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Tribuna Virtual – Ano 01 – Edição nº 02 – Março de 2013 – ISSN nº 2317-1898. 2

DIRETORIA DA GESTÃO 2013/2014

DIRETORIA EXECUTIVA

Presidente: Mariângela Gama de Magalhães Gomes

1ª Vice-Presidente: Helena Regina Lobo da Costa

2o Vice-Presidente: Cristiano Avila Maronna

1ª Secretária: Heloisa Estellita

2o Secretário: Pedro Luiz Bueno de Andrade

1o Tesoureiro: Fábio Tofic Simantob

2o Tesoureiro: Andre Pires de Andrade Kehdi

Diretora Nacional das Coordenadorias Regionais e Estaduais: Eleonora Rangel Nacif

Assessor da Presidência: Rafael Lira

CONSELHO CONSULTIVO

Ana Lúcia Menezes Vieira

Ana Sofia Schmidt de Oliveira

Diogo Rudge Malan

Gustavo Henrique Righi Ivahy Badaró

Marta Saad

OUVIDOR

Paulo Sérgio de Oliveira

COORDENADORES-CHEFES DOS DEPARTAMENTOS

Biblioteca: Ana Elisa Liberatore S. Bechara

Boletim: Rogério FernandoTaffarello

Comunicação e Marketing: Cristiano Avila Maronna

Cursos: Paula Lima Hyppolito Oliveira

Estudos e Projetos Legislativos: Leandro Sarcedo

Iniciação Científica: Ana Carolina Carlos de Oliveira

Mesas de Estudos e Debates: Andrea Cristina D’Angelo

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Tribuna Virtual – Ano 01 – Edição nº 02 – Março de 2013 – ISSN nº 2317-1898. 3

Monografias: Fernanda Regina Vilares

Núcleo de Pesquisas: Bruna Angotti

Relações Internacionais: Marina Pinhão Coelho Araújo

Revista Brasileira de Ciências Criminais: Heloisa Estellita

Revista Liberdades: Alexis Couto de Brito

Tribuna Virtual IBCCRIM: Bruno Salles Pereira Ribeiro

PRESIDENTES DOS GRUPOS DE TRABALHO

Amicus Curiae: Thiago Bottino

Código Penal: Renato de Mello Jorge Silveira

Cooperação Jurídica Internacional: Antenor Madruga

Direito Penal Econômico: Pierpaolo Cruz Bottini

Habeas Corpus: Pedro Luiz Bueno de Andrade

Justiça e Segurança: Alessandra Teixeira

Política Nacional de Drogas: Sérgio Salomão Shecaira

Sistema Prisional: Fernanda Emy Matsuda

PRESIDENTES DAS COMISSÕES

17º Concurso de monografias: Fernanda Regina Vilares

19º Seminário Internacional: Carlos Alberto Pires Mendes

Cursos com a Universidade de Coimbra: Ana Lúcia Menezes Vieira

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GESTÃO DA TRIBUNA VIRTUAL IBCCRIM

Coordenador-Chefe

Bruno Salles Pereira Ribeiro

Coordenadores Adjuntos

Adriano Scalzaretto

Guilherme Suguimori Santos

Matheus Silveira Pupo

Conselho Editorial

Amélia Emy Rebouças Imasaki, Anderson Bezerra Lopes, André Adriano do Nascimento Silva, Antonio Baptista Gonçalves, Átila Machado, Camila Garcia, Carlos Henrique da Silva Ayres, Christiany Pegorari Conte, Danilo Ticami, Davi Rodney Silva, Diogo Henrique Duarte de Parra, Eduardo Henrique Balbino Pasqua, Érica Akie Hashimoto, Fabiana Zanatta Viana, Fábio Suardi D’ Elia, Francisco Pereira de Queiroz, Gabriela Prioli Della Vedova, Giancarlo Silkunas Vay, Guilherme Suguimori Santos, Humberto Barrionuevo Fabretti, Ilana Martins Luz, Janaina Soares Gallo, José Carlos Abissamra Filho, Luiz Gustavo Fernandes, Marcel Figueiredo Gonçalves, Marcela Veturini Diorio, Marcelo Feller, Matheus Silveira Pupo, Milene Maurício, Rafael Lira, Rafael Serra Oliveira, Ricardo Batista Capelli, Rodrigo Dall’Acqua, Ryanna Pala Veras, Thiago Colombo Bertoncello e Yuri Felix.

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APRESENTAÇÃO

O IBCCRIM – Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, pauta-se, acima de tudo, pela

defesa das liberdades individuais dos cidadãos e pela proteção de seus direitos fundamentais.

Seja para abrir os caminhos entre as veredas das ciências, seja para municiar o campo de

batalha da defesa da liberdade, proporcionar meios de difusão do pensamento sempre esteve entre

as principais atividades do IBCCRM em seus 20 anos de existência. Assim o comprova o Boletim

do IBCCRIM, a Revista Brasileira de Ciências Criminais e a Revista Liberdades.

Poder falar e ouvir são pressupostos fundamentais do exercício da liberdade. É também

falando e escutando que se desenvolve o processo dialético de lapidação de ideias, maneira pela

qual se constrói a verdadeira e legítima ciência.

Na verdade, uma publicação científica é antes de tudo uma tribuna, onde o pensamento

humano se amplifica, onde as ideias se libertam e ganham voz, uma voz que não serve às palavras

do poder, mas sim ao poder de uma palavra: liberdade.

Inspirado por esses ideais surge um novo espaço de intercâmbio de ideias e de fomento do

pensamento científico adequado à modernidade tecnológica globalizada. Assim é concebido este

periódico: uma Tribuna Virtual do IBCCRIM.

Uma plataforma globalmente acessível, que tem como objetivo receber e difundir os

conhecimentos das ciências criminais para além das barreiras territoriais - essa é nossa tribuna.

Após 20 anos de incansável defesa das garantias fundamentais, esperamos que nesta

Tribuna o vigor científico surja do embate de ideias, experiências e pontos de vista plurais e

democráticos, a individualidade ceda lugar ao debate, o autoritarismo e o medo se calem e o

pensamento humano amplifique e dê sentido ao conceito de liberdade sonhado por este instituto.

Seja voz nesta tribuna.

Envie seu artigo.

“Participe por acreditar".

Coordenação da Tribuna Virtual IBCCRIM.

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Tribuna Virtual – Ano 01 – Edição nº 02 – Março de 2013 – ISSN nº 2317-1898. 6

SUMÁRIO

• Diretoria da Gestão 2013/2014.................................................. 02

• Gestão da Tribuna Virtual IBCCRIM........................................ 04

• Apresentação............................................................................... 05

• Artigos

o A investigação criminal pelo Ministério Público no direito comparado e o retrocesso do Projeto de Emenda Constitucional (PEC) n. 37

Odone Sanguiné e Paloma de Maman Sanguiné.............................07

o A possibilidade de redução da pena aquém do mínimo legal pelo reconhecimento de circunstâncias atenuantes: uma nova leitura da função dos marcos penais

Bruno Salles Pereira Ribeiro..........................................................32

o Justiça restaurativa: um novo modelo de justiça criminal

Rafaela Alban Cruz......................................................................71

o Embargos infringentes em ação penal originária no STF

Sebastião Ventura Pereira da Paixão Jr..........................................84

o Questionamentos à constitucionalidade das prisões

Laís Freitas Cruz..........................................................................88

• Normas para publicação na Tribuna Virtual IBCCRIM........... 102

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A investigação criminal pelo Ministério Público no direito comparado e o retrocesso do Projeto de Emenda Constitucional (PEC) n. 37

Odone Sanguiné Professor da UFRGS.

Desembargador Aposentado do TJRS. Advogado.

Paloma de Maman Sanguiné

Promotora de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo. Resumo: O artigo faz uma crítica ao Projeto de Emenda Constitucional n. 37, que preconiza a exclusão dos poderes investigatórios do Ministério Público, outorgando-os, com exclusividade, à instituição policial. Apresenta uma análise comparada de diversos sistemas jurídicos e os principais argumentos criminológicos e de política criminal que justificam a legitimidade da investigação criminal pelo Ministério Público no Estado Democrático de Direito, coincidindo em sua conclusão, aliás, com a recente tendência jurisprudencial favorável do Supremo Tribunal Federal sobre o tema. Palavras-chave: PEC n. 37; Investigação Criminal; Ministério Público. Abstract: This article intends to provide a critical analysis about the proposal of amendment to the constitution n. 37, which calls for the exclusion of investigation power granted to the Department of Public Prosecution, and granting them to the police department exclusively. It also provides a compared analysis of several legal systems and the main criminological arguments and criminal policies which justify the legitimacy of criminal investigation carried out by the Department of Public Prosecution, in the democratic rule of law. Its conclusion actually coincides with the recent favorable jurisprudential trend of the Supreme Court about this topic. Key words: Proposal of amendment to the constitution n. 37; criminal investigation; Department of Public Prosecution. Sumário: 1. Introdução – 2. A instituição policial e suas funções na sociedade globalizada e de risco – 3. Modelos de investigação existentes no direito comparado: 3.1 Alemanha; 3.2 Itália; 3.3 Bélgica; 3.4 França; 3.5 Portugal; 3.6 Inglaterra; 3.7 Estados Unidos da América – 4. Síntese dos diversos sistemas de investigação – 5. A legitimação da investigação pelo Ministério Público no Estado Democrático de Direito: 5.1 Argumentos criminológicos; 5.2 Argumentos de política criminal; 5.3 Argumentos normativos: a tendência jurisprudencial do STF – 6. O recente Projeto de Emenda Constitucional (PEC) n. 37 – 7. Conclusão.

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1. Introdução

A finalidade destes apontamentos consiste em fornecer uma informação com base no

método comparado1 sobre a atual situação político-legislativa da investigação criminal pelo

Ministério Público nos países mais importantes da Europa e nos Estados Unidos, visando a

atender o objetivo prático de iluminar a política legislativa brasileira, tendo em vista a intensa

discussão que vem ocorrendo a partir do Projeto de Emenda Constitucional 37, que pretende

retirar os poderes de investigação do Ministério Público.

2. A instituição policial e suas funções na sociedade globalizada e de risco

Historicamente, a função policial de manter o controle social vem sendo legitimada pela

necessidade de controlar a criminalidade e prender os suspeitos ou presumidos delinquentes.

Entretanto, nem todo trabalho policial tem vinculação direta com o controle da criminalidade, na

medida em que a polícia também desempenha um papel na manutenção da ordem pública e no

controle da dissidência política.

Nas sociedades pré-industriais, o controle da criminalidade era executado em nível

comunitário, sem uma força policial organizada. Com a industrialização, funcionários específicos

são nomeados para manter a ordem, o que redunda na proliferação de forças especializadas. Como

acontece com qualquer grupo detentor de poder, há o perigo onipresente de corrupção, violência

e racismo. Segundo Charles Wilson, a tendência do policiamento é de gerar culturas reacionárias,

defensivas e centrífugas, resistindo à crítica e à reforma.2

As teorias sobre a polícia estão intimamente ligadas com as ideologias políticas,

deduzindo-se, então, três abordagens: (a) uma visão conservadora concebe a polícia como formada

1 A abertura de novos horizontes, graças ao direito comparado, permite utilizar para a interpretação das normas de direito nacional, além dos critérios tradicionais, o método comparativo, particularmente através da microcomparação. Nesse sentido: CONSTANTINESCO, Leontin-Jean. Tratado de derecho comparado. Madrid: Tecnos, 1981. v. 1, p. 283 e 316; p. 17-23; JESCHECK/WIEGEND. Tratado de derecho penal. Parte geral. 5. ed. Comares, 2002 p. 49; ALMEIDA, Carlos Ferreira de. Introdução ao direito comparado. Coimbra: Almedina, 1994. p. 22-26.

2 Verbete “polícia”, in VV.AA. Dicionário do pensamento social do século XX. Jorge Zahar, 1996.

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por combatentes do crime, quando a instituição desempenharia também um papel integrativo na

promoção da harmonia social; (b) a visão marxista radical encara a polícia como uma agência

repressora do Estado (Althusser a incluía entre os aparelhos repressivos do Estado), sempre agindo

na proteção dos interesses da classe dominante e no controle da resistência da classe trabalhadora

contra a exploração; (c) mais recentemente, surgiu uma abordagem orientada para um programa

de ação política: aceita a necessidade do policiamento e examina vários estilos e métodos do

policiamento de modo mais empírico, utilizando critérios como eficiência, eficácia e aceitação

pelo público.3

Na verdade, a instituição policial não deve ser analisada unicamente como uma função ou

uma corporação, nem tão somente como um objeto ou um aparelho de Estado, mas também sob

uma leitura sociojurídica, segundo a qual a polícia desempenha uma função simbólica, que se

expressa como instrumento de luta contra o crime, e uma função real, como aparelho de Estado

consistente em atuar como mecanismo de controle e de regulação social sob a dependência teórica

do Estado, daí que seja permitido o uso e aplicação da força-violência como coação direta e

legítima.4

Não obstante, a soma das funções simbólica e real permanece sendo inidônea para dar

uma explicação satisfatória da existência da polícia em nossa sociedade, porquanto desempenha

mais funções e atividades do que as até aqui descritas. Dessarte, é indispensável um enfoque

sistêmico que revele a essência real da instituição policial, mostrando que ela funciona como

aparelho Estatal (função visível) e, simultaneamente, como sistema polivalente (função oculta), o

que permite um duplo registro de leitura: como instrumento do poder e como ente-poder em si

mesmo. Assim, o enfoque policial resulta incompleto, na era da globalização e da sociedade do

risco, para compreender a temática da segurança pública. Como os riscos, ou melhor, a segurança,

não pode ser totalmente garantida, permite-se a incorporação cada vez mais ativa de uma

pluralidade de atores públicos e privados quando se discutem políticas de segurança. Com isso,

não somente se produz uma quebra do conceito de monopólio estatal da violência legítima, mas

3 Idem, ibidem.

4 BRUNET, Amadeu Recasens I. La seguridad, el sistema de justicia criminal y la policía. In: BERGALLI, Roberto (Coord.). Sistema penal y problemas sociales. Valencia: Tirant lo blanch, 2003. p. 288 e 297.

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também decai o papel central da polícia em matéria de segurança. Assim, é preciso descentralizar a

polícia, para (re)situá-la como mais um entre os atores que giram ao redor do verdadeiro

problema, que é o da segurança.5

3. Modelos de investigação existentes no direito comparado

A análise comparativa de alguns modelos de investigação em outros países possibilita

coletar dados úteis para demonstrar o equívoco da proposição contida na PEC n. 37 de entregar,

com exclusividade, a tarefa investigativa à instituição policial, alijando a instituição do Ministério

Público dessa fundamental função estatal de controle da criminalidade, especialmente os crimes

praticados por pessoas nas altas esferas do poder político ou econômico.

3.1. Alemanha

Na Alemanha, desde 1975 desapareceu a figura do juiz instrutor. O Ministério Público é

o dono e o senhor da instrução criminal, submetido ao princípio da legalidade e obrigado a

investigar os fatos de forma imparcial. A polícia é, no processo penal, um órgão auxiliar que atua

por ordem, direção e vigilância jurídica do Ministério Público, competindo àquela a tarefa

principal de esclarecimento, vigiada e ordenada pelo Ministério Público. O trabalho prático de

investigação se transfere sempre em maior medida à polícia (§§ 152 e 161 a 163 da StPO).

Somente os casos que exigem, por um lado, conhecimentos jurídicos especiais e, por outro lado,

distintos meios materiais e pessoais são averiguados pelo próprio Ministério Público (v. g., delitos

econômicos, nos quais é possível trabalhar inclusive em seu gabinete). O Ministério Público,

como órgão independente da administração de justiça, situado entre o executivo e o judiciário,

porém rodeado de garantias, pode e deve frenar, em todas as partes, o excesso de zelo do Poder

5 Idem, ibidem, p. 288-289, 297 e 305-310.

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Executivo.6 Dado que ao Ministério Público está confiada a administração da justiça penal, sua

atividade, tal como a do juiz, não pode estar orientada às exigências da administração, mas

somente a valores jurídicos, isto é, a critérios de verdade e justiça. Por conseguinte, apesar de a

Polícia desempenhar atividades de investigação, o Ministério Público conserva o domínio sobre o

procedimento de investigação preliminar, porquanto lhe incumbe: dirigir, conduzir ou vigiar o

procedimento de investigação; ordenar que se pratiquem as investigações e realizar, pessoalmente

ou mediante outras autoridades públicas, os atos de investigação que considere necessários, ou

delegar as diligências a outras autoridades ou funcionários policiais, podendo, inclusive, ordenar

medidas coercitivas (prisão preventiva, sequestros etc. e realizar outras medidas de investigação,

conforme disposto no § 160 e ss. da StPO). Inclusive, se a polícia investiga, o Ministério Público

é responsável pela realização, ordenada e completa, dessa tarefa.7

3.2. Itália

Um dos aspectos mais representativos do sistema processual italiano, de caráter acusatório,

está constituído pelo desaparecimento da fase e da figura do juiz de instrução, porque nele se

reuniam duas funções incompatíveis: a de juiz e a de investigador. Essa figura foi substituída por

um juiz (denominado “Giudice per le indagini preliminari”) sem funções investigatórias e em

posição imparcial (“Terzietá”) em relação às posições da acusação e da defesa, também na fase de

investigação preliminar, para assegurar uma garantia jurisdicional nas intervenções limitadoras da

liberdade.

Por outro lado, o Ministério Público (“Publico Ministero”) – que integra o corpo da

magistratura – além de dirigir a Polícia Judiciária, que lhe é auxiliar, e a investigação preliminar,

6 BAUMANN, Jürgen. Derecho procesal penal. Conceptos fundamentales y principios procesales. Introducción sobre la base de casos. Trad. Conrado Finzi. Buenos Aires: Depalma, 1986. p. 166-172 e 181-182; VV.AA. Sistemas de proceso penal en Europa. Dirigido por Ramón Maciá Gómez. Barcelona: Cedecs, 1998. p. 26 ss.

7 ROXIN, Claus. Derecho procesal penal. Trad. Julio B. Maier. Buenos Aires, 2000. p. 52-58; BAUMANN, Jürgen. Derecho procesal penal cit., p. 166-172; VV.AA. Procedure penali d’Europa. Padova: Cedam, 1998. p. 166; GOMEZ

COLOMER, Juan-Luis. El proceso penal aleman. Introducción y normas basicas. Barcelona: Bosch, 1985. p. 149; SCHLÜCHTER, Ellen. Derecho procesal penal. 2. ed. Valencia, 1999. p. 95.

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pode desempenhar pessoal e diretamente todas as atividades investigatórias permitidas à Polícia

Judiciária ou, então, valendo-se desta, com o êxito das investigações, promover a ação penal.

Porém, normalmente delega tais tarefas à polícia para evitar paralisá-la e desresponsabilizá-la. Isso

não impede que a polícia judiciária realize, mesmo depois da intervenção ministerial, toda

atividade necessária para a constatação dos crimes.8

3.3. Bélgica

Em princípio, a tarefa de realizar a investigação cabe exclusivamente ao juiz instrutor.

Todavia, isso sofre temperamentos e exceções, de maneira que o poder instrutório acaba por

pertencer também a vários outros órgãos, como o Ministério Público, o qual colabora a vários

títulos para tal tarefa. Na fase da investigação preliminar (“information”), que precede ao exercício

da ação penal, a jurisprudência reconhece ao Ministério Público o poder de recolher todos os

elementos necessários ao exercício da ação penal, embora sua tarefa principal seja a de exercer a

ação penal pública. Na fase preliminar do processo penal, a “information” é conduzida sob a

direção e a responsabilidade do “procureur du Roi”. A investigação/inquérito (“l’enquête”) é

dirigida pelo Ministério Público com a assistência dos funcionários da polícia judiciária, que agem

a seu pedido, sob sua direção e vigilância. Além da sua qualidade de magistrado, a lei reconhece a

diferentes membros do Ministério Público a qualidade de funcionário de polícia judiciária.9

3.4. França

O Juiz de instrução busca todas as informações que acredita serem úteis para a descoberta

da verdade. Incumbe-lhe reunir tanto os elementos que evidenciem tanto a culpabilidade como a

8 VV.AA. Sistemas de proceso penal en Europa cit., p. 235-244; VV.AA. Procedure penali d’Europa cit., p. 271 e 277 ss.; VV.AA. Processo penal e direitos do homem. Rumo à consciência européia. Org. Mireille Delmas-Marty. Trad. Fernando Franco. Barueri: Manole, 2004. p. 45-46; BUONO, Carlos Eduardo de Athayde; BENTIVOGLIO, Antônio Tomás. A reforma processual penal italiana. Reflexos no Brasil. São Paulo: RT, 1991. p. 32.

