face subjetiva, estavam de alguma maneira veladas; a vida intelectual assemelhava-se a um meio sonho. O Vu que envolvia os espritos era tecido de f e de preconceitos, de ignorncia e de iluses; o mundo e a histria apareciam com cores bizarras; quanto ao homem, apenas se conhecia como raa, povo, partido, corporao, famlia ou sob uma outra forma geral coletiva. Foi a Itlia a primeira a rasgar o vu e a dar o sinal para o estudo objetivo do Estado e de todas as coisas do mundo; mas, ao lado desta maneira de considerar os objetos, desenvolve-se o aspecto subjetivo; o homem torna-se indivduo espiritual e tem conscincia deste novo estado.[footnoteRef:9] [9: Ibidem, p.107.]

O Renascimento italiano, segundo o historiador basilense, foi esse rasgar de vu que permitiu o surgimento do esprito moderno. Rasgar de vu que libertou o esprito da ignorncia e da iluso causada pela f e dos preconceitos que ela forma. O Renascimento promoveu a separao entre o objetivo e o subjetivo, formou um novo estado de conscincia do homem em relao ao mundo, o esprito moderno.Burckhardt descreve o aparecimento de um sujeito diferente, com valores distintos dos medievais. O individualismo se liberta do encanto, ningum tem medo de se tornar notado, de ser e de parecer.[footnoteRef:10] Homens que buscam alargar o mximo possvel o seu conhecimento, uomo universale. Homens que querem ser lembrados pelos seus feitos, por suas glrias, e que admiram as glrias de outros. Homens que zombam, riem e trapaceiam (burle e beffe). O Renascimento responsvel pela emergncia de uma personalidade que se afasta da medieval. [10: Ibidem, p.108.]

Outra caracterstica do Renascimento, de acordo com Burckhardt, foi a inspirao da Antiguidade Greco-romana. Como ele escreve, a Renascena no teria sido a admirvel fatalidade histrica que conhecemos se pudesse abstrair to facilmente a influncia da Antiguidade.[footnoteRef:11] No entanto, essa influncia s pode ser compreendida na aliana com o gnio italiano. Isso porque, como afirma o historiador suo, [11: Ibidem, p.137.]

[...] o despertar da Antiguidade fez-se na Itlia duma maneira muito diferente do Norte. Logo que cessa a barbrie na Pennsula, o povo italiano, que ainda meio antigo, v claro no seu passado. Celebra-o e quer ressuscit-lo. Fora da Itlia, trata-se de por de p, sbia e refletidamente, alguns elementos fornecidos pelo mundo antigo. Em Itlia, simultaneamente o mundo e o povo que prestam homenagem Antiguidade e querem faz-la reviver porque recorda a todos a grandeza passada do seu pas.[footnoteRef:12] [12: Ibidem, p.139.]

O Renascimento dos sculos XIV, XV e XVI, na Itlia, foi diferente, pois estabeleceu uma relao singular com o passado. Fazer renascer a Antiguidade reviver seu passado grandioso. Aps o rompimento com a Idade Mdia havia a necessidade de um guia e esse guia foi a Antiguidade Clssica. O Renascimento ruptura, corte, mas tambm revoluo,[footnoteRef:13] retorno. [13: A palavra revoluo, at o sculo XVII, usada para descrever um processo de retorno, de reincio, de volta, numa referncia ao lento, regular e cclico movimento dos astros celestes. Com a Revoluo Inglesa, esse conceito sofre uma inflexo, sendo agenciada pelo vocabulrio poltico, embora ainda com o mesmo sentido astronmico. Apenas mais tarde, na Revoluo Francesa, ele adquire o significado com o qual o conhecemos. Cf. Arendt, Hannah. Da Revoluo. Braslia: Editora da UNB, 1988.]

Esse retorno ao mundo antigo deu-se, como Burckhardt nos informa, pelos autores antigos, principalmente por meio de sua literatura, sendo os humanistas seus maiores divulgadores. Muitos propagadores da literatura do mundo antigo gastavam verdadeiras fortunas com cpias e copistas, basta o exemplo do papa Nicolau V, que endividara-se por sua biblioteca quando era monge. Todavia, o papel dos humanistas no se reduz divulgao do pensamento antigo. Para o historiador Jacob Burckhardt, eles foram responsveis por uma realizao ainda mais importante: fundir o esprito antigo e o esprito moderno. Essas importantes tarefas dos humanistas foram efetivadas graas funo de destaque que os mesmos ocupavam como professores nas Universidades e como preceptores dos prncipes na Itlia. Como escreve Burckhardt, mesmo os mais pequenos tiranos da Romagna se sentem na obrigao de ter na sua corte um ou dois humanistas titulares.[footnoteRef:14] [14: Burckhardt, Jacob. A Civilizao do Renascimento Italiano. Traduo de Antnio Borges Coelho. 2 ed. Lisboa: Editora Presena, 1983, p.175.]

O Renascimento, assim, ruptura com a Idade Mdia e surgimento de um novo esprito, o esprito moderno. Contudo, ele tambm revoluo, retorno a antiguidade, regresso ao esprito antigo: o humanista que faz a fuso desses dois espritos. nesse Renascimento italiano dos humanistas, do resgate da Antiguidade que o homem constitui uma relao diferente consigo mesmo e com o mundo. Mais do que uma relao, a prpria Descoberta do Mundo e do Homem que o Renascimento promove. O esprito italiano lana-se descoberta do mundo exterior e ousa descrev-lo e figur-lo.[footnoteRef:15] o esprito moderno que inspira o homem nas grandes viagens, alcanando um grande progresso na geografia e na cosmografia. Foi este esprito que fez o homem admirar a natureza, sentir prazer na vista de um local pitoresco.[footnoteRef:16] No homem renascentista, diz Burckhardt, o seu olhar to experimentado como o de qualquer outro homem moderno.[footnoteRef:17] [15: Ibidem, p.119.] [16: Ibidem, p.228.] [17: Ibidem, p.232.]

nessa perspectiva, na relao entre o homem e o mundo, que podemos analisar, como uma leitura possvel, o modo como Burckhardt atribuiria um papel importante para a histria da cincia no Renascimento italiano.1.2 A cincia no Renascimento italianoA cincia no a personagem central do belssimo ensaio de Jacob Burckhardt. No entanto, suas palavras sobre ela no podem ser desprezadas; ao contrrio, justamente pela posio central que o ensaio de Burckhardt ocupa no debate sobre o Renascimento que devemos realizar o esforo de compreender a posio da cincia na formao dessa categoria.Burckhardt no pretendia, e no o fez, escrever uma histria das cincias na Itlia. Ele mesmo assevera: Para a parte que os italianos tomaram no desenvolvimento do estudo das cincias naturais, somos obrigados a remeter o leitor a obras da especialidade.[footnoteRef:18] Os sbios, filsofos e engenheiros italianos que se dedicaram cincia no interessam ao autor, no em suas individualidades. A questo de se saber se houve criao de uma teoria por um sbio italiano ou se ocorreu uma inveno pelos engenheiros no est no percurso do autor. Como ele afirma, [18: Burckhardt, Jacob. A Civilizao do Renascimento Italiano. Traduo de Antnio Borges Coelho. 2 ed. Lisboa: Editora Presena, 1983, p.222.]

[...] as discusses levantadas pela questo de prioridade a propsito de certas descobertas tocam-nos tanto menos quanto, em nossa opinio, em qualquer poca e em qualquer povo culto, pode surgir um homem que, partindo de bases poucas seguras, se lana impetuosamente no empirismo e realiza graas aos seus dons naturais, os progressos mais espantosos tais foram Gerbert de Reims e Rogrio Bacon.[footnoteRef:19] [19: Idem.]

Para Burckhardt, o indivduo pode superar as condies locais que o envolvem e realizar o progresso cientfico, bastando seus dons naturais.[footnoteRef:20] No entanto, a coisa completamente diversa quando um povo inteiro ultrapassa outros povos no estudo aprofundado da natureza.[footnoteRef:21] justamente, o modo como todo um povo ou esprito italiano muda seu relacionamento com a natureza que o autor busca elucidar. Acreditamos que so essas reflexes que podem contribuir para compreender o lugar da cincia no Renascimento italiano. Poderamos questionar, a partir da, como a cincia atua no Renascimento para a formao do esprito moderno ou qual a participao da cincia no Renascimento. [20: Idem.] [21: Idem.]

