Hobbes

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    SILVA, HA. As paixes humanas em Thomas Hobbes: entre a cincia e a moral, o medo e a esperana [online]. So Paulo: Editora UNESP; So Paulo: Cultura Acadmica, 2009. 121 p. ISBN 978-85-7983-024-2. Available from SciELO Books .

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    As paixes humanas em Thomas Hobbes entre a cincia e a moral, o medo e a esperana

    Hlio Alexandre da Silva

  • as paixes humanas em thomas hobbes

    hlio alexandre da silva

    entre a cincia e a moral, o medo e a esperana

  • AS PAIXES HUMANAS EM THOMAS HOBBES

  • HLIO ALEXANDRE DA SILVA

    AS PAIXES HUMANAS EM THOMAS HOBBES

    ENTRE A CINCIA E A MORAL, O MEDO E A ESPERANA

  • Editora afi liada:

    CIP Brasil. Catalogao na fonteSindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

    S58p

    Silva, Hlio Alexandre da As paixes humanas em Thomas Hobbes : entre a cincia e a moral, o medo e a esperana / Hlio Alexandre da Silva. So Paulo : Cultura Acadmica, 2009.

    Inclui bibliografi a ISBN 978-85-7983-024-2

    1. Hobbes, Thomas, 1588-1679. 2. Cincia poltica Filosofia. 3. Direito natural. 4. tica. 5. Esperana. 6. Medo. I. Ttulo.

    09-6220. CDD: 320.15CDU: 321.011

    Este livro publicado pelo Programa de Publicaes Digitais da Pr-Reitoria de Ps-Graduao da Universidade Estadual Paulista Jlio de Mesquita Filho (UNESP)

    2009 Editora UNESP

    Cultura AcadmicaPraa da S, 10801001-900 So Paulo SPTel.: (0xx11) 3242-7171Fax: (0xx11) [email protected]

  • Dedico esse trabalho memria de Hlio Jos da Silva, em louvor e reconhecimento a sua prudncia e responsabilidade no desempenho

    da rdua tarefa de pai.

  • AGRADECIMENTOS

    Quero agradecer ao apoio, estmulo e reconhecimento de toda minha famlia, principalmente minha me Dona Dirce, de fora e dedicao incomparveis e ao meu irmo Bruno, companheiro de pescaria com quem compartilho a ciofi lia. Agradeo tambm, e de maneira especial, a Maria rbia pela companhia de valor inesti-mvel, pela cumplicidade sempre presente em todos os momentos desde os anos de graduao. Ao Crculo de Marlia, Rafael, Henrique, Thiago e ao distante Marcelo pela amizade cultivada, pelas intensas e extremamente frutferas discusses lgicas, metaf-sicas, hedonistas e polticas (no necessariamente nessa ordem) que ocorrem sempre que o Crculo se rene. Renata, pela amizade redescoberta. Ao Herbert e Eloisa pelas conversas sempre muito agradveis sobre poltica, universidade e fi losofi a. Aos moradores da casa 12 da moradia estudantil da Unesp/Marlia que muito me ajudaram com a companhia e as divertidas conversas principalmente durante os anos de 2005 e 2006. professora Maria Isabel Limongi pelas valiosssimas contribuies na banca de qualifi cao. A profes-sora Yara Frateschi pela participao na banca de qualifi cao e na desfesa desse trabalho, bem como por sua ateno e prontido em apontar os melhores atalhos para uma boa compreenso da fi losofi a de Hobbes.

  • 8 HLIO ALEXANDRE DA SILVA

    Agradeo Capes e ao programa de bolsa mestrado do governo do estado de So Paulo para professores da rede estadual de ensino pelas bolsas concedidas. Agradeo tambm ao professor Ricardo Monteagudo pela orientao e pelo acompanhamento de meus es-tudos desde a graduao.

  • SUMRIO

    Prefcio 11Apresentao 13

    1 Cincia e Filosofi a 192 Uma abordagem crtica: Taylor, Strauss e Warrender 473 As paixes humanas 77

    Consideraes fi nais 111Referncias bibliogrfi cas 119

  • PREFCIO

    Thomas Hobbes autor obrigatrio para todos aqueles que se in-teressam por fi losofi a poltica (na verdade, para todos aqueles que se interessam por poltica, pela tica de qualquer campo terico). Mas um autor diminudo, simplifi cado, barateado, ao qual atribumos a paterni-dade do estado enquanto leviat e mais meia dzia de frases clebres: o homem o lobo do homem, os pactos sem espada no passam de pa-lavras etc. que normalmente restringimos a vasta, viva e tensa obra de Hobbes a meia dzia de captulos do Leviat, a comear do dcimo ter-ceiro captulo dessa obra. Como se a primeira tese fosse aquela da guerra generalizada de todos contra todos e a ltima fosse a defesa do Estado ab-soluto. uma estratgia do leitor preguioso, que combina com manuais e rtulos e no combina nada com uma atitude fi losfi ca genuna e sria. Para comear a desfazer os preconceitos, preciso lembrar que Hobbes no autor de uma nica obra e que o Leviat no comea no captulo XIII. Mais ainda: Hobbes queria ter feito um sistema fi losfi co e todo o seu longo percurso intelectual afi rmou e reafi rmou o propsito de fazer que os diversos campos da fi losofi a dialogassem de forma sistemtica. Isso signifi ca que, para compreender a grande tese da poltica hobbesia-na, preciso dar alguns passos atrs daquele que costumamos adotar como o primeiro e procurar as bases dessa fi losofi a poltica. precisa-mente isso o que procura fazer Hlio Alexandre da Silva em seu primeiro (e espero que no o ltimo!) trabalho de flego sobre Thomas Hobbes.

  • 12 HLIO ALEXANDRE DA SILVA

    O grande mrito da dissertao de mestrado de Hlio Alexandre da Silva no se contentar com aquele velho e bom (bom ou vilo, tanto faz) Hobbes conhecido de todos ns: o autor est procura dos fundamentos da fi losofi a poltica hobbesiana e, nessa busca, chama para o centro de seu trabalho a relao entre a fi losofi a natural e a fi losofi a civil. Com isso o autor revela sua rebeldia e insubordinao em relao a toda uma literatura que, em pocas distintas e com pro-psitos diversos, recusou terminantemente a importncia dessa rela-o para a fundamentao das teses centrais da poltica hobessiana. Ao contrrio dessa atitude crtica padro, Hlio Alexandre da Silva procura entender o que e como se estabelece esse sistema tornando-se capaz de ver que a poltica no se sustenta fi losofi camente nela mesma, mas recua para a moral, que recua para a fsica. Isso permite ao autor fazer uma crtica muito bem fundamentada (excelente!) da famosa e equivocada tese Taylor-Warrender. Toda a dissertao converge para elucidar, no terceiro captulo, a importncia das pai-xes, principalmente o medo e a esperana, na construo da paz na perspectiva do mecanicismo e, portanto, da relao entre a fi losofi a natural e civil. Mas essa abordagem no confi na o autor em uma pers-pectiva naturalista, porque ao mesmo tempo em que ele recupera a fsica com toda a sua importncia, nem por isso deixa de ressaltar a relevncia do contexto de formao das paixes. Se h uma natureza operando com toda a sua fora no homem e o conduzindo guerra, h tambm a possibilidade de contornar os efeitos potencialmente devastadores da paixo modifi cando o contexto de sua formao.

    No pretendo aqui antecipar o resultado admirvel desse traba-lho, mas dizer que ele admirvel porque no simplifi ca, no reduz e no barateia Hobbes. O autor no comea no captulo XIII do Leviat, mas nos d, isso sim, bons subsdios para compreend-lo. Alm do mais, As paixes humanas em Thomas Hobbes: entre a cincia e a moral, o medo e a esperana um enfretamento das difi culdades e tenses da obra de Hobbes que assume uma atitude fi losfi ca sria e genuna.

    Yara Frateschi

  • APRESENTAO

    No prefcio de Do Cidado, Hobbes diz que as afeces da mente (paixes humanas) no podem ser tomadas como perversas em si mesmas e o exemplo disso pode ser apresentado quando observamos uma criana que tem fome e no alimentada, ela chora e pode se tornar agressiva, porm isso no signifi ca que ela seja m, mas sim que ela reage a uma necessidade natural.

    As afeies da mente que surgem somente das partes inferiores da alma no so perversas em si mesmas [...]. Se no dermos s crianas tudo o que elas pedem, elas sero impertinentes, e choraro, e s vezes at batero em seus pais, e tudo isso faro por natureza; e no entanto no tm culpa, e no ser apropriado diz-las ms (Hobbes, 1998, p.17-8).

    O mesmo pode ser observado no Leviat quando Hobbes diz que Os desejos e outras paixes do homem no so em si mesmos um pecado. Tampouco o so as aes que derivam dessas paixes (Hobbes, 2003, p.110). O propsito desse trabalho compreender as possibilidades e as implicaes dessa afi rmao, ou seja, entender as paixes humanas na obra de Hobbes como um movimento de

  • 14 HLIO ALEXANDRE DA SILVA

    reao1 ao do movimento de objetos externos de modo que, por isso, elas no podem ser tomadas como boas ou ms em si mesmas, mas sim como reaes naturais prprias da lgica de funcionamento de todos os corpos naturais, inclusive o homem. Nesse sentido, a tica (que para Hobbes o estudo das consequncias das paixes da mente) deve ser melhor compreendida se a tomarmos como parte derivada da anlise dos corpos naturais, e que, portanto, remete considerao acerca da cincia fsica, como exposto na tbua do conhecimento ilustrada por Hobbes no cap. IX do Leviat.

    Brevemente, possvel descrever esse captulo da obra hobbesiana da seguinte forma:

    Da Filosofi a (ou conhecimento das causas e consequncias) deriva a fi losofi a natural e a fi losofi a poltica ou civil. Da fi losofi a natural surge a fsica (consequncia das qualidades dos corpos). Esses corpos podem ser transitrios ou permanentes. Do estudo das consequncias dos corpos permanentes deriva o estudo das consequncias dos corpos terrestres, do estudo dos corpos terrestres surge o estudo das conse-quncias das partes da terra (que no tm sensao) e o estudo das consequncias das qualidades animais. A partir da considerao das qualidades animais, tm-se dois objetos de estudo: a consequncia das qualidades dos animais em geral e a consequncia das qualidades do homem em especial. E, por ltimo, do estudo das consequncias da considerao do homem deriva o estudo das consequncias das paixes da mente, que o que Hobbes nomeia tica.

    No entanto, entender que as paixes humanas devem ser pen-sadas a partir da considerao da cincia dos corpos naturais no signifi ca que no exista em Hobbes uma antropologia, isto , caracte-rsticas que permitam distinguir e defi nir o que prprio do homem enquanto corpo natural daquilo que comum a todos os demais

    1 Entender as paixes como reao no signifi ca que elas sejam simples reaes mecnicas que se seguem diretamente da ao de objetos externos, preciso notar que o homem hobbesiano pode deliberar acerca de suas vontades e que a imaginao possui contedos experienciais que auxiliam na formao das paixes. Tais consideraes porm sero feitas no terceiro captulo desse trabalho que tratar especifi camente das paixes humanas.