9 BOSLY, Henri-D.; VANDERMEERSCH, Damien. Droit de la procedure pénale. La charte, Brugge, 2000. p. 240 e 269-270; VV.AA. Il proceso penale in Belgio. Procedure penali d’Europa. Padova: Cedam, 1998. p. 59.

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inocência. Pode exercer por si mesmo seus poderes de investigação, porém, na maioria dos casos,

vale-se da polícia judiciária e, se for o caso, de peritos.10 Os membros do Ministério Público são

recrutados como os magistrados e pertencem, portanto, ao corpo da magistratura, podendo, no

curso da carreira, passar de uma a outra função.11

O Ministério Público é o ator principal no processo penal, tendo o poder de usar do

direito de ação pública.12 A Polícia Judiciária, no exercício das suas atribuições judiciárias,

depende do controle do juiz. Um dos motivos que justificam esse controle é de ordem jurídica: a

autoridade judiciária é a guardiã da liberdade individual. O exercício da função policial apresenta

o risco de atentar contra a liberdade individual. A autoridade judiciária previne esse risco,

controlando a polícia judiciária. Em termos gerais, durante a investigação, os funcionários da

polícia judiciária são colocados sob a direção do Procurador da República, que tem todos os

poderes e todas as prerrogativas próprias dos funcionários de polícia judiciária, podendo realizar

todos os atos que sejam necessários à investigação preliminar (“l’enquête préliminaire”). No ano

2000, o legislador francês introduziu novas disposições visando reforçar o controle, pelo juiz, de

liberdades e de detenção, da investigação preliminar, quanto a sua duração e quanto a sua direção

efetiva pelo Procurador da República. Tanto este como o Juiz de Instrução dispõem de todos os

poderes de polícia judiciária, podendo realizar, por si mesmos, os atos investigatórios necessários à

investigação e à persecução de infrações penais (art. 40 e ss. do CPP). O legislador outorgou ao

Procurador da República a faculdade de participar da execução dos atos que ele tiver requisitado.

Considerou-se que a atribuição ao Ministério Público da investigação constitui garantia de

eficácia e rapidez em relação à investigação conduzida por um magistrado isolado e exposto a

riscos diversos.13

3.5. Portugal

10 VV.AA. Sistemas de proceso penal en Europa cit., p. 157.

11 RASSAT, Michèle Laure Rassat. Traité de procédure pénale. Paris: Puf, 2001. p. 228.

12 GUINCHARD, Serge; BUISSON, Jacques. Procédure pénale. 2. ed. Paris: Litec, 2002. p. 570.

13 FOURMENT, François. Procédure penale. Orléans: Paradigme, 2003. p. 59, 61-63 e 96; GUINCHARD, Serge; BUISSON, Jacques. Procédure pénale cit., p. 553-554 e 958; VV.AA. Procedure penali D’Europa cit., p. 105; VV.AA. Processo penal e direitos do homem cit., p. 40.

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A reforma do Código Penal Português de 1987 confiou plenamente à promotoria o

essencial das funções de investigação. A partir daí, a primeira fase (preparatória) do processo, de

estrutura acusatória, está constituída pelo inquérito, que constitui a fase de investigação

anteriormente realizada pelo juiz de instrução. O inquérito abarca as investigações preliminares e

abrange as investigações policiais sob a responsabilidade do Ministério Público, que deve conduzir

as investigações com independência e imparcialidade. Durante a realização do inquérito, o MP

conta com a colaboração dos órgãos de polícia e de funcionários do Ministério Público, ambos

sob a sua orientação direta e em situação de dependência funcional. A instrução, apesar de estar

atribuída ao juiz de instrução, não tem a natureza de uma fase de investigação propriamente dita,

tendo essencialmente funções de garantia. Daí deriva sua natureza subsidiária ou facultativa: a

instrução somente se produz quando é requerida pelo acusado ou pelo ofendido-assistente,

quando algum destes não se conforma com a decisão do Ministério Público.14

3.6. Inglaterra

A Polícia é responsável, em primeiro lugar, pela investigação dos crimes. Se existem

suficientes indícios, poderá acusar o suspeito. Se for acusado, o suspeito terá direito a receber

detalhes escritos sobre o delito imputado, disponíveis em uma “lista de acusações no juizado de

polícia”. A Polícia entrega então o caso ao Serviço da Promotoria da Coroa (“Crown Prosecution

Service”), o qual notifica e prepara o caso para o julgamento. Portanto, não existe juiz investigador

ou de instrução na Inglaterra e País de Gales. É dever da polícia, com o conselho do serviço da

Promotoria da Coroa, reunir as provas para sustentar uma acusação.

Por sua vez, o Ministério Público da Coroa, criado pelo “Prosecution of Offences Act” de

1985, com a finalidade de conduzir o inquérito e de limitar os poderes da polícia, é um serviço

nacional independente e legal, que se compõe de advogados assalariados que dirigem todas as

acusações em nome da Rainha. O seu papel é o de aconselhar a polícia, revisar a decisão de

14 VV.AA. Sistemas de proceso penal en Europa cit., p. 316 ss.; VV.AA. Processo penal e direitos do homem cit., p. 27-28 e 62-72.

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acusação e preparar os casos para julgamento e apresentá-los aos Tribunais. Precisamente, a

criação do “Crown Prosecution Service” buscou evitar o perigo de deixar à polícia a tarefa de

conduzir sozinha a investigação, o que levou à escandalosa condenação dos “Seis de Birmingham”

à prisão perpétua, fundada em confissões extorquidas pela polícia e utilizadas como prova. Agora,

o único poder que a legislação confere à polícia é o poder de concluir o inquérito por ela

iniciado.15

Convém salientar que o sistema inglês distingue-se nitidamente do sistema continental, na

medida em que a abertura e desenvolvimento da fase preparatória estão entregues, inteira e

exclusivamente, à polícia: as investigações são efetuadas pela polícia, a qual age em virtude de um

poder que lhe é próprio ou em virtude de uma ordem judicial por parte de um juiz de paz (“justice

of the peace”). Não obstante, após a entrada em vigor do Prosecution of Offences Act de 1985,

reduziram-se consideravelmente os poderes do Chefe de Polícia (“Chief Officer”). Este conserva,

ainda, o poder de arquivamento; porém, se ele opta pela ação penal, a sua decisão é, agora, com o

novo texto legal, submetida ao exame do Promotor da Coroa, que dispõe do poder exclusivo de

arquivar a ação penal iniciada pela polícia (“Crown Prosecutor”). Portanto, tornou-se um

mecanismo complexo no qual intervém sucessivamente o “Chief Officer”, que inicia a ação penal,

e o “Crown Prosecution Service”, que a confirma. A separação das funções no momento de

estabelecer se promove ou não a ação penal contribui sensivelmente na aproximação da Inglaterra

com os demais países.16

Os membros do “Crown Prosecution Service” não podem realizar eles próprios as

investigações, mas o Promotor inglês tem a possibilidade de impulsioná-las, porquanto pode

solicitar à polícia um extrato da investigação. A legislação de 1985 não conferiu ao “Crown

Prosecutor” os meios para obrigar a polícia a desenvolver as investigações complementares

requeridas pelo Ministério Público; por isso, desenvolveu-se uma praxe que consiste em proceder

ao arquivamento quando a polícia se recusa a obedecer. Trata-se de um meio radical de pressão

destinado a vencer as resistências da polícia. O Ministério Público permanece, no entanto, alheio

15 VV.AA. Sistemas de proceso penal en Europa cit., p. 216-219; VV.AA. Processo penal e direitos do homem cit., p. 29 e 92-94.

16 VV.AA. Procedure penali D’Europa cit., p. 406-415.

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ao desenvolvimento concreto dos atos de investigação e depende do trabalho da polícia, de

maneira que cabe perguntar se ainda é possível falar de controle sobre a decisão de exercitar a ação

penal.17

Cabe mencionar, por último, que a Grã-Bretanha, com o “Humans Rights Act”, de 1998,

incorporou a Convenção Europeia de Direitos Humanos na legislação interna, de maneira que,

pela primeira vez, os direitos que são reconhecidos na Convenção podem ser diretamente

invocados nas Cortes nacionais. As implicações para o sistema de justiça criminal são profundas e

de grande amplitude.18

3.7. Estados Unidos da América

Nos Estados Unidos da América, não existe um juiz investigador ou um juiz de instrução.

A fase da investigação inicial está confiada aos agentes policiais e às agências federais de

investigação, que logo entregam o informe ao Promotor e este então determina se há ou não

elementos para apresentar a prova ante o “Grand Jury”, que é tecnicamente parte do

Departamento de Justiça e que se utiliza também para investigar dados ou obter prova sobre uma

atividade delitiva suspeita. No sistema federal, a investigação é dirigida por agentes federais de

acordo e em coordenação com o Promotor ou um advogado do Departamento de Justiça.

Durante a fase de investigação, há uma colaboração entre o Promotor e os agentes policiais.

Mesmo após a realização da acusação formal, o agente policial auxilia o Promotor.19

Na década de setenta, quando foi realizado o mais completo estudo empírico em relação a

153 Departamentos de Polícia sobre as deficiências na investigação criminal pelos detetives

policiais, os autores desse estudo recomendaram a atribuição de algumas tarefas de investigação ao

17 VV.AA. Procedure penali D’Europa cit., p. 414.

18 VV.AA. Criminal Justice and the Human Rights Act 1998. Jordans, Bristol, 1999. passim.

19 VV.AA. Sistemas de proceso penal en Europa cit., p. 132 ss.

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Ministério Público.20 São escassos os serviços de polícia norte-americanos de investigação criminal

que recolhem os principais elementos de prova capazes de oferecer ao Ministério Público

probabilidades sérias de conseguir uma condenação. Talvez essa insuficiência de provas tenha

contribuído para o incremento de casos arquivados sem acusação e ao enfraquecimento da posição

do promotor em sua negociação (“plea bargaining”) com a defesa.21

4. Síntese dos diversos sistemas de investigação

A primeira conclusão geral é a de que a instituição clássica e napoleônica do Juiz de

Instrução, como dono e senhor da investigação e das medidas cautelares, está em franca

decadência, e já se abandonou ou está praticamente abandonada na maioria dos sistemas penais

europeus (Alemanha, Portugal e Itália). Na própria França, ela foi progressivamente

marginalizada. Inclusive em países (v.g. Espanha) em que ainda persiste o Juiz de Instrução, há

uma tendência acentuada no sentido de confiar ao Promotor atividades essenciais de investigação

e persecução da criminalidade e a criação da figura do “juiz de garantias”.22 A convicção é que esse

modelo clássico já não serve. É necessário que o processo seja o próprio de um Estado

Democrático de Direito, cabendo propor que o Ministério Público não somente seja a autoridade

encarregada da investigação criminal (tal como já ocorre em países do sistema continental

20 GREENWOOD et alii. The Criminal Investigation Process. A Summary Police Analysis, cf. RICO, José Mª; SALAS, Luis. Inseguridad ciudadana y policia. Madrid: Tecnos, 1988. p. 117.

21 RICO, José Mª; SALAS, Luis. Inseguridad ciudadana y policia cit., p. 191-192.

22 SANGUINÉ, Odone. Prisión provisional y derechos fundamentales. Valencia: Tirant lo Blanch, 2003. p. 607 ss.; VV.AA. Sistemas de proceso penal en Europa cit., p. 15 ss., passim; VV.AA. Processo penal e direitos do homem cit., p. 255 ss. Porém, isso não impede a intervenção do Ministério Público no processo ordinário por delitos graves, correspondendo-lhe a inspeção direta da formação do sumário, que levará a cabo por si mesmo ou por meio dos auxiliares ao lado do Juiz, com a faculdade de solicitar a prática de diligências que se estimem necessárias. No âmbito do procedimento abreviado, corresponde ao Ministério Público não somente a inspeção ou controle da investigação, mas, também dar instruções à polícia judiciária, aportar meios de prova etc. (ARMENTA DEU, Teresa. Lecciones de Derecho Procesal Penal. Madrid/Barcelona: Marcial Pons, 2003. p. 99-100). A recente reforma parcial da Ley de Enjuiciamiento Criminal espanhola operada pela Lei 38, de 24 de outubro de 2002, não modificou em nada a situação existente em relação aos papéis do Juiz Instrutor e do Ministério Público concernente à instrução criminal. Entretanto, atribui um maior protagonismo à Polícia Judiciária, atribuindo-lhe praticamente a instrução em bloco de determinadas hipóteses. A opção legislativa abala um pouco os fundamentos do sistema e não deixa de suscitar mais um receio (RAMOS MÉNDEZ, Francisco. Enjuiciamiento Criminal. Séptima Lectura Constitucional. Barcelona: Atelier, 2004. p. 34).

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europeu, como Alemanha, Itália e Portugal), mas o diretor ou dono absoluto desta. Essa

modificação fundamenta-se basicamente em três aspectos de suma importância: 1.º) a instrução

por parte do Juiz é puramente inquisitiva, incompatível no processo penal próprio de um Estado

de Direito que exige o modelo de processo acusatório; 2.º) a necessidade, por colidir com o

princípio de economia processual, de evitar reiteração de atividades processuais, pois as mesmas

que pratica o Promotor as executa também o juiz instrutor, ou ao inverso, conseguindo, com isso,

uma notável celeridade do processo penal; 3.º) o argumento mais importante, a favor da instrução

pelo Ministério Público, consiste em que não pode ser a mesma pessoa a que considere necessário

um ato de instrução e a que valore sua legalidade. O Ministério Público deve, portanto, assumir a

instrução, atribuindo-se-lhe o poder de investigar o crime, enquanto que o Juiz deve ficar como

controlador da legalidade dos atos processuais realizados pelo Promotor, geralmente através de

petições e dos recursos, de maneira que se fortaleça notavelmente a imparcialidade judicial.

A rápida análise comparada de seis sistemas nacionais (Alemanha, Itália, Bélgica, França,

Inglaterra e Portugal) do sistema continental europeu, revela, em síntese, os seguintes aspectos

basilares na relação de equilíbrio de poderes entre o Ministério Público, polícia e magistratura, na

etapa investigatória: as legislações dos países mencionados – exceto a Inglaterra – admitem a

supremacia do Ministério Público como órgão de direção da fase preparatória da ação penal. Ditos

países salvaguardam a função de direção investigativa ao Ministério Público, concebido como o

principal motor da fase preparatória. Essa supremacia exprime-se, por um lado, no fato de que

não existe qualquer ato da investigação que não possa ser realizado pelos membros do Ministério

Público, o que significa, a contrario sensu, que não existe poder exercitado pela polícia que não

pertença também a ele; esses países não atribuem à polícia, a título exclusivo, qualquer dos atos

investigativos da fase preparatória; nenhuma investigação está, nesses países continentais,

reservada unicamente à polícia, a qual intervém, de fato, como órgão executivo por força de uma

diretriz do Ministério Público, e, de regra, controlado por este. Não é demasia recordar que, nos

vários países, o primeiro dos poderes próprios do Ministério Público consiste em dirigir a polícia

no curso das investigações. Dito isso, sublinhamos que, se um grande número de investigações são

indiferentemente desenvolvidas pelo Ministério Público ou pela polícia, nem todos os atos

realizados no quadro da fase preparatória são comuns aos dois órgãos. O Ministério Público

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dispõe, de fato, de poderes próprios, ou seja, de atribuições exclusivas que a polícia não pode

exercitar, v.g., o comparecimento forçado de testemunhas, a escolha de peritos, a prorrogação da

detenção etc., isso sem mencionar os poderes que detém com exclusividade na fase da ação

penal.23

Apesar de, nos mencionados países europeus, ser o Ministério Público quem dirige as

forças policiais durante toda a duração da fase preparatória, na prática, porém, constata-se,

amiúde, que essa dependência funcional é mais teórica que real, e que a polícia goza

frequentemente, de fato, de uma verdadeira autonomia.24 Não obstante, constata-se há longo

tempo, em diversos desses Países, que o Ministério Público, operativamente, intervém muito

pouco. As intervenções são raras, limitando-se a decidir sobre o conteúdo do expediente

confeccionado pela polícia.25

Cabe recordar que a tendência clara de reforma das legislações recentes se orienta no

sentido de reforçar o papel do Ministério Público. Assim, o Código de Processo Penal Italiano

vigente, desde 1988, ao tornar o MP o dominus da investigação preliminar, reduziu

consideravelmente o risco de interferência direta de parte do Poder Executivo.26 No continente

europeu, os textos legais aprovam o poder do Ministério Público de dirigir integralmente a fase

preparatória do expediente, enquanto na Inglaterra o “Prosecutor” exercita um papel somente na

conclusão dessa fase inicial. A tarefa do Ministério Público é, em todo caso, a de garantir a

legalidade processual: e porque a sua vocação consiste em prevenir a arbitrariedade, o Ministério

Público dirige e encerra a investigação no continente, e reexamina as conclusões da polícia na

Inglaterra. Em suma, a criação ou revigoramento do Ministério Público respondeu a exigências de

introduzir ou reforçar a garantia de imparcialidade da fase preparatória e de evitar a

arbitrariedade.27

23 VV.AA. Procedure penali D’Europa cit., p. 396 ss.

24 Idem, p. 415.

25 Idem, p. 413.

26 Idem, p. 416.

27 Idem, p. 417.

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Historicamente, na Alemanha, até o início do Século XIX, a confusão das funções

judiciárias nas mãos do Inquisidor tornou-se intolerável. Não somente a criação do Ministério

Público permite separar as funções de instrução e de julgamento, mas o procurador, na sua

qualidade de “guardião da lei” deve também agir de modo que nenhum culpado escape à pena e

que não seja processado nenhum inocente. Na França, na metade da década de cinquenta do

Século XX, os operadores jurídicos denunciaram os abusos cometidos no exercício da ação pública

por alguns membros da polícia e projetaram purificar a atmosfera, reforçando o controle por parte

dos magistrados da procuradoria. O CPP francês de 1958 acolheu essa proposta. Na Inglaterra, o

legislador de 1985 estimou que as funções de investigação e a decisão de exercitar a ação penal

eram por sua natureza incompatíveis e não podiam pertencer a uma mesma autoridade: a solução

foi a criação do “Crown Prosecution Service”, que deveria dispor da objetividade necessária para

verificar a adequação das provas no momento de pronunciar-se sobre a ação penal. Na Bélgica,

cogita-se também a reforma do “Code d”instruction Criminelle”, preconizando um controle

reforçado por parte do Ministério Público sobre os serviços da polícia, a fim de ampliar as

garantias democráticas. Portanto, o temor de um Ministério Público “subjugado” pela polícia

encontra já ampla resposta na realidade dos países europeus.28

5. A legitimação da investigação pelo Ministério Público no Estado Democrático

de Direito

5.1. Argumentos criminológicos

A criminologia demonstrou ser em absoluto irrealista qualquer expectativa de “total

enforcement”, isto é, a resposta policial contra toda e qualquer criminalidade. Para isso influem,

seguramente, a escassez de meios, as resistências decorrentes das concepções ideológicas e das

representações teóricas dos próprios policiais, bem como das várias formas de corrupção. As

28 VV.AA. Procedure penali D’Europa cit., p. 417-419.

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investigações empíricas revelam as elevadíssimas cifras negras (“dark number”) da criminalidade

não investigada ou não esclarecida pela polícia.29

Aliás, há um consenso na comunidade jurídica de que o vigente modelo de investigação

até pouco tempo confiado à polícia não é eficaz na investigação e elucidação dos crimes.

Esse quadro estatístico concernente à criminalidade global, em que predominam os

denominados crimes de rua (“street crimes”), agrava-se em virtude da escassa apuração e/ou

punição da criminalidade não convencional, ou seja, dos crimes corporativos (“corporate and

white-collar crimes”), do crime organizado (“organized crime”) e do crime organizado transnacional

(“transnational organized crime”), cometidos com especial conhecimento técnico e profissional por

agentes que desfrutam de elevada posição de poder socioeconômico dificultando, assim, a

investigação e punição dessas atividades criminosas.

5.2 Argumentos de política criminal

A opinião pública e a comunidade jurídica internacional, indubitavelmente, legitimam a

investigação criminal e o controle da atividade policial pelo Ministério Público. Os membros da

Associação Internacional de Direito Penal, reunidos no encontro preparatório de Berna, em abril

de 1988, elaboraram uma resolução – aprovada pelo Congresso da Associação Internacional de

Direito Penal (AIDP), de Viena, em outubro de 1989 – recomendando a necessidade de que os

órgãos de investigação atuem sob a direção e o controle de uma autoridade de persecução ou de

julgamento.30 Igualmente, o 8.º Congresso da ONU sobre a Justiça Penal e o Tratamento dos

Delinquentes, realizado em Havana, Cuba, em 1990, em sua recomendação n. 11, atribui ao

Ministério Público a realização de "investigações criminais no caso de delitos cometidos por

agentes de Estado, nomeadamente atos de corrupção, de abuso de poder, de violações graves dos

direitos humanos e outras infrações reconhecidas pelo direito internacional". Também o “Corpus

29 FIGUEIREDO DIAS, Jorge de; COSTA ANDRADE, Manuel da. Criminologia. O homem delinqüente e a sociedade criminógena. Coimbra: Coimbra Ed., 1984. p. 444 ss.