O historiador suo emprega o termo cincia para descrever um conhecimento ou uma construo intelectual. Foi a Itlia a primeira a fazer da guerra uma cincia.[footnoteRef:22] A cincia como conhecimento, instruo, que outrora na Idade Mdia ficou refugiada nos conventos.[footnoteRef:23] Outras vezes, a palavra cincia refere-se ao corpo de conhecimento construdo na Antiguidade ou aos estudos dele.[footnoteRef:24] nesses dois sentidos que o Renascimento italiano vai experimentar um culto da cincia.[footnoteRef:25] [22: Ibidem, p.83.] [23: Ibidem, p.138.] [24: Como podem ser vistas em: os cidados das diferentes cidades, particularmente em Florena, que fizeram do estudo da antiguidade o fim principal da sua vida e se tornaram grandes sbios ou simplesmente amadores esclarecidos protetores da cincia. Cf. Ibidem, p.166. E, as obras literrias da Antiguidade Grega e Romana eram naturalmente, infinitamente mais numerosas e mais importantes que os monumentos da arquitetura antiga e da arte antiga em geral. Consideravam-nas como fonte de toda cincia no sentido absoluto da palavra. Cf. Ibidem, p.149.] [25: Ibidem, p.170.]

Mas em nenhuma parte, como entre os florentinos do sculo XV e do incio do sculo XVI, encontramos este ardor entusiasta, esta paixo da cincia, essa necessidade de instruo que domina toda a gente. Este fato atestado por provas indiretas que no deixam lugar a dvidas. No teriam permitido com tanta frequncia que as jovens cultivassem a cincia, se no a olhassem como o bem mais precioso desta vida.[footnoteRef:26] [26: Ibidem, p.169.]

O termo cincia, como foi empregado at aqui, designa no Renascimento italiano uma mudana de postura em relao s coisas. Diferente do que existia na Idade Mdia, no qual os homens eram escravos da tradio e da autoridade,[footnoteRef:27] no Renascimento o homem no tem a recear o silncio.[footnoteRef:28] Sabemos como essa interpretao do historiador basilense marcou o modo como se compreenderia o Renascimento, histrica e filosoficamente, a partir de ento. Essa nova relao com a tradio que o Renascimento estabelece mencionada, por exemplo, pela filsofa alem Hannah Arendt, segundo a qual a descoberta da antiguidade na Renascena foi uma primeira tentativa de romper os grilhes da tradio, e, indo s prprias fontes, estabelecer um passado sobre o qual a tradio no tivesse poder.[footnoteRef:29] Essa noo de cincia fica evidente na passagem que se segue: [27: Ibidem, p.222.] [28: Idem.] [29: Arendt, Hannah. Entre o Passado e o Futuro. Traduo de Mauro W. Barbosa. 6. ed. So Paulo: Perspectiva, 2007, p.53.]

[...] entretanto os postos confiados a fillogos, ainda que retribudo com bastante largueza em certos casos e se tornassem mais lucrativos ainda devido a vantagens acessrias, pecavam no fim de contas pela estabilidade. Deste modo, a mesma pessoa podia ser adida sucessivamente a uma srie de estabelecimentos cientficos. Gostavam da mudana, queriam incessantemente novidade, coisa fcil de compreender dado o estado da cincia que estava nos seus comeos e, por consequncia, dependia da personalidade dos professores. De resto, o professor que ministrava cursos sobre autores antigos nem sempre pertencia Universidade da cidade em que ensinava. [...] Para se fazer uma ideia do movimento cientfico de ento, necessrio, tanto quanto possvel, esquecer a organizao das nossas Universidades modernas. As relaes pessoais, as discusses eruditas e at do grego por um grande nmero, enfim a frequente mudana dos mestres e a raridade dos livros davam aos estudos da poca uma forma que s dificilmente podemos imaginar.[footnoteRef:30] [30: Burckhardt, Jacob. A Civilizao do Renascimento Italiano. Traduo de Antnio Borges Coelho. 2 ed. Lisboa: Editora Presena, 1983, p. 162 -163.]

A Universidade o lugar onde os estudos haviam alcanado um grande desenvolvimento. No incio, eram trs cadeiras: direito cannico, direito civil e medicina. Depois, somaram-se a elas as cadeiras de retrica e astronomia. Nesse sentido, qual o papel da Universidade? Antes de mais nada, alerta Burckhardt, supunha o triunfo do humanismo nas Universidades.[footnoteRef:31] As Universidades so o lugar de reproduo da cultura dos humanistas. A Universidade lugar de cincia, a cincia dos humanistas. [31: Ibidem, p. 161.]

Essa cincia categoricamente distinta das cincias da natureza. A cincia, filha do individualismo e da personalidade renascentista, no a cincia experimental. Essa distino substancial e no por acaso que Burckhardt vai escrever um captulo especfico para As cincias da Natureza na Itlia. A diferena entre a cincia e as cincias da natureza no mera formalidade; se o humanismo era o propagador e protetor da cincia, sua relao com as cincias da natureza no foi a mesma. Como define Burckhardt:[...] e quando no sculo XV a Antiguidade tomou um lugar to importante na vida, a brecha feita no sistema da Idade Mdia alargou-se muito depressa. Os estudos e as investigaes profanas tornaram-se mais livres, s que o humanismo atraa a si quase todas as foras vivas e prejudicava o empirismo, aplicado s cincias naturais.[footnoteRef:32] [32: Burckhardt, Jacob. A Civilizao do Renascimento Italiano. Traduo de Antnio Borges Coelho. 2 ed. Lisboa: Editora Presena, 1983, p.222-224.]

No podemos deixar de destacar a oposio entre o humanismo e o empirismo realizado por Burckhardt no fragmento acima. nesse sentido, que podemos compreender a afirmao do autor sobre Pico Della Mirandola: foi o nico que teve coragem de defender energicamente a cincia e a verdade de todos os tempos contra os espritos acanhados que punham acima de tudo a Antiguidade clssica.[footnoteRef:33] Portanto, se o humanismo foi fundamental para estmulo da cincia, enquanto contestao da tradio e da autoridade da f e da Igreja, o mesmo no se pode dizer de sua atuao nas cincias da natureza, para o qual o humanismo foi uma barreira. Mesmo diante disso, o autor afirma a superioridade do esprito italiano no assunto: [33: Ibidem, p.155.]

[...] apesar de tudo isto, pelo final do sculo XV, a Itlia que possua Paulo Toscanelli, Luca Paccioli e Leonardo Da Vinci ocupava o primeiro lugar entre os povos da Europa nas matemticas e nas cincias naturais e os sbios de todos os pases, mesmo Regiomontanus e Coprnico, proclamavam-se seus discpulos.[footnoteRef:34] [34: Ibidem, p. 224.]

Sobre o Renascimento da cincia experimental ou cincia da natureza, Jacob Burckhardt cita dois elementos que se somaram para que ele ocorresse: o empirismo e o gosto precoce por colees. Claro que isso s foi possvel porque o humanismo e o esprito moderno italiano j tinham combatido o inimigo mais difcil:[...] quando conseguiram dissipar o erro que em toda a parte reinava como senhor, quando deixaram de ser escravos da tradio e da autoridade e triunfaram sobre o medo da natureza, viram levantar-se perante eles problemas sem conta. Mas a coisa totalmente diversa quando um povo inteiro ultrapassa outros povos no estudo da natureza, quando aquele que descobre novas verdades no tem que recear o silncio e o esquecimento e pode contar com a simpatia de espritos curiosos como o seu. verdade que foi o que aconteceu na Itlia.[footnoteRef:35] [35: Ibidem, p. 222.]