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    corpos naturais. Contudo, mesmo essa considerao de carter antropolgico tambm pode ser feita luz da cincia mecanicista, ou seja, considerando a existncia de uma relao entre a fi losofi a natural e a fi losofi a poltica na obra de Hobbes.

    O primeiro momento desse trabalho ser desenvolvido com o intuito de tentar expor essa hiptese, assim o ponto de partida, ou seja, o primeiro captulo, ser a anlise da cincia hobbesiana, a saber, do De Corpore, no com a inteno de compreender toda a obra, mas com o intuito de apontar os conceitos que Hobbes utiliza em sua abordagem da fi losofi a moral e da poltica. Desse modo, o intuito buscar na fi losofi a natural no apenas o vocabulrio, mas algo como um padro comum de interpretao presente em toda a obra hobbesiana, isto , buscar na prpria obra do fi lsofo ingls aspectos que nos permitam sustentar uma relao direta ou indireta entre a cincia mecanicista e a poltica, de tal modo que as paixes humanas possam ser consideradas a partir dessa relao.

    Como consequncia dessa leitura que busca entender a obra de Hobbes como um todo coerente entre suas partes constitutivas, isto , fi losofi a natural, fi losofi a moral e poltica, que se seguir o segundo captulo desse trabalho. Nesse momento, ser preciso dialogar com alguns intrpretes que no compactuam com a viso que entende a obra hobbesiana como um todo que deva ser compreendido a partir de uma interpretao que se inicie pela fi losofi a natural, ou seja, pela considerao da cincia dos corpos naturais.

    Trabalharemos brevemente trs desses autores que reconheci-damente se situam entre aqueles que sustentam uma interpretao que v em Hobbes um princpio que pode no ser necessariamente cientfi co. Contudo, a abordagem a esses autores ir se restringir apenas ao ponto que se faz relevante para esse trabalho, de modo que no sero exaustivamente reconstrudos todos os argumentos que eles desenvolvem no sentido de sustentarem suas interpretaes da obra hobbesiana. O ponto que cabe aqui analisar o motivo que faz com que Warrender e Taylor (cada um a seu modo, como veremos no captulo 2) possam sustentar a existncia de uma moral a priori sem que seja necessria a considerao da cincia natural de matriz

  • 16 HLIO ALEXANDRE DA SILVA

    mecanicista. E tambm analisaremos o argumento que faz com que Strauss possa sustentar a independncia da moral e da poltica com relao cincia moderna, j que a moral e a poltica estariam fundadas na experincia de cada um e no na cincia natural. Desse modo, analisaremos brevemente a posio de cada um desses autores:

    Warrender, que substitui a cincia pela lei divina; Taylor, que no lugar da cincia lana mo de um princpio a

    priori semelhante ao imperativo categrico kantiano; Strauss, que elege a experincia de uma paixo, a vaidade, como

    princpio norteador da moral hobbesiana.

    Assim, cada qual a seu modo, defende a ideia de que a fi losofi a natural pode ser desconsiderada quando o intuito for compreender a fi losofi a moral e a poltica hobbesiana. Esses autores s podem levar a cabo suas respectivas interpretaes graas ao fato de no conside-rarem a relao que o trabalho que aqui se apresenta supe existir. Para realizar a crtica em relao viso dos autores supracitados, apoiar-nos-emos em vrios comentadores da obra de Hobbes, porm a nfase ser dada especialmente na abordagem realizada por Thomas Spragens na obra Politics of Motion.

    Posteriormente, ser dado o terceiro e ltimo passo, qual seja, a considerao das paixes humanas como reao ao de movimen-tos de objetos externos. Ora, como considerar as paixes humanas como um movimento de ao e reao provocada pela incidncia de objetos externos, se Hobbes afi rma que existe um movimento nfi mo que o incio dos movimentos, no interior do corpo do homem, antes de se manifestarem no andar, na fala, na luta e em outras aes visveis, [que] chama-se geralmente ESFORO (Hobbes, 2003, p.47).2 Bem, possvel entender esse esforo (conatus) como um movimento. Porm, no apenas um simples movimento mas um movimento primordial, inicial e interno que possui sua origem na

    2 Principia haec motus parva, intra humanum corpus sita, antequam incedendo, loquendo, percutiendo, caeterisque actionibus appareant, vocantur conatus (Opera Latina, in Hobbes, 1966b, v.2, p.40, grifo do autor).

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    ao dos movimentos dos objetos externos que afetam os sentidos e so levados at o interior do corpo humano. Atingido o interior do corpo humano esse movimento se manifestar como um movimento primordial e interno, isto , como um esforo (conatus) que o incio dos demais movimentos humanos.

    No terceiro captulo, abordaremos a questo das paixes huma-nas, entretanto no ser analisado todo o aparato passional hobbe-siano, mas apenas duas paixes em especial, qual seja, a esperana (que expectativa de bem futuro) e o medo (expectativa de mal futuro). O motivo de escolher essas duas paixes a relevncia que Hobbes oferece a elas como duas paixes que, ao lado da razo, levam o homem a sair do estado de natureza (caracterizado pela guerra e pela desconfi ana) e construir o pacto que possibilita a edifi cao do aparato jurdico necessrio para sustentar o Estado civil (caracteriza-do pela paz e pela confi ana). Ao dar relevncia a essas duas paixes em especial, parece ser possvel entend-las como um tipo de medida moral universalmente vlida que capaz de construir um acordo natural entre os homens no sentido da necessidade da construo do Estado soberano. No entanto, em outro sentido que pretendemos entender tal relevncia dada esperana e ao medo, qual seja, como paixes humanas que no so capazes de oferecer tal universali-dade moral, pois so reaes causadas pela ao do movimento de objetos externos, e nesse sentido no possvel um acordo (pacto) comum entre os homens no estado de simples natureza que possa ser confi vel, pois sem o Estado civil o que vigora a desconfi ana mtua gerada pela competio natural pelos meios que auxiliam a preservao da vida. E onde h desconfi ana no h espao para contratos.

    Amparado no que foi discutido nos dois primeiros captulos, faremos a discusso do terceiro, de modo que sem a considerao prvia da fi losofi a natural no seria possvel dar cabo da anlise das paixes humanas no sentido que aqui se pretende, ou seja, como reaes provocadas pela ao do movimento de corpos externos e que, por isso, no so capazes de oferecer uma universalidade capaz de unir os homens no simples estado de natureza.

  • 1CINCIA E FILOSOFIA1

    A fi losofi a natural: chave explicativa da tica e da poltica

    A fi losofi a natural2 o conhecimento da verdadeira regra da vida, e a guerra est amparada fundamentalmente na ignorncia dessas regras conforme anuncia Hobbes no De Corpore. nessa obra de 1655 que Hobbes expe de forma mais acurada e minuciosa sua teoria fsica, ainda que no Leviat (1651) e nos Elementos de Lei (1640)3 j

    1 Nesse trabalho, tomaremos por cincia (filosofia natural) o equivalente ao conceito de fsica, pois ainda que na obra de Hobbes cincia no se refi ra exclu-sivamente consequncia dos acidentes (aparncias) dos corpos naturais (que o que Hobbes entende por fsica), para nosso propsito no ser necessrio abordar detidamente outras cincias como a matemtica e a geometria (que a consequncia da quantidade e movimento determinados pela fi gura e pelo nmero) (Hobbes, 1966b, p.74). Portanto, toda meno cincia que constar nesse trabalho far referncia cincia fsica.

    2 Therefore, the cause of civil war is that people are ignorant of the cause of wars and peace and that there are very few who have leanerd their responsibilities, by which peaces fl ourishes and is preserved, that is, the true rule of living. But moral philosophy is knowledge of this rule (Hobbes, 1966d, p.185, grifo nosso).

    3 Os Elements Of Law foi publicado primeiramente em 1650 em duas partes distintas (Human Nature e De Corpore Poltico) e, posteriormente, em 1889, essas duas partes foram publicadas conjuntamente sob o ttulo de Elementos de

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    existam formulaes que tratam dos movimentos dos corpos, de seu funcionamento e de suas semelhanas no que se refere aplicao no homem da mecnica fi sicalista que no apenas uma caracterstica prpria da natureza das coisas, mas que tambm se aplica natureza humana. A compreenso desse processo pode ser alcanada por meio da clarifi cao e do entendimento de dois conceitos fundamentais que norteiam a construo hobbesiana de cincia e de fsica, quais sejam, o conceito de corpo e de movimento. Porm, antes de analisar esses dois conceitos, pretende-se aqui mostrar que, apenas ao entender a realidade do universo como uma espcie de cosmologia constituda de corpos em movimento que Hobbes passa da explicao da fi losofi a da natureza explicao da natureza humana, sem que seja necessrio mudar a chave conceitual bsica dessa explicao que mecnica. Antes ainda, necessrio notar a possibilidade de aproximao entre as defi nies de fi losofi a e cincia na obra de Hobbes. Perceber tal semelhana permitir pensar essa chave explicativa comum entre a fi losofi a natural e a fi losofi a moral e poltica.

    Nesse sentido, no apressado dizer que tanto a fi losofi a como a cincia so estudos das aparncias das coisas que atingimos por meio da sensao, e que o clculo racional dessas aparncias o que chamamos de conhecimento. Assim, sustentar a concepo de fi losofi a como o conhecimento dos efeitos ou aparncias, tal como adquirimos pelo raciocnio verdadeiro (Hobbes, 1966d, p.3)4 e ao mesmo tempo dizer que a cincia a evidncia da verdade, a partir de algum incio ou princpio da sensao (Hobbes, 1969, p.25-6)5 permite a Hobbes, no Leviat, unir cincia e fi losofi a em uma mesma defi nio, j que cincia, isto , [o] conhecimento das consequncias; tambm chamada de filosofia (Hobbes, 2003,

    Lei Natural e Poltica. Essa unio dos dois textos, inicialmente publicados sepa-radamente pelas mos de Hobbes, permanece at os dias de hoje como aberta-mente aceita entre os estudiosos da obra hobbesiana. Cf. Hobbes, 1969b. p.v ss.

    4 Philosophy is such knowledge of effects or appearances, as we acquire by true ratiocination (Hobbes, 1966d, p.3).

    5 I defi ne to be evidence of truth, from some beginning or principle of sense. (Hobbes, 1969a, p.25-6).

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    p.74). O conhecimento dos efeitos e das aparncias apontado no De Corpore percorre o mesmo caminho metodolgico que a afi rmao contida nos Elements of Law que diz que a cincia evidncia da verdade. Tanto em uma quanto na outra a preocupao de Hobbes mostrar que a cincia e a fi losofi a s podem ser construdas se bem amparadas em bases verdadeiras. E verdade para Hobbes deve ser tomada como um conceito que exprime uma proposio verdadeira enunciada pelo correto raciocnio ou clculo de nomes, pois verdade e uma proposio verdadeira so uma s coisa (Hobbes, 1969, p.21).