30 VV.AA. Procedure penali D’Europa cit., p. 419.

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Iuris” se refere ao futuro Ministério Público Europeu, que disporia de amplos poderes de

investigação em todo o território comunitário.31 Finalmente, nos crimes de competência do

recém-instalado Tribunal Penal Internacional, o Ministério Público tem o dever de realizar a

investigação e persecução penal, incluindo-se aí – numa tendência moderna de transcender sua

posição de parte acusadora a uma postura de imparcialidade – o dever de investigar e de coletar e

examinar todas as circunstâncias incriminadoras e as excludentes, podendo determinar o

comparecimento e interrogatório dos indivíduos sob investigação, as vítimas e testemunhas (arts.

53 e 54, do Estatuto de Roma do TPI, de 1998).

Na América Latina, há um exemplo bem recente que sinaliza que a tendência legislativa

também se afina com o sistema continental europeu. No Chile, além de previsto expressamente

na Constituição, o recente Código de Processo Penal, em vigor a partir de 2000, estabelece que o

Ministério Público dirigirá em forma exclusiva a investigação dos fatos constitutivos de delito, os

que determinarem a participação punível e os que comprovarem a inocência do imputado (art.

3.º). Os Promotores praticarão todas as diligências que forem conducentes ao êxito da

investigação e dirigirão a atividade da polícia (art. 77). A polícia de investigações é auxiliar do

Ministério Público nas tarefas de investigação (art. 79); seus funcionários executarão suas tarefas

sob a direção e responsabilidade dos Promotores e de acordo com as instruções que estes derem

para os efeitos da investigação, sem prejuízo de sua dependência das autoridades da instituição a

que pertencerem (art. 80).

5.3 Argumentos normativos: a tendência jurisprudencial do STF

Não só os subsídios coligidos nos sistemas comparados, mas também a melhor

hermenêutica constitucional legitima a investigação pelo Ministério Público.

Com efeito, no Brasil, a fisionomia do Ministério Público vem delineada pela

Constituição Federal no Capítulo IV, arrolada entre as “funções essenciais à Justiça”, como

31 BUENO ARÚS, Francisco; MIGUEL ZARAGOZA, Juan de. Manual de derecho penal internacional. Madrid: UPC, 2003. p. 64.

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instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da

ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis (art.

127, CF). Além disso, a Constituição cuidou de assegurar-lhe uma série de garantias e

prerrogativas, entre as quais sobressai a autonomia funcional e administrativa (§ 2.º, art. 127, CF),

a vitaliciedade, a inamovibilidade e a irredutibilidade de subsídio (art. 128, CF). Por último, mas

não menos relevante, a Carta Magna, no seu art. 129, expressamente atribuiu ao Ministério

Público as funções institucionais de “promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da

lei” (inc. I), “promover o inquérito civil e a ação civil pública” (inc. III), “exercer o controle externo

da atividade policial” (inc. VII), “requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito

policial” (inc. VIII) e “exercer outras funções que lhe forem conferidas, desde que compatíveis

com sua finalidade” (inc. IX). Ora, todas essas funções restam esvaziadas se a Polícia detém o

monopólio da investigação criminal que desemboca no vetusto e jurássico inquérito policial.

A Constituição Federal concebeu a “segurança pública” como “dever do Estado, direito e

responsabilidade de todos”, exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das

pessoas e do patrimônio”, por meio da polícia federal, rodoviária, ferroviária, civil e militar (art.

144 da CF). Entretanto, a Carta Magna somente diz que a exclusividade da Polícia Federal se

refere ao exercício de Funções de Polícia Judiciária da União, mas não para investigações. Por

outro lado, a incumbência à Polícia Civil dos Estados das funções de polícia judiciária e a

apuração de infrações penais foi conferida sem o caráter de exclusividade. Não fosse assim, sequer

estaria recepcionado o art. 4.º do CPP, que permite a apuração de infrações por outras

autoridades administrativas. Ao fazer uma investigação no âmbito de suas atribuições, não exerce

o Ministério Público atividade de polícia judiciária, mas simplesmente atividade de investigação,

diversa do inquérito policial, de maneira semelhante à que o particular também pode fazer.

Invalidar elementos colhidos pela investigação ministerial implicaria o absurdo de desconsiderar

elementos de convicção obtidos inclusive em inquérito civil autorizado pela Carta Magna.32

32 Vid., com detalhes, por todos, BARCELOS DE SOUZA, José. Investigação direta pelo Ministério Público. Revista do IBCCRIM, n. 44, p. 364 ss.

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Ademais, a Constituição Federal conferiu ao Ministério Público o controle externo da polícia e a

indispensável independência funcional para fazer frente às pressões políticas e econômicas,

situando a instituição entre as funções essenciais à Justiça. O princípio constitucional da eficiência

(art. 37 da CF) da administração da justiça, no caso, na persecução criminal, ficaria comprometido

se o Ministério Público ficasse ornamentando a Constituição como figura meramente decorativa,

na medida em que seria um controle externo puramente nominal ou simbólico, sem nenhuma

concretização fática, se permanecesse impassível sem poder investigar, quando a polícia, por

inércia, pressão do poder político ou econômico ou outro interesse espúrio, ficasse impossibilitada

de agir por falta de garantias. No Estado Democrático de Direito tampouco é aceitável que o

Ministério Público figure tão somente como instrumento cego, quase subserviente, da “informatio

delicti” produzida pela polícia. Concepções antigas baseadas no CPP elaborado no auge da

ideologia Fascista, quando predominava o Estado de Polícia, devem ser erradicadas, por

intermédio de uma hermenêutica constitucional evolutiva e sistemática, na medida em que a

Constituição de 1988 acolheu outro modelo ancorado no Estado Democrático de Direito.

A especial posição de “independência funcional” do Ministério Público em relação ao

Executivo e às pressões de toda ordem, ao contrário da falta de garantias da polícia em relação ao

poder político e econômico, aconselha que o MP possa realizar, por si mesmo, ou em conjunto

com a Polícia, investigações circunscritas a esse tipo de criminalidade, mas tão somente em caráter

excepcional, justificado em cada caso, incluindo-se nesse rol os crimes de corrupção de

funcionários, inclusive policiais, bem como os crimes cometidos por autoridades pertencentes ao

Poder Executivo e Político, ao qual a polícia está subordinada diretamente.

Não obstante, seria errôneo atribuir, como regra geral, ao Ministério Público o papel ou as

funções de polícia, pois, indubitavelmente, destruiria a função constitucional do Ministério

Público baseada na imparcialidade e compromisso com os direitos fundamentais. Com efeito, a

lógica da polícia é uma lógica persecutória: ela tem a missão de encontrar os culpados, não os

inocentes.33 Não parece adequado e nem suscetível de execução prática que o Ministério Público

possa e deva substituir a atividade de investigação policial, assumindo as funções cotidianas da

33 BAUMANN, Jürgen. Derecho procesal penal cit., p. 168; VV.AA. Procedure penali D’Europa cit., p. 420.

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polícia ou a direção de inquérito policial, enquanto persista o atual modelo, exercendo aí as

atribuições de Delegado de Polícia, emitindo ordens diretamente aos escrivães e inspetores de

polícia.

No esquema da Constituição Federal, a polícia está inserida como instituição integrante

da segurança pública, enquanto a função primordial do Ministério Público vem desenhada pela

Constituição Federal com instituição essencial à justiça, “incumbindo-lhe a defesa da ordem

jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”. A “independência

funcional” deriva logicamente como princípio institucional (art. 127 da CF), assim como as

garantias da “vitaliciedade”, “inamovibilidade” e “irredutibilidade de subsídio” (art. 128, inc. V,

alíneas “a”, “b” e “c”, da CF).

Por conseguinte, as regras existentes nos sistemas jurídicos examinados são consentâneas

com o nosso modelo constitucional na medida em que: (a) conferem ao Ministério Público o

poder de direção das atividades da polícia (controle externo) e de realizar investigações, geralmente

por meio de funcionários policiais ou, em caráter excepcional, diretamente. A dedução evidente é

que quanto maior a autonomia de que a polícia dispõe na elaboração da investigação, mais o

controle do Ministério Público corre o risco de não ser senão um órgão meramente

“homologatório”34; (b) o próprio Ministério Público deve investigar para obter não só os elementos

acusatórios, mas também os favoráveis à defesa, tal como exigem, v. g., a legislação Alemã e a

Italiana35 e o Estatuto do TPI, o que guarda coerência com a sua posição constitucional de função

essencial à justiça para coibir abusos e evitar a arbitrariedade, principalmente a garantia de

independência funcional em relação ao Executivo; (c) como a Constituição Federal não vedou

expressamente o exercício eventual e excepcional pelo Ministério Público do poder de

investigação criminal, ele resulta implícito de uma interpretação sistemática e teleológica,

avalizada, como vimos, pelo método comparativo, desde que se justifique, motivadamente, em

34 VV.AA. Procedure penali D’Europa cit., p. 420.

35 VV.AA. Procedure penali D’Europa cit., p. 418-419.

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cada caso, com base em circunstâncias fáticas, o exercício anômalo desse poder investigatório nos

casos de omissão ou impossibilidade de investigação policial. Isso decorre fundamentalmente do

plexo das funções e garantias institucionais albergadas nos arts. 127-129 da Constituição Federal.

Nessa hipótese, os membros do Ministério Público que tiverem atuado na investigação estarão,

sempre, impedidos de atuar na fase subsequente da persecução penal para preservar sua

independência funcional e imparcialidade prevista na Constituição Federal.

6. O recente Projeto de Emenda Constitucional (PEC) n. 37

A PEC n. 37/2011, da relatoria do Deputado Federal Lourival Mendes, já aprovada pela

Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, mas ainda pendente de votação

pelo Plenário da casa antes de ser enviada ao Senado Federal, visa acrescentar um § 10 ao art. 144

da Constituição Federal para definir a competência para a investigação criminal pelas polícias

federal e civil dos Estados e do Distrito Federal, estabelecendo “verbis”: “Art. 144. § 10. A

apuração das infrações penais de que tratam os §§ 1.º e 4.º deste artigo, incumbem privativamente às

polícias federal e civis dos Estados e do Distrito Federal, respectivamente.”

Na justificação do Projeto, consta que “o inquérito policial é o único instrumento de

investigação criminal que, além de sofrer o ordinário controle pelo juiz e pelo promotor, tem prazo

certo, fator importante para a segurança das relações jurídicas.

A falta de regras claras definindo a atuação dos órgãos de segurança pública neste processo tem

causado grandes problemas ao processo jurídico no Brasil. Nessa linha, temos observado procedimentos

informais de investigação conduzidos em instrumentos sem forma, sem controle e sem prazo, condições

absolutamente contrárias ao Estado de Direito vigente (...omissis...). “Ao Ministério Público nacional

são confiadas atribuições multifárias de destacado relevo, ressaindo, entre tantas, a de fiscal da lei. A

investigação de crimes, entretanto, não está incluída no círculo de suas competências legais.

(...omissis...) Não engrandece nem fortalece o Ministério Público o exercício de atividade investigatória

de crimes, sem respaldo legal, revelador de perigoso arbítrio, a propiciar o sepultamento de direitos e

garantias inalienáveis dos cidadãos.

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O êxito das investigações depende de um cabedal de conhecimentos técnico-científicos de que não dispõe

os integrantes do Ministério Público e seu corpo funcional. As instituições policiais são as únicas que

contam com pessoal capacitado para investigar crimes e, dessarte, cumprir com a missão que lhe outorga

o art. 144 da Constituição Federal (...omissis...)”.

Como se pode observar, os principais fundamentos da PEC n. 37/2011 são a falta de

previsão de regras expressas sobre o procedimento e o poder investigativo conduzido pelo

Ministério Público, bem como sobre suposta falta de condições técnico-científicas para uma eficaz

e adequada condução das investigações.

Tais argumentos, contudo, são facilmente refutáveis.

Com efeito, quanto à falta de regras que prevejam a forma da investigação criminal feita

pelo órgão ministerial, trata-se de circunstância que não justifica a vedação ao poder investigativo

do Ministério Público, mas, quando muito, exige que o Poder Legislativo edite lei específica

regulamentando a matéria, tal como procurou fazê-lo a Resolução n. 13 do Conselho Nacional do

Ministério Público (CNMP) ao buscar delimitar o procedimento investigatório de forma

adequada e suficiente, razão pela qual tal argumento não se sustenta.

Por outro lado, o Ministério Público está sim aparelhado com conhecimentos técnico-

científicos suficientes para bem conduzir uma investigação criminal. Por exemplo, no Estado de

São Paulo, a instituição conta com órgãos como o Centro de Apoio Operacional à Execução

(CAEX), que oferece suporte técnico-operacional e serviços de informação/inteligência às

Promotorias e Procuradorias de Justiça do Estado, visando à melhoria da “performance” do

Ministério Público no cumprimento da sua missão constitucional. Dentre outros procedimentos,

o CAEX realiza pesquisas para localização de pessoas e elabora relatórios sobre crimes de

“lavagem” ou ocultação de bens, direitos e valores, mostrando-se uma eficiente ferramenta para o

controle da criminalidade.

Finalmente, a questão da falta de previsão expressa do poder de investigação pelo

Ministério Público já foi afastada pelo Supremo Tribunal Federal, com base na conhecida “Teoria

dos Poderes Implícitos”.

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7. Conclusão

O Projeto de Emenda Constitucional 37/2011 significa um notável retrocesso, indo na

contramão das modernas legislações da União Europeia e dos Estados Unidos.

Ademais, também colide com a mais recente tendência jurisprudencial do Supremo

Tribunal Federal – não obstante ainda pendente de julgamento a questão por seu órgão Pleno –,

que vem reconhecendo a legitimidade do Poder Investigatório do Ministério Público.

Os argumentos que conferem legitimidade constitucional vão sendo paulatinamente

explicados pelo Supremo Tribunal Federal em diversos arestos, dos quais destacamos duas

ementas elucidativas:

(a) “Possibilidade de investigação do Ministério Público. Excepcionalidade do caso. Não há

controvérsia na doutrina ou jurisprudência no sentido de que o poder de investigação é inerente ao

exercício das funções da polícia judiciária – Civil e Federal –, nos termos do art. 144, § 1.º, IV, e §

4.º, da CF. A celeuma sobre a exclusividade do poder de investigação da polícia judiciária perpassa a

dispensabilidade do inquérito policial para ajuizamento da ação penal e o poder de produzir provas

conferido às partes. Não se confundem, ademais, eventuais diligências realizadas pelo Ministério

Público em procedimento por ele instaurado com o inquérito policial. E esta atividade preparatória,

consentânea com a responsabilidade do poder acusatório, não interfere na relação de equilíbrio entre

acusação e defesa, na medida em que não está imune ao controle judicial – simultâneo ou posterior. O

próprio Código de Processo Penal, em seu art. 4.º, parágrafo único, dispõe que a apuração das infrações

penais e da sua autoria não excluirá a competência de autoridades administrativas, a quem por lei seja

cometida a mesma função. À guisa de exemplo, são comumente citadas, dentre outras, a atuação das

comissões parlamentares de inquérito (CF, art. 58, § 3.º), as investigações realizadas pelo Conselho de

Controle de Atividades Financeiras – COAF (Lei 9.613/98), pela Receita Federal, pelo Bacen, pela

CVM, pelo TCU, pelo INSS e, por que não lembrar, mutatis mutandis, as sindicâncias e os processos

administrativos no âmbito dos poderes do Estado. Convém advertir que o poder de investigar do

Ministério Público não pode ser exercido de forma ampla e irrestrita, sem qualquer controle, sob pena

de agredir, inevitavelmente, direitos fundamentais. A atividade de investigação, seja ela exercida pela

Polícia ou pelo Ministério Público, merece, por sua própria natureza, vigilância e controle. O pleno

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conhecimento dos atos de investigação, como bem afirmado na Súmula Vinculante 14 desta Corte,

exige não apenas que a essas investigações se aplique o princípio do amplo conhecimento de provas e

investigações, como também se formalize o ato investigativo. Não é razoável se dar menos formalismo à

investigação do Ministério Público do que aquele exigido para as investigações policiais. Menos

razoável ainda é que se mitigue o princípio da ampla defesa quando for o caso de investigação

conduzida pelo titular da ação penal. Disso tudo resulta que o tema comporta e reclama disciplina

legal, para que a ação do Estado não resulte prejudicada e não prejudique a defesa dos direitos

fundamentais. É que esse campo tem-se prestado a abusos. Tudo isso é resultado de um contexto de falta

de lei a regulamentar a atuação do Ministério Público. No modelo atual, não entendo possível aceitar

que o Ministério Público substitua a atividade policial incondicionalmente, devendo a atuação dar-se

de forma subsidiária e em hipóteses específicas, a exemplo do que já enfatizado pelo Min. Celso de

Mello quando do julgamento do HC 89.837/DF: “situações de lesão ao patrimônio público, (...)

excessos cometidos pelos próprios agentes e organismos policiais, como tortura, abuso de poder, violências

arbitrárias, concussão ou corrupção, ou, ainda, nos casos em que se verificar uma intencional omissão

da Polícia na apuração de determinados delitos ou se configurar o deliberado intuito da própria

corporação policial de frustrar, em função da qualidade da vítima ou da condição do suspeito, a

adequada apuração de determinadas infrações penal” (STF, HC 84965/MG, 2.ª T., rel. Min.

Gilmar Mendes, j. 13.12.2011, DJe 11.04.2012);

(b) “Legitimidade do órgão ministerial público para promover as medidas necessárias à

efetivação de todos os direitos assegurados pela Constituição, inclusive o controle externo da

atividade policial (incisos II e VII do art. 129 da CF/88). Tanto que a Constituição da República

habilitou o Ministério Público a sair em defesa da Ordem Jurídica. Pelo que é da sua natureza

mesma investigar fatos, documentos e pessoas. Noutros termos: não se tolera, sob a Magna Carta

de 1988, condicionar ao exclusivo impulso da Polícia a propositura das ações penais públicas

incondicionadas; como se o Ministério Público fosse um órgão passivo, inerte, à espera de

provocação de terceiros. 2. A Constituição Federal de 1988, ao regrar as competências do Ministério

Público, o fez sob a técnica do reforço normativo. Isso porque o controle externo da atividade policial

engloba a atuação supridora e complementar do órgão ministerial no campo da investigação criminal.

Controle naquilo que a Polícia tem de mais específico: a investigação, que deve ser de qualidade. Nem

insuficiente, nem inexistente, seja por comodidade, seja por cumplicidade. Cuida-se de controle técnico

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ou operacional, e não administrativo-disciplinar. 3. O Poder Judiciário tem por característica central a

estática ou o não-agir por impulso próprio (ne procedat iudex ex officio). Age por provocação das

partes, do que decorre ser próprio do Direito Positivo este ponto de fragilidade: quem diz o que seja ‘de

Direito’ não o diz senão a partir de impulso externo. Não é isso o que se dá com o Ministério Público.

Este age de ofício e assim confere ao Direito um elemento de dinamismo compensador daquele primeiro

ponto jurisdicional de fragilidade. Daí os antiquíssimos nomes de ‘promotor de justiça’ para designar o

agente que pugna pela realização da justiça, ao lado da ‘procuradoria de justiça’, órgão congregador de

promotores e procuradores de justiça. Promotoria de justiça, promotor de justiça, ambos a pôr em

evidência o caráter comissivo ou a atuação de ofício dos órgãos ministeriais públicos. 4. Duas das

competências constitucionais do Ministério Público são particularmente expressivas dessa índole ativa

que se está a realçar. A primeira reside no inciso II do art. 129 (‘II – zelar pelo efetivo respeito dos

poderes públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição,

promovendo as medidas necessárias à sua garantia’). É dizer: o Ministério Público está autorizado pela

Constituição a promover todas as medidas necessárias à efetivação de todos os direitos assegurados pela

Constituição. A segunda competência está no inciso VII do mesmo art. 129 e traduz-se no ‘controle

externo da atividade policial’. Noutros termos: ambas as funções ditas ‘institucionais’ são as que melhor

tipificam o Ministério Público enquanto instituição que bem pode tomar a dianteira das coisas, se

assim preferir” (STF, HC 97969/RS, 2.ª T., rel. Min. Ayres Britto, j. 1.º.02.2011, DJe

23.05.2011).