Essas duas noes diferentes de cincia que encontramos no texto do autor de A civilizao do Renascimento italiano podem ser encontradas juntas no conceito de uomo universale[footnoteRef:36] que existe no Renascimento. A cincia no Renascimento italiano, segundo Burckhardt, a cincia do uomo universale, homem que busca o domnio infinito da inteligncia.[footnoteRef:37] No entanto, no basta saber, o conhecimento deve encontrar a sua aplicao na vida de todos os dias.[footnoteRef:38] No por acaso que o sculo XV foi particularmente fecundo em homens notveis pela variedade dos seus conhecimentos e das suas aptides.[footnoteRef:39] Um exemplo de uomo universale, destaca Burckhardt, Dante, [36: O termo uomo universale ou homem universal empregado por inmeros historiadores do Renascimento. No entanto, eles apresentam pouco, ou nenhum, avano, definio de uomo universale de Burckhardt: aquele que quer dominar todos os domnios dos saberes, aquele que tudo faz e entende. Garin, historiador italiano do Renascimento, critica os historiadores que utilizam o termo como muleta. Nesse sentido, gostaramos de destacar a definio de Valry de homem universal, pouco mencionada pelos historiadores: A quantidade e a comunicao de seus atos fazem dele um objeto simtrico, uma espcie de sistema completo em si mesmo, ou que se completa incessantemente. Cf. Garin, Eugenio. O Homem Renascentista. Traduo de Maria Jorge Vilar de Figueiredo. Lisboa: Editorial Presena, 1991. Sobre o a interpretao de Valry, cf. Valry, Paul. Introduo ao Mtodo de Leonardo Da Vinci. Traduo de Geraldo Grson de Souza. So Paulo: Editora 34, 1998, p.65.] [37: Burckhardt, Jacob. A Civilizao do Renascimento Italiano. Traduo de Antnio Borges Coelho. 2 ed. Lisboa: Editora Presena, 1983, p. 112.] [38: Idem.] [39: Idem.]

[...] que mesmo durante a sua vida considerado poeta por alguns, filsofo ou telogo por outros, imprime a todos os seus escritos o carter da sua poderosa personalidade. A autoridade do escritor impe-se ao leitor, mesmo se abstrair os assuntos de que trata. Que fora de vontade supe a harmonia magistral da Divina Comdia! Se consideramos o prprio fundo desta obra imensa, reconhecemos que quase no h no mundo dos corpos e no mundo dos espritos um objeto importante que no tenha aprofundado e sobre o qual no se tenha pronunciado com uma autoridade soberana, mesmo quando a sua opinio se resume a algumas palavras.[footnoteRef:40] [40: Idem.]

O Renascimento da cincia essa vontade de tudo conhecer em si. Por isso, Burckhardt interpreta a criao do relgio e do calendrio como um retrocesso ao desenvolvimento da astronomia, porque evita o contato do homem com a natureza, com o mundo emprico. Como ele descreve: o problema do nascimento e do ocaso dos astros graas aos relgios e calendrios e a difuso destes, arruinou a tendncia que se desenvolvera no povo para a experincia dos fenmenos astronmicos.[footnoteRef:41] Essas criaes evitam que os homens olhem para o cu. Impede de fazer o homem a agir como Dante: buscar o conhecimento na realidade das coisas ou na vida.[footnoteRef:42] Nesse perodo houve um renascimento cientfico, pois assistiu-se ento ao renascer de princpios que, na Idade Mdia, haviam desaparecido: a Idade Mdia que renunciara em suma ao empirismo e ao livre exame.[footnoteRef:43] [41: Ibidem, p. 223.] [42: Idem.] [43: Ibidem, p. 381.]

Para o momento, gostaramos de sublinhar como o historiador suo inseriu a renovao da cincia no interior dessa poca de revolta contra a tradio e a autoridade. No sculo XIX, compreende-se a cincia por meio do empirismo. A cincia fundamentalmente observao e experimentao Claude Bernard um contemporneo e pertence mesma gerao de Burckhardt, no esqueamos. Note-se que a construo argumentativa burckhardtiana que buscamos expor at aqui, se no conduz diretamente ao trabalho que, no final do sculo XVI, explicaria a singularidade da obra de um certo cientista pisano, ela ao menos firma as bases sobre as quais essa obra poderia ser compreendida.1.3 O Renascimento em Ernst CassirerNossa compreenso do Renascimento foi marcada pela interpretao burckhardtiana pensemos, por exemplo, no lugar que a arte, de maneira geral, e o Renascimento, particularmente, ocupam na filosofia de um Friedrich Nietzsche.[footnoteRef:44] A partir do sculo XX, todavia, e, sobretudo, aps o fim da I Guerra Mundial, essa compreenso do Renascimento seria objeto de crtica e de reviso. A partir de ento, muitos historiadores e filsofos buscaram traar uma imagem diversa do Renascimento. Entre eles, poderamos destacar o nome de Ernst Cassirer. [44: Lins discute essa imagem redentora da Renascena em Nietzsche e sua importncia para a trajetria intelectual no Ocidente. Para uma leitura sobre a interpretao nietzscheana do Renascimento. Cf. Lins, Daniel. O elogio da beleza plstica. In: Flores, Maria Bernadete e Piazza, Maria de Ftima (organizadoras). Histria e Arte: Movimentos artsticos e correntes intelectuais. Campinas: Mercado de Letras, 2011, p. 27- 48.]

Em um contexto filosfico neokantiano,[footnoteRef:45] portanto, assaz diferente daquele do historiador basilense, no seu texto, Indivduo e o cosmos na filosofia do Renascimento, de 1926, Cassirer esboa uma histria do pensamento filosfico no Renascimento. O autor cita o vazio deixado por Burckhardt sobre a filosofia durante o Renascimento italiano, eliminando a filosofia do Renascimento do escopo de suas consideraes.[footnoteRef:46] Para o filsofo alemo, partindo da premissa hegeliana segundo a qual filosofia de uma poca rene em si a conscincia e a essncia espiritual de toda uma conjuntura[footnoteRef:47] a interpretao burckhardtiana do Renascimento seria, no mnimo, incompleta ainda mais se o autor suo buscasse apreender o esprito de uma poca. [45: Para um aprofundamento sobre o neokantismo cassireriano da escola de Marburgo.Cf. Brhier, . Histria da Filosofia. Fasc. IV. Traduo de Eduardo Sucupira Filho. So Paulo: Mestre Jou, 1981.] [46: Cassirer, Ernst. Indivduo e cosmos na filosofia do Renascimento. Traduo de Joo Azenha Junior. So Paulo: Martins Fontes, 2001, p.7.] [47: Ibidem, p.3.]

A descoberta da natureza e do homem,[footnoteRef:48] na interpretao de Cassirer, no aconteceu no Renascimento, na ruptura com a noo de religiosidade da Idade Mdia, mas a partir dela. Por isso, o autor salienta a importncia de Nicolau de Cusa, cardeal-filsofo alemo do sculo XV. Ele escolhido por Ernst Cassirer por ser o nico que satisfaz a premissa hegeliana de foco natural.[footnoteRef:49] Portanto, para o filsofo alemo, pelos estudos realizados pelo cardeal-filsofo podemos compreender a erupo, de dentro da filosofia escolstica, da filosofia do Renascimento. As reflexes de Cassirer nos permitem mostrar qual a participao do Renascimento para a formao do pensamento cientfico, ou melhor, qual a relao entre a cincia e o Renascimento. [48: Cassirer, ao utilizar a mxima A descoberta da natureza e do homem, faz uma aluso quarta parte do livro de Burckhardt.] [49: Cassirer define, de forma clara, a noo hegeliana: para o qual convergem e no qual se concentram os raios mais heterogneos. Nicolau de Cusa, nas palavras de Cassirer, o nico pensador que concebe a totalidade dos problemas fundamentais da poca a partir de um s principio metodolgico. Cf. Ibidem, p. 13.]