    O que est presente nessa aproximao entre fi losofi a e cincia a necessidade do uso da razo6 enquanto clculo, pois muito embora as sensaes, a memria, a prudncia (que expectativa obtida por uma experincia) e a experincia (que memria) possam ser consi-deradas conhecimento, que inclusive partilhamos com os animais, ainda assim no podemos cham-las de cincia nem de fi losofi a, pois o saber por elas produzido no deriva do clculo de nomes ou de fatos, isto , no deriva da razo. A experincia simples acumulada atravs dos tempos, e a memria (fantasma) produzida por essa experincia, no podem ser tidas como saber cientfi co nem mesmo fi losfi co, pois no necessitam do clculo racional para serem alcanadas. Por isso a razo, isto , o clculo, condio sine qua non para que um determinado conhecimento possa ser caracterizado como pertencente ao domnio fi losfi co ou cientfi co.

    A fi nalidade da razo, contudo, calcular as signifi caes fi xas dos nomes de tal modo a construir uma cadeia onde a ltima concluso se siga da certeza das afi rmaes e negaes das premissas (Hob-bes, 1998, p.40-1). Nesse sentido, o clculo de nomes atribudos s aparncias das coisas o que permite compreender as imagens e os

    6 Hobbes claro ao referir-se ao que entende por razo, ela nada mais que clculo (isto , adio e subtrao) das consequncias de nomes gerais estabelecidos para marcar e signifi car os nossos pensamentos (Hobbes, 1998, p.40, grifo do autor). E ainda: Por reta razo no estado de natureza humana, no entendo (como querem muitos) uma faculdade infalvel, porm o ato de raciocinar isto , o raciocnio peculiar e verdadeiro de cada homem acerca daquelas suas aes que possam resultar em detrimento ou benefcio de seus prximos (idem, p.361).

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    fantasmas provenientes da sensao e presentes na memria. Quando o homem realiza o clculo (raciocnio) dessas aparncias de modo a adquirir conhecimento de suas causas ou de seus efeitos, pode se chamar esse conhecimento que foi alcanado de Filosofi a (Hobbes, 1966d, p.12). Da mesma forma, porm em outras palavras, Hobbes mostra que a defi nio de cincia no se distancia da defi nio forja-da para explicar o que se entende por fi losofi a, j que chamamos de cincia o conhecimento que alcanado, em primeiro lugar, atravs de uma adequada imposio de nomes.

    e em segundo lugar [] obtendo-se um mtodo bom e ordenado para proceder aos elementos, que so nomes, a asseres feitas por conexo de um deles com o outro, e da para os silogismos, que so as cone-xes de uma assero com outra, at chegarmos a um conhecimento de todas as consequncias de nomes pertencentes a um assunto em questo, a isto que os homens chamam de CINCIA (Hobbes, 2003, p.43-4, grifo nosso).

    A razo como clculo de nomes ferramenta que, em grande medida, sustenta o edifcio terico hobbesiano. No decorrer do trabalho ser abordada com mais acuidade a questo do mtodo (analtico e sinttico), e quanto linguagem entende-se que no cabe, para efeito de elaborao deste trabalho, fazer uma anlise detida e pormenorizada,7 ainda que ela seja de grande relevncia

    7 Para Hobbes, a linguagem a mais nobre inveno produzida pelo artifcio hu-mano, e dessa caracterstica artifi cial ou convencional que ele retira toda fora que ela possui. A linguagem exerce sua funo ao distanciar-se da realidade de confl ito presente no estado de simples natureza e atribuir nomes a coisas, fatos, paixes etc. de modo que esses nomes nada mais so que marcas ou signos que permitem pensar os corpos sob a aparncia de rigidez e fi xidez necessria para estabelecer regras e leis no mbito do convvio comum. A esse respeito, Maria Isabel Limongi afi rma: O discurso verbal aquele que se afasta dos fatos e se constri acima deles. da que ele retira sua fora (...) Mas da tambm que se segue sua fraqueza. (Limongi, 1994, p.152). No entanto, por detrs desses nomes rtulos que cristalizam os fatos, objetos, paixes etc a natureza permanece sempre a mesma, isto , a tenso natural caracterstica do estado de

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    na construo da fi losofi a hobbesiana. Porm, o que importa aqui entender que o que caracteriza um conhecimento como fi losfi co ou cientfi co sua origem racional e calculadora adquirida por meio de demonstraes das consequncias de uma afi rmao para outra.

    Assim, pode se dizer que a razo ou recta ratio8 em Hobbes possui uma funo instrumental e calculadora. Instrumental na medida em que utilizada pelo homem como um meio (instrumento) til para proceder aos clculos de nomes, e calculadora na medida em que sua principal funo calcular os nomes dos objetos e fatos, de modo a construir um discurso coerente capaz de propiciar ao homem a sada do estado de simples natureza, que de guerra de todos contra todos, por meio do pacto que institui um poder soberano capaz de promover a paz, a segurana e a estabilidade que inexiste no estado de natureza. Porm, algumas passagens do texto hobbessiano propiciam uma leitura em favor de uma viso que privilegie uma concepo de razo como medida universal natural9 e comum das aes, isto , como portadora dos fi ns ltimos e universais que devem ser buscados e alcanados pelo homem, o que pretendemos mostrar que no de fato coerente com o posicionamento de nosso autor.

    natureza jamais se modifi ca. A instabilidade das paixes e a falta de uma regra comum que possa estabelecer parmetros naturais de convivncia pacfica deixam, como nica alternativa para a paz, a construo de uma linguagem convencional e artifi cial. E, nesse sentido, a linguagem um dos aspectos que possibilita a criao de pactos e do contrato necessrio para se estabelecer arti-fi cialmente a paz. Assim, o papel da linguagem na fi losofi a hobbesiana , grosso modo, oferecer uma ferramenta que permita ao homem estabelecer variveis comuns e estveis que possam ser calculadas pelo raciocnio humano, pois apenas atravs da estabilidade dessas variveis possvel construir e estabelecer as bases necessrias para o contrato. E aps o contrato estabelecer medidas do que bom, mal, justo, injusto, fazer cincia e fi losofi a, e conservar a vida.

    8 Ainda que possa ser postulada a existncia de alguns traos especfi cos de dis-tino entre razo e recta ratio no interior da obra hobbesiana, possvel, sem prejuzo de interpretao do conceito, entender tanto razo como recta ratio como clculo de nomes ou fatos.

    9 Toma-se aqui por medida universal natural, aquela que serve de parmetro capaz de produzir algum tipo de acordo comum entre os homens antes mesmo da construo do Estado soberano.

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    H, tanto no Leviat como em Do Cidado, algumas passagens que poderiam sustentar uma razo que seja naturalmente medida universal, isto , que ponha fi ns e que fornea parmetros comuns de justia e bem no estado de simples natureza. Ao dizer, por exem-plo, que a cincia da lei de natureza a verdadeira e nica fi losofi a moral (idem, p.136), ou ainda, ao afi rmar que ela um preceito ou regra geral, estabelecido pela razo, mediante o qual se probe a um homem fazer tudo o que possa destruir sua vida (Hobbes, 1998, p.112), Hobbes parece oferecer argumentos que sustentem a posio de que a razo uma medida natural dos valores e da justia comum. Ainda nessa mesma direo, ele chega a dizer que as leis de natureza so imutveis e eternas (Hobbes, 2003, p.136). Ao tomarmos essas passagens, parece ser possvel entender a fi losofi a de Hobbes como defensora da recta ratio no sentido de uma razo que pe fi ns, ou seja, que expressa o que seriam a virtude e a moralidade natural universal.10 E, nesse sentido, estariam certos aqueles que defendem uma moralidade natural universalizante que possa ser padro de medida comum do bem e do mal, do justo e do injusto, do certo e do errado, antes mesmo da construo do Estado soberano. nessa linha que intrpretes como Leo Strauss, A.E.Taylor e H. Warrender comentam a obra hobbesiana, ou seja, segundo esses autores (que trabalharemos de forma mais acurada no captulo 2 desse trabalho) existiria uma espcie de imperativo moral (do tipo kantiano para Taylor, fundado na experincia da vaidade tipicamente humana para Strauss, e amparado em imperativos divinos para Warrender) antes mesmo do estabelecimento do corpo poltico. No entanto, no parece ser esse o caminho seguido por nosso autor quando se observa um pouco mais de perto a letra do texto hobbesiano.

    Parece no ser possvel compreender a razo como um parmetro natural e universal da moral humana, j que no existe medida que

    10 A compreenso do que moral natural universal segue a mesma trilha do que se entende por medida universal natural, ou seja, aquela regra moral capaz de servir de medida comum capaz de produzir algum tipo de acordo entre os homens antes mesmo da construo do corpo poltico.

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    possa amparar qualquer julgamento no estado de simples natureza, pois as noes de certo e errado, de justia e de injustia no podem a ter lugar.

    Onde no h poder comum no h lei, e onde no h lei no h injustia. Na guerra, a fora e a fraude so as duas virtudes cardeais. A justia e a injustia no fazem parte das faculdades do corpo e do esprito. Se assim fosse, poderiam existir no homem que estivesse sozinho no mundo, do mesmo modo que seus sentidos e paixes. So qualidades que pertencem aos homens em sociedade, no na solido (idem, p.111, grifo nosso).

    Contudo, ainda poderia restar um questionamento no sentido de pr prova essa tentativa de mostrar que a recta ratio hobbesiana desempenha um papel fundamentalmente instrumental e calculador, ou seja, de uma razo que prope meios e no fi ns.11 Como vimos acima, Hobbes chega mesmo a dizer que as leis de natureza cons-tituem a verdadeira fi losofi a moral cujas regras so imutveis e ao mesmo tempo diz que no h medida natural do justo e do injusto. Portanto, temos aqui duas premissas:

    (1) No h medida racional natural do que bom, mal, justo e injusto.

    (2) As leis de natureza so regras ou ditames da razo, imutveis e eternas.

    Poderamos, ento, entender isso como uma contradio interna ao prprio texto de Hobbes? Tal formulao parece deixar evidente que haveria uma incompatibilidade nas duas afi rmaes sustenta-das, j que uma parece descrever uma medida racional natural e universalizante e a outra, a inexistncia dessa medida. Contudo, essa aparente aporia pode ser desfeita quando se nota que a razo pode sim indicar ao homem como ele deve proceder para alcanar a paz como meio para preservao, pois a razo sugere adequadas normas

    11 Sobre essa abordagem Cf. Frateschi, 2003, p.123 ss.

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    de paz, em torno das quais os homens podem chegar a um acordo (idem, p.111, grifo nosso). Porm, a razo suscetvel a falhas em seu clculo e isso ocorre no porque a razo em si prpria no seja sempre razo reta, assim como a aritmtica sempre uma arte infa-lvel e certa. Mas [porque] a razo de nenhum homem, nem a razo de que nmero for de homens, constitui a certeza (idem, p.40). Por isso, ainda que o homem alcance a compreenso das leis naturais isso no garantia que ele as cumprir, pois a natureza sempre induz os homens a seguirem suas paixes imediatas. No confl ito natural entre as paixes e a razo, a natureza humana invariavelmente decide em favor da primeira, isso porque em geral as paixes humanas so mais fortes do que a razo (idem, p.160).