Por fim, convém salientar que no HC 84.548 – cujo julgamento pelo órgão Pleno do STF

foi interrompido por pedido de vista do Ministro Ricardo Lewandowski –, dentre os onze

Ministros que compõem a Corte, oito já votaram e desses sete já se manifestaram pela

legitimidade constitucional do poder de investigação do Ministério Público.

Como todo poder deve ser submetido a controles, o STF vem ressalvando, com razão,

que: (a) esse “poder de investigar do Ministério Público não pode ser exercido de forma ampla e

irrestrita, sem qualquer controle, sob pena de agredir, inevitavelmente, direitos fundamentais”; (b) essa

“atividade de investigação, seja ela exercida pela Polícia ou pelo Ministério Público, merece, por sua

própria natureza, vigilância e controle”; (c) há necessidade de uma “disciplina legal, para que a ação

do Estado não resulte prejudicada e não prejudique a defesa dos direitos fundamentais. A atuação deve

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ser subsidiária e em hipóteses específicas” (STF, HC 91613/MG, 2.ª T., rel. Min. Gilmar Mendes, j.

15.05.2012, DJe 17.09.2012).

Portanto, urge que o retrógrado Projeto de Emenda Constitucional (PEC N. 37/2011)

seja rejeitado porque significa um retrocesso do Estado Democrático de Direito ao antigo Estado

de Polícia. A sua aprovação produziria uma perigosa insegurança jurídica aos cidadãos,

especialmente neste momento tão importante vivenciado pelo Brasil em que assistimos a um

eficaz controle à corrupção e à criminalidade dos poderosos, notadamente do colarinho branco

(“white-collar crimes”) e dos crimes cometidos pelos entes coletivos (“corporate crimes”). A tarefa

das investigações criminais não pode ficar reservada, com exclusividade, às agências policiais que

não possuem estrutura sequer para o controle dos crimes de rua (“street crimes”) e tampouco a

necessária independência das altas esferas do poder político e econômico.

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A possibilidade de redução da pena aquém do mínimo legal pelo reconhecimento de circunstâncias atenuantes: uma nova leitura da função dos marcos penais1

Bruno Salles Pereira Ribeiro Mestrando em Direito Penal pela FDUSP.

Coordenador-Chefe da Tribuna Virtual IBCCRIM. Advogado criminalista.

Resumo: Este artigo procurou analisar os posicionamentos doutrinários e jurisprudenciais acerca das modulações dosimétricas da pena advindas do reconhecimento de atenuantes, agravantes, minorantes e majorantes. Nesse sentido, procedeu-se uma minuciosa análise histórica das decisões proferidas pelos Tribunais Superiores nacionais, com vistas a identificar os fundamentos das decisões que conformaram um posicionamento jurisprudencial quase unanime no sentido de que é vedada a diminuição da pena aquém do mínimo legal por conta do reconhecimento de circunstâncias atenuantes. Ao final, entendemos que mencionada diminuição não só é possível atualmente, como pode complementar o sistema de aplicação das penas, na medida em que se faça uma nova leitura da função dos marcos penais. Palavras-chave: Pena; Pena mínima; Aplicação; Dosimetria; Circunstâncias; Atenuantes; Agravantes; Causas de aumento; Causas de diminuição; Métodos de Aplicação; Princípio da legalidade; Princípio da individualização da pena; Princípio da proporcionalidade; Segurança jurídica; Marcos penais. Abstract: This paper tried to analyze the doctrinarian and jurisprudential positions for sentence time calculation based on the recognition of mitigating circumstance, aggravating circumstance, causes for sentence increase and causes for sentence reduction. For this purpose, an accurate historical analysis was carried out on the decisions made by the national supreme courts so as to identify the grounds for decisions which have confirmed an almost unanimous jurisprudential position in the sense that the reduction of sentences below the legal minimum amount established by law due to the recognition of mitigating circumstances is rejected. At the end, we understood that the reduction here mentioned is not only possible currently, but can also complement the system of sentence application, provided that a new reading of legal framework function is done. Key words: sentence; minimal sentence; application; sentence time calculation; circumstances; mitigating circumstance; aggravating circumstance; causes for sentence increase; causes for

1 Este artigo foi elaborado como trabalho de conclusão da disciplina Princípios Constitucionais Penais aplicados, ministradas no curso de pós-graduação da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo pelas professoras Mariângela Gama de Magalhães Gomes e Helena Regina Lobo da Costa, a quem agradeço pelas lições e orientações. Agradecimentos que estendo a todos os que ao meu lado participaram das intensas discussões suscitadas nas aulas.

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sentence reduction; methods of application; principle of legality; principle of sentence individualization; principle of proportionality; legal safety; criminal framework. Sumário: 1. Introdução; 2. Métodos de aplicação da pena. Circunstâncias judiciais, circunstâncias legais e causa de diminuição e de aumento de pena; 3. Impossibilidade de redução: 3.1 Origem; 3.2 Fundamentos atuais: 3.2.1 Respeito ao princípio da legalidade; 3.2.2 Possibilidade de aumento no caso de agravantes; 3.2.3 Segurança jurídica; 4. Possibilidade de redução: 4.1 Origens; 4.2 Fundamentos: 4.2.1 Princípio da individualização da pena; 4.2.2 Outra vez o princípio da legalidade; 5. Tratamento jurisprudencial; 6. Possibilidade da diminuição aquém do mínimo legal, sem o correspondente aumento além do máximo. Análise da função dos marcos penais; 7. Conclusão. 8. Referência bibliográfica.

1. Introdução

Este trabalho se dedicará à analise dos motivos pelos quais a jurisprudência dos Tribunais

Superiores vem considerando inadmissível a fixação de pena privativa de liberdade aquém do

mínimo legal, cominado pelo preceito secundário dos tipos penais, ainda que se reconheça a

existência de circunstância atenuante da pena.

O estudo pretende contribuir para expansão da temática, analisando as ratio decidendis de

julgados do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, tomando-se os

argumentos expendidos nos arestos como base da discussão que se desenvolve em torno do

relevante assunto.

Esclareça-se, contudo, que o trabalho não se cingirá somente às razões adotadas pelos

Tribunais, analisando-se, com vista aos fins projetados, também as posições doutrinárias que se

fixaram sobre o assunto, mormente aquelas estabelecidas após a entrada em vigor da Reforma da

Parte Geral do Código Penal, realizada em 1984.

Com efeito, o antagonismo entre as posições dominantes na jurisprudência e na doutrina

pátria é que dará a tônica da questão sobre a qual se debruçará a dissertação: enquanto se vê

absolutamente pacífico na jurisprudência ser impossível a redução aquém do mínimo legal pelo

reconhecimento de circunstâncias atenuantes, na doutrina especializada observa-se posição

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majoritária no sentido de que tal diminuição não só é possível, como seu não reconhecimento

afronta os cânones constitucionais estabelecidos na Carta Maior de 1988.

Variados são os argumentos utilizados tanto pelos que defendem a diminuição da pena,

como pelos que a execram. Da necessidade de uma nova interpretação constitucional das normas

penais à mera repetição de precedentes imemoriais, sortidos são os fundamentos utilizados para a

defesa da posição tomada quanto à resolução da questão levantada, de modo que, muitas vezes,

observamos grande confusão nos conceitos utilizados e fundamentos antagônicos guiados em uma

mesma direção.

Tendo em vista a complexidade do assunto, o trabalho será dividido de acordo com as

duas grandes correntes de pensamento sobre o tema levantado. Dentro de cada um desses ramos,

destacaremos os principais fundamentos aventados para seus sustentos, analisando, ainda que de

forma não exaustiva, os argumentos levantados por doutrinadores e magistrados.

Ao final do trabalho, por meio de uma releitura das funções dos marcos da quantidade de

pena inseridos no preceito secundário dos tipos penais, procuraremos apresentar as razões pelas

quais se demonstra descabida a proibição da diminuição da pena aquém do mínimo legal,

defronte ao reconhecimento de circunstância que deve atenuar a pena.

2. Métodos de aplicação da pena. Circunstâncias judiciais, circunstâncias legais e causa de

diminuição e de aumento de pena

Antes que possamos adentrar efetivamente ao tema selecionado, devemos recuar alguns

anos no tempo, pois é na disciplina sobre os métodos de aplicação da pena da parte geral do

Código Penal de 1940 onde se encontrará a origem dos problemas que deveremos enfrentar.

Em 1977, Damásio de Jesus ponderava que as circunstâncias agravantes e atenuantes não

poderiam exceder o máximo, tampouco preterir o mínimo da pena em abstrato, cominada no

preceito secundário do tipo penal. Assim, sobre o tema o autor arrematava que “ao contrário do

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que ocorre em relação às circunstâncias agravantes e atenuantes, incidindo uma causa de aumento ou

de diminuição da pena, esta pode ultrapassar o máximo, ou ser fixada aquém do mínimo legal”.2

Ainda sob a égide da legislação penal anterior, Basileu Garcia discorria sobre a cisão

doutrinária entre as fases da aplicação da pena. De um lado, sendo emblemático Roberto Lyra, os

que defendiam o critério bifásico de aplicação da pena, em que primeiro se computavam as

circunstâncias judiciais (intensidade do dolo, personalidade do agente, comportamento da vítima

etc.) e legais (agravantes e atenuantes), extraindo-se assim, a pena-base, à qual, posteriormente,

seriam aplicadas as causas de aumento e diminuição, para então se contemplar a pena definitiva.

De outro lado, encabeçados por Nélson Hungria, os defensores do sistema trifásico,

segundo o qual a pena-base seria extraída do cômputo das circunstâncias judiciais ao preceito

secundário, para posteriormente se aplicarem as circunstâncias legais (agravantes e atenuantes) e

finalmente as causas de aumento.

Malgrado o dissenso doutrinário sobre as fases de aplicação, todos os autores sempre

estiveram unânimes quanto à aceitação de que as circunstâncias judiciais teriam aplicação pretérita

em relação às causas de aumento e diminuição de pena, justamente, por conta da possibilidade

dessa últimas de ultrapassar limites máximo e mínimo previstos no preceito secundário.

Assim, Basileu Garcia, filiando-se à teoria de Roberto Lyra, assentava que “já ficou

elucidado que as causas de aumento ou diminuição só operam depois das agravantes e atenuantes,

judiciais e obrigatórias. É uma conclusão importante. A mudança de ordem no cálculo produziria

alteração no resultado penal”.3

Associando-se a essa convicção, Heleno Cláudio Fragoso destacava a importância da

fixação anterior das circunstâncias legais em relação às causas de aumento, justamente pelo

2 JESUS, Damásio Evangelista de. Direito penal. Parte geral. São Paulo: Saraiva, 1977. v. 1. p. 516.

3 GARCIA, Basileu. Instituições de direito penal. 4. ed. São Paulo: Max Limonad, 1975. v. 1, t. II. p. 500.

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condão especial que as últimas possuem de aumentar a pena acima do máximo previsto na norma

sancionadora.4

Independentemente da posição a que se filiasse, a ordenação das causas de aumento e

diminuição como última etapa da fixação da pena ganhava suprema relevância, pois pela

interpretação que se dava à antiga Parte Geral do Código Penal, as variações advindas das duas

primeiras fases (ou fase única) da fixação da pena deveriam estar constritas aos marcos

estabelecidos pelo preceito secundário.

E isso, porquanto a interpretação que se dava ao antigo art. 42 do Código Penal não

distinguia as circunstâncias entre judiciais e legais. Com efeito, o mencionado dispositivo assim

versava: “Compete ao juiz, atendendo aos antecedentes e à personalidade do agente, à intensidade do

dolo ou grau de culpa, aos motivos, às circunstâncias e às consequências do crime: I – determinar a

pena aplicável e consequências do crime; II – fixar, dentro dos limites legais, a quantidade de pena

aplicável”.

Como se pode observar, o dispositivo legal tratava de “circunstâncias” do crime, sem tecer

a distinção entre as circunstâncias judiciais e as circunstâncias legais. Desse modo, de acordo com

a interpretação da época, analisando-as juntas ou separadas, inequívoco era o fato de que suas

fronteiras estariam demarcadas pela pena fixada pelo legislador, por força do inciso II do

dispositivo.

O confronto entre os critérios bifásico e trifásico ganhava relevo no que tange à interação

entre as circunstâncias legais e as circunstâncias judiciais enumeradas no Código Penal, mas não

alcançava as causas de aumento e diminuição, às quais sempre foi reservada disciplina especial.

Efetivamente, sempre se percebeu o tratamento distinto às causas de aumento e

diminuição (também chamadas majorantes e minorantes), embora, poucos autores tenham se

4 Em suas palavras, “quando ocorrem agravantes ou atenuantes genéricas, que incidem sobre a pena-base, a terceira etapa do cálculo é o cômputo das causas de aumento ou de diminuição, previstas na Parte Geral ou na Parte Especial. É grave erro considerar primeiro as causas de aumento e diminuição e depois as agravantes e atenuantes genéricas. As causas de aumento ou diminuição são numerosas (...). Elas podem ser obrigatórias ou facultativas e, diversamente do que ocorre com as agravantes ou atenuantes genéricas, podem conduzir a penal final acima do máximo ou abaixo do mínimo” (FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal: parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 1986. p. 361).

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preocupado com a natureza jurídica intrínseca de tal distinção, limitando-se a examinar as

características perceptíveis nos diplomas legais.5

Mergulhando na natureza jurídica das circunstâncias agravantes e atenuantes, com

propriedade, Magalhães Noronha assentava que “[as agravantes e atenuantes] podem juntar-se a

qualquer tipo sem alterá-lo em essência, apenas aumentando ou diminuindo a pena, e sem o fazer

dentro de limites previamente fixados. Traduzem, conseqüentemente, maior ou menor gravidade do

fato. São as denominadas accidentalia delicti, que se opõe às essentialia”6 (interpolação nossa).

Dessa forma, aliando-se ao método bifásico de aplicação da pena e calcando-se na

característica acidental das circunstâncias legais, o autor expunha a fórmula de aplicação da pena

da seguinte maneira: “escolhida que seja a pena, passa, então, a dosá-la, isto é, fixará sua quantidade

dentre os extremos que a lei fornece – o máximo e o mínimo. Para isso, terá em vista, nos termos do

mesmo artigo, os antecedentes e a personalidade do agente, a intensidade do dolo ou grau de culpa, os

motivos, as circunstâncias do delito, aliados a outras accidentalia, como se verá”.7

No mesmo sentido, também não diferenciando as circunstâncias judiciais das

circunstâncias legais (teoria bifásica), tratando-as igualmente na fase de aplicação da pena, José

Frederico Marques salientava sem vacilo que “as circunstâncias judiciais e legais examinadas em

conjunto levam à fixação da pena-base entre o mínimo e o máximo da cominação legal existente no

preceito sancionador”.8

É possível observar que a variação da pena advinda das circunstâncias judiciais e legais se

circunscrevia aos limites legais impostos pela lei. E a explicação seria, como se pôde notar, a de

que as circunstâncias não adentram a esfera elementar do tipo, mas somente o margeia, o orbita,

5Na maioria das doutrinas a definição das causas de aumento e diminuição e das circunstâncias legais são feitas por critérios morfológicos e topográficos. Note-se, portanto, que tal disciplina não decorre de uma natureza jurídica diferida, a qual só vem a ser estudada com aprofundamento por David Teixeira de Azevedo em seu trabalho de doutorado (Dosimetria da pena: causas de aumento e diminuição. São Paulo: Malheiros, 1998).

6 NORONHA, E. Magalhães. Direito penal. Parte geral. São Paulo: Saraiva, 2000. p. 258.

7 NORONHA, E. Magalhães. Op. cit., p. 251.

8 MARQUES, José Frederico. Curso de direito penal. São Paulo: Saraiva, 1956. p. 260.

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como atributos acidentais os quais, ainda que hipoteticamente retirados da realidade fática,

conduziriam o fato a sua adequação típica.

Outra seria a natureza jurídica das causas de aumento e diminuição de pena. Ainda que

encontrada em doutrina mais recente, a explicação para a característica diferida das causas de

aumento e diminuição estaria na maior ou menor lesão ao objeto de proteção jurídica na norma

incriminadora.

É nesse sentido que Miguel Reale Júnior, citando David Teixeira de Azevedo, destaca

que “a característica das causas de aumento ou de diminuição encontra-se, segundo David Teixeira de

Azevedo, presa à ligação que tem com o bem jurídico, buscando promover a justa reprovação como

forma de prevenção, em vista do maior ou menor ataque ao bem jurídico protegido, mormente tendo

em vista aspectos de ordem objetiva”.9

Seria, portanto, essa a explicação para se afirmar que as causas de aumento e diminuição

de pena poderiam exacerbar os contornos fixados pelo legislador, explicação essa que nos parece

bastante razoável? Cremos que não.

E isso porque, mesmo que fundando sua tese na majoração do dano ao bem jurídico,

David Teixeira de Azevedo compreende que essa situação não é observada em todas as causas de

aumento e diminuição de pena, havendo causas de aumento e de diminuição ligadas também à

reprovabilidade da conduta, bem como ligadas à culpabilidade, o mesmo ocorrendo com as

agravantes e as atenuantes.10

9 REALE JÚNIOR, Miguel. Instituições de direito penal. Rio de Janeiro: Forense, 2009. p. 428.

10 Com pioneirismo e propriedade, o autor assim leciona: “A distinção entre causas de aumento e diminuição e suas co-irmãs agravantes e atenuantes não pode residir no critério absolutamente aleatório e assimétrico do legislador, cuja precisão e preocupação técnica em várias passagens da legislação penal não merecem encômios. A busca de uma determinação dogmática do conteúdo e implicação sistemática das causas de aumento e de diminuição para uma classificação dessas circunstâncias tem sido descurada pela doutrina. Essa despreocupação científica vem contribuindo para que o capítulo da determinação da pena, ao menos em nossa praxis, seja dos mais tormentosos e produza as mais graves distorções no terreno da aplicação da pena. Uma primeira distinção poderá ser baseada na conexão das referidas causas com o bem jurídico e com a culpabilidade do agente. Outra distinção poderá dirigir-se às finalidade do direito punitivo. Essas questões serão enfrentadas mais à frente. Desde logo, contudo, é bom esclarecer que o tratamento legal é absolutamente aleatório, assistemático, havendo causas de aumento conectadas a um só tempo à culpabilidade e ao bem jurídico, ou a este ao àquela isoladamente, o mesmo ocorrendo com as circunstâncias agravantes e atenuantes” (AZEVEDO, David Teixeira de. Dosimetria da pena: causas de aumento e diminuição. São Paulo: Malheiros, 1998. p. 58).

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Entretanto, mesmo quanto às causas de aumento e diminuição, também por sua

tendência acidental há autores, como Cezar Roberto Bitencourt, que defendem a impossibilidade

de transbordamento da cominação estabelecida pelo preceito secundário.11

É digno de destaque que a doutrina especializada, conforme assevera Cezar Roberto

Bitencourt, vem se posicionando no sentido de que as circunstâncias atenuantes possam diminuir

a pena aquém do mínimo preconizado no tipo penal. Entretanto, mesmo por se tratar de uma

interpretação in malam partem, não se observa qualquer posicionamento doutrinário ou

jurisprudencial que permita a extrapolação do máximo normativo, em razão da aplicação de

circunstância agravante.12

No mesmo sentido, entendendo ser possível a diminuição aquém do mínimo legal, e

tecendo incisiva crítica à Súmula 291 do STJ, posiciona-se Rogério Greco,13 o qual, da mesma

forma que a doutrina majoritária, milita pela impossibilidade de aumento advindo de aplicação de

circunstância agravante além do máximo cominado na pena em abstrato.

Além de consectária da própria natureza jurídica da circunstância agravante, a proibição

de seu aumento aquém do limite legal se ampara do princípio da legalidade e na tripartição de

Poderes do Estado. E isso porque o aumento acima do previsto em lei alteraria a própria lei,

11 Nesse sentido, ao diferenciar agravantes e atenuantes de causas de aumento e diminuição o autor assim leciona: “Em relação ao limite de incidência: I) As atenuantes e as agravantes não podem conduzir a pena fora dos limites, mínimo e máximo, previstos do tipo penal infringido. II) As minorantes podem reduzir a pena para aquém do mínimo cominado ao tipo penal violado. III) As majorantes, segundo uma corrente minoritária, podem elevar a pena para além do máximo cominado no tipo penal infringido, enquanto para outra corrente majoritária, que adotamos, as majorantes não podem ultrapassar aquele limite” (BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal. Parte geral. São Paulo: Saraiva, 2008. v. 1, p. 598).