Nicolau de Cusa foi fundamental para a formao da nova cosmologia, na interpretao de Cassirer. Opondo-se fsica medieval, o cardeal-filsofo contribuiu para a formao de uma nova ideia de cosmos. A fsica medieval se baseia nos fundamentos aristotlicos dos quatro elementos. A principal consequncia dessa ideia de cosmos uma concepo de mundo ordenado, hierarquizado e finito, baseado na teoria de lugar natural.[footnoteRef:50] Existe nessa concepo a oposio entre corpos terrestres e corpos celestes. Os corpos celestes so mais perfeitos que os corpos terrestres. Essa diferena no existe na interpretao de Cusa, segundo a leitura de Cassirer, pois cada elemento, cada ser natural, se comparada com a origem divina do ser, est igualmente prximo e distante dessa origem,[footnoteRef:51] ou seja, como todos esto a uma distncia infinita de Deus, todos esto na mesma distncia ou, como define Cassirer onde a distncia como tal infinita, cessam de existir as diferenas finitas relativas.[footnoteRef:52] Nesse sentido, dentro da prpria tradio escolstica nasce uma nova concepo de mundo, uma ideia de cosmos diferente. Como afirma Cassirer sobre o cosmos de Nicolau de Cusa: [50: A concepo de mundo medieval pode ser resumida no seguinte fragmento do texto do filsofo da Escola de Marbourg: Esta se baseia nos fundamentos da doutrina aristotlica dos quatro elementos, cada um deles tendo um lugar bem definido na constituio do cosmos. Fogo, gua, ar e terra guardam entre si uma relao espacial que obedece a leis rigorosas, dispem-se, por assim dizer, segundo uma ordem determinada do que est em cima e embaixo. A natureza de cada elemento atribui-lhe uma distncia determinada em relao ao ponto central do universo. O mais prximo dele a terra; e cada componente dela, quando separado de sua posio natural, quando distanciado da proximidade imediata em relao ao centro do mundo, se esfora para a ele retornar num movimento retilneo. De forma contrria, o movimento do fogo tende, em si, para cima, de sorte que sua tendncia justamente se afastar do centro. Entre o lugar ocupado pela terra e aquele ocupado pelo fogo fica o domnio do ar e da gua. A forma geral de toda a atividade fsica determinada pela ordem dessas posies. Toda a atividade fsica se processa por meio de transformaes de um elemento ao outro, que lhe mais prximo, de maneira que o fogo se transforma em ar, ar em gua e gua em terra. Esse principio da transformao recproca, essa lei do sugerir e do desaparecer, marca indelvel de todos os fenmenos terrestres. Por sobre o mundo da terra, porm, ergue-se a esfera que no est mais sujeita a essa lei; a esfera para a qual o surgir e o desaparecer lhe so totalmente estranhos. A matria dos corpos celestes possui um ser prprio, uma quinta essentia, diferente por natureza dos quatro elementos terrestres. Nela no se opera qualquer transformao qualitativa; ela s est sujeita a um tipo de alterao: O puro deslocamento no espao. E como aos corpos mais perfeitos deve corresponder a mais perfeita de todas as formas de movimento, deduz-se da que os corpos celestes descrevem rbitas circulares perfeitas ao redor do centro do mundo [...] ela ordena o elemento celeste e os quatro elementos terrestres segundo uma escala de localizao no espao que, ao mesmo tempo, tambm uma escala de valor. Quanto mais elevado o ponto em que se encontra na escala csmica, tanto mais prximo ele est do motor inerte do mundo e, por conseguinte, tanto mais pura e mais perfeita a sua natureza. A cosmologia peripattica fundamental para a compreenso do conceito de movimento aristotlico. Lembremos que a fsica aristotlica do movimento so duas: terrestre e sublunar. Na fsica aristotlica existem dois movimentos: o movimento natural e o movimento violento. O movimento natural o movimento do corpo em direo ao seu lugar natural (atualizao). O movimento violento o movimento em direo oposta ao seu lugar natural e s pode ser realizada por um motor. Cf. Ibidem, p. 41- 42. Para uma ideia mais ampla sobre a concepo de mundo da Idade Mdia. Cf. Dempf, Alois. La concepcion del mundo en la edad media. Madrid: Editorial Gredos, 1958.] [51: Cassirer, Ernst. Indivduo e cosmos na filosofia do Renascimento. Traduo de Joo Azenha Junior. So Paulo: Martins Fontes, 2001, p.43.] [52: Idem.]

[...] o cosmos no representa uma esfera perfeita, nem tampouco descreve uma rbita rigorosamente exata, mas permanece, como tudo o que perceptvel pelos sentidos, na esfera da indeterminao, do mero mais ou menos. Partindo de tais premissas metodolgicas, Nicolau de Cusa chega s consideraes centrais da nova cosmologia.[footnoteRef:53] [53: Ibidem, p.44-45.]

Na ideia de cosmos de Cusa, segundo Cassirer, no existe um centro no mundo fsico, pois o mundo fsico no possui contornos, no possui fim determinado. Na ausncia de limite, no existe centro. No cosmos de Cusa, deixam de existir, portanto, as noes de em cima e embaixo, o que existe um nico cosmos homogneo em si.[footnoteRef:54] Vemos como Cassirer situa no filsofo cusano a origem da concepo ilimitada de cosmos. [54: Ibidem, p.43.]

Nicolau de Cusa representou uma crtica concepo de mundo da Idade Mdia reproduzida pela escolstica baseada no aristotelismo. No podemos minimizar as ideias do cardeal e sua importncia. Ele est dizendo que uma ideia milenar falsa. Por isso, Cassirer afirmar que sua concepo marca uma mudana na orientao geral do esprito.[footnoteRef:55] No podemos negar a importncia desse feito e no sem propsito que Cassirer escreve: Nicolau de Cusa destitui o sistema cosmolgico de Aristteles e da Escolstica de todo e qualquer valor de verdade.[footnoteRef:56] [55: Ibidem, p. 46.] [56: Ibidem, p. 44.]

A interpretao cassireriana de Nicolau de Cusa, at aqui, j serviria para questionar a tese de Jacob Burckhardt[footnoteRef:57] da Idade Mdia como tempo da escurido e da ignorncia. No entanto, Cassirer no se limita a isso, nem ele nem muito menos o cardeal. Nicolau de Cusa, na interpretao do filsofo alemo, foi fundamental para o desenvolvimento do pensamento cientfico no Renascimento italiano. O cardeal alemo inaugura um caminho que, mais tarde, vai servir a Kepler e Galileu. Trata-se da emergncia do ideal de devoo laica ou de devotio moderna. A devotio moderna um novo plano de estudo, uma nova forma de buscar o conhecimento. Essa nova forma de apreender o saber diferente da maneira de alcanar o conhecimento pela via dos humanistas. No por acaso, afirma Cassirer, que Nicolau de Cusa expoente de uma forma de conhecimento, paralela cultura escolstica e cultura do humanismo. Podemos dizer, aqui, que existem dois modos de pensar, um especificamente moderno, aqueles que buscam conhecer o mundo com a devotio moderna, e aqueles que buscam conhecer o mundo como os humanistas.[footnoteRef:58] Essa distino se evidencia em um dos herdeiros de Cusa: Leonardo Da Vinci.[footnoteRef:59] [57: A interpretao de Burckhardt pode ser resumida, de maneira genrica, na sua famosa citao que fizemos acima: na Idade Mdia, as duas faces da conscincia, a face objetiva e a face subjetiva, estavam de alguma maneira veladas; a vida intelectual assemelhava-se a um meio sonho. O Vu que envolvia os espritos era tecido de f e de preconceitos, de ignorncia e de iluses; o mundo e a histria apareciam com cores bizarras; quanto ao homem, apenas se conhecia como raa, povo, partido, corporao, famlia ou sob uma outra forma geral coletiva. Foi a Itlia a primeira a rasgar o vu e a dar o sinal para o estudo objetivo do estado e de todas as coisas do mundo; mas, ao lado desta maneira de considerar os objetos, desenvolve-se o aspecto subjetivo; o homem torna-se indivduo espiritual e tem conscincia deste novo estado. Cf. Burckhardt, Jacob. A Civilizao do Renascimento Italiano. Traduo de Antnio Borges Coelho. 2 ed. Lisboa: Editora Presena,1983.] [58: Como salienta Cassirer, a filosofia de Nicolau de Cusa encontra-se numa estreita zona fronteiria entre tempos e modos de pensar diversos. Cf. Cassirer, Ernst. Indivduo e cosmos na filosofia do Renascimento. Traduo de Joo Azenha Jnior. So Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 63.] [59: Cassirer afirma, junto a Duhem, as estreitas relaes entre Nicolau de Cusa e Leonardo Da Vinci. Cassirer enftico, assim como Duhem, na herana cusana em Da Vinci. Desde as pesquisas criteriosas de Duhem, que nos revelaram as fontes de pensamento de Leonardo, sabemos o quanto eram estreitas as relaes de fato entre Nicolau de Cusa e Leonardo Da Vinci. Duhem demonstrou em detalhes que um grande nmero de problemas, com os quais se ocupou Leonardo Da Vinci, ele os recebeu diretamente das mos de Nicolau de Cusa e prosseguiu em suas investigaes com esses temas exatamente do ponto em que Nicolau de Cusa havia parado. Cf. Ibidem, p. 85 - 86.]