    Podemos, sim, dizer que as leis de natureza oferecem uma medi-da para o julgamento do certo e do errado, do justo e do injusto, do bem e do mal. Contudo, essa medida ser aplicada pelo julgamento individual de cada um no estado de simples natureza, e como vimos acima, a razo de cada um no infalvel e por isso, ainda que a natureza oferea essa medida, sua aplicao individual no gera acordo natural. Ser o clculo individual, o juzo de cada um, que arbitrar acerca das questes que geram disputa, e isso faz que o es-tado de tenso natural permanea no horizonte do estado de natureza mesmo considerando a existncia de uma lei natural, pois essa lei natural no impe seu cumprimento no sentido de uma obrigao natural, ela apenas sugere normas adequadas para a conduta hu-mana. Isso parece de forma clara, por exemplo, quando Hobbes diz que: O roubo, o assassnio e todas as injrias so proibidos pela lei de natureza; mas o que h de se chamar roubo, assassnio ou injria a um cidado no se determinar pela lei natural, mas pela lei civil (Hobbes, 1998, p.112). O que leva a entender que existe, sim, injria no estado de simples natureza assim como existe o bem e o mal, o certo e o errado, porm, como direito fazer uso de todos os meios para preservar-se a vida, em uma disputa pelos meios necessrios para a manuteno da vida, cada um juiz de seus prprios atos, assim, o que um indivduo julgar como injria, mal, errado etc. o outro pode legitimamente no julgar, de modo que apenas a lei civil

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    constituda pelo poder soberano poder justamente arbitrar de forma comum e universal acerca dessas questes.

    Parece claro que Hobbes entende que existe uma razo que indica, descreve e constitui juzos valorativos, no entanto, o que tambm parece claro que esses juzos de valor postulados pela razo no possuem condies de se fazer valer de forma comum e universal, ou seja, no o caso de dizer que no h julgamentos acerca do certo e do errado, do justo e do injusto no estado de natureza hobbesiano. O que parece, sim, ser o caso de que h uma incapacidade da razo individual (que nada mais que clculo de nomes) promulgar por ela mesma um padro moral universalizante, isto , uma medida natural comum que seja sufi ciente para produzir qualquer tipo de acordo coletivo que anteceda o corpo poltico. A moral tomada como fi losofi a moral ou cincia moral que oferece as medidas, os padres e a universalidade necessria para a vida em sociedade s existe dentro do Estado soberano, de tal modo que oferecer essa medida uma das tarefas cardeais do corpo poltico conforme deixa claro o texto do Leviat que diz que o papel do Estado consiste em dotar os homens de lentes prospectivas (a saber, cincia moral e civil) que permitem ver de longe as misrias que os ameaam [...], e que, segundo Hobbes, sem [o Estado civil soberano] no podem ser evitadas (Hobbes, 2003, p.158, grifo nosso). Alm do que, sempre que colocada frente a frente com as paixes, a razo ir se mostrar inefi caz, e nesse sen-tido, ainda que seja imutvel e eterna, ela no conseguir imprimir no homem a necessidade de seu cumprimento.

    Para que as leis naturais sejam cumpridas conforme dita a recta ratio, ser necessrio um aparato jurdico forte que possa manter os homens em paz, ou seja, somente com o pacto e a criao do Estado poltico que a razo poder calcular os meios mais efi cazes para manter os homens em um convvio minimamente pacfi co. A pr-pria natureza no oferece os meios necessrios para que a paz seja contruda sem a necessidade de um artifcio, isto , sem que as bases para um acordo comum sejam postuladas externamente. Buscar os fundamentos da paz na investigao de uma moral universalizante que seja capaz de manter naturalmente os homens em convvio

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    pacfi co, mostra-se uma tentativa pouco provvel se levarmos em considerao o que foi dito at aqui. Hobbes deriva sua fi losofi a moral da considerao da fi losofi a natural, e o que resulta necessariamente dessa concepo um esvaziamento do contedo moral tomado como atribuio de valores universais a fatos ou condutas. O que resulta dessa abordagem mecnica e matematizante da natureza so julgamentos valorativos individuais que so incapazes de fornecer padro ou medida natural universal.

    O objetivo de Hobbes elevar a fi losofi a ao patamar que as cin-cias ditas matemticas atingiram, pois assim como os aritmticos ensinam a adicionar e a subtrair com nmeros, os gemetras com linhas, fi guras, ngulos [...]. Os lgicos ensinam o mesmo com conse-quncias de palavras [...]. Os escritores de poltica somam pactos [...] [e] os juristas leis e fatos [...] (Hobbes, 2003, p.39, grifo do autor). Em suma, seja em que matria for que houver lugar para a adio e para a subtrao, tambm haver lugar para razo, e, se no houver lugar para elas, tambm a razo nada ter a fazer (idem). Essa apro-priao de mtodos matemticos como ferramenta privilegiada para explicar a lgica funcional do discurso racional pode ser vista como mais um indcio de que a proposta de Hobbes circula no mbito da tentativa de aproximar o mais possvel a fi losofi a natural fi losofi a moral e poltica. , nesse sentido, que parece ser vivel sustentar a relao existente entre a cincia tomada do ponto de vista da fsica e a explicao do funcionamento humano e poltico, de tal forma a privilegiar dois conceitos fundamentais nesse processo, quais sejam, o de movimento e de corpo.

    Movimento e corpo como princpios

    No quadro das cincias presente no captulo IX do Leviat, a geometria, a fsica e a tica (estudo dos movimentos da mente) so reas do saber que se situam no mbito da fi losofi a natural, ou seja, so tratadas como partes da investigao acerca dos corpos naturais, ao passo que a poltica, por sua vez, situa-se no mbito da fi losofi a

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    civil onde se trata dos corpos artifi ciais. Aqui no trataremos de geo-metria, que o estudo das questes relativas defi nio de lugar (que o espao ocupado ou preenchido por um corpo); nem da defi nio do que uma linha que produzida pelo movimento de um ponto, ou que superfcies so produzidas pelo movimento de uma linha, etc. Essas questes no sero desenvolvidas neste trabalho, pois estaro aqui como ponto de partida pressuposto.

    Para as pretenses deste trabalho, ser necessrio desenvolver brevemente o que se entende por teoria do movimento, que nada mais que um contnuo abandono de lugar e aquisio de outro12 (Hob-bes, 1966d, p.109), isto , aquilo que se mostra aos nossos sentidos como aparncia de movimento, pois no h concepo no esprito do homem que primeiro no tenha sido originada, total ou parcialmente, nos rgos dos sentidos (Hobbes, 2003, p.15). nessa direo que se deve entender que toda aparncia de mudana que ocorre em um determinado corpo13 pode ser chamada de movimento, e tambm pode se entender que as coisas mais universais de cada espcie so conhecidas por si mesmas e no necessitam de mtodo, pois possuem uma nica causa14 universal que o movimento. E por ser uma causa universal, isto , uma causa que se aplica a todos os corpos existentes, a variedade das fi guras, das cores, dos sons etc. o movimento no possui outra causa que no seja o prprio movimento que reside em parte nos objetos e em parte em ns mesmos, muito embora no nos seja possvel, sem o raciocnio, chegar a saber qual tipo (Hobbes, 1966, p.70). Esse movimento que alguns no conseguem entender at que lhe seja de algum modo demonstrado (idem) visto como

    12 Motion is a continual relinquishing of place and acquiring another (Hobbes, 1966d, p.109).

    13 Corpo aquilo que no depende de nosso pensamento e que coexiste ou coin-cide com alguma parte do espao. Body is that, which having no dependance upon our thought, is coincident or coextended with some part of space (Hobbes, 1966d, p.103).

    14 Causa inteira o agregado de todos os acidentes dos agentes e do paciente tanto quanto eles sejam, tomados conjuntamente. Entire cause, is the aggregate of all the acidents both of agents how many soever they be, and of the pacient, put together (Hobbes, 1966d, p.121-2).

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    aparncia de movimento, contudo, essa aparncia causada pela ao do prprio movimento. Portanto, para entender o que Hobbes nomeia como movimento preciso investigar:

    os efeitos produzidos pelos movimentos das partes de um corpo, do ponto de vista de como pode ocorrer que coisas, permanecendo as mesmas, paream, contudo, no serem as mesmas, mas alterar-se (idem, p.72).15

    Essa alterao deve ser investigada a partir da relao de causa e efeito viabilizada pelo movimento, pois essa a nica maneira que podemos perceber que h um determinado movimento que age no corpo ou sobre um corpo. A prpria relao de causalidade apre-endida pelo sujeito como aparncia de causalidade, do que se pode inferir que perceber os efeitos causados pela ao do movimento de um corpo sobre outro corpo entender que, por detrs dessa apa-rncia de movimento, existe um movimento que de fato atua sobre um determinado corpo, mas que nos dado conhecer apenas sua aparncia. Explicitar essa relao uma das grandes preocupaes de Hobbes, pois ela permite mostrar que a percepo de um efeito qualquer o que habilita um indivduo a dizer que tal movimento atua sobre determinado corpo, e a relao causal que preside esse processo esclarecida por Hobbes atravs do exemplo do fogo que aquece a mo de quem dele se aproxima (idem, p.121).16 O que est

    15 Pode-se entender a origem das paixes humanas, que analisaremos no terceiro captulo deste trabalho, a partir da considerao da cincia hobbesiana, mais propriamente, a partir da relao desses efeitos produzidos pelo movimento de um corpo. Apenas como considerao preliminar, pode se dizer que as paixes surgem da relao de um corpo (paciente) que sofre (suffer, por isso paciente, passivo, padecer, passion) a ao de outro corpo (agente), ou seja, a paixo surge da relao entre o movimento dos corpos. Analisaremos esse processo no captulo 3.

    16 O nico meio do qual se pode utilizar para alcanar algum tipo de conhecimento a aparncia sensvel. Pois, o movimento presente nos corpos, e que a causa de seus acidentes, s pode ser percebido pelos sentidos e nomeado por ns. O termo gerado (generated) traduz a ideia de causalidade de forma mais clara do

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    presente nesse processo causal em que toda mudana consiste so-mente em movimento (idem, p.123-4) o fato de que aquilo que muda em um corpo, isto , seus acidentes,17 apenas aquilo que percebido por ns agora de forma diferente do que era percebido anteriormente. Portanto, mais do que oferecer um modelo explicativo para o processo causal, a percepo ela mesma parte do processo, de modo que um movimento s ser percebido quando os acidentes do corpo observado se mostrarem ou se apresentarem de forma diferente aos sentidos daquele indivduo que o observa.