12 Como exemplo, cite-se doutrina de Luiz Regis Prado: “as circunstâncias agravantes ou atenuantes não podem, em tese, conduzir à fixação da pena abaixo ou acima, respectivamente, dos limites mínimo e máximo, abstratamente cominados. Entretanto, se na determinação da quantidade da pena-base aplicável o juiz deve ater-se aos limites traçados no tipo legal de delito (art. 59, II) uma vez fixada aquela, passa-se à consideração das circunstâncias atenuantes e agravantes, em uma segunda fase, conferindo-se ao juiz a possibilidade de aplicar a pena inferior ao limite mínimo, já que o art. 68 não consigna nenhuma restrição” (PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro. Parte geral. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. v. 1. p. 590).

13 GRECO, Rogério. Curso de direito penal. Rio de Janeiro: Impetus, 2009. p. 566-7.

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tornando-se o julgador genuíno legislador. Vale dizer que, além de não se adstringir à lei

(princípio da legalidade), o ente judicante estará, dessa forma, criando nova lei.14

Como se observa, o posicionamento quanto à vedação do aumento da pena além do

máximo cominado no preceito secundário em razão do reconhecimento de circunstância

agravante não encontra vozes dissidentes na doutrina e na jurisprudência.

Também se pôde observar que todos os autores que se debruçam sobre o assunto tratam,

indistintamente, da diminuição aquém do mínimo e do aumento além do máximo. Vale dizer

que a mesma disciplina aplicada à pena mínima é utilizada à pena máxima, como se ambos os

marcos penais exercessem a mesma função no sistema jurídico nacional.

De fato, se pena mínima e pena máxima desempenham funções iguais, não há como fugir

do fato de que a permissão da diminuição aquém do mínimo legal implicará a permissão além do

máximo cominado.

É por isso que devemos estudar os fundamentos, as razões e as funções que exercem os

marcos penais dentro do preceito secundário, para que só então possamos alcançar um

entendimento satisfatório sobre a possibilidade de extravasamento dos limites penais cominados.

Antes, no entanto, analisaremos pontualmente como a disciplina vem sendo tratada na

doutrina e na jurisprudência nacional.

3. Impossibilidade de redução

3.1 Origem

14 Nesse sentido: “Desse modo, à luz do sistema legal vigente, se ao juiz fosse possível determinar a quantidade da pena fora dos parâmetros estabelecidos a priori, estaria, a nosso sentir, atuando fora do âmbito da sua própria competência e invadindo o âmbito delimitado constitucionalmente a outro Poder da República. A questão, portanto, tal como se acha posta, repercute e encontra óbice na Lei Fundamental, tanto que é incogitável elevação da pena provisória [pena base] acima do máximo abstratamente cominado, porque isso implicaria violação frontal ao princípio da legalidade” (BOSCHI, José Antônio Paganella. Das penas e seus critérios de aplicação. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000. p. 310).

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Como já pudemos pontuar, o rechaço à tese de que as atenuantes possam diminuir a pena

provisória aquém do mínimo legal vai encontrar seu fundamento no antigo art. 42 do Código

Penal brasileiro, o qual não distinguia as circunstâncias judiciais e atenuantes e impunha que sua

aplicação se circunscrevesse aos limites cominados no preceito secundário do tipo penal.

Assim, com fundamento no princípio da legalidade, em respeito ao texto expresso da lei,

doutrina e jurisprudência foram uníssonas no sentido de que apenas as causas de diminuição e

aumento de pena poderiam exceder os limites estabelecidos nos tipos penais.

Além da interpretação dada ao antigo art. 42 do Código Penal, levanta-se um fundamento

linguístico para a vedação de extrapolação das circunstâncias legais, bem como para permissão,

nos casos das causas de aumento e diminuição.

A interpretação semântica dos verbos “aumentar” e “diminuir”, como somar ou subtrair,

além do já cominado seria o fundamento da possibilidade de se avançar ou recuar fora dos marcos

estabelecidos no preceito secundário. Da mesma forma, os verbos “agravar” e “atenuar”

guardariam consigo o sentido de se manter a mesma pena, aplicando-a apenas de maneira

diferida, com mais ou menos intensidade.15

Contudo, como observa David Teixeira de Azevedo, esse tipo de fundamento não parece

se sustentar, pois, uma mera interpretação semântica diferente dos verbos selecionados, permitiria

concluir que as causas de aumento e diminuição devem respeitar os marcos legais, enquanto as

agravantes e atenuantes podem suplantar os limites da pena cominada.16

Talvez, por sua precariedade, o argumento linguístico se vê praticamente abandonado nos

dias atuais, sendo observados outros fundamentos para sustentar a tese da vedação da diminuição

da pena aquém do mínimo legal, como passaremos a expor a seguir.

3.2 Fundamentos atuais

15 AZEVEDO, David Teixeira. Op. cit., p. 57.

16 Idem, ibidem.

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3.2.1 Respeito ao princípio da legalidade

O primeiro obstáculo que se coloca ao recuo da pena aquém do seu limite inferior seria o

de que tal ação infringiria o princípio da legalidade. Agindo dessa maneira, o Magistrado estaria

desobedecendo ao estabelecido em lei e, dessa forma, estaria criando lei nova.

É importante que pontuemos as diferentes situações em que o fundamento do princípio

da legalidade é invocado e quais seriam os dispositivos legais que estariam sendo desrespeitados

pela diminuição da pena aquém do estabelecido em lei.

Conforme exposto, a interpretação do art. 42 da antiga Parte Geral do Código Penal é

quem colocaria a barreira à proibição analisada. Assim, por preceituar que o Juiz deveria aplicar a

pena considerando as circunstâncias do crime, dentro dos limites fixados na lei, o recuo além do

mínimo estaria em desacordo com o indigitado dispositivo.

Com efeito, o que fazia sentido na legislação anterior não prospera na atualidade, pois a

redação do art. 59 do atual Código Penal – dispositivo correlato ao antigo art. 42 – não permite a

mesma interpretação indistinta quanto ao termo “circunstâncias”. De fato, enquanto o art. 59

cuidou especificamente das circunstâncias judiciais e as circunscreveu dentro dos limites previstos

(art. 59, II), as circunstâncias legais foram abordadas em dispositivos diferentes (arts. 61 e 62 –

agravantes; arts. 65 e 66 – atenuantes).

De tal forma, quando se debruça sobre a redação do art. 59, tem-se claro que quando trata

do termo “circunstâncias” do crime, está a se referir das circunstâncias judiciais, as quais não

englobam as causas de aumento e diminuição da pena.

Ainda há vozes que defendem a infração ao art. 59 pela diminuição da pena aquém de seu

limite mínimo em razão da expressão dentro dos limites previstos impressa no inciso II do

mencionado artigo.17 Não parece ser esse, entretanto, o fundamento precípuo da infração ao

princípio da legalidade a que se refere a maioria dos autores atuais.

17 Nesse sentido, FELDENS, Luciano. Circunstâncias atenuantes e pena aquém do mínimo: um problema de fundamentação. Disponível em: <www.ibccrim.org.br>. Acesso em: 17 dez. 2002. “Outrossim, de ver-se que o art. 59 do Código Penal, norte do sistema de reprovação, traz, explicitamente, em seu inciso II, que o juiz estabelecerá, conforme

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Outro dispositivo invocado como fundamento da vedação seria o art. 53 do Código Penal

que preceitua que as penas privativas de liberdade têm seus limites estabelecidos na sanção

correspondente a cada tipo legal do crime. Em tal disposição, estaria contida a vedação implícita de

que a pena deve ser fixada dentro desses limites, não podendo reduzi-las pelo reconhecimento de

circunstâncias atenuantes.18

Há ainda um curioso posicionamento, encontrado na jurisprudência, segundo o qual a

diminuição aquém do mínimo estaria vedada por força do art. 67 do Código Penal, que trata do

concurso das circunstâncias agravantes e atenuantes.19 A expressão “a pena deve aproximar-se do

limite indicado pelas circunstâncias preponderantes” estaria a denotar a intenção do legislador de

não se desbordar os marcos legais.

Embora se demonstre criativa, a tese não parece dever ser acolhida. A um, porque o

dispositivo trata expressamente do concurso de agravantes e atenuantes, exibindo-se como mera

regra de ponderação entre as circunstâncias, ainda que vazia de conteúdo material. A dois, porque

se extrair de tal dispositivo que esse tipo de interpretação seria a aplicação de interpretação

extensiva in malam partem, a qual é vedada em nosso ordenamento jurídico.

seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime: ‘II – a quantidade de pena aplicável, dentro dos limites previstos’, dispositivo esse que estabelece uma relação de complementaridade com o preceito sancionador de cada tipo legal de delito”.

18 Com esse posicionamento, Luciano Feldens (op. et loc cits.). “No que concerne à reconhecida possibilidade de que se verifique o extravasamento desses limites quantitativos de pena na terceira fase da dosimetria penal, essa hipótese têm lá seus específicos motivos determinantes, os quais, não se fazendo comuns à segunda fase dessa operação – nem à primeira –, não infirmam – e tampouco desafiam – a normatividade exsurgente dos dispositivos sob comento (arts. 59, II e 53 do CP). Tenha-se em conta, a tanto, que ao tratar das causas majorantes e minorantes cuidou o legislador de expressamente estabelecer o quantum de aumento e diminuição requerido, no que reduziu, nesta fase, a margem de atuação jurisdicional. Em situações que tais, além da consideração de que o patamar estabelecido provém da própria lei, cabível é a invocação do princípio da especialidade. É dizer: na terceira fase da aplicação da pena, e tão-somente na terceira fase, há um novo e específico comando legal, que deve ser observado. Eventual antinomia (aparente) entre regras dotadas do mesmo grau de positividade jurídica – do que cuida, com precisão, Norberto Bobbio[1] – conduz-nos a cotejá-las de forma a alcançar-se sua eficácia possível, recorrendo-se, conforme seja, ao princípio da cedência recíproca”.

19 O indigitado posicionamento emerge do voto proferido pelo Min. Hamilton Carvalhido, no julgamento do REsp 178.493/SP do Superior Tribunal de Justiça (j. 23.11.1999). No v. aresto, o MD. Ministro assim defendeu seu argumento: “É no Código o único trecho, espaço, onde se alude a um limite que existiria para essas circunstâncias denominadas legais, que são essas atenuantes e agravantes obrigatórias. Fincado, exatamente, nessa indicação de um limite que a própria lei faz, que conduz à interpretação de que um segundo movimento da individualização não pode ultrapassar o máximo, nem vir aquém do mínimo, é que realmente me firmei e perseverei nesse entendimento de que, afastadas as causas de aumento ou de diminuição, a fixação da pena, quanto às duas fases: a do 59 e a da consideração das circunstâncias legais, não pode ser fixada aquém do mínimo legal, ou ainda além do seu limite máximo”.

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Entretanto, fundamentalmente, quando se invoca o princípio da legalidade para assegurar

a vedação da redução da pena, fixa-se como objeto de agressão a própria norma estabelecida no

preceito secundário do tipo penal.20 A redução aquém do mínimo pelo Juiz engendraria a

aplicação de pena diferente da cominada em lei, o que infringiria o princípio da legalidade.

Não nos parece aceitável a tese. Se tomados os limites do preceito secundário de forma

absoluta para as agravantes e atenuantes – não podendo se avançar além, nem se recuar aquém de

seus limites – não se poderia admitir tampouco essa situação quanto às causas de aumento e

diminuição da pena.

Com efeito, não há qualquer permissão expressa que autorize o desbordamento da pena

em razão das causas de aumento e de diminuição de modo que, apoiados nesse raciocínio, a

aplicação dessas causas de transformação da pena deveriam se resguardar dentro dos limites do

preceito secundário.

O que se alega, para fugir ao raciocínio anteriormente revelado, é que as causas de

aumento e de diminuição, por serem quantificadas, ao contrário das circunstâncias legais,

amparariam o Juiz na aplicação da pena aquém dos limites legais. Assim, o cerne da questão se

desloca do mandamento legal (verbos típicos “agravar”, “atenuar”, “aumentar” e “diminuir”) para

o quantum de transformação da pena. Se esse quantum for determinado (de um terço a dois

terços, p. ex.), o Juiz estará apenas respeitando o preceituado em lei. Se não o for, deverá

resguardar os limites impostos no preceito secundário.

Também não nos parece defensável a tese. Não há qualquer disposição expressa que

permita concluir que esse aumento ou diminuição quantificado se adstrinja ou não aos limites

legais, assim como não há disposição semelhante para as agravantes e atenuantes.21

20 Nesse sentido: FELDENS, Luciano. Op. et loc. cits.; Jesus, Damásio Evangelista de. O juiz pode, em face das circunstâncias atenuantes genéricas, fixar a pena aquém do mínimo legal abstrato? Boletim IBCCRIM, São Paulo, n. 73, p. 3-4, dez. 1998.

21É digno de nota que, ao contrário do Código Penal, o Código Penal Militar guarda disposição expressa quanto ao assunto, determinando, por força do seu art. 73, que as atenuantes e agravantes respeitem os limites legais e permitindo o arrebatamento da pena no caso das causas de aumento e diminuição, por força do art. 76.

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O fato de não ser quantificado o aumento ou a diminuição da pena pelo reconhecimento

das circunstâncias legais apenas demonstra a maior discricionariedade que o Juiz terá na hora da

aplicação da pena. E dessa maior discricionariedade, a qual será limitada pela necessária

fundamentação da pena aplicada, não pode se extrair qualquer limitação ao desbordo dos limites

legais.

3.2.2 Possibilidade de aumento no caso de agravantes

Encontra-se na doutrina preocupação com o fato de que a permissão da diminuição

aquém do mínimo legal possa ensejar a fundamentação para o aumento acima do máximo

previsto na pena. Assim, se o princípio da legalidade não estaria ferido na aplicação para baixo,

também não estaria afrontado na aplicação para cima.

Esse receio foi manifestado por Alberto Silva Franco22 e Damásio Evangelista de Jesus,23

os quais, concordando com a correlação entre a diminuição aquém do mínimo e o aumento além

do máximo, apontam para o perigo que a tese poderia ensejar para o recrudescimento da punição.

Esse compreensível posicionamento se ancora logicamente quando se entende que as

funções dos marcos legais – mínimos e máximos – exercem exatamente a mesma função dentro

do ordenamento jurídico, tese com a qual não podemos concordar.

Os marcos penais do preceito secundário não possuem, exatamente, a mesma natureza

jurídica. Se por um lado se identificam no que tange à medida da culpabilidade em abstrato,

projetada no desvalor da conduta hipotética, se diferenciam completamente quanto à natureza de

garantia que subjaz por trás da limitação máxima de punição, tema ao qual voltaremos com maior

profundidade no tópico 6 deste trabalho.

22 FRANCO, Alberto Silva et al. Código Penal e sua interpretação jurisprudencial. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais. p. 202, n. 1.02.

23 JESUS, Damásio Evangelista de. O juiz pode... cit., p. 3-4.

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3.2.3 Segurança jurídica

Outro argumento que se desenha para fundamentar a limitação das circunstâncias legais

aos limites expressos no tipo penal seria a de que a concessão ao Juiz de avançar ou recuar além

das fronteiras legais levaria a um arbítrio judicial24 que poderia ensejar, inclusive, a aplicação da

“pena zero”.25

De fato, conforme afirmamos anteriormente, as causas de aumento e diminuição da pena

delimitam o quantum de variação da pena, ao contrário das circunstâncias legais, as quais, por sua

vez, a princípio, podem ser manipuladas livremente pelo Magistrado aplicador da norma.

Sobre o argumento, em primeiro lugar deve-se consignar que o fato de não serem

quantificadas permitem que o Juiz aplique discricionariamente – e não arbitrariamente – a pena

com a variação que entenda cabível ao caso. Contudo, não se deve ignorar que o Magistrado

ainda é adstrito ao princípio da motivação, devendo fundamentar a pena aplicada, sob pena de ser

considerada nula sua decisão.

Logo, o Magistrado não tem arbítrio para aplicar a pena que bem entender. Tem sim,

maior margem de escolha, em razão do não estabelecimento de marcos predeterminados de

variação da pena, adstrito, contudo, à necessária motivação da decisão.

Quanto à aproximação da “pena zero”, não vemos por que esse fato afrontaria o

ordenamento jurídico ou o princípio da legalidade. Temos exemplo no próprio ordenamento

jurídico circunstâncias que permitem a não aplicação de pena.

O primeiro exemplo que se levanta é o princípio da insignificância. Pela indigitada

construção jurídica não se pode apenar o crime que sequer coloca em perigo o bem jurídico

tutelado pelo tipo penal, ainda que a conduta fática a ele se adapte com perfeição.

24 Como assevera Paulo José da Costa Júnior (Comentários ao Código Penal. Parte geral. São Paulo: Saraiva. 1989. p. 358 ): “A aplicação das circunstâncias legais haverá de respeitar sempre os limites punitivos expressos no tipo. A adoção de posicionamento diverso equivaleria a trocar a certeza do direito pelo arbítrio judicial”.

25 Nesse sentido: JESUS, Damásio Evangelista de. O juiz pode... cit.

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A insignificante ou inexistente lesão ao bem jurídico é circunstância que margeia o crime,

pois os elementos típicos estão presentes na conduta. Ainda sim, os Tribunais vêm reiteradamente

aplicando o princípio para submeter réus em delitos insignificantes às aras do sistema Penal.

Outro exemplo que se levanta é o do § 5.º do art. 121 do Código Penal. Segundo o

dispositivo, “na hipótese de homicídio culposo, o juiz poderá deixar de aplicar a pena, se as

consequências da infração atingirem o próprio agente de forma tão grave que a sanção penal se torna

desnecessária”.

Ora, a consequência grave da infração é uma circunstância que permite que o Magistrado

deixe de aplicar a pena no caso concreto. Circunstância que, assim como as atenuantes, não é

elementar do tipo penal, mas apenas o margeia, exibindo-se como elemento acidental do delito.

Logo, se no caso concreto se constatassem circunstâncias atenuantes suficientes a zerar a

pena do condenado, não entendemos qual o problema que isso poderia trazer quanto à segurança

jurídica, mormente por tal fato se amoldar harmoniosamente ao princípio da proporcionalidade e

da individualização da pena.

4. Possibilidade de redução

4.2 Origens

Sem dúvida alguma, a reforma da Parte Geral do Código Penal de 1984 é o marco inicial

da tese sobre a possibilidade de redução da pena em razão do reconhecimento de circunstâncias

atenuantes por um motivo simples e altamente relevante: adotou definitivamente o critério

trifásico de aplicação da pena.26

Dessarte, o atual art. 68 preceitua que “a pena base será fixada atendendo-se ao critério do

art. 59 deste Código; em seguida serão consideradas as circunstâncias atenuantes e agravantes; por

26 Paulo José da Costa Júnior (op. cit., p. 357) assevera que “O legislador de 1884 decidiu-se a tomar posição, adotando o tresdobramento do processo de fixação da pena. Na primeira fase, o magistrado levará em conta as circunstâncias judiciais. Na segunda, considerará as agravantes e atenuantes legais. Na derradeira etapa, atenderá às causas de aumento ou de diminuição de pena”.

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último, as causas de diminuição e aumento”. Tem-se, portanto, delimitadas as três fases de aplicação

da pena.

Diante de tal marco legislativo, fixou-se de uma vez por todas a diferenciação entre as

circunstâncias legais e judiciais, diferenciação essa que era rechaçada por alguns autores partidários

do método bifásico da aplicação da pena.

O regime aplicado às circunstâncias judiciais passa a ser diferente do aplicado às

circunstâncias legais, que serão examinadas em fase posterior no momento da aplicação da pena.

Assim, ao contrário do que fazia o antigo art. 42, diferenciou-se com precisão as circunstâncias

judiciais das circunstâncias legais.