Leonardo traa uma linha divisria entre dois espritos: o esprito dos comentadores e imitadores e o esprito dos descobridores originais. O primeiro cabe aos humanistas; o segundo, queles que buscam conhecer pela devotio moderna. Leonardo caracteriza os humanistas como aqueles que citam autores, reproduzem a ideia, vivem do pensamento do outro, do fruto e do esforo de terceiros. Como escreve Cassirer a respeito das ideias de Leonardo sobre os humanistas: to-somente trompetas e declamadores das obras de outros.[footnoteRef:60] O domnio do texto e da escrita o que define o conhecimento humanista. O esprito da devotio moderna est, na acepo de Da Vinci, nos inventores e nos descobridores. Esses no buscam o conhecimento na tradio, mas uma forma de conhecimento para ser usada contra ela (tradio).[footnoteRef:61] Por isso, esses inventores propuseram o retorno razo natural, fonte primeira do conhecimento, como afirmou Leonardo Da Vinci: [60: Ibidem, p.96.] [61: Podemos perceber essa afirmao em outros momentos do texto: de tais consideraes decorre uma segunda ponderao que, Nicolau de Cusa, destitui o sistema cosmolgico de Aristteles e da Escolstica de todo e qualquer valor de verdade. Cf. Ibidem, p. 83. Leonardo Da Vinci trava uma luta constante contra a autoridade e a tradio. Somente atravs dessa luta que ele se avizinha da nova noo de saber a que visa, e para qual ele prprio criou as primeiras premissas. Cf. Ibidem, p. 44.]

[...] se no posso citar autores como eles fazem, citarei, ento, uma coisa muito mais grandiosa e muito mais digna. Refiro-me experincia, mestra de todos os mestres. [...] Diro que eu, por no ser letrado (per non avere lettere), no posso falar bem e corretamente daquilo que quero tratar. No sabem eles, por acaso, que os meus assuntos se tratam muito mais com a experincia do que com as palavras? E assim como experincia foi a mestra de todos que escreveram bem, tambm a tomo por mestra e a citarei em todos os casos.[footnoteRef:62] [62: Da Vinci, Leonardo. (Il cdice Atlantico di Leonardo da Vinci. Roma, 1894, p. 75). Apud Indivduo e cosmos na filosofia do Renascimento. Traduo de Joo Azenha Junior. So Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 96.]

Diferente do conhecimento dos humanistas, os descobridores originais e inventores, os que usam o ideal de devotio moderna, tem como fonte do saber a experincia e no a tradio.[footnoteRef:63] Podemos dizer, assim, que esse modo de pensar moderno foi resultado de um deslocamento: a origem do conhecimento passa a ser a natureza, a experincia tomada como critrio para o saber. [63: Leonardo, claramente, foi um crtico dos humanistas e sua ideia de conhecimento, como podemos ver: O verdadeiro alimento do esprito no est na obra dos outros; que a autntica sabedoria no pode ser encontrada no abandono de si mesmo a uma autoridade qualquer. [...] Pois a Sabedoria no carece de qualquer apresto erudito: ela clama pelas ruas. Cf. Da Vinci, Leonardo. (Il cdice Atlantico di Leonardo da Vinci. Roma, 1894, p. 75). Apud Indivduo e cosmos na filosofia do Renascimento. Traduo de Joo Azenha Junior. So Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 84.]

Os objetos do saber, ou para saber, do inventor e dos humanistas no so os mesmos. Se os objetos no sos os mesmos no se pode aplicar a mesma metodologia, o silogismo formal j no serve a Nicolau de Cusa e seus herdeiros. Eles buscaram na lgica matemtica os instrumentos necessrios para a interpretao de seu objeto. Cassirer enftico na ruptura operada por Cusa em relao utilizao da lgica: Mas no a lgica da escola, lgica da seita aristotlica, como Nicolau de Cusa a chama, que agora se recorre, j que seu princpio bsico justamente aquele que o filsofo da coincidentia oppositorum (coincidncia dos opostos) rechaa.[footnoteRef:64] Comea em Nicolau de Cusa, com a devoo laica, o processo de secularizao do conhecimento, que no est nos livros, mas na vida, fora deles. Porm, esse processo de secularizao apenas comea com ele; ele no o conclui e em grande parte, no entender de Cassirer, porque Nicolau de Cusa permanece um escolstico. O Cardeal ainda fala o latim da Escola,[footnoteRef:65] ele continua no universo religioso,[footnoteRef:66] permanece subordinado Idade Mdia, e isso um obstculo para o desenvolvimento do seu pensamento. Como escreve Cassirer a propsito do filsofo cusano: [64: Ibidem, p. 90.] [65: Ibidem, p.95. Os escolsticos e os humanistas defendiam o uso do latim e sua excelncia a qualquer custo. Para mais. Cf. Burke, Peter. Linguagens e Comunidades nos primrdios da Europa Moderna. So Paulo: Unesp, 2006.] [66: Ibidem, p.60.]

[...] o espetculo curioso e nico na histria da filosofia, no qual no se busca a exatido da matemtica nem pelo que ela seja em si mesma, nem para se fundamentar o conhecimento natural, mas para se fundamentar o conhecimento de Deus.[footnoteRef:67] [67: Ibidem, p.90.]

No entanto, na limitao de Nicolau de Cusa que podemos visualizar o diferencial da interpretao de Cassirer em relao quela de Burckhardt. Se para o historiador suo o pensamento moderno surge em ruptura com o pensamento medieval, com a colaborao dos humanistas e com o retorno Antiguidade, para Cassirer, o pensamento moderno nasce dentro da escolstica. Podemos perceber isso por meio de Nicolau de Cusa,[footnoteRef:68] tal como declara o historiador da filosofia sobre a dificuldade de expressar-se em latim do Cardeal: [68: Cassirer afirma que o ideal de retorno natureza podia ser visto na escolstica tambm em So Francisco de Assis no ideal de amor cristo, para uma maior compreenso. Cf. Ibidem, p, 89. ]

[...] o embate constante com a expresso, caracterstico de toda sua obra, apenas um sintoma do fato de que agora a poderosa massa de pensamento da filosofia escolstica comea a se libertar de sua rigidez dogmtica; um sintoma de que essa massa, longe de ser colocada de lado, era impelida para o interior de um movimento absolutamente novo do pensamento.[footnoteRef:69] [69: Ibidem, p. 33-34.]

Porm, se o cardeal-filsofo contava com os obstculos para concluir o processo de secularizao do conhecimento, os seus herdeiros[footnoteRef:70] j no tinham as mesmas barreiras. Agora, porm, os homens que, na Itlia, retomam e do continuidade ao seu pensamento, esto livres deste obstculo.[footnoteRef:71] Os matemticos, artistas, inventores e tcnicos que, inspirados pela obra de Nicolau de Cusa, no se contentam com a linguagem tradicional, querem fundar sua prpria lngua. Como define Cassirer: [70: Cassirer diz que o crculo intelectual se forma a partir da obra de Nicolau de Cusa por inventores, matemticos e artistas que esto preocupados com a questo da proporo, que me do conhecimento, mas tambm, me e rainha da arte. Cf. Ibidem, p.88. ] [71: Ibidem, p. 95.]

[...] ao rechaarem o contedo do saber tradicional, rechaam tambm sua forma. Eles querem ser inventores e no comentaristas o que implica o fato de que assim como querem pensar com suas prprias cabeas, tambm querem se expressar atravs de sua prpria lngua.[footnoteRef:72] [72: Ibidem, p. 95-96.]

Na interpretao de Cassirer, a secularizao[footnoteRef:73] do conhecimento veio acompanhada de uma nova forma de expresso, o latim vulgar. O filsofo destaca que o simples retorno experincia no teria dado tantos frutos, inclusive se libertado da escolstica, se no tivesse produzido um novo instrumento: a nova linguagem.[footnoteRef:74] [73: O termo secularizao utilizado por Cassirer entre aspas. Afinal, a secularizao realizada por Nicolau de Cusa no se completa. Ela s se realizar por completo com seus herdeiros. Cf. Ibidem, p. 88.] [74: A vantagem dos inventores e artistas foi possuir o que Nicolau de Cusa no tinha: uma linguagem. Por isso eles avanaram, o cardeal no.]

A linguagem para esses inventores no simplesmente a manifestao do pensamento, mas um momento essencial da prpria formao do pensamento. O papel da linguagem ganha nova importncia associada lgica cusana de que a cincia est intricada no esprito. Para Nicolau de Cusa, a fora fundamental da alma, do esprito o intelecto;[footnoteRef:75] o intelecto, diz Cassirer, : a fora fundamental da alma e como instrumento de sua unio com Deus.[footnoteRef:76] A nica forma de se conhecer Deus pela Visio intellectualis (viso intelectual), o momento no qual o homem se coloca em relao direta com Deus.[footnoteRef:77] nesse contexto que a linguagem se constitui em outra categoria. Ela faz parte da criao e da criatura, pois ela a manifestao do esprito. Ela projeta a potncia criadora do esprito. A linguagem concretiza a cincia que revela-se a fora criadora da alma racional.[footnoteRef:78] O esprito transforma. Essa ideia, aparentemente simples, desencadeada por Nicolau de Cusa vai resultar na formao de uma nova maneira de pensar, mas tambm, com os inventores e com os artistas instaura-se uma nova forma de se relacionar com a natureza: o pensamento cientfico moderno. Por isso, Cassirer escreve: [75: Se opondo interpretao de que a fora da alma a vontade, tambm comum na Idade Mdia.] [76: Ibidem, p. 22.] [77: Ibidem p. 24.] [78: Ibidem, p. 71.]