    Esses acidentes de um corpo so aquilo que especifi cam determi-nado corpo e que, quando removido, leva-nos a pensar que o prprio corpo foi removido, porm o corpo ainda permanece no mesmo es-pao. Desse modo, ainda que alguns acidentes peream com o corpo ao qual pertencem, deve se ter claro que eles so coisas distintas do prprio corpo. Um corpo algo que persiste por si mesmo, algo cuja existncia no depende de nosso pensamento e coincide e coexiste com alguma parte do espao (idem, p.102).18 J os acidentes so a maneira com que se concebem esses corpos (idem, p.104).19 Os acidentes so a forma de perceber as especifi cidades de um corpo, suas singularidades, e, dessa forma, nome-los de acordo com essa percepo, em outras palavras, os acidentes so as caractersticas de um corpo que permitem ao sujeito que as observa especifi car o corpo observado.

    que o termo transmitido. O exemplo de Hobbes claro: quando a mo, ao ser movida, move a pena, o movimento no sai da mo para pena [...] mas um novo movimento gerado na pena, um movimento que da prpria pena. When the hand, being moved, moves the pen, motion does not go out of the hand into the pen [] but a new motion is generated in the pen, and is the pens motion (Hobbes, 1966d, p.117, grifo nosso).

    17 Eu defi no um acidente como a forma (manner) de nossa concepo de corpo. I defi ne an accident to be the manner of our conception of body (idem, p.104). Contudo, Hobbes salienta que os acidentes so mais facilmente explicados atravs de exemplos do que por defi nies (idem, p.102).

    18 a body is that, which having no dependance upon our thought, is coincident or coextended with some part of space (idem, p.102).

    19 I defi ne accident to be the manner of our conception of body (idem, p.104).

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    Desse modo, para entender a distino entre o que pode ser consi-derado corpo e o que pode ser tido como acidente deve ser pensado nos seguintes termos: os acidentes podem ser gerados e destrudos, os cor-pos no. Isso ocorre, por exemplo, quando se nomeia uma rvore ou qualquer outra criatura viva, o que se faz nesse caso nomear apenas os acidentes que podem ser gerados e destrudos. Contudo, a magnitude de alguma coisa a que pode ser dada o nome de corpo no gerada nem destruda. Assim, pode-se imaginar na mente a existncia de um cor-po onde antes no havia nada, e tambm o contrrio, ou seja, imaginar um nada onde antes havia um corpo. Porm, impossvel imaginar como tal fato ocorre na natureza, de tal modo que aceitar a existncia de acidentes necessariamente pressupe a existncia de um corpo.

    A alterao dos acidentes de um corpo obedece a duas regras bsicas da fsica hobbesiana:

    (1) Se um corpo estiver em repouso ele permanecer em repouso a menos que sofra a ao do movimento de outro corpo que o coloque em movimento.20

    (2) Um corpo que est em movimento permanecer em movi-mento a menos que sofra a ao contrria do movimento de um outro corpo.21

    Essas duas regras norteiam todo processo de mudana no movi-mento de um corpo qualquer, seja ele natural ou artifi cial, por isso possvel, em ltima instncia, afi rmar que a relao de causalidade uma dinmica contnua de gerao de movimentos entre os corpos, de sorte que cada movimento presente em um corpo determinado pressupe a existncia de movimento em um corpo anterior que o produziu. E por meio desse processo que ser possvel especifi car cada corpo particular com um determinado nome, pois so os aci-dentes dos corpos que permitem identifi c-los, j que no h nada

    20 Whatsoever is a rest, will always be at rest, unless there be some other body besides it, which, by endeavouring to get into its place by motion, suffers it no longer to remain at rest (Hobbes, 1966d, p.115). Cf.tb Hobbes, 2003, cap. 2.

    21 Whatsoever is moved, will always be moved, except there be some other body besides it, which causeth it to rest (idem, p.115). Cf. tb Hobbes, 2003, cap. 2.

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    em um corpo que possa ser considerado como sua essncia22 ou substncia primeira em um sentido ontolgico. Todas as suas de-terminaes so sempre determinaes do movimento presente no corpo naquele momento.23 Nesse sentido, pensar as caractersticas especfi cas de um corpo o mesmo que pensar nomes especfi cos que possam signifi car o que aparenta acontecer com determinado corpo, em outras palavras, tudo o que se diz ser especfi co de um corpo nada mais do que nomes com os quais pode se designar tais e tais acidentes desse corpo.

    Nesse contexto, pensar a identifi cao (essncia) de um corpo o mesmo que pensar sua forma, ou seja, a identidade de um corpo qual-quer, inclusive do homem, deve ser compreendida por meio de suas qualidades formais. Assim, por exemplo, a essncia de um homem sua racionalidade, do mesmo modo que a brancura a essncia de uma coisa branca, a extenso a essncia de um corpo (idem, p.117).

    Os conceitos de matria e forma distinguem-se na obra de Hobbes basicamente pelo fato de que a forma possui um estatuto superior se comparada matria. Isso ocorre pelo fato de que a matria consi-derada apenas pela extenso, e a forma, por sua vez, distingue-se dos demais acidentes j que o nico atravs do qual podemos pensar a identidade de um corpo, os demais acidentes apenas permitem dizer que o corpo mudou, mas no que ele foi gerado, assim a mesma es-sncia, visto que gerada, chamada de forma (idem, p.117).24 Con-tudo, ainda que a forma seja um acidente que distingue um corpo, ou

    22 Aquele acidente ao qual damos nome a um corpo, ou o acidente que denomina um sujeito comumente chamado de essncia. Now that accident for which we give a certain name to any body, or the accident which denominates its subject, is commonly called the essence (Hobbes, 1966d, p.117)

    23 Limongi afi rma: preciso distinguir entre o corpo pensado genericamente, sem considerao de suas diferenas, como matria ou sujeito de atribuio de acidentes (movimentos), e o corpo pensado especifi camente como sujeito de qualidades distintivas. Esta distino , antes de mais nada, nominal, uma distino entre duas categorias de nomes pelos quais designamos os corpos (Limongi, 1999, p.23).

    24 And the same essence, in as much as it is generated, is called the FORM (Hobbes, 1966d, p.117, grifo do autor).

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    seja, que caracteriza sua essncia, ainda assim ela nada mais que mo-vimento em um corpo especfi co tal como todos os demais acidentes.25

    Portanto, temos duas razes bsicas que asseguram forma o es-tatuto de nico acidente capaz de caracterizar a essncia de um corpo:

    Primeira razo: (1) A forma (que um acidente) distingue um corpo por sua caracterstica especfi ca (por exemplo, um navio possui uma forma que o caracteriza como corpo prprio para navegao) e a matria designa um corpo apenas pelo atributo da extenso.

    Segunda razo: (2) A nica maneira de nomear corretamente a essncia de um corpo atravs de sua forma. Os demais acidentes no permitem pensar a identidade de um corpo, pois esto sujeitos a contnuas mudanas e no podem garantir o princpio de identidade, que formal. Contudo, a diferena entre a forma (que designa a essncia), e os demais acidentes, meramente nominal.

    Nesse sentido, pensar a essncia de um corpo no vocabulrio propriamente hobbesiano, nada mais que pensar aquele acidente no qual damos um certo nome a algum corpo, ou aquele acidente que denomina um sujeito (idem, p.117).26 Deste modo, para pen-sar conceitos tais como essncia, forma, matria, acidentes, etc. no mbito da fi losofi a de Hobbes preciso levar em conta a redefi nio semntica que tais conceitos adquirem sob sua pena. Essa redefi nio ou ressignifi cao que permite ao fi lsofo ingls criticar a tradio escolstica ainda vigente intramuros nas universidades inglesas do sc. XVII. Ele adota um vocabulrio j consagrado, porm no mais amparado na linguagem metafsica tradicional, mas sim em uma linguagem nominalista de carter mecanicista.

    25 Os conceitos de forma, matria, acidente, essncia entre outros, possuem no interior da fi losofi a hobbesiana uma carga semntica distinta daquela que a tradio fi losfi ca de sua poca, fundamentalmente aristotlica, assegurava e ensinava como linguagem fi losfi ca comum. Sobre essa ressignifi cao dos conceitos da tradio aristotlica por Hobbes, cf. Spragens, 1973, p.97 ss.

    26 Ainda Limongi (1999, p.27) , portanto, no interior de uma teoria que faz do movimento a causa primeira de todas as determinaes dos corpos, mesmo as ditas essenciais, e no de uma ontologia que procura na substncia a razo de suas determinaes, que se deve entender a noo hobbesiana de essncia.

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    A relevncia do Mtodo e a relao entre Cincia e Moral

    Em Hobbes, para se medir a solidez e a sustentao de uma afi r-mao, deve se submet-la ao clculo (raciocnio) rigoroso de suas premissas e concluses, pois um argumento s ser sustentvel se seu encadeamento interno for construdo com mtodo. O uso de um mtodo rigoroso a garantia de alcanar o conhecimento com mais retido, ou seja, conhecer as causas a partir dos efeitos ou os efeitos a partir das causas.

    Se a fi losofi a o conhecimento alcanado pelas aparncias ou efeitos aparentes por meio do verdadeiro raciocnio (Hobbes, 1966, p.65), o mtodo, por sua vez, no estudo da fi losofi a o caminho mais curto para descobrir os efeitos por suas causas conhecidas ou as causas por seus efeitos conhecidos (idem). E o mtodo em Hobbes pode ser tanto analtico quanto sinttico, porm, importante ressal-tar, no se trata de dois mtodos mas sim de dois modos de aplicao de um mesmo mtodo. Porm, antes de mostrarmos o motivo dessa constatao, preciso entender brevemente qual a distino entre esses dois modos de aplicao do mtodo proposto por Hobbes.

    O modo sinttico aquele que parte das defi nies dos conceitos a serem utilizados em uma construo argumentativa de modo a uni-los posteriormente produzindo um discurso. Quando se considera a obra de Hobbes, seguir a via metodolgica signifi ca partir da fi losofi a primeira e da geometria, depois da fsica, e s aps a considerao dessas reas do saber, deve-se procurar entender a moral e a poltica. Contudo, para alcanar o conhecimento das coisas tanto vale comear pelas defi nies (modo sinttico-compositivo), isto , partir das cau-sas para entender os efeitos, como se pode iniciar pela considerao dos efeitos (modo analtico-resolutivo) e, a partir de ento, procurar suas causas analisando cada parte que compe o objeto investigado.

    Como foi mostrado anteriormente, o movimento um conceito chave na construo terica hobbesiana, e nesse sentido a conside-rao acerca do mtodo (seja sinttico ou analtico) sempre levar a indicao da prevalncia desse conceito em relao aos outros. No que

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    se refere aquisio de conhecimento tanto o modo sinttico quanto o analtico so efi cazes para levar a investigao a um bom termo. Portanto, se por um lado pode se produzir conhecimento a partir de defi nies dos nomes a serem utilizados no discurso e a partir do cl-culo dessas defi nies, por outro lado, partir da investigao do meio em que o homem est inserido e de suas experincias pessoais tambm pode fazer que se produza conhecimento, ou seja, ao se investigar a semelhana dos pensamentos e paixes de um homem com os pen-samentos e paixes de outro, se pode ler e conhecer quais os pensa-mentos e paixes de todos os outros homens (Hobbes, 2003, p.12-3).