É a partir desse ponto que alguns autores passam a afirmar que a vedação que existia no

regime anterior caiu por terra com a entrada em vigor da nova Parte Geral do Código,

inexistindo, dessa forma, qualquer vedação legal.27

De fato, a partir da entrada em vigor do novo Código fica claro que quando o art. 59

impõe que o juiz fixará a pena atendendo às “circunstâncias e consequências” do crime, “dentro

27 “Já não existe nenhum impedimento legal ou constitucional para que o juiz, diante de uma circunstância atenuante, fixe a pena de prisão aquém do mínimo legal. Todo discurso deôntico, como bem sublinhou Lauro José Ballock (em recente dissertação de Mestrado, sustentada na Unisul-Tubarão-SC), conduz a essa conclusão. Logo, se refutação ainda existe, é puramente ideológica” (GOMES, Luiz Flávio. Circunstâncias atenuantes e pena aquém do mínimo: é possível. Boletim IBCCRIM, São Paulo, v. 10, n. 119, Esp., p. 12-13, out. 2002). “Na realidade, nos deparamos frente a uma interpretação e aplicação da pena com no mínimo 55 (cinqüenta e cinco) anos de atraso, em relação ao novo Código Penal, não nos referindo à atualização ocorrida com o advento da Lei 7.209, de 1984, e sim ao Decreto-Lei 2.848, de 1940, já que desde a prolação do referido Decreto-Lei, o sistema de aplicação da pena passou a ser trifásico, sistema este adotado pelo saudoso Ministro Nélson Hungria. Antes da promulgação do Decreto-Lei 2.848, a aplicação da pena era feita no Brasil pelo sistema bifásico, que consistia na aplicação da pena subdividida em duas fases distintas. A primeira consistia na fixação da pena-base, na qual o Juiz, atentado-se às circunstâncias judiciais (ou legais) e às agravantes e atenuantes, deveria fixá-la, dentre as penas previstas ao crime, razão pela qual a presença de uma atenuante ou agravante não poderia ultrapassar o patamar máximo e mínimo previsto ao crime; já na segunda fase, incidiam as causas gerais ou especiais de aumento e diminuição de pena, que podiam ultrapassar os limites da pena cominada. Repete-se, as circunstâncias atenuantes e agravantes incidiam na 1.ª fase da aplicação da pena, na qual o aplicador da lei está restrito, pela própria lei, aos limites da pena in abstrato, já que constavam os seguintes dizeres ‘as penas aplicáveis dentre as cominadas’". Nesta época sim, existia regramento legal que previa a aplicação das agravantes e atenuantes, com os parâmetros da pena cominada; contudo, com o advento do referido Decreto-Lei, passou a ser adotado em nosso País a aplicação trifásica da pena, na qual se separou a apreciação das circunstâncias legais das circunstâncias agravantes ou atenuantes, que passaram a ser aplicadas em fase distinta (mais precisamente na segunda fase) e como já explicitado acima, foi retirado seu impedimento legal de redução e aumento aquém e além dos patamares estabelecidos abstratamente ao crime” (LEITE, Antonio Candido Reis de Toledo. Agravantes e atenuantes. Boletim IBCCRIM, São Paulo, n. 32, p. 4, ago. 1995).

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dos limites previstos” (inciso II), está se referindo tão somente às circunstâncias judiciais e não às

circunstâncias legais, que serão apreciadas em momento posterior.

Assim, pode-se perceber que a limitação ao máximo e mínimo da pena, a que se refere o

inciso II do art. 59 do Código Penal, remete à primeira fase da aplicação da pena, qual seja, a das

circunstâncias judiciais. As circunstâncias legais não estariam encampadas nesse dispositivo.

É a partir desse fundamento que se desenvolve a tese de que não haveria qualquer ilicitude

na diminuição da pena aquém do mínimo legal e, ao contrário, sua vedação se colocaria contra

princípios fundamentais do ordenamento jurídico nacional.

A seguir, analisaremos os principais argumentos pelos quais se defende que a vedação da

diminuição aquém do mínimo legal é ilegal e afronta os cânones do ordenamento jurídico penal e

constitucional.

4.2 Fundamentos

4.2.1 Princípio da individualização da pena

Sem dúvida, a proibição da diminuição da pena aquém do mínimo legal vai ter maior

reflexo no princípio da individualização da pena. E isso porque, uma vez fixada a pena-base no

mínimo legal, as circunstâncias atenuantes serão simplesmente ignoradas no cômputo da pena, de

acordo com a orientação segundo a qual não se permite a redução abaixo do mínimo. É essa, com

frequência, a situação utilizada como exemplo para se afirmar que a vedação aqui estudada feriria

o princípio da individualização da pena.

O princípio da individualização da pena encontra-se positivado no art. 5.º, inciso XLVI,

da Constituição da República, que determina que “a lei regulará a individualização da pena e

adotará, entre outras, as seguintes: a) a privação da liberdade; b) perda de bens; c) multa; d) prestação

social alternativa; e) suspensão ou interdição de direitos.

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De fato, por força do mandamento constitucional, a pena aplicada deve corresponder à

reprovabilidade da conduta e à culpabilidade do agente, estando, portanto, individualizada ao

caso em concreto. Em síntese, para que se respeite o princípio é imperioso que se estabeleça a

pena proporcionalmente ao injusto que se causou e às circunstâncias do crime.28

É de destacar que o princípio vai alcançar dois momentos distintos da fixação da pena. No

primeiro, ainda se está na determinação dos preceitos secundários da pena. Assim, o princípio da

individualização da pena se dirigirá ao legislador, que deverá determinar os marcos penais de

acordo com a reprovabilidade em abstrato da conduta. No segundo momento, o princípio se

dirigirá ao Juiz que, diante das circunstâncias do caso, deverá determinar a pena proporcional à

reprovabilidade e à culpabilidade em concreto da conduta.

Com efeito, quando se invoca o princípio da individualização da pena para sustentar a

diminuição da pena aquém do mínimo legal, está a se falar da individualização judicial da pena,

atendo-se às circunstâncias do caso concreto.

Longe de qualquer dúvida, se na aplicação da pena, não se observar sua diminuição, ainda

que reconhecida uma circunstância atenuante, deparar-nos-emos com violação ao princípio da

individualização da pena. E isso porque, a atenuante será simplesmente ignorada, o que vale dizer

que uma parte das circunstâncias do crime, benéfica ao agente, não estará sendo levada em conta

no cômputo da pena.29 E, ignorando-se uma circunstância do crime, obviamente, não se estará

aplicando a pena justa, proporcional e individualizada ao caso concreto.

28 Sobre o tema, Luis Regis Prado assenta que deve existir sempre uma medida de justo equilíbrio – abstrata (legislador) e concreta (juiz) – entre a gravidade do fato praticado e a sanção imposta. Em suma, a pena deve estar proporcional ou adequada à magnitude da lesão ao bem jurídico representada pelo delito e a medida de segurança à periculosidade criminal do agente (Curso de direito penal. 8. ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2008. v. 1. p. 139).

29 Confira-se sobre o tema o que aduz Luis Flávio Gomes (op. et loc. cits.): A tarefa do juiz, na sentença, é a de individualizar a pena. Mas se a pena mínima não puder ser ultrapassada (em virtude de um posicionamento doutrinário e jurisprudencial equivocado, claramente presunçoso e inconstitucional), colocar-se-á numa vala comum incontáveis condenados que contam com situações diferentes. Isso implica séria violação ao princípio da igualdade (assim como profundo desrespeito ao valor justiça, que é o valor meta do Estado Constitucional e Democrático de Direito).

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É perceptível a injustiça que a proibição acarreta quando nos deparamos com situação em

que dois agentes cometem o crime em concurso e um dos agentes possui uma circunstância

pessoal que atenua sua conduta. No cômputo da pena, uma vez aplicada a pena base no mínimo,

essa circunstância será simplesmente ignorada e, tanto o beneficiado pela atenuante, como o outro

agente, terão penas iguais.

Na jurisprudência, encontramos exemplo de situações em que se permite a diminuição da

pena aquém do mínimo legal, quando à circunstância atenuante sobrevém alguma circunstância

agravante ou alguma causa de aumento. Perceba-se que esse tipo de permissão se cinge apenas à

pena provisória (2.ª fase de aplicação da pena), mas não à pena em definitivo, pois as agravantes e

atenuantes elevarão a pena além do mínimo legal.30

Infelizmente, essa é posição isolada na jurisprudência. Mesmo que sobrevenham

agravantes e majorantes, os Tribunais vêm entendendo que, uma vez fincada a pena-base no

mínimo, a atenuante deve ser simplesmente ignorada.31 Essa posição não encontra guarida sequer

no princípio da legalidade, pois a pena em definitivo acabaria sendo fixada dentro dos limites

impostos pela lei.

4.2.2 Outra vez o princípio da legalidade

Outro argumento que surge com a reforma de 1984 é o de que a proibição da redução

infringiria o princípio da legalidade, na medida em que o art. 65 do Código Penal, quando elenca

as circunstâncias atenuantes, é expresso em exaltá-las como circunstâncias que “sempre” atenuam a

pena.

30 Nesse sentido, colaciona-se o entendimento do Ministro do Superior Tribunal de Justiça – Vicente Leal – no voto proferido no julgamento do REsp 93.104/PE, DJ 23.06.1997. Ali, o Ministro expressou que, embora não pudesse se reduzir a pena aquém do mínimo legal em razão de circunstância atenuante, no confronto com uma causa de aumento, a circunstância deveria ser levada em conta, dessa forma, reformando a decisão a quo, para diminuir a pena aplicada ao réu.

31 Como exemplo, tem-se o julgamento pelo STJ do REsp 418.146/RS, de relatoria do Min. Felix Fischer, que determinou fixação da pena provisória no mínimo legal, para posteriormente se aplicar a causa de aumento. A mesma situação é observada no HC-STJ 9.607, de relatoria do Min. Gilson Dipp.

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A presença do termo “sempre” é o fundamento para se afirmar que o Juiz não pode deixar

de aplicar a circunstância, ainda que a pena-base tenha sido fixada no mínimo.32 A expressa

previsão no texto normativo sustenta a tese da infração ao princípio da legalidade decorrente da

proibição da diminuição da pena.

A tese nos parece simpática. Se por um lado, conforme assentamos, não há qualquer

disposição expressa sobre a vedação da diminuição aquém do cominado no preceito secundário,

por outro, a expressão “sempre” deixa claro que as circunstâncias atenuantes jamais poderão ser

ignoradas, seja durante a segunda fase de aplicação da pena, seja no seu cômputo final.

A lei é impositiva e nenhum de seus termos é aplicado em vão, não podendo ser

meramente ignorados. Se o legislador entendeu que deveria usar a expressão “sempre”, com

absoluta certeza, não intentou que qualquer situação pudesse flexibilizar a regra que imprimiu.

Caso contrário, tal qual se vê no Código Penal Militar, teria adicionado ao texto normativo a

expressão “guardados os limites da pena cominada ao crime”.

Com tais considerações, posicionamo-nos no sentido de que, se há infração ao princípio

da legalidade, ele decorre antes da proibição da diminuição da pena aquém do mínimo legal pelo

reconhecimento de circunstância atenuante, e não de sua permissão.

5. Tratamento jurisprudencial

Sobre o tema aqui versado, doutrina e jurisprudência caminharam no mesmo sentido até a

reforma da Parte Geral do Código Penal, que entrou em vigor em 1984. Dessarte, conforme se

32 Com esse posicionamento, Antonio Candido Reis de Toledo Leite (op. et loc. cits.): “Em um segundo plano, encontram-se no art. 65 do Código Penal as chamadas circunstâncias atenuantes, estipulando-se no caput que quando da ocorrência de uma das circunstâncias abaixo elencadas, a pena deve obrigatoriamente ser atenuada, dizendo que: ‘São circunstâncias que sempre atenuam a pena’ [grifo nosso]. Ora, a lei prevê expressamente que quando da ocorrência de uma das circunstância acima citadas, deve obrigatoriamente ocorrer uma mudança da pena a ser aplicada, por se expressar uma diminuição de culpabilidade, ou mesmo uma maior culpabilidade, não havendo nenhuma vinculação com a fixação da pena base, que é fixada seguindo-se os critérios estabelecidos no art. 59 do CP”. Na mesma toada, Luis Flávio Gomes (op. et loc. cits.): “Aliás, considerando-se o teor literal do art. 65 do CP (são circunstâncias que sempre atenuam a pena...), se uma atenuante (devidamente comprovada) não tiver incidência concreta, o que se faz é uma analogia contra o réu in malam partem (leia-se: usa-se contra o réu na segunda fase da aplicação da pena os mesmos critérios da primeira)”.

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pontuou, a interpretação que se dava ao antigo art. 42 sequer levantava a discussão que se tece no

presente trabalho.

Ocorre que, as mudanças legislativas da nova Parte Geral do Código foram rapidamente

percebidas pela doutrina, que, amparada nos argumentos discorridos no item 4 deste estudo,

passou gradualmente a sustentar a possibilidade da redução da pena mínima aquém do mínimo

legal, posição que se exibe dominante nos dias de hoje.

É certo que, tanto para os que defendem a possibilidade da redução, quanto para aqueles

que a refutam, houve uma mudança de argumentos advinda da entrada em vigor da nova Parte

Geral do Código Penal. Assim, a mesma posição pode ser ainda adotada na vigência do Código

anterior, mas os fundamentos deveriam ser diversos, pois o fundamento primordial da proibição

se desfez com a revogação do art. 42.

A jurisprudência dos Tribunais Superiores se mostra cada vez mais sólida no sentido de

que não se pode permitir a diminuição da pena aquém do mínimo legal em consideração às

circunstâncias atenuantes. Essa convicção parece inabalável e se renova constantemente, sendo

utilizados variados instrumentos de uniformização para calarem as vozes dissidentes sobre o tema.

A primeira iniciativa de uniformização do tema partiu do Superior Tribunal de Justiça

que, em 1999, editou a Súmula. 231 com a seguinte redação: “a incidência da circunstância

atenuante não pode conduzir à redução da pena abaixo do mínimo legal”.

Recentemente, foi a vez de o Supremo Tribunal Federal dar ultimato na questão, o que

fez no julgamento do Recurso Extraordinário 597.270/RS, de relatoria do Min. Cezar Peluso. Na

oportunidade, foi reconhecida a Repercussão Geral da questão, o que permite que a matéria seja

desafiada por meio do Recurso Extraordinário. Também, por iniciativa da Min. Carmen Lúcia,

foi proposta e aprovada questão de ordem, no sentido de se permitir a aplicação do art. 21, § 1.º,

do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal.33

33 “Art. 21. São Atribuições do relator: § 1.º Poderá o(a) Relator(a) negar seguimento a pedido ou recurso manifestamente inadmissível, improcedente ou contrário à jurisprudência dominante ou Súmula do Tribunal, deles não conhecer em caso de incompetência manifesta, encaminhando os autos ao órgão que repute competente, bem como cassar ou reformar, liminarmente, acórdão contrário à orientação firmada nos termos do art.543-B do Código de Processo Civil.”

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Por força da mencionada decisão, qualquer pedido que vise a aplicação da pena aquém do

mínimo legal por reconhecimento de circunstâncias atenuantes poderá ser denegado pelo relator,

em decisão monocrática. Assim, dificilmente o tema voltará à discussão do Plenário do Supremo

Tribunal Federal.

Infelizmente, o fato de uma determinada decisão estar sendo reiteradamente tomada por

um Tribunal, indica, tão somente, que essa questão está pacificada nessa Corte, mas não que o

assunto já tenha sido objeto de discussão em reiteradas oportunidades. E isso porque, julgar da

mesma forma inúmeras vezes, não quer dizer que o assunto tenha sido discutido inúmeras vezes.

Diante da impassível segurança dos Tribunais Superiores, fomos à ratio decidendi das

decisões nas quais se assenta esse sólido posicionamento.

Conforme pudemos demonstrar, a origem da proibição da redução remonta à disciplina

da Parte Geral do Código Penal de 1940, que seria derrogada por força da entrada em vigor da

nova Parte Geral de 1984. Dessa forma, em primeiro lugar, analisamos as decisões anteriores à

entrada em vigor da nova disciplina.

Nessa época, não havia qualquer discussão acerca da possibilidade de redução da pena

aquém do mínimo legal. Em 1983, o Min. Djaci Galvão, do Supremo Tribunal Federal

asseverava não haver qualquer irregularidade na consideração das circunstâncias atenuantes antes

das circunstâncias judiciais, mesmo que os efeitos da primeira fossem dissipados.34

É dessa época que remonta a proibição da diminuição da pena, mesmo no cálculo do

cômputo provisório, pois, de fato, pela interpretação dada ao antigo art. 42, independentemente

da fase de aplicação, o aumento e a diminuição das agravantes deveriam se ater aos limites legais.

No ano de 1982, esse posicionamento foi impresso pelo voto do Min. Moreira Alves, no

34 “O juiz, adotando o critério bifásico, preconizado por Roberto Lyra, considerou a atenuante conjuntamente com as circunstâncias do art. 42. E, na aplicação da causa de aumento do § 2.º do art. 157, por se tratar de roubo duplamente qualificado, agravou a pena dentro dos limites legais facultados” (STF, HC 60.473/RJ, Rel. Min. Djaci Falcão, j. 11.02.1983).

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julgamento do Recurso Extraordinário RE-STF 96.305/PR.35 Posicionamento semelhante viria a

ser fincado pelo Min. Rafael Mayer no julgamento do Recurso Extraordinário RE-STF

97.055/PR.36

Bem assim, até 1984, nenhum dos julgados do Supremo Tribunal Federal que versaram

sobre o matéria divergiu quanto à impossibilidade de diminuição da pena abaixo do mínimo legal

em virtude do reconhecimento de circunstância atenuante.37

De fato, o que nos interessa é como a Suprema Corte passou a tratar do tema após a

entrada em vigor da nova Parte Geral. Nos primeiros julgados que versaram sobre a matéria não

se encontrou qualquer fundamentação para proibição, apenas a considerando proibida.

Em 1986, o Min. Sidney Sanches rechaça a tese de redução aquém do mínimo legal, por

considerá-la em confronto com os precedentes da E. Corte. Bem assim, inicia-se um continuísmo

de um posicionamento fincado em uma legislação que já há muito havia sido derrogada.

Dali em diante, alguns poucos julgados que se preocupavam em fundamentar as decisões

que vetavam a diminuição o faziam, exclusivamente, afirmando que o posicionamento

encontrava-se consolidado na Corte Suprema, citando-se precedentes,38 alguns deles, inclusive,

datados de momento anterior à entrada em vigor da nova disciplina atinente à aplicação da pena.39

35 “Esta corte (...) decidiu que ‘fixada a pena no mínimo legal, descabe a pretensão de vê-la reduzida em virtude de menoridade do agente, quando da época da prática do delito’. E (...) se manifestou no sentido de que ‘o cálculo da majoração pela continuidade delitiva deve incidir sobre a pena total que o juiz fixaria se não houvesse esse aumento, e não sobre a pena base simplesmente. O acórdão recorrido, atendendo ao parecer do Ministério Público local, ficou a pena-base no mínimo legal: dois anos de reclusão. Ora, partindo-se dessa pena base, que, como já se salientou, por ser o mínimo legal, não pode ser diminuída em virtude da menoridade do agente, a ela se acrescentando o aumento de um sexto pela continuidade delitiva, chegando-se ao total de dois anos e quatro meses de reclusão” (STF, RE 96.305/PR, Rel. Min. Moreira Alves, j. 02.03.1982).

36 “Tenho pois que o acórdão recorrido ao aplicar a atenuante da memoriada após o aumento do § 2.º do art. 157 do C. Penal, o que implicou em fixar pena em quantidade inferior ao mínimo legal, desconsiderou, com efeito, as normas legais invocadas. Conheço, pois, do recurso, em parte, e lhe dou provimento, em parte, para ser fixada no mínimo legal a pena corporal aplicada (...)” (STF, RE 97.055/PR, Rel. Rafael Mayer, j. 13.08.1982).

37 Como fundamento, colaciona-se os seguintes julgados: STF, HC 58567/RS, 2.ª T., Rel. Min. Djaci Falcão, j. 07.04.1981; STF, HC 59008/RS, 2.ª T., Rel. Min. Décio Miranda, j. 21.08.1981; STF, RE 95102/SP, 2.ª T., Rel. Min. Cordeiro Guerra, j. 22.09.1981; STF, HC 56723/PR, 2.ª T., Rel. Min. Décio Miranda, j. 06.03.1979; STF, RC 1318, 1.ª T., Rel. Min. Cunha Peixoto, j. 16.02.1979.

38 HC 65505/DF, 1.ª T., Rel. Min. Oscar Correa, j. 12.02.1988; HC 65868/SP, Tribunal Pleno Rel. Min. Francisco Rezek, j. 02.03.1988; HC 68641/DF, 1.ª T., Rel. Min. Celso e Mello, j. 05.11.1991; HC 68474/DF, 2.ª T., Rel.

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Com efeito, o mesmo vício que acometeu o Supremo Tribunal Federal afetou o Superior

Tribunal de Justiça que, desde sua origem, repetiu a aplicação de precedentes construídos sob a

égide da legislação antiga.40 Reiteradamente, a Corte Superior julgou no sentido de que a vedação

seria proibida no ordenamento jurídico brasileiro, calcando-se fundamentalmente em precedentes

de ambos os Tribunais Superiores.