[...] quando Leonardo da Vinci se volta para a experincia, ele o faz para nela mesma mostrar as leis eternas e imutveis da razo. [...] Galileu envereda pelo mesmo caminho; na mesma intensidade com que se considera defensor do direito da experincia, ele tambm enfatiza que o esprito no pode criar o conhecimento autntico, seno a partir de si mesmo.[footnoteRef:79] [79: Ibidem, p. 99.]

Atravs dessa concepo do papel transformador do esprito, podemos entender como uma filosofia idealista influenciou os empiristas do sculo XVI. A partir da, escreveu Cassirer,[...] possvel entender como o idealismo de Nicolau de Cusa parte de uma possante influncia realista, como o renovador da doutrina platnica da anamnese pde se transformar em lder dos grandes empiristas, dos fundadores da moderna cincia experimental.[footnoteRef:80] [80: Ibidem, p. 98.]

Portanto, existe na obra do cardeal princpios que fomentaram uma interpretao do conhecimento e do mundo de forma diferente da escolstica tradicional. Para Cassirer, Cusa forneceu a base para o pensamento cientfico moderno.No entanto, descrever o esprito do Renascimento na obra de Cassirer apenas dessa forma seria, no mnimo, trair a interpretao do autor. Como ele mesmo afirma:[...] este ngulo de observao evidencia tambm o quanto enganosa a crena de que o processo de libertao do Renascimento das amarras da Idade Mdia foi do tipo retilneo, uniforme e progressivo. Em nenhum sentido trata-se aqui de um desenvolvimento tranquilo e uniforme, de um crescimento simples e espontneo. No embate de foras que aqui se realiza, chega-se sempre a um equilbrio temporrio, totalmente instvel. O sistema de Nicolau de Cusa representou, tambm ele, um tal equilbrio frgil na grande disputa que se travou entre os conceitos de verdade religiosa e filosfica, entre f e conhecimento, entre religio e cultura do mundo.[footnoteRef:81] [81: Ibidem, p. 101.]

Nicolau de Cusa no influenciou apenas os artistas e inventores, que buscaram nele a lgica matemtica para explorar os problemas da forma, mas tambm os msticos. Se, de um lado, sua obra estimulou Leonardo, Kepler e Galileu, de outro, ela colaborou para a construo da metafsica difundida por Campanella, Ficino, Pico Della Mirandola, Pomponazzi, Giordano Bruno[footnoteRef:82] e a Academia de Florena. Se o esprito tem uma dimenso criadora e toda criatura tem um pouco do esprito, no nos surpreende a ideia mstica de interpretar o esprito pelas coisas, pois em cada um deles se pode perceber o vestgio de Deus.[footnoteRef:83] A mesma filosofia que estimulou a elaborao das categorias fundamentais da lgica matemtica e da cincia exata serviu aos msticos para a consolidao de uma ideia de natureza mgico-mstica.[footnoteRef:84] Essa co-determinao do esprito do Renascimento uma das caractersticas marcantes da interpretao cassireriana do perodo. [82: O prprio Bruno jamais deixou qualquer dvida sobre o quanto devia aos dois pensadores ao divino Nicolau de Cusa e a Coprnico, que louva como seus verdadeiros libertadores intelectuais. Cf. Ibidem, p. 79.] [83: Ibidem p. 91.] [84: Dependendo da direo que tal interpretao toma, ela pode conduzir ou a uma nova metafsica, ou a uma cincia exata. A filosofia da natureza do Renascimento enveredou pelo primeiro caminho. Ela aceitou a noo bsica de que a natureza o livro de Deus para depois transform-la atravs de inmeras variaes. Cf. Ibidem, p. 92.]

Na metafsica mstica, a natureza revela atravs dos smbolos a manifestao da conscincia de Deus. Assim, podemos compreender a afirmao de Cassirer sobre Campanella: para ele, conhecer no significa outra coisa seno ler a escrita divina na natureza.[footnoteRef:85] Na natureza existe o cdigo de Deus, conhecer Deus decifrar esse enigma que est tatuado na natureza.[footnoteRef:86] A natureza, Deus e o homem fundem-se. A natureza mgico-mstica estabelece um lao que une essas trs esferas, que agora no podem ser interpretadas isoladamente. A beleza do universo evidencia a sua origem divina, por isso o universo harmonioso, equilibrado e perfeito. Todo esprito reconhece o belo, pois o belo, assim como o esprito, representa o selo de Deus. Existe no cosmos a relao entre Deus, que est em tudo, e o esprito que contm Deus: uma relao ntima entre Deus e o esprito. [85: Idem.] [86: Essa concepo de Campanella fica clara, na seguinte passagem: O mundo a esttua, o templo vivo e o cdigo de Deus, no qual Ele inscreveu e desenhou coisas de infinita dignidade que abrigava em Seu esprito. Feliz daquele que l este livro e dele aprende a natureza das coisas, sem imagin-las segundo seu prprio arbtrio ou a partir de opinies alheias. Campanella (De sensu rerum et magia. Frankfurt, 1620, p. 337).: Apud Cassirer, Ernst. Indivduo e cosmos na filosofia do Renascimento. Traduo de Joo Azenha Junior. So Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 92.]

Cassirer destaca como a concepo de natureza mstica permite uma nova direo ao pensamento.[footnoteRef:87] Essa nova direo apontada pelo pensamento renascentista pode ser exemplificada na lgica de Pomponazzi e o lugar que ela d astrologia. A astrologia em Pomponazzi no significa uma superstio, mas adquire um status racional, ele quer substituir a f pelo conhecimento.[footnoteRef:88] Nesse sentido a astrologia torna-se condio para inteligibilidade da natureza.[footnoteRef:89] Em Pomponazzi, a astrologia a nica garantia realmente segura para a validade incondicional das leis da natureza.[footnoteRef:90] Os astros regem os acontecimentos sob uma lei inviolvel. A astrologia de Pomponazzi, portanto, no a mesma da astrologia medieval. Na cosmoviso medieval ela prtica demonaca, ou seja, uma causalidade religiosa. E por mais que ela se limite s representaes tradicionais, Cassirer afirma sobre o escritor italiano: [87: Atestada tambm nas pesquisas de Warburg nas artes plsticas, como Cassirer escreve. Cf. ibidem, p. 127.] [88: Uma explicao imanente no lugar de uma transcendente. Cf. Ibidem, p 174.] [89: Ibidem, p. 74.] [90: Idem.]

[...] nesse sentido, sua obra, que a principio pode parecer um arsenal de superstio, encerra um autntico trabalho de raciocnio crtico. O elemento puramente primitivo, demonaco, da crena nos astros afastado e em seu lugar permanece apenas a noo de uma nica lei inviolvel que rege os acontecimentos e que desconhece qualquer exceo ao acaso: a causalidade demonaca da f cede lugar causalidade da cincia. bem verdade que esta ltima ainda permanece no crculo de representaes tradicionais da astrologia, visto que para Pomponazzi ainda no existe uma cincia natural matemtica. Contudo, j se pode antever aqui que, uma vez rompida a moldura, uma vez substitudo o conceito astrolgico de causalidade pelo fsico matemtico, no haver mais barreiras interiores para a elaborao deste ultimo.[footnoteRef:91] [91: Ibidem, p. 176.]

Cassirer enxerga em Pomponazzi e na interpretao astrolgica mstica uma contribuio concepo de natureza prpria das cincias exatas: a ideia de que a natureza opera por leis. Mas o esprito do Renascimento nunca se livrou da magia. Houve vrias tentativas de se formar um mtodo racional da magia, como uma cincia da natureza, magia como soma de toda a sabedoria da natureza e como a parte prtica de toda a cincia da natureza, [...] o lado ativo do conhecimento da natureza.[footnoteRef:92] No entanto, isso no basta para diferenciar o impossvel do fantstico. [92: Ibidem, p.245.]