    Portanto, no so apenas aqueles que atingiram o conhecimento das paixes e perturbaes da mente pelo mtodo sinttico, e a partir dos genunos princpios da fi losofi a, que podem, procedendo do mesmo modo, chegar s causas e necessidade de construir Esta-dos, e obter conhecimento do que direito natural e o que so os deveres civis [...] e isto pela seguinte razo, que os princpios da poltica consistem no conhecimento dos movimentos da mente, e o conhecimento desses movimentos, do conhecimento dos sentidos e da imaginao; mas mesmo aqueles que no estudaram a primeira parte da fi losofi a, a saber, a geometria e fsica, tambm podem, no obstante, alcanar os princpios da fi losofi a civil pelo mtodo analtico. (Hobbes, 1966, p.73-4, grifo do autor)27

    Assim, no necessrio partir de defi nies de nomes para se chegar necessidade da construo do corpo poltico. possvel

    27 And, therefore, not only they that have attained the knowledge of the passions and perturbations of the mind, by the synthetical method, and from the very fi rst principles of philosophy, may by proceeding in the same way, come to the causes and necessity of constituting commonwealths, and to get the knowledge of what is natural right, and what are civil duties; for this reason, that the principles of the politics consist in the knowledge of the motions of the mind, and the knowledge of these motions from the knowledge of sense and imagination; but even they also that have not learned the fi rst part of philosophy, namely, geometry and physics, may, notwithstanding, attain the principles of civil philosophy, by the analytical method (Hobbes, 1966d, p.73-4, grifo do autor).

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    chegar a essa necessidade pela observao do meio de inscrio de nossas paixes e do contexto em que elas se inserem.

    Contudo, os conceitos mecnicos esto presentes na construo disso que chamamos de mtodo, tanto na via sinttica quanto na via analtica. Ainda que Hobbes possa dizer que a fi losofi a civil e a fi losofi a moral no aderem tanto uma outra que no possam ser separadas (idem, p.73), isso no signifi ca que no exista uma relao entre o modelo mecnico de construo da argumentao em um discurso e a elaborao argumentativa da fi losofi a civil ou poltica. Se, por um lado, Hobbes pode dizer que a cincia mecnica e a poltica no aderem tanto, por outro lado ele no pode dizer que eles no aderem de modo algum.

    Se no quadro das cincias exposto no Leviat Hobbes entende a tica como derivada dos estudos dos corpos naturais, ou seja, da fsica, e por outro lado, entende a poltica (nico campo em que podemos avaliar as aes dos homens sob uma regra universal de valorao moral) como derivada dos estudos dos corpos artifi ciais, isso no signifi ca que a argumentao que expe a necessidade de se construir Estados seja diversa daquela usada para entender as questes relativas ao estudo da tica. O rigor geomtrico e o uso de analogias com conceitos fsicos depem a favor de uma aproximao entre o estudo dos corpos artifi ciais (Estado) e o estudo dos corpos naturais e consequncias das paixes da mente (tica) sempre tendo como pano de fundo a cincia de carter mecanicista.28

    Assim, seja analtico, seja sinttico, partindo da experincia ou da construo de defi nies, se o mtodo for rigoroso ento pode se chegar aos efeitos ou s causas procuradas. No entanto, a relao entre a fsica, a fi losofi a moral e a fi losofi a poltica no uma viso

    28 Na obra Politics of Motion, Thomas Spragens diz que a mecnica de Hobbes exerce profundo impacto sobre a poltica por meio de analogias...e na fi losofi a natural, Hobbes desenha um modelo de comportamento que transportado (...) para sua explicao do comportamento humano, tanto poltico quanto psicolgico. O modelo criado para a interpretao da natureza tem ressonncia em algumas das partes fundamentais da poltica, especialmente nas que tratam das paixes humanas (Spragens, 1973, p.166, grifo nosso).

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    aceita por todos os intrpretes da obra de Hobbes, ao contrrio, essa uma das querelas que mais suscitam discusses entre aqueles que se debruam no estudo do pensamento do autor de Malmesbury. Isso ocorre por vrios motivos e distintas interpretaes, o que nos parece ser o ponto mais slido em que essas interpretaes buscam se sustentar a passagem do Do Cidado em que Hobbes diz que a proposta inicial de construo de sua obra se daria da seguinte forma: (1) Comear pela fi losofi a primeira e os elementos da fsica; (2) Dis-cutir a imaginao, a memria, o intelecto, o raciocnio, os apetites, o bem e o mal, etc. (3) Discutir os princpios da poltica (Hobbes, 1998, p.18). No entanto, por razes ainda discutidas pelos comentadores, Hobbes comeou pela ltima parte, ou seja, pela elaborao de uma teoria poltica, que poderia ser levada a cabo independentemente das outras partes de sua obra, j que a poltica fundada em seus prprios princpios sufi cientemente conhecidos pela experincia, no precisaria das partes anteriores (idem).

    Tal afi rmao parece mostrar que a poltica possui independncia com relao considerao da fi losofi a natural, o que um grande nmero de intrpretes tambm sustenta, com base nessa passagem que Hobbes estabelece uma distino radical entre fi losofi a natural e fi losofi a civil, ou seja, a julgar exclusivamente por esse trecho da obra, no haveria nenhuma ligao entre o estudo dos corpos naturais e o estudo dos corpos artifi ciais, e isso permitiria a Hobbes falar da necessidade da construo do Estado civil soberano (corpo artifi cial) sem se remeter a questes relativas cincia e fi losofi a natural.

    nessa perspectiva que autores como Leo Strauss tentam ex-plorar a independncia interna da fi losofi a moral e da poltica com relao aos princpios da fsica, e ainda com o intuito de mostrar essa mesma independncia, porm sustentada sobre outras bases, A.E. Taylor e H. Warrender, cada qual a sua maneira, buscam alinhar Hobbes a uma outra perspectiva que no a de uma relao entre as partes da obra de modo a privilegiar um pano de fundo mecanicista.

    Porm, antes de tentarmos entender a proposta de leitura desses autores, importante marcarmos o campo metodolgico em que se move a produo intelectual de Hobbes, pois ainda que ele deixe claro

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    que mesmo aqueles que no estudaram a primeira parte da fi losofi a, a saber, geometria e fsica, tambm podem, no obstante, alcanar os princpios da fi losofi a civil pelo mtodo analtico (Hobbes, 1966, p.74).29 Nota-se que o prprio Hobbes em sua obra teve sempre a pre-ocupao de privilegiar o mtodo sinttico, ou seja, aquele que parte de defi nies de nomes. Os quadros de exposio da cincia cons-trudos por ele deixam transparecer essa preferncia metodolgica, mesmo no De Corpore (1655), que foi publicado mais de dez anos aps o De Cive (1642), Hobbes insiste em expor que o caminho seguido por ele foi o sinttico, isto , comear pela investigao dos princpios mais fundamentais, e por isso ele discorre primeiro sobre os corpos naturais; em segundo lugar, sobre as disposies e costumes dos ho-mens; e um terceiro, sobre os deveres civis dos sditos (idem, p.12).30

    O prprio argumento usado por Hobbes para sustentar que tanto a via analtica quanto a sinttica so vlidas para se atingir o conhecimento das causas e dos efeitos das aparncias, parece deixar clara a relao existente entre a fsica do movimento dos corpos que parte de defi nies (portanto vale-se da via sinttica) a fi losofi a moral e a poltica. Diz o autor que tanto uma via (sinttica) quanto a outra (analtica) podem ser utilizadas j que ambas devem chegar ao conhecimento dos movimentos da mente, pois o movimento a nica causa universal, isso signifi ca que o movimento a nica causa de si mesmo, pois no pode ser entendido como tendo outra causa alm do [prprio] movimento (idem, p.69).31

    Ora, o movimento um conceito da fsica que est presente em toda a fi losofi a de Hobbes, e, nesse sentido, o que se torna relevante que o mtodo leve ao conhecimento desse princpio fsico, seja a partir de defi nies, seja a partir da observao e da experincia. Portanto, conhecer um conceito fsico e proceder mecanicamente o

    29 but even they also that have not learned the fi rst part of philosophy, namely, ge-ometry and physics, may, notwithstanding, attain the principles of civil philosophy, by the analytical method (Hobbes, 1966d, p.74)

    30 I will discourse of bodies natural; in the second, of the dispositions and manners of men; and in the third, of the civil duties of subjects (idem, p.12).

    31 for they have all but one universal cause, which is motion (idem, p.69)

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    que garante o rigor do mtodo na construo de um discurso. Desse modo, tanto no De Corpore, quanto no Do Cidado e no Leviat, Hobbes pode afi rmar que, partindo da experincia (via analtica) ou de defi nies (via sinttica), possvel chegar ao mesmo ponto, qual seja, a relao confl ituosa das paixes naturais do homem (en-tendidas mecanicamente) que em algum momento necessariamente se transformaro em empecilho perpetuao do movimento vital32 (vida) de seus semelhantes. Desse empecilho ou impedimento de agir conforme seu movimento vital, nasce a necessidade de proteger-se contra qualquer ataque possvel, e a melhor forma de defender-se no esperar o ataque alheio, mas ao considerar suas prprias foras, deve-se agir por antecipao.

    E essa relao de constante tenso entre os homens pode tambm ser pensada em uma analogia com a considerao hobbesiana dos princpios que norteiam a natureza das coisas, isto , dos princpios fsicos. A analogia simples: a guerra se d pelo fato de que possvel pens-la como um princpio fsico e natural, ou seja, que todos os corpos tendem a perpetuar em seu movimento e a nica forma disso no ocorrer quando h algum corpo que impea o livre fl uxo desse movimento. E quando esse corpo se interpe no caminho de um outro corpo eles necessariamente se chocam, e aquele que possui um movimento maior gera esse movimento no outro corpo. Assim, quan-do o caminho que leva obteno dos objetivos individuais de dois corpos se interpe um ao outro natural que eles entrem em guerra, no porque so maus ou egostas, mas porque um est impedindo o livre fl uxo do movimento do outro, e perpetuar o movimento uma lei fsica e natural que rege todos os corpos, e no uma lei moral

    32 Hobbes diz que existem dois tipos de movimentos no homem, o movimento animal e o movimento vital. O primeiro diz respeito quelas aes voluntrias realizadas pelo homem e que necessitam do auxlio da imaginao, tal como andar, falar etc. J o movimento animal aquele que comea com a gerao e continua sem interrupo durante toda a vida. Deste tipo so a circulao do sangue, a pulsao, a respirao, a digesto, a nutrio, e excreo etc. Para esses movimentos no necessria a ajuda da imaginao (Hobbes, 2003, p.46. grifos do autor).