Em 1996, entretanto, o Min. Luiz Vicente Cernicchiaro, pela primeira vez, inaugura um

dissenso quanto ao tema no Superior Tribunal de Justiça. No julgamento do REsp 68.120/MG,

de sua relatoria, o Ministro declarou sua adesão à tese de que a vedação da redução infringiria o

princípio da individualização da pena. Como fundamento, invocou o princípio da

individualização da pena e a mutabilidade das relações sociais que devem ser percebidas pelo

Direito, cujo primeiro agente a perceber e a reagir a tais mudanças, antes das leis, é o

Magistrado.41

Min. Néri da Silveira, j. 11.06.1991; HC 67822/SP, 2.ª T., Rel. Min. Celio Borja, j. 03.04.1990; HC 69328/SP, 2.ª T., Rel. Min. Marco Aurélio, j. 28.04.1992; HC 68641/DF, 1.ª T., Rel. Min. Celso e Mello, j. 05.11.1991; HC 70047/SP, 1.ª T., Rel. Min. Celso e Mello, j. 21.09.1993; HC 70979/SP, 1.ª T., Rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 08.11.1994; HC 72523/SP, 2.ª T., Rel. Min. Maurício Corrêa, j. 13.06.1995; HC 73867/SP, 2.ª T., Rel. Min. Marco Aurélio, j. 14.05.1996; HC 74084/SP, 2.ª T., Rel. Min. Néri da Silveira, j. 17.12.1996; HC 74301/SP, 2.ª T., Rel. Min. Maurício Corrêa, j. 29.10.1996; HC 74167/RJ, 2.ª T., Rel. Min. Maurício Corrêa, j. 27.08.1996; HC 73924/SP, 2.ª T., Rel. Min. Marco Aurélio, j. 06.08.1996; HC 73717/SP, 2.ª T., Rel. Min. Néri da Silveira, j. 06.08.1996; HC 74916/SE, 2.ª T., Rel. Min. Maurício Corrêa, j. 15.04.1997; HC 75726/SP, 1.ª T., Rel. Min. ILMAR GALVÃO, j. 11.11.1997.

39 STF, HC 70.883/SP, Rel. Min. Celso de Mello, j. 08.03.1994.

40 REsp 7.287/PR, 6.ª T., Rel. Min. William Patterson, j. 16.04.1991, DJ 06.05.1991; REsp 15.695/PR, 5.ª T., Rel. Min. Assis Toledo, j. 18.12.1991, DJ 17.02.1992; REsp 15.691/PR, 6.ª T., Rel. Min. Pedro Acioli, Rel. p/ Acórdão Min. Luiz Vicente Cernicchiaro, j. 01.12.1992, DJ 03.05.1993; REsp 32.344/PR, 6.ª T., Rel. Min. Luiz Vicente Cernicchiaro, j. 06.04.1993, DJ 17.05.1993; REsp 46.182/DF, 5.ª T., Rel. Min. Jesus Costa Lima, j. 04.05.1994, DJ 16.05.1994; REsp 49.500/SP, 5.ª T., Rel. Min. Assis Toledo, j. 29.06.1994, DJ 15.08.1994; RHC 5.193/SP, 6.ª T., Rel. Min. Vicente Leal, j. 12.02.1996, DJ 25.03.1996; REsp 68.120/MG, 6.ª T., Rel. Min. Luiz Vicente Cernicchiaro, j. 16.09.1996, DJ 09.12.1996; REsp 146.056/RS, 5.ª T., Rel. Min. Felix Fischer, j. 07.10.1997, DJ 10.11.1997; REsp 89.563/PI, 5.ª T., Rel. Min. Felix Fischer, j. 18.02.1997, DJ 17.03.1997; REsp 97.553/MG, 6.ª T., Rel. Min. Luiz Vicente Cernicchiaro, j. 19.12.1996, DJ 31.03.1997.

41 Nesse sentido asseverava: "quanto à possibilidade de aplicar a pena abaixo do mínimo legal, tenho manifestado minha adesão à linha doutrinária que a admite". Mais adiante, citando trecho de artigo por ele subscrito, publicado no Correio Braziliense de 15.05.1995, aduzia que "A individualização da pena é princípio registrado na Constituição da República. Compreende três etapas: cominação, aplicação e execução. (...) O judiciário por seu turno promove a aplicação, definindo ‘as penas aplicáveis dentre as cominadas (CP, art. 59, I) e a ‘quantidade de pena aplicável, dentro dos limites previstos’ (CP, art. 59, II). Não se olvide, contudo, esses dispositivos integram o sistema das penas. A pena, ficou registrado, encerra ideologia. Além disso, só faz sentido se necessária. O delito evidencia exigência histórica. A conduta, certo é desvaliosa. O passar do tempo pode repercutir no tipo. (...) O crime de hoje, amanhã pode ser conduta irrelevante (materialmente considerada), não obstante a manutenção do tipo. Substancialmente, pode esvaziar-se. Situação excepcional,

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Embora tenha sido novamente afirmado no julgamento do REsp 151.837/MG,42 o

posicionamento quedou-se isolado43 na jurisprudência daquele Tribunal que, alguns anos depois,

tentaria desbaratar a questão definitivamente.

Foi imbuído desse espírito que, em 22.09.1999, o Superior Tribunal de Justiça editou a

Súmula 231, cujo enunciado prevê que a incidência da circunstância atenuante não pode conduzir à

redução da pena abaixo do mínimo legal.

O entendimento sumulado teve como paradigma seis julgados daquela Corte Superior: o

REsp 146.056/RS, de relatoria do Min. Felix Fischer; o REsp 15.691/PR, de relatoria do Min.

Pedro Acioli; o REesp 7.287/PR, de relatoria do Min. Willian Petterson; o REsp 32.344/PR, de

relatoria do Min. Vicente Chernicchiaro; o REsp 46.182/DF, de relatoria do Min. Jesus Costa

Lima; e o REsp 49.500/SP, de relatoria do Min Assis Toledo.

Pois bem. Dirigindo-nos à ratio decidendi dos acórdãos paradigmas, encontramos no REsp

49500/SP fundamentação, exclusivamente, em precedentes dos Tribunais Superiores.44 No REsp

46.182/DF, a fundamentação, além de em precedentes jurisprudenciais, se ancorou na doutrina

Julio Fabbrini Mirabete.45 Embora, fazendo referência à doutrina de Damásio de Jesus o REsp

7.287/PR também se viu fundamentado, essencialmente em precedentes jurisprudenciais.46 Sem

contudo, admissível. O mesmo raciocínio é válido quanto ao agente do crime. Porque autor da infração penal, é censurado. A culpabilidade (reprovabilidade) enseja gradação. Mais intensa. Menos instensa. O sistema penal, não obstante o esquema sancionatório, contempla casos de extinção da punibilidade; casos em que, formalmente, a sanção se faz desnecessária (Política Criminal). Coloca-se então a hipótese. Ao Juiz é facultado aplicar a pena, abaixo do mínimo legal? No quadrante atrás delineado, encontra-se a resposta" (STJ. REsp 68.120/MG, 6.ª T., Rel. Min. Luiz Vicente Cernicchiaro, j. 16.07.1996, DJ. 09.12.1996).

42 REsp 151.837/MG, 6.ª T., Rel. Min. Fernando Gonçalves, Rel. p/ Acórdão Min. Luiz Vicente Cernicchiaro, j. 28.05.1998, DJ 22.06.1998.

43 Vale, ainda, destacar a decisão proferida no REsp 93.104/PE, em que o Min. Vicente Leal admitiu a redução abaixo do mínimo na segunda fase de aplicação da pena, para depois se aplicar a incidência de causa de aumento (REsp 93.104/PE, 6.ª T., Rel. Min. Vicente Leal, j. 12.05.1997).

44REsp 49500/SP, 5.ª T., Rel. Min. Assis Toledo, j. 29.06.1994.

45REsp 46182/DF, 5.ª T., Rel. Min. Jesus Costa Lima, j. 04.05.1994.

46Resp 7.287/PR, 6.ª T., Rel. Min. Willian Petterson, j. 16.04.1991.

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qualquer outro fundamento, que não a precedência jurisprudencial, foi julgado o REsp

32.344/PR.47 Melhor fundamentação também não se encontrou no REsp 15.691/PR.48

Somente no REsp 146.056/RS é que encontramos fundamentação que, mais do que citar

precedentes jurisprudenciais, debruça-se sobre a temática e busca explicações legais para a vedação

da redução.

Segundo o julgado, a limitação legal se daria em razão das expressões "dos limites

previstos", incutida no inciso II do art. 59 do Código Penal, e "do limite indicado", contida no

art. 67 do mesmo diploma. Também, é manifestada a inadmissibilidade de se chegar a "pena

zero". Finalmente, assevera o aresto que "a expressão 'sempre atenuam' não pode ser levada a

extremos, substituindo-se a interpretação teleológica por uma meramente literal. Sempre atenuam,

desde que a pena base não esteja no mínimo, diga-se até aí, reprovação mínima do tipo".49

Como se vê, todos os pontos em que se arrima o único precedente fundamentado que deu

origem à Sumula 231 são frágeis e não se sustentam no ordenamento jurídico, tratando-se de

interpretação equivocada, ranço da legislação anterior, como pudemos delinear nos itens acima.

A singela existência da expressão “limites” em artigo que trata do concurso de

circunstâncias agravantes e atenuantes não pode ser fundamento para se impedir a aplicação da

atenuante, mesmo porque esse limite a que se refere o artigo é o limite indicado pelas circunstâncias

preponderantes e não o limite da pena expresso no preceito secundário do tipo penal.

É ainda importante ressaltar que a indigitada “interpretação teleológica”, a que se refere o

Min. Felix Fischer, exibe-se como interpretação contra legem e in malam partem, não gozando de

acolhida pelo Sistema Penal e Constitucional do ordenamento jurídico nacional.

A edição da Súmula 231, contudo, não impediu que novos e, em número crescente,

pedidos de redução de pena aquém do mínimo legal fossem dirigidos aos Tribunais Superiores.

47REsp 32.344/PR, 6.ª T., Rel. Min. Vicente Chernicchiaro, j. 06.04.1993.

48REsp 15.691/PR, 6.ª T., Rel. Min. Pedro Acioli, j. 1.º.12.1992.

49REsp 146.056/RS, 5.ª T., Rel. Min. Felix Fischer, j. 07.11.1997.

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Por outro lado, alguns Tribunais de Justiça, principalmente o Tribunal de Justiça do Rio Grande

do Sul, passaram a aceitar a tese e aplicar a diminuição da pena.

Nesse contexto, é de se destacar a recente atuação da Defensoria Pública da União que

passou a endereçar contínuos requerimentos ao Supremo Tribunal Federal, com intuito de

reforma de sentenças, para que a pena fosse aplicada abaixo do mínimo legal. O ativismo da

Defensoria Pública e também da advocacia privada, contudo, não foi suficiente para mudar o

posicionamento da Corte Suprema, tampouco, para que o tema fosse debatido com seriedade pelo

Tribunal Supremo. O que se viu foi uma quantidade imensa de pedidos denegados com

fundamento quase exclusivamente em precedentes jurisprudenciais.50

Dessa imensa gama de julgados, impende que se faça referência aos votos da Min. Ellen

Gracie,51 a qual vem fixando entendimento semelhante ao expresso pelo Min. Felix Fischer no

julgamento do REsp 146.056/RS. Também, destaca-se o voto proferido pelo Min. Eros Grau no

HC 93.511/RS em que, embora não entrando na questão interpretativa dos dispositivos,

demonstrou a preocupação com a possibilidade de fixação de “pena irrisória” ao se permitir a

diminuição da atenuante abaixo do mínimo.52

6. Possibilidade da diminuição aquém do mínimo legal, sem o correspondente aumento além

do máximo. Análise da função dos marcos penais

50 HC 82483/SP, 2.ª T., Rel. Min. Maurício Corrêa, j. 12.11.2002; HC 76845/RS, 1.ª T., Rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 24.03.1998; HC 93493/MT, 2.ª T., Rel. Min. EROS GRAU, j. 12.02.2008; HC 92742/RS, 1.ª T., Rel. Min. Menezes Direito, j. 04.03.2008; HC 93071/RS, 1.ª T., Rel. Min. Menezes Direito, j. 18.03.2008; HC 93821/RS, 1.ª T., Rel. Min. Cármen Lúcia, j. 18.03.2008; HC 93908/RS, 1.ª T., Rel. Min. Eros Grau, j. 01.04.2008; HC 93905/RS, 2.ª T., Rel. Min. Eros Grau, j. 15.04.2008; HC 94243/SP, 2.ª T., Rel. Min. Eros Grau, j. 31.03.2009; HC 94646/RS, 1.ª T., Rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 31.03.2009; HC 96730/MS, 2.ª T., Rel. Min. Joaquim Barbosa, j. 06.10.2009; HC 100371/CE, 1.ª T., Rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 27.04.2010; HC 101857/AC, 2.ª T., Rel. Min. Joaquim Barbosa, j. 10.08.2010; RHC 105409/MS, 2.ª T., Rel. Min. Joaquim Barbosa, j. 19.10.2010.

51 HC 92926/RS, 2.ª T., Rel. Min. Ellen Gracie, j. 27.05.2008; HC 94540/SP, 2.ª T., Rel. Min. Ellen Gracie, j. 27.05.2008.

52 HC 93511/RS, 2.ª T., Rel. Min. EROS GRAU, j. 26.02.2008.

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O sistema hermenêutico garantista propugna que à norma penal se deverá dar a

interpretação que melhor atenda aos interesses do réu, diminuindo, dessa forma, as hipóteses de

incidência da norma penal no caso concreto. Assim, além dos mecanismos internos de redução de

incidência, chamados por Salo de Carvalho de propostas crítico-minimalistas,53 a hermenêutica de

fundo garantista, evitará o avanço do aparato punitivo em situações cuja resolução se mostra

suficiente por outros ramos do Direito,54 ou cuja dignidade penal se veja abalada ante fatores

externos ao sistema penal (heteropoiesis).

Desde esse ponto de vista, é possível se perceber que, mesmo o princípio da legalidade

poderia ser afastado em razão de elementos exteriores ao sistema-jurídico penal que conclamem o

afastamento da incidência da norma penal.55 Ressalte-se que essa flexibilização ao princípio da

legalidade sempre se operará na direção da extensão dos direitos do cidadão, na busca por um

direito penal libertário, mas, jamais, na direção da ampliação do sistema punitivo.56

Disso poderíamos já extrair o primeiro fundamento para se defender a redução da pena

além do mínimo legal pelo reconhecimento de circunstância atenuante, sem a contrapartida da

possibilidade de aumento além do máximo, ante o reconhecimento de circunstância agravante.

Conforme se expôs, o princípio da legalidade não pode servir de óbice à aplicação de uma

pena justa. Os princípios da individualização da pena e da culpabilidade, no aparente choque com

53 CARVALHO, Salo de. Pena e garantia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. p. 87.

54 Nesse sentido, destaca-se o avanço da utilização do Direito Administrativo sancionador para repressão e modificação de condutas, essencialmente daquelas inseridas no cenário globalizado de pulverização das responsabilidades, como é o caso das condutas empresariais.

Na mesma direção, as propostas que visam a despenalização e não mera diminuição da pena, no caso da reparação do dano ou restituição da coisa, nos crimes cometidos sem violência ou grave ameaça.

Da mesma forma, as condutas que em si não demonstram lesão à bens jurídicos, mas sim meros perigos, projeções de perigo ou lesões por acumulação, cuja derivação e extensão tende ao infinito de punição.

55 Nesse sentido Salo de Carvalho assenta que “existem, desde uma visão garantista, condições de flexibilização da legalidade via interpretação material, conformando o que se poderia denominar dogmática penal garantista” (CARVALHO, Salo de. Pena e garantia cit., p. 89).

56 Salo de Carvalho lembra a dupla diretiva concebida por Amilton Bueno de Carvalho que ao descrever a orientação da interpretação garantista afirma a existência de uma força centrípeta na direção punitiva, restringindo-se ao máximo em direção ao núcleo de punição, e a existência de uma força centrífuga na direção libertária e em favor do réu (CARVALHO, Salo de. Pena e garantia cit., p. 90).

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o princípio da legalidade, devem preponderar, uma vez que, no caso particular, ligam-se com mais

tenacidade ao resguardo da liberdade e da dignidade da pessoa humana valores orientadores do

ordenamento jurídico brasileiro, que fatalmente são atingidos pela imposição da pena privativa de

liberdade.

Ao fundamento, adira-se a concepção defendida por Antonio Luís Chaves de Camargo,

sobre a necessidade de se encarar o sistema jurídico-penal como um sistema aberto, atento,

portanto, às modificações sociais, em estreita ligação com a sociologia e filosofia.57 Novos

parâmetros sociais exigirão, dessa forma, novas respostas do Direito Penal, adequadas às

finalidades da pena e da política-criminal.58

Contudo, neste trabalho, além das consagradas orientações de cunho garantista,

procederemos a uma releitura das funções dos marcos penais existentes no preceito secundário,

pois, é nessa releitura que encontramos o fundamento primordial pelo qual entendemos a

possibilidade da redução da pena além do mínimo.

Sob essa ótica, levanta-se a primordial questão: qual é a função dos marcos penais no

preceito secundário do tipo penal? Intuitivamente, chega-se a resposta de que, acima de tudo,

inicialmente, essa delimitação do interregno de apenamento guarda relação com o respeito ao

princípio da legalidade.59

De fato, vigora em nosso ordenamento jurídico60 o princípio do nullum crimen, nulla

poena sine lege praevia, pelo qual se entende que não poderá se aplicar sanções penais sem que haja

57 CAMARGO, Antônio Luís Chaves. Sistema de penas, dogmática jurídico-penal e política criminal. São Paulo: Cultural Paulista, 2002. p. 27.

58 Pela limitação espacial deste trabalho, não há a oportunidade de se discorrer acerca da correlação entre a adequação da pena à culpabilidade do agente e moderna política-criminal brasileira, pontuando-se sumariamente pontos que levam a essa convicção como a falência do sistema penitenciário e seu fracasso na missão ressocializadora ou reintegradora e, acima de tudo, o fator criminogênico que se tornou o cárcere no Brasil, o que se demonstra ante os altos índices de reincidência no país.

59 Cezar Roberto Bitencourt, sobre o tema arremata que “precisa-se ter presente que o princípio da reserva legal não se limita à tipificação das condutas, estendendo-se às consequências jurídicas, especialmente à pena e à medida de segurança, caso contrário, o cidadão não terá como saber quais são as consequências que poderão atingi-lo” (BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal. Parte geral. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2006. v. 1, p. 17.).

60 Por força do art. 5.º, inciso XXXIX, da Constituição Federal, bem como do art. 1.º do Código Penal.

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lei anterior e certa que preveja a conduta concreta como criminosa. Mas não é só. Deve também

cominar uma pena certa, em nosso ordenamento estipulada hipoteticamente pela qualidade

(detenção, reclusão, multa, prestação de serviços etc.) e pela quantidade (tempo de privação de

liberdade, montante de multa a ser paga, tempo de restrição de direitos).

À luz do princípio da taxatividade, corolário do princípio da legalidade (lex certa), seria de

esperar que a pena fosse a mais certa possível, não se permitindo qualquer margem de variação.

Esse sistema de absoluta determinação da pena foi adotado pelo Código Penal francês de 1791, e

mostrou-se tão insatisfatório quanto o sistema medieval da indeterminação absoluta.61

E isso porque, sem que se flexibilize a taxatividade do preceito secundário do tipo penal,

impossível se torna a aplicação do princípio da individualização da pena aplicada, assim como da

culpabilidade. Em atenção a essa necessidade, surge com o Código Penal francês de 1810 o

sistema de indeterminação relativa das penas, fixadas legislativamente entre marcos penais

máximos e mínimos,62 os quais seriam modulados pela decisão judicial no caso concreto, à luz dos

princípios da culpabilidade e da proporcionalidade, ambos a orientar a individualização da pena.

Assim, precisamente nesse espaço aberto entre pena mínima e máxima, atuaria a sua

individualização.63

Entendemos, contudo, que, para que haja terreno propício à individualização da pena e ao

mesmo tempo para que se respeite o princípio da legalidade, faz-se prescindível a fixação de uma

pena mínima, bastando que se fixe para tanto a pena máxima, de modo que se permita saber até

que ponto o estado pode invadir a esfera individual no condenado. Dessarte, não há qualquer

61 BITENCOURT, Cezar Roberto. Op. cit., p. 698.

62 BITENCOURT, Cezar Roberto. Op. et loc. cits.

63 Apoiando-se na doutrina de Maurício Antonio Ribeiro Lopes, Sérgio Salomão Shecaira e Alceu Corrêa Júnior destacam a desvantagem desse sistema que, aprioristicamente, presume a culpabilidade do agente (SHECAIRA, Sérgio Salomão; CORRÊA JÚNIOR, Alceu. Teoria da pena: finalidades, direito positivo, jurisprudência e outros estudos de ciência criminal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 78)

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infração ao princípio da legalidade o fato de não se indicar o mínimo que o deverá constranger o

agente.64

Ter delimitado com precisão qual o grau de ingerência do estado em direitos

fundamentais tão caros ao ordenamento jurídico, é imprescindível ao estado que se diz

democrático e ao indivíduo que se pretenda livre. Desse modo, exibe-se a delimitação da pena

máxima como uma garantia inexorável ao Estado Democrático de Direito, colocando limites à

intervenção estatal sobre o particular.65

Bem assim, consegue-se perceber que a função do marco penal máximo é a de limitar a

extensão da intervenção penal, evitando-se dessa maneira o arbítrio estatal. Logo,

fundamentalmente, o estabelecimento de uma pena máxima é uma garantia fundamental do

Estado de Direito, intimamente ligada ao princípio da legalidade e da taxatividade.