No basta saber que a natureza regulada por leis, necessrio determinar regras para diferenciar o que possvel do que no. At mesmo o empirismo do naturalismo do Renascimento no possui foras para se libertar de todo e qualquer componente fantstico.[footnoteRef:93] O empirismo, as leis da natureza e a sistematicidade vivem lado a lado do esprito fustico e milagroso do Renascimento. No existe nada que impea o esprito de afirmar que algo seja falso ou um critrio para determinar sua veracidade contra um elemento errneo. Como descreve Cassirer: [93: Ibidem, p. 243. Em outro fragmento o historiador da filosofia insiste nesse argumento: o recurso experincia de nada serve, visto que seu prprio conceito ainda abarca elementos completamente heterogneos. A teoria da natureza dos sculos XV e XVI lana pedra fundamental para descrio e a experimentao exata; lado a lado com elas, porm, convivem as tentativas de uma fundamentao para a mgica empirista. Cf. Ibidem, p. 248.]

[...] essa forma de induo, porm ainda no conhece as limitaes que lhe impem os pontos de vista da anlise crtica, pressupostos fundamentais de todo e qualquer experimento verdadeiro. Dessa forma, o mundo da experincia no apenas se avizinha do mundo milagre, como ambos se sobrepem e se interpenetram sem cessar. Toda a atmosfera dessa cincia da natureza est plena e saturada de milagres.[footnoteRef:94] [94: Ibidem, p. 249.]

Enquanto o mundo da experincia e o mundo do milagre se entrelaavam no existia, no Renascimento, um critrio de veracidade. A noo de natureza mgica impede a formao de um conhecimento legitimamente verdadeiro. A filosofia, afirma Cassirer, transforma-se, ento, em couraa contra as foras seculares que ameaam todos os lados.[footnoteRef:95] preciso formar um novo conceito de natureza, mas esse trabalho no simples. De forma alguma se trata aqui de uma evoluo paulatina, mas sim de uma genuna revoluo da forma de pensar.[footnoteRef:96] Para que o moderno conceito de natureza encontre sua emergncia, dois caminhos precisam ser percorridos. Primeiro, o homem precisa se separar da natureza, uma nova relao entre sujeito e objeto precisa se definir.[footnoteRef:97] Segundo, preciso uma nova relao entre liberdade e necessidade.[footnoteRef:98] Para que o conceito de natureza moderna forme-se, uma sntese no interior do mundo do esprito deve criar uma nova relao entre sujeito e objeto, entre a liberdade e a necessidade diluindo a metafsica do Renascimento. Como afirmou Cassirer: [95: Ibidem, p. 103.] [96: Cassirer retoma essa noo, revoluo na forma de pensar, de Kant. Cf. Ibidem, p. 206. Para mais, ver o prefcio da segunda edio da Crtica da Razo Pura de 1787. Kant, Immanuel. Crtica da Razo Pura. 5ed. Traduo de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujo. Lisboa: Edio da Fundao Calouste Gulbenkian, 2001.] [97: A mudana desse cenrio s se processa medida que o pressuposto, sob o qual repousam no apenas a psicologia espiritualista, mas tambm a psicologia naturalista do Renascimento, comea a ser paulatinamente descartada; medida que a relao substancial e concreta entre corpo e alma, entre natureza e esprito, substituda por uma relao funcional. Cf. Cassirer, Ernst. Indviduo e cosmos na filosofia do Renascimento. Traduo de Joo Azenha Junior. So Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 234.] [98: A questo da liberdade e necessidade est ligada formao da natureza enquanto objeto de cincia, para isso ser necessrio transformar o casual e emprico em necessrio e regular. Cf. Ibidem, p. 254.]

[...] a fim de se estabelecer um tal equilbrio, a fim de definir e de consolidar dentro de um novo conceito de natureza um novo conceito de intelecto e de esprito, seria necessrio abandonar o caminho da metafsica e da mera psicologia. Nem a metafsica supranaturalista nem a psicologia naturalista, mas sim a observao da natureza a partir da perspectiva da arte e das cincias exatas alcanou esse objetivo, criou um conceito de necessidade e de legalidade natural, que no mais se opunha liberdade e autonomia do esprito, mas que se transformara em seu apoio e em sua confirmao mais segura.[footnoteRef:99] [99: Ibidem, p. 232.]

O pensamento no conseguiria romper com a metafsica do Renascimento sem um auxlio decisivo: Tal auxlio lhe chega s mos pela pesquisa exata e emprica por um lado, e pela teoria da arte, por outro.[footnoteRef:100] a teoria da cincia e a teoria da arte em aliana que produzem o novo conceito de natureza moderna. E, para isso, ela realizou o que a metafsica do Renascimento no poderia fazer; criou critrios para separar o casual do arbitrrio, ou seja, definiu o que necessidade imanente do objeto natural. Para isso, o empirismo no servia, seu desfecho era o sensualismo naturalista. A inflexo na histria do pensamento se deu pelo intelectualismo matemtico, a lgica matemtica em associao com a teoria da arte conseguiram separar o regular do arbitrrio e do fantstico: a passagem pela forma da demonstrao matemtica transforma-se em condio sine qua non de toda a verdadeira cincia.[footnoteRef:101] Retornamos, aqui, ao caminho iniciado por Nicolau de Cusa, passando por Leonardo da Vinci e chegando a Galileu: uma aventura margem da metafsica do Renascimento. [100: Ibidem, p. 234.] [101: Ibidem, p. 252.]

Foi o sentir artstico que determinou o novo conceito de natureza que se desenvolve nas cincias do Renascimento. A imaginao artstica definiu a relao entre sujeito e objeto, entre o homem e o mundo. Ela ultrapassa o dilema metafsico do Renascimento (caracterstico das obras de Pico Della Mirandola, Campanella e Ficino, por exemplo). A relao estabelecida entre a imaginao do artista e o mundo no a relao de dominao, mas da compreenso. A antiga luta entre espiritualismo e naturalismo pela alma do homem no existe mais, a imaginao do artista quer conhecer a ragioni (razo) do real atravs do idealismo matemtico, descobrir e demonstr-la. Para isso, ele no precisa aprisionar a natureza, mas a fora imaginativa do artista, sua imaginao que cria uma segunda natureza.[footnoteRef:102] Como descreve Cassirer: [102: Ibidem, p. 266.]

[...] assim, todo experimento, toda questo endereada experincia, pressupe um esboo intelectual do pensamento, uma mente concipio (concepo pela mente), como Galileu o chama. Nele nos antecipamos uma legalidade da natureza.[footnoteRef:103] [103: Ibidem, p. 267.]

No mesmo golpe da separao do homem do mundo, o artista estabelece um novo conceito de necessidade: a necessidade da natureza. Essa formulao s foi possvel aps a construo de uma alternativa categoria tica e religiosa. A metafsica do Renascimento ou escolhia pela natureza contra a liberdade ou pela liberdade contra natureza (pelos astros ou pela Fortuna). Os artistas partindo da natureza como reino das formas perfeitas, entendiam que ela regida pela necessidade da proporo, da unio regra eterna da matemtica, aos fundamentos da exatitude. A natureza dominada pela razo, o artista quer descobrir essa lei inabalvel que a rege. Podemos afirmar que esse esprito, o do artista, fundamentalmente diferente do esprito do mstico, seu esprito formado pela cincia exata e no pela metafsica.Trata-se, afirma Cassirer, isso sim, de uma tendncia geral a se ater a tarefa tcnico-artstica concreta, para as quais se busca uma teoria. Em meio atividade artstica criadora surge a exigncia por uma reflexo mais profunda acerca dessa mesma atividade; e essa exigncia no pode ser satisfeita, a menos que se recorra aos fundamentos ltimos do conhecimento, especialmente do conhecimento matemtico. Ao lado de Leonardo Da Vinci, Leon Batista Alberti quem incorpora essa nova forma e essa nova problemtica da vida intelectual: e ele tambm no apenas est ligado a Nicolau de Cusa por relaes pessoais, como tambm faz referncia, em seus princpios tericos, s especulaes matemtico-filosficas de Nicolau de Cusa, particularmente aos esforos metodolgicos em torno da questo da quadratura do crculo. Essa questo pontual permite-nos identificar os pensamentos fundamentais que uniam os homens desse crculo com Nicolau de Cusa.[footnoteRef:104] [104: Ibidem, p.87.]