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    universal tipicamente humana.33 De fato, o homem no como um corpo inanimado qualquer, ele carrega (assim como os animais) a possibilidade de deliberar, isto , calcular apetites e averses antes de realizar uma determinada ao, porm entender a guerra pelo vis estritamente mecnico no incompatvel com o fato de que o homem capaz de deliberar. Todos os corpos vivem sob a mesma lei mecanicista de funcionamento do mundo, contudo, o homem um corpo que delibera, que possui vontade, que disputa e compete por poder e por glria, e essas caractersticas atuam como uma espcie de agravante que tambm faz que ele viva em constante estado de tenso, isto , em uma situao de guerra permanente.

    Note-se que, no estado de simples natureza, no h como impedir que um corpo se interponha ao movimento de outro corpo, pois da prpria natureza que todos tm direito a todas as coisas (Hobbes, 1998, p.32)34 e que, portanto, no h nenhum direito natural que possa ser reivindicado como razo para que se impea qualquer movimento de um corpo. Nesse sentido, ser obstculo e impedir o movimento de um outro corpo algo que pode acontecer a qualquer momento, ainda que a ocorrncia de tal fato no seja objetivo mani-festo do indivduo. E assim como um fato natural que, em algum momento, um corpo possa impedir o livre fl uxo do movimento de um outro corpo, tambm um fato natural que, ao sofrer tal impe-dimento o indivduo possui o direito de resistir a ele e de guerrear, se preciso for, para manter seu movimento.

    33 Spragens mostra que Hobbes transporta a teoria do movimento para a teoria moral e poltica, e assim, entende que no apenas os corpos em geral, mas tambm os homens se movem inercialmente, de modo que no apenas seus movimentos fsicos (externos), mas tambm suas emoes se movem sem fi m e sem repouso. E ainda: no mundo do movimento inercial, todas as coisas tendem a persistncia; o homem, que uma criatura natural, no constitui exceo (Spragens, 1973, p.177).

    34 A compreenso do direito de natureza como um fato da natureza segue a esteira da interpretao feita por Yara Frateschi: Note-se que o direito de natureza um fato da natureza: tendncia humana natural persistir na vida, e os homens agem naturalmente para preserv-la e para evitar a morte. (Frateschi, 2003, p.173, grifo nosso).

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    Assim, o mesmo direito natural que d ao homem o direito a todas as coisas tambm diz que devemos procurar a paz, isto , quando possvel e se possvel, devemos calcular nossa conduta de modo a evitar ser obstculo ao movimento de outros corpos, contudo, se tal clculo no for possvel, devemos e somos autorizados pelo direito natural a usar de todos os recursos da guerra para a prpria defesa. Portanto, um direito natural: Que todo homem deve se esforar pela paz, na medida em que tenha esperana de a conseguir, e caso no a consiga pode procurar e usar todas as ajudas e vantagens da guerra (Hobbes, 2003, p.113).35

    O que temos ento que a guerra ou a tenso constante e mani-festa no estado de simples natureza no efeito de uma atitude m tipicamente humana, mas sim do fato de que o homem vive sob a gide dos mesmos princpios que regem a natureza das coisas, isto , dos princpios da fi losofi a da natureza.

    Poderia aqui ser feita a seguinte objeo quanto ao que acabou de ser dito acima: se todos os corpos vivem sob a mesma lei, que de base mecanicista, porque as abelhas e as formigas podem naturalmente viver em sociedade e apenas os homens vivem naturalmente em es-tado de guerra? Ambos so corpos, mas vivem de modos distintos, viveriam ento tambm sob leis distintas? A resposta parece ser: no.

    Hobbes mostra que as abelhas e as formigas vivem naturalmente em sociedade porque, diferentemente dos homens, elas no esto constantemente envolvidas em numa competio pela honra e pela dignidade [...]. E devido a isso que surgem entre os homens a inveja e o dio, e fi nalmente a guerra, ao passo que entre aquelas criaturas isso no acontece (idem, p.145-6). Ora, dizer que os homens natu-ralmente vivem em um estado de competio que leva guerra e que

    35 No Do Cidado lemos: A lei de natureza primeira e fundamental, que devemos procurar a paz, quando possa ser encontrada; e se no for possvel t-la, que nos equipemos com os recursos da guerra (Hobbes, 1998, p.38). E ainda, nos Elementos de Lei o mesmo direito expresso nos seguintes termos: que cada homem, para o seu prprio bem, procure a paz medida que existir a esperana de consegui-la; tambm que se fortalea com toda a ajuda que puder procurar, para a sua prpria defesa contra aqueles com quem a paz no pode ser obtida (Hobbes, 1969b, p.74).

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    as abelhas naturalmente vivem em sociedade parece apontar para o fato de que no existe uma cosmologia que atue em todos os corpos naturais de forma semelhante. Portanto, no possvel estabelecer uma relao entre a fsica e as paixes humanas (fi losofi a da natureza e fi losofi a moral). Contudo, preciso notar alguns aspectos que levam a esse comportamento distinto entre os homens e os animais ainda que eles vivam sob as regras da mesma fi losofi a da natureza.

    Entre os animais no h diferena entre o bem comum e o bem individual (idem, p.146) de modo que a busca pelo bem individual leva ao bem comum, portanto, a busca do bem individual que natu-ral (tendncia natural de perpetuar no movimento) trar o benefcio comum, por isso, eles no vivem em guerra e no precisam de pactos para instituir a paz. J entre os homens, a busca pelo bem privado no possui simetria com a busca do bem comum, pois a alegria [do homem] consiste em se comparar, [e ele] s encontra felicidade na comparao com os outros homens, [e] s pode apreciar o que eminente (idem). Nesse sentido, o benefcio individual necessrio para a preservao da vida levar competio por poder. E como a glria, a reputao de dignidade e a honra so mostras de poder, os homens vivem em guerra por disputar a prevalncia dessas paixes. J os animais como as abelhas e as formigas, por sua vez, vivem paci-fi camente em sociedade, pois no h entre elas disputas dessa ordem. Contudo, ambos, homens e animais, vivem sob o mesmo princpio da preservao do movimento, isto , buscam a preservao da vida, porm esse princpio leva os homens competio e guerra, e os animais, graas simetria entre o bem comum e o bem individual, vivem naturalmente em sociedade, j que a sociedade ao promover o bem coletivo naturalmente promove o bem individual.

    Essa relao entre a explicao do comportamento humano, do funcionamento do Estado poltico e da mecnica das leis naturais pode ser encontrada em vrias passagens na obra de Hobbes. Ain-da na introduo do Leviat feita uma analogia entre a lgica de funcionamento dos autmatos (mquinas) e aquela que rege o corpo humano, de tal forma que as semelhanas so notveis para o fi l-sofo ingls. Sua argumentao, que segue a primazia do movimento dos corpos, considera que a vida nada mais que o movimento

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    dos membros do corpo, e diz ainda que todos os autmatos podem possuir vida artifi cial. Nesse sentido, a analogia ocorre de tal modo que o corao de um homem se assemelha a uma mola, os nervos a cordas, e as juntas a rodas (idem, p.11). O funcionamento do Estado segue essa mesma lgica, isto , o Estado imita o homem, que uma criatura racional e a mais excelente obra da natureza (idem), pois o que o Estado Leviat seno um homem artifi cial, embora de maior estatura e fora do que o homem natural, para cuja proteo e defesa foi projetado. E no qual a soberania uma alma artifi cial, pois d vida e movimento ao corpo inteiro (idem).

    Esse homem, cujo agir no mundo possui um funcionamento interno que mecnico e que pode ser comparado a um autmato, vive naturalmente em estado de tenso e confl ito, e essa tenso se d graas ao desejo humano. O desejo (apetite) uma paixo que leva os homens a agirem no sentido de alcanar um objeto de desejo particular (voltaremos a essa defi nio com mais calma adiante, mas por hora fi quemos com essa). Desta forma, quando se tem um ape-tite por um objeto qualquer que no pode ser desfrutado por todos nem mesmo dividido em comum, uma consequncia natural que a competio (guerra) se instale nesse momento. E uma vez instalada a guerra, um direito natural de todo indivduo que no estado de simples natureza o mais forte faa valer sua fora para garantir a obteno de seu objeto de desejo.

    O apetite ser sempre suscitado por um objeto externo que apa-rente trazer ou fazer bem quele que deseja, e na busca da satisfao desse desejo todo homem est autorizado a fazer uso da fora, quando for prudente e necessrio. Contudo, mais uma vez importante notar aqui que o desejo de conseguir aquilo que aparenta trazer o bem para si mesmo36 no um trao moral propriamente humano, mas sim um

    36 Esse bem para si mesmo o que Yara Frateschi chama de princpio do benefcio prprio. Segundo a autora, h em Hobbes um princpio, que pode ser provado tanto pelo mtodo sinttico como pelo analtico, de que toda ao voluntria feita visando obteno de algum benefcio de modo que a inteno [de Hobbes] provar, a partir da anlise das causas da associao, que o homem autointeressado e age primeiramente em funo do seu prprio benefcio (Frateschi, 2003. p.23 ss).

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    princpio fi sicalista, pois todo homem desejoso do que bom para ele, e foge do que mal;[...] e isso ele faz por um certo impulso da na-tureza, com tanta certeza como uma pedra cai (Hobbes, 1998, p.31).

    Portanto, parece ser sustentvel e coerente pensar que a cincia mecanicista possui um lugar privilegiado no interior da obra hob-besiana e, por isso, pensar a poltica e a moral como reas do saber que podem ser independentes, pode signifi car uma leitura enviesada que no leva em considerao a letra do texto do autor ingls. Isso o que pretende se mostrar a partir de agora com a considerao mais prxima de trs autores consagrados na interpretao da obra hob-besiana, A.E.Taylor, H. Warrender e Leo Strauss, j mencionados.

    Na viso de A.E.Taylor, o argumento principal para sustentar a no relao entre a poltica, a moral, e a fsica sustentado numa leitura que afi rma uma aproximao entre a teoria moral hobbesiana e uma teoria moral de matriz kantiana. Segundo ele, haveria em Hobbes a semente do que foi desenvolvido por Kant no tocante moral, isto , um princpio que seria anterior (a priori) ao Estado e que nortearia a ao do Homem no mundo.

    Outra interpretao que segue a mesma linha de negao da relao entre fsica, moral e poltica a de Leo Strauss. O autor alemo radi-cado nos E.U.A, no entanto, tem como argumento principal a tese de que h na fi losofi a de Hobbes um princpio moral que privilegia a ex-perincia dos apetites naturais (especialmente a vaidade humana) como trao fundamental que leva os indivduos ao confl ito generalizado.

    E, por ltimo, porm no menos importante, pretende se observar que H. Warrender, no intuito de criticar o mesmo ponto que os dois autores anteriores, mostra que h, sim, em Hobbes uma base moral. E para ele, o que pode dar ao um aspecto moral universalizente o fato de que toda lei moral tambm uma lei divina, desse modo haveria em Hobbes uma ligao necessria no mais entre a fsica e a moral, mas sim entre a moral e as leis divinas.