Por óbvio, não tem a mesma natureza a pena mínima. Conforme asseverado, o marco

penal inferior, ao contrário da pena máxima, não se exibe e jamais se exibiu como uma garantia

do indivíduo oponível ao Estado,66 mas sim como um marco norteador da aplicação da pena,

reflexivo do desvalor em abstrato da conduta hipotética.67

64 A título de exemplo, citem-se os ordenamentos jurídicos Alemão, Francês e Português, que delimitam somente a pena máxima e não a pena mínima. A principal crítica que se opõe à não indicação da pena mínima é a infração ao princípio da isonomia, que permitiria a aplicação de penas notadamente diferentes para casos semelhantes.

65 Mencionada garantia vai encontrar suas origens na pauta iluminista de Beccaria, que militava sobre a necessidade de se delimitarem as penas aplicadas, sob pena de se permitir o mais amplo arbítrio estatal. Sobre o tema, José Cerezo Mir destaca que “la formulación del principio de legalidad se debe a BECCARIA en su famosa obre ‘de los delitos y de las penas’, que acusa la influencia de MONTESQUIEU y ROUSSEAU y a Feuerbach que lo desarrolla en función de su teoría de la pena como coacción psicológica, y al que se remonta su formulación latina” (CEREZO MIR, José. Derecho penal. Parte general. 2. ed. Madrid: Universidad Nacional de Educación a Distancia, 2000. p. 243).

66 E que nem se cogite em falar na pena mínima como uma garantia da sociedade de punição mínima, garantia essa que não encontra qualquer respaldo na Constituição Federal, nem se coaduna com o Estado de Direito. Em que pese ser a segurança pública um direito social constitucionalmente garantido, não é lícito que se correlacione a aplicação de uma pena desproporcional a uma sensação ilusória de segurança. Volta-se ao argumento de que o encarceramento não é eficaz e não guarda qualquer relação com a segurança pública.

67 Nas palavras de Patrícia Ziffer “la función de los marcos penales no es, como podría pensar-se, sólo la de poner límites a la discrecionalidad judicial. No se trata simplesmente de ámbitos dentro dos cuales el juez se pude mover libremente y sin dar cuenta de su decisión, sino que através de ellos el legislador refleja el valor proporcional de la norma dentro del sistema” (ZIFFER, Patricia S. Lineamientos de la determinación de la pena. Buenos Aires: Ad-Hoc, 1996. p. 36-37).

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A pena mínima guarda relação com o princípio da proporcionalidade e da

individualização legislativa da pena. Sua função precípua é, portanto, traduzir o quantum de

reprovabilidade da conduta abstrata em quantidade de pena, de modo que, assim, se oriente a

aplicação da pena no caso concreto68 e diminua ao máximo a discricionariedade do juiz na

aplicação da pena, mas sem que com isso se engesse sua margem de atuação, necessária aos

princípios da culpabilidade e da individualização da pena.

Esse receio da discricionariedade judicial é refletido na obra de Maurício Antonio Ribeiro

Lopes, que condena amplitude exagerada dos marcos penais,69 assim como a inexistência da pena

mínima,70 tal qual ocorre nos ordenamentos jurídicos alemão, francês e português. De qualquer

forma, vê-se que a inexistência da pena mínima recebe críticas, não pela inexistência de uma

garantia de punição, mas, sim, em razão da inexistência de parâmetros de punição, que

permitiriam a flutuação desmedida da vontade do magistrado no momento da decisão sobre a

quantidade de pena aplicada, assim como a aplicação de penas discrepantes para casos

semelhantes.

Diante de tais considerações, é possível perceber que a permissão da diminuição da pena

aquém do mínimo legal, em face do reconhecimento de circunstâncias atenuantes, de maneira

alguma encontraria óbice no princípio da legalidade, uma fez que sua função desenhada é a de

modular e auxiliar a aplicação da pena, por meio da fixação legal de uma quantidade hipotética de

pena, que se presume ser a adequada a determinada conduta.

68 É claro que essa característica também se adere à pena máxima, vale dizer, o marco superior também guiará o desvalor da conduta, com a peculiaridade de que esse também se impõe como garantia estatal, ao contrário do marco inferior.

69 Essa amplitude exagerada ensejaria um arbítrio judicial no momento da aplicação da pena, assim como a incerteza da pena que seria aplicada. Nesse sentido, o autor destaca que “a determinação da pena deverá, portanto, ser sempre um compromisso entre a fixação legal (exigência de segurança jurídica) e a determinação judicial (justiça do caso particular), e este compromisso desaparece quando o juiz através de margens penais dilatadas absorve tarefas próprias do legislador, com significação de arbítrio incontrolável e de ofensas aos princípios da legalidade e da separação dos poderes, que são pressupostos fundamentais do estado de Direito” (LOPES, Maurício Antonio Ribeiro. Princípio da legalidade penal: projeções contemporâneas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994. p. 131).

70 O autor assevera que “repudia-se, igualmente, o sistema do Código Penal alemão, em 1871, que prevê aos delitos apenas um máximo de pena privativa de liberdade que pode ser imposta pelo juiz. Tal sistema, de uma única margem penal, pode permitir a violação de outra garantia constitucional genérica, esta a da isonomia, dando margem a sem-número de reclamações pela pena imposta, comparando-a àquela aplicada a outros condenados” (LOPES, Maurício Antonio Ribeiro. Op. cit., p. 131-132).

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Sua função não é, portanto, e de maneira nenhuma poderia ser,71 a de uma garantia legal,

ou seja, a de garantia de que uma pena seja aplicada no caso do cometimento de um ilícito.72

Por outro lado, a possibilidade de diminuição harmonizaria as melhores características dos

diversos sistemas de fixação da pena, pois, partindo-se da pena mínima, (i) não se deixaria de

aplicar penas semelhantes a caso semelhantes, ressalvando a isonomia das penas; (ii) ter-se-ia uma

orientação legislativa sobre o desvalor das condutas, que orientaria a aplicação em concreto da

pena, evitando-se a arbitrariedade judicial, mas permitindo-se sua modulação correspondente às

circunstancias concretas; (iii) não se afrontaria de forma patente o princípio da individualização

da pena; e (iv) poder-se-ia corrigir a eventual injustiça oriunda da presunção de culpabilidade do

agente advinda da pena mínima, modulando-se a pena de maneira otimizada à culpabilidade em

concreto do agente.

Em síntese, no nosso entender, não haveria qualquer óbice à diminuição da pena aquém

do mínimo legal, tomando-se a função do marco inferior como a de, tão somente, orientar a

aplicação da pena, não se exibindo precipuamente como um limite. Ao contrário do marco

superior que, além de orientador, exerce a função de limitador da pena, em consonância com o

princípio da reserva legal e a garantia de não se ter aplicada uma pena arbitrária.

Por essa mesma razão, também entendemos que a pena jamais poderia ser extrapolada

além de seu limite, seja pelo reconhecimento de circunstância agravante, seja pelo reconhecimento

de causas de aumento.

7. Conclusão

1. A análise dos julgados proferidos pelos Tribunais Superiores nos permite chegar à

conclusão de que, embora existam novos fundamentos para se impedir a diminuição da pena

71 Cf. nota 65.

72 Que aliás, conforme já se destacou, é a principal crítica do sistema de penas mínimas e máximas, pois, de certa forma, antecipa em forma de presunção a culpabilidade do acusado.

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abaixo do mínimo legal, fundamentalmente, o que impulsiona a posição jurisprudencial é o

continuísmo de raciocínio construído sob a égide da legislação anterior.

2. Curiosamente, a jurisprudência, que deveria ser a fonte de direito mais flexível e

adaptável ao contexto e realidade social, no caso em apreço, é que vem impedindo que uma

solução absolutamente admissível pelos dispositivos do Código Penal e patentemente mais

adequada aos princípios da culpabilidade e da individualização da pena seja adotada pelos

Tribunais Superiores.

Também, o tratamento jurisprudencial despendido para com as circunstâncias atenuantes

serviu para moldar sua própria definição doutrinária. Ainda que a maioria imprima

posicionamento contra a vedação da redução, na descrição das circunstâncias legais, mormente

quando comparadas com as causas de aumento e diminuição, não se observa questionamento de

seus autores quanto ao falso dogma de que sua decorrente variação deve respeitar os marcos

impostos pelo preceito secundário do tipo penal.

3. Podemos observar, dessa forma, que a praxe judiciária moldou e deformou o instituto

das circunstâncias legais, atribuindo-lhes características que não lhes são próprias, mas que tão

somente existiam por conta de interpretação construída na vigência da antiga Parte Geral do

Código Penal.

Não é lícito afirmar, portanto, que é da essência das circunstâncias legais que sua margem

de variação se circunscreva aos limites do preceito secundário. Aliás, não se encontra na doutrina

qualquer definição de quais seriam as características essenciais do instituto, mas somente definição

extraída da observação de como são aplicadas no caso concreto.

4. No caso analisado é possível perceber como pode ser perigoso o alinhamento

jurisprudencial dissociado de uma fundamentação jurídica idônea. A repetição de precedentes e a

consolidação de posicionamento jurisprudencial, se por um lado garante a tão buscada segurança

jurídica, por outro enseja a perpetuação de argumentos superados pela legislação e pela realidade

dos problemas surgidos com a evolução da sociedade.

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A pacificação de determinadas matérias pelos Tribunais vem causando o nefasto efeito de

se deixar de pensar o direito subjacente a elas. Os julgadores, deixando de se debruçar sobre a

matéria, tornam a repetir argumentos e posições antigas, que já de muito deveriam estar

superadas.

5. Se, por um lado, o posicionamento que resolveram adotar os Tribunais Superiores não

possui mais qualquer fundamento nos dispositivos legais do Código Penal, por outro, traz consigo

severa afronta a princípios de Direito Penal consagrados pela Constituição da República de 1988,

essencialmente o da culpabilidade, da individualização das penas e da própria legalidade.

Vale a pena relembrar que, quando se consolidou o posicionamento que ainda se repete

nos Tribunais, não só as disposições do Código Penal eram outras, como sequer ainda vigorava a

atual Carta Magna, à qual as disposições legais devem se adequar.

E isso se diz, pois, ainda que vigorassem as disposições legais antigas, seria de pensar em

sua inconstitucionalidade em face do princípio da individualização da pena. Não se pode

simplesmente ignorar o direito que a Carta Magna garante a uma pena justa e proporcional,

individualizada no caso concreto, na medida da culpabilidade do agente. É esse direito que vem

sendo tratorado pelo posicionamento jurisprudencial fixado.

No contexto atual, em que celeridade processual é confundida com eficientismo do

Judiciário, exemplos como o do caso aqui estudado servem para reforçar a necessidade de manter

continuamente a preocupação com os assuntos já pacificados, pois, a cristalização de um

posicionamento pode acobertar a perpetuação de injustiças.

6. De outro prisma, pudemos observar no decorrer deste trabalho o completo abandono

científico da matéria aqui tratada, que é de suprema relevância para o Direito Penal, na medida

em que opera na aplicação e na individualização da pena restritiva de liberdade a mais severa

sanção ao indivíduo, prevista pelo ordenamento jurídico nacional.

Nesse sentido, observou-se a inexistência de tratamento científico que nos indique a

natureza, as características normativas e o alcance das circunstâncias legais, cuja análise se restringe

a observação de como é aplicada nos casos em concreto. Essa análise científica, que para além da

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indução deve se estabelecer também dedutivamente e com raciocínio crítico, é de suprema

relevância para ordenamento jurídico nacional e sua inexistência é o que ainda permite a grande

discrepância entre as posições jurisprudenciais e doutrinárias estabelecidas sobre o assunto.

7. Ainda em decorrência da inexistência de uma disciplina específica do comportamento

das circunstâncias legais, é que tivemos de buscar os limites de sua atuação na natureza jurídica e

na função dos marcos penais do preceito secundário.

Para esse fim, fomos buscar as razões históricas da criação das penas máxima e mínima, de

onde pudemos concluir que, enquanto a primeira tem sua razão de existir na necessidade de

limitação do poder punitivo estatal – e, portanto, intimamente ligada ao princípio da legalidade –

, a segunda originou-se da necessidade de se estabelecer um critério legal prévio que norteasse a

aplicação da pena, evitando-se com isso a aplicação de penas discrepantes para casos semelhantes.

Disso é possível extrair que ambos os marcos penais exercem um papel de norteador da

aplicação da pena, mas que a convergência de suas funções aí se encerra, pois, além dessa função

norteadora da aplicação da pena, a pena máxima erige-se como um limite intransponível da

sanção privativa de liberdade, avocando assim a função de garantia fundamental do indivíduo em

relação ao Estado.

Amparado nessas conclusões se defende a inexistência de qualquer limitação legal à

redução da pena aquém do mínimo legal em qualquer das fases da aplicação da pena. Fixando-se a

pena mínima como o ponto de partida para a aplicação da pena – e é essa sua única e genuína

função – o magistrado atento às circunstâncias judiciais e legais prescritas em lei poderá variar a

quantidade de pena aplicada, seja para cima, como para baixo.

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Justiça restaurativa: um novo modelo de justiça criminal

Rafaela Alban Cruz Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela PUC-RS.

Especializanda em Ciências Penais pela PUC-RS.

Resumo: A Justiça Restaurativa consiste em um paradigma não punitivo, baseado em valores, que tem como principal objetivo a reparação dos danos oriundos do delito causados às partes envolvidas – vítima, ofensor e comunidade – e, quando possível, a reconstrução das relações rompidas. Apresenta-se como uma alternativa ao modelo retributivo, tendo em vista a clemência por mudanças mais profundas e concretas diante das ineficiências e deslegitimidade do sistema penal. Sendo a realidade do Brasil, analisa-se as (im)possibilidades de implementação do modelo no sistema jurídico, perante os princípios da indisponibilidade da ação penal, da legalidade e da oportunidade. Palavras-chave: restaurativa; retributivo; modelo; justiça criminal; alternativas. Abstract: Restorative justice consists of a non punishing paradigm based on values that have as its main objective the reparation of damages that have stemmed from crime that was caused to the involved parties, the victim, the offender and the community, and, when possible, the reconstruction of the relationships that have been broken. It is an alternative to the retributive system, aiming at more in-depth and concrete changes in relation to the inefficiencies and de-legitimacy of the legal system. Having Brazil as a background we analyze the (im)possibilities to implement this model to the legal system in the presence of the principles of non-availability of criminal action, legality and opportunity. Key words: restorative justice, retributive justice, criminal justice, alternatives. Sumário: 1. Introdução; 2. (In)eficiência e (des)legitimidade do sistema punitivo; 3. Justiça Restaurativa x Justiça Retributiva; 4. Implementação da Justiça Restaurativa no Brasil; 5. Considerações Finais; 6. Referências Bibliográficas.

1. Introdução

O presente artigo visa a apresentar a Justiça Restaurativa como um novo modelo de Justiça

Criminal, capaz de suprir as falhas e as ineficiências do sistema punitivo.

Em um primeiro momento, aborda-se a crise da (des)legitimidade e da (in)eficiência do sistema de

Justiça Criminal, o qual resiste intocável e irredutível a qualquer movimento de reforma mais profunda,

introduzindo apenas modificações superficiais, que apenas ratificam a falência do sistema penal.

Posteriormente, realiza-se uma oposição entre o atual modelo de Justiça Criminal e o modelo

restaurativo, apontando as principais falhas daquele e as soluções do ideal apresentadas por este.

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Por fim, estudam-se as (im)possibilidades de implementação da Justiça Restaurativa no Brasil,

tendo em vista a adoção dos princípios da indisponibilidade da ação penal e da legitimidade e as brechas da

legislação que possibilitam o encaminhamento do caso ao modelo restaurativo.

2. (In)eficiência e (des)legitimidade do sistema punitivo

A Justiça Criminal tem como principal objetivo manter o convívio pacífico entre os membros da

sociedade. Para tanto, o Estado detém o poder punitivo.

No século XVIII, surge a privação de liberdade como alternativa mais humana aos castigos

corporais e à pena de morte. Contudo, poucos anos depois de sua implementação, as prisões passam a ser

empregadas como principal, senão o único, instrumento utilizado pelo Estado a fim de exercer o ius

puniendi, instrumento este que, na verdade, deveria ser utilizado como ultima ratio.

Essa utilização extrema e irracional da prisão, além de não cumprir com as funções que legitimam

a existência da Justiça Criminal, fere de forma irreparável os direitos e garantias dos seres humanos.

Conforme alerta Lopes Junior: “A idéia de que a repressão total vai sanar o problema é totalmente ideológica e

mistificadora. Sacrificam-se direitos fundamentais em nome da incompetência estatal em resolver os problemas

que realmente geram a violência”.1

Baratta cita que os efeitos marginalizadores do cárcere e a impossibilidade estrutural de a instituição

carcerária cumprir as funções que a ideologia penal lhe atribui demonstram o substancial fracasso do

sistema penal tradicional.2 No mesmo sentido, Carvalho anuncia que as incapacidades do sistema penal o

tornam nu, deslegítimo:

“O desvelamento das (in)capacidades do sistema punitivo, pelas inúmeras vertentes da crítica criminológica

(contraposições dos efeitos reais e funções declaradas), desde a apresentação dos efeitos perversos gerados pela

1 LOPES JUNIOR, Aury. Introdução crítica ao processo penal: fundamentos da instrumentalidade constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 16.

2 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. Rio de Janeiro: Revan, 2002. p. 168.

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desigualdade da incidência criminalizadora, deflagrou o desgaste e o esvaziamento em todos os modelos de

justificação, notadamente das doutrinas ressocializadoras”.3

Após o reconhecimento da crise de legitimidade e eficiência do sistema, inúmeras alternativas ao

encarceramento foram propostas e implementadas, a fim de reduzir e/ou conter a punição extrema, como,

por exemplo, as penas e medidas alternativas, inseridas pela Lei 9.099/1995.

Entretanto, as alternativas adotadas somente aumentaram o campo de atuação do direito penal,

revelando uma verdadeira intenção e/ou tentativa de remendar o paradigma punitivo. Nas palavras de

Zehr:

“As populações carcerárias continuam a crescer ao mesmo tempo em que as ‘alternativas’ também crescem,

aumentando o número de pessoas sob o controle e supervisão do Estado. A rede de controle e intervenção se

ampliou, aprofundou e estendeu, mas sem efeito perceptível sobre o crime e sem atender as necessidades essenciais

da vítima e ofensor”.4

Ainda, afirma que:

“A busca de alternativas à privação de liberdade representa uma outra tentativa de remendar o paradigma. Ao

invés de procurar alternativas à pena, o movimento em prol de alternativas oferece penas alternativas. Criando

novas formas de punição menos dispendiosas e mais atraentes que a prisão, seus proponentes conseguem manter o

paradigma em pé. Contudo, pelo fato de constituírem apenas outro epiciclo, não questiona os pressupostos que

repousam no fundamento da punição. E por isso não tem impacto sobre o problema em si – a superlotação

carcerária –, problema para o qual pretendiam ser a solução”.5

Contudo, não há como alterar a situação do sistema penal dentro de um paradigma6 puramente

punitivo-retributivo, no qual, pela própria natureza dos mecanismos existentes (basicamente a pena),

acabará sempre prevalecendo a resposta da força. Sica menciona que:

3 CARVALHO, Salo de. Memória e esquecimento nas práticas punitivas: criminologia e sistemas jurídico-penais contemporâneos. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2008. p. 68.

4 ZEHR, Howard. Trocando as lentes: um novo foco sobre o crime e a justiça. São Paulo: Palas Athena, 2008. p. 62.

5 Idem, ibidem, p. 90.

6 Entende-se como paradigma, segundo Zehr (2008), o modo específico de construir a realidade, de compreender os fenômenos e o mundo. Conforme o autor, os paradigmas moldam a forma como definimos problemas e o nosso reconhecimento do que sejam soluções apropriadas.

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“Em que pese os enormes esforços empreendidos nas últimas décadas