Na histria da filosofia do Renascimento, Cassirer demonstrou como o modo de pensar no perodo mudou; como ele mesmo afirma, no uma histria retilnea, no trata-se de um refinamento progressivo do pensamento. Nicolau de Cusa inspirou tanto a cincia exata como a metafsica dos msticos. Os msticos e sua concepo de natureza na aspirao emprica de conhecer a natureza, acabaram por cegar a filosofia da natureza diante da verdade singular da natureza, de sua legalidade universal, reconduzindo-a s trevas da mstica e da teosofia.[footnoteRef:105] Somente o logos da conjuno da matemtica com a teoria da arte suplanta a magia e a mstica em favor do idealismo matemtico criando uma nova ideia de natureza, verdadeiramente moderna. Cassirer afirma que o equilbrio energtico entre a filosofia platnica e aristotlica gerou um estado de tenso que privou a mstica de verdade. No Renascimento, o esprito humano deve escolher entre Aristteles e Plato. Enquanto a escolha definitivamente no se realiza, o Renascimento vive equilbrios temporrios, totalmente instveis. Empregando uma noo de Warburg, Cassirer definiu esses momentos como estados de equilbrio energtico, no qual o pensamento cria alternativas conciliatrias at que finalize esse estado de tenso do pensamento: o movimento que parte do platonismo converge neste ponto para o movimento que tem seu ponto de partida num aristotelismo renovado e reformado.[footnoteRef:106] Antes de criar a noo de sujeito e objeto moderno, tinha que se escolher entre Plato e Aristteles. Pois, desde a Antiguidade grega, o problema do eu e do mundo est vinculada ao problema da alma e as diferentes interpretaes via Plato e/ou Aristteles. Como Cassirer descreve: [105: Ibidem, p. 273.] [106: Ibidem, p. 206.]

[...] enquanto natureza e esprito so concebidos como duas partes do ser, a questo de saber qual deles abarca o outro, e qual deles pelo outro abarcado, continua sem resposta. Nessa disputa incessante, eles transformam todo o espao da realidade em palco de sua luta, por assim dizer.[footnoteRef:107] [107: Ibidem, p. 233.]

Essa disputa encerrou-se, como j dissemos, quando a teoria do conhecimento e a teoria da arte indicaram um novo caminho filosofia e natureza: o caminho do idealismo platnico. No entanto, Cassirer esclarece que no trata-se de um simples processo de apropriao do legado de ideias genuinamente platnico, mas de uma verdadeira anamnese da doutrina de Plato, de sua renovao a partir dos fundamentos mesmos do prprio pensamento.[footnoteRef:108] Duas noes foram para isso fundamentais: a noo de a priori, proclamando a autonomia da razo terica, e de logos, que renuncia a apreenso direita das coisas, levando contemplao daquilo que para a matemtica. A fuga para o logos cria uma nova concepo de natureza e uma nova meta para o conhecimento.[footnoteRef:109] [108: Ibidem, p. 271.] [109: O conhecer uma coisa deixa de ser aristotlico. No mais comungar com ela uma unidade.]

A noo de natureza moderna nasce em termos puramente platnicos. E aparece na sua forma mais perfeita em Kepler, para quem, descreve Cassirer:[...] as leis da harmonia so as determinaes essenciais que encontramos no mundo emprico, no mundo visvel e sensvel, pela simples razo de que tudo o que visvel criado a partir de arqutipos eternos da ordem da medida, da aritmtica e da geometria.[footnoteRef:110] [110: Ibidem, p. 270.]

No por acaso que Kepler o pai da Cincia Moderna para Cassirer. Pois ele se ope noo de lugar de Aristteles;[footnoteRef:111] o lugar, enfatiza Kepler, no em si nada de determinado e de dado; toda determinao espacial obra do esprito.[footnoteRef:112] esse princpio que demonstra uma nova relao entre natureza e esprito, entre objeto e sujeito. Kepler o primeiro a conceber as leis fundamentais dos movimentos dos planetas e dar-lhe uma fundamentao metodolgica e de princpios. Poderamos dizer que o primeiro pensador caracteristicamente moderno. [111: Ver nota 50, sobre a cosmologia e a fsica aristotlica.] [112: Ibidem, p. 292.]

Kepler supera a antinomia dialtica entre sujeito e objeto, algo que a filosofia do Renascimento no conseguiu. No entanto, na interpretao de Cassirer, a filosofia do Renascimento tem seus mritos, pois foi a primeira a identificar o problema e a transmiti-lo aos sculos das cincias exatas e da filosofia sistemtica.[footnoteRef:113] [113: Ibidem, p. 309.]

A anlise da trajetria da formao do modo de pensar moderno feita por Cassirer nos permite pontuar algumas diferenas entre sua interpretao da erupo desse pensamento e a de Burckhardt. J acreditamos ter demonstrado que o pensamento moderno nasce a partir de relaes distintas com a escolstica, de acordo com a interpretao desses autores. Todavia, se em Cassirer o pensamento moderno nasce de dentro da escolstica, para Burckhardt, ele nasce contra essa. No entanto, as singularidades no terminam nesse ponto. Se os humanistas aparecem na interpretao de Burckhardt como os heris que libertam o homem dos grilhes da Idade Mdia com o amparo fundamental da Antiguidade, em Cassirer, eles atuam como os verdadeiros protetores da tradio. O pensamento cientfico moderno no surge com a contribuio dos humanistas, mas contra eles, pelas mos dos artistas e inventores.[footnoteRef:114] [114: importante ressaltar, aqui, que outros historiadores chegam a concluso semelhante de Cassirer, porm por outros caminhos. Podemos destacar a tese de Paolo Rossi, segundo a qual os artistas e arteso do sculo XV, inclusive Leonardo, foram fundamentais para o desenvolvimento tcnico-cientfico. A Cincia Moderna nasce nas oficinas e no nas Universidades. Para maior aprofundamento. Cf. Rossi, Paolo. Os Filsofos e as Mquinas. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 1989.]

Podemos destacar ainda os elementos que os autores consideram como contribuio para o desenvolvimento cientfico. Em Burckhardt, o empirismo e o gosto pelas colees so elementos incipientes da cincia renascentista. J para Cassirer, a lgica matemtica e a linguagem que permite a formao terica. Entre Cassirer e Burckhardt, portanto, existem concepes diferentes de cincia. Mas no apenas o neokantismo do filsofo da Escola de Marbourg que nos permite pensar nessa diferena na maneira de compreender o conhecimento daquela do historiador suo.1.4 Entre Burckhardt e Cassirer: Pierre DuhemUm dos motivos da distncia entre a interpretao de Cassirer e Burckhardt a obra de Pierre Duhem. Entre os dois primeiros, no h apenas o espao em que se constituiu uma reao ao empirismo tradicional; h tambm a obra do historiador e filsofo francs. E Cassirer leu Duhem. Este ltimo foi responsvel pela transformao da interpretao sobre a histria da cincia medieval e, portanto, da prpria imagem que se fazia da Idade Mdia. Cassirer tem em comum com a interpretao duhemiana, que ele cita inmeras vezes em seu texto,[footnoteRef:115] a ideia de que o desenvolvimento cientfico moderno nasce na escolstica. Na carta enviada ao Padre Bulliot, Pierre Duhem resume sua tese sobre a relao entre Idade Mdia e o Renascimento no surgimento da Cincia Moderna: [115: Cassirer cita Duhem nas pginas 42, 86, 87, 287, 306. Cf. Cassirer, Ernst. Indivduo e cosmos na filosofia do Renascimento. Traduo de Joo Azenha Junior. So Paulo: Martins Fontes, 2001.]

[...] qual papel os espritos livres to celebrados da Renascena desempenharam na formao da Cincia Moderna? Em sua supersticiosa e rotineira admirao da Antiguidade, eles ignoraram e desdenharam todas as ideias fecundas que a escolstica do sculo quatorze tinha emitido para retornar s teorias as menos sustentveis da fsica platnica ou peripattica. O que foi esse grande movimento intelectual do incio do sculo dezesseis e incio do sculo dezessete que produziu as doutrinas at hoje admitidas? Um puro e simples retorno aos ensinamentos que a escolstica de Paris dava na Idade Mdia, de sorte que Coprnico e Galileu so seus continuadores e como que discpulos de Nicolau Oresme e de Joo Buridano. Se, pois, esta cincia, da qual ns somos legitimamente orgulhosos, pde ver o dia, porque a Igreja catlica foi a sua parteira.[footnoteRef:116] [116: Carta de Pierre Duhem ao Padre Bulliot de 21 de Maio de 1911.: Apud Fabio, Leite. Um estudo sobre a Filosofia da Histria e Sobre a Historiografia da Cincia de Pierre Duhem