  • 2UMA ABORDAGEM CRTICA: TAYLOR,

    STRAUSS, WARRENDER

    Taylor

    A abordagem de Taylor v na obra de Hobbes semelhanas ar-gumentativas e tericas que, segundo o autor, antecipariam o que seria formulado mais tarde por Kant, ou seja, o que fundamentaria a fi losofi a do autor ingls seria uma base moral apriorstica presente no homem que julgaria as aes humanas universalmente como justas ou injustas nelas mesmas, independentemente da existncia ou no do corpo poltico.

    Em seu artigo intitulado The Ethical Doctrine of Hobbes publicado em 1938, Taylor afi rma haver na obra hobbesiana, es-pecialmente na moral que lhe corresponde, uma forte semelhana com a doutrina moral kantiana. Ele justifi ca tal posio ao chamar a ateno do leitor para a distino que feita no De Cive quando Hobbes afi rma que um homem justo e uma ao justa so coisas de naturezas distintas. Dessa forma, uma ao justa seria aquela feita de acordo com a lei, sem que isso signifi que que o homem que atue de acordo com a lei seja necessariamente um homem justo.

    ser justo signifi ca o mesmo que deleitar-se em agir com justia ou empenhar-se, em todas as coisas, por fazer aquilo que justo; e ser

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    injusto consiste em negligenciar o trato correto dos outros, ou em pensar que este deva ser medido, no em funo do que contratei, mas de algum benefcio imediato. De modo que a justia ou injustia da mente, ou da inteno, ou da pessoa, uma coisa, e a justia ou injustia da ao, ou da omisso outra. (Hobbes, 1998, p.56)

    Nessa passagem, parece ser possvel observar que Hobbes deixa espao para uma interpretao que se direcione no sentido da exis-tncia de uma possvel justia ou injustia da mente, isto , uma justia que anteceda e seja independente do contrato. Porm, essa interpretao encontra um obstculo na medida que impossvel ao homem vir a conhecer os designos internos dos outros homens, ou seja, impossvel fazer cincia daquilo que faz parte do frum interno1 de cada indivduo. Em outras palavras, impossvel fazer cincia das intenes de cada um.

    Ao no levar em considerao essa impossibilidade, Taylor v na passagem supracitada do Do Cidado uma formulao que an-teciparia de certa forma o argumento kantiano que distingue o agir por dever moral e o agir conforme o dever ou conforme a lei. Assim, haveria em Hobbes uma espcie de imperativo categrico de foro interno que, independente de qualquer mbil externo, dirigiria a ao moral do homem de tal modo que apenas aqueles que agirem de acordo com essa inclinao de foro interno que poderiam ser chamados homens justos.

    Com essa interpretao, Taylor assume que existiria na fi losofi a de Hobbes uma espcie de valor intrnseco aos objetos e aos fatos, ou seja, mesmo antes do pacto e da criao do Estado soberano haveria

    1 Quando se diz que as leis naturais obrigam in foro interno, isso signifi ca que tais leis tornam impositivo o desejo de que sejam cumpridas; mais in foro externo, isto , tornando impositivo o desejo de as colocar em prtica, nem sempre obrigam (Hobbes, 2003, p.136). Ou seja, a obrigao de colocar em prtica o exerccio da lei natural no deriva do desejo de seu cumprimento. A natureza impe sim o desejo de cumprimento, mas no possui fora capaz de obrigar que tais leis se cumpram, nesse sentido no possvel dizer que as leis obrigam de fato que os homens a sigam. Elas podem impor in foro interno o desejo de cumprimento, mas no a obrigao de externar tal desejo.

  • AS PAIXES HUMANAS EM THOMAS HOBBES 49

    condies naturais de realizar julgamentos acerca do bem e do mal, do justo e do injusto. Teramos, portanto, as condies que possibi-litariam ao homem arbitrar a esse respeito, pois como ele afi rma, A obrigao moral de obedecer a lei natural antecede a existncia do legislador e da sociedade civil. J no estado de natureza a lei obriga in foro interno (Taylor, 1965, p.26).2 Para amparar tal posio, o autor busca no Leviat a passagem em que Hobbes (2003, p.136, grifo nosso) diz:

    Todas as leis que obrigam in foro interno podem ser violadas, no apenas por um fato contrrio a lei, mas tambm por um fato conforme a ela, no caso de o seu autor o considerar contrrio. Pois, embora neste caso a sua ao seja conforme lei, a sua inteno contrria lei, o que constitui uma violao quando a obrigao in foro interno .

    Desta forma, assim como em Kant, na fi losofi a hobbesiana a ao moral seria medida de acordo com a inteno do ator que a realiza, de modo que seu valor estaria presente na prpria ao, intrnseco e imanente a ela. Uma das consequncias que podem derivar dessa abordagem empreendida por Taylor que a tica construda por Hobbes no possuiria nenhum tipo de relao com a mecnica carac-terstica de sua obra, ou seja, sua fi losofi a poderia ser tomada de tal forma que a tica uma espcie de princpio fundamental, dado que as leis de natureza representam requisitos morais sobre os homens que no se fundamentam de modo algum na psicologia humana. Dessa abordagem decorre que, a teoria tica hobbesiana seria uma deontologia estrita que, embora com algumas distines, pode ser comparada com as teses caractersticas de Kant (Taylor, 1965, p.23). Isto signifi ca ainda que temos em Hobbes um princpio a priori fundado na racionalidade da lei natural que atua como sustentao do dever moral.

    2 The moral obligation to obey the natural law is antecedent to the existence of the legislator and the civil society; even in the state of nature the law obliges in foro interno (Taylor, 1965, p.26).

  • 50 HLIO ALEXANDRE DA SILVA

    A solidez do argumento defendido por Taylor sustenta-se funda-mentalmente na tese de que existe uma ideia ou ideal moral que co-mum e que tem fora para se fazer valer mesmo antes da viabilizao do Estado civil. Contudo, esse posicionamento terico s possvel, entre outras coisas, graas no considerao de que a moral tomada pelo princpio da cincia mecanicista perde seu carter universalizan-te na medida em que o princpio do movimento inercial (tendncia a perpetuar no movimento) pode ser tomado antropologicamente como a busca natural de cada indivduo pelo benefcio prprio. Por no fazer tal considerao, Taylor no pode entender que o desejo natural de acmulo de poder (glria, boa reputao etc.) o meio de se buscar o prprio bem, que por sua vez, o meio de se preservar a vida (per-petuar o movimento). Porm, tal busca aliada ao desejo de poder e mais poder3 leva competio individual pela aquisio desses meios necessrios preservao da vida. Para se sobressair nesse estado de competio (guerra de todos contra todos), todo homem deve se esforar pela paz, na medida em que tenha esperana de a conseguir, e caso no a consiga pode procurar e usar todas as ajudas e vantagens da guerra (Hobbes, 2003, p.113) e, nesse estado, o justo e o injusto so decididos pelo arbtrio individual. No estado de natureza, isto , na guerra, a fora e a fraude so virtudes cardeais [pois] as noes de certo e errado, justia e injustia, no podem a ter lugar (idem) assim, no h nada na natureza que possa ser tido como medida uni-versal a no ser o arbtrio de cada indivduo. E isso derivado de uma considerao da preservao da vida como algo anlogo necessidade natural de todos os corpos em se perpetuarem no movimento. Tal anlise negada por Taylor, ou seja, ele no trabalha a possibilida-de de relao entre a fi losofi a natural e a fi losofi a moral e poltica.

    Ao analisar alguns aspectos da obra de Hobbes, contudo, pos-svel notar que, se no h uma relao de dependncia estrita entre a mecnica e a moral poltica, impossvel negar que est presente em

    3 Assinalo assim, em primeiro lugar, como tendncia geral de todos os homens, um perptuo e irrequieto desejo de poder e mais poder, que cessa apenas com a morte (Hobbes, 2003, p.85).

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    toda a obra do fi lsofo de Malmesbury uma mecnica cons truda com bases em uma espcie de cosmologia fsica do movimento dos corpos. Negar essa hiptese, como faz Taylor, parece destoar daquilo que Hobbes diz na introduo do De Cive, em que descreve que inicial-mente pretendia desenvolver sua fi losofi a em trs partes, de modo que na primeira trataria do corpo, e de suas propriedades gerais; na segunda, do homem e de suas faculdades e afeces especiais; na terceira, do governo civil e dos deveres dos sditos (Hobbes, 1998, p.17).

    No entanto, esse projeto no foi levado a cabo, pois na Inglaterra do sc. XVII as discusses acerca dos poderes polticos, do lugar a ser ocupado pelos sditos no governo, e das diretrizes governamentais em voga na poca, fi zeram que Hobbes adiasse seu plano inicial e comeasse seu trabalho pela ltima parte, ou seja, pela poltica.

    Taylor, assim como os demais autores que participam dessa mesma linha argumentativa, ao fazer sua anlise acerca da tica hobbesiana parece no considerar esse projeto inicial proposto pelo fi lsofo ingls. Projeto esse que, mesmo impossibilitado de se rea-lizar da forma com que foi calculado por seu arquiteto, ainda assim signifi cativo do ponto de vista da anlise de toda sua obra, pois o primeiro movimento intelectual de Hobbes deveria se iniciar com a investigao dos corpos e de suas propriedades gerais, como citado acima. Esse propsito fi ca claro quando observamos o que Hobbes diz com relao ao procedimento que devemos adotar ao buscarmos o conhecimento, o caminho deve ser feito de tal modo a comear pela fsica e:

    Aps a fsica, devemos passar fi losofi a moral, na qual considera-remos os movimentos da mente como apetite, averso, amor, benevo-lncia, esperana, medo, clera, rivalidade, inveja, etc. que causas eles tm, e de que eles so causas. (Hobbes, 1966, p.72, grifo do autor)4

    4 After physics we must come to moral philosophy; in which we are to consider the motions of the mind, namely, appetite, aversion, love, benevolence, hope, fear, anger, emulation, envy etc; what causes they have, and of what they be causes.

  • 52 HLIO ALEXANDRE DA SILVA

    Para tentar esclarecer como se processa esse movimento na obra de Hobbes e tentar justifi car uma posio no sentido de argumentar a favor da unidade da obra em torno do mecanicismo, preciso fazer uma breve incurso pelos conceitos da fsica hobbesiana. importante notar que o que vigorava no campo da cincia no sc. XVII ainda era a tradio aristotlica mantida e interpretada pelos escolsticos.5 Hobbes, por sua vez, procura escrever exatamente contra essa tradio, e assim constri uma explicao cientfi ca que vai de encontro aos conceitos de potncia e ato vigentes poca. Deste modo, elabora uma explanao que descreve o real, grosso modo, como corpos que agem sob a gide de movimentos e que no se desenvolvem em direo de sua atualizao at atingir um fi m ltimo e supremo, tal como explicava a escolstica aristotlica. Nesse sentido, afi rma Spragens (1973, p.122)6 que:

    Embora a natureza, na opinio de Hobbes, no se caracterize pela tenso potncia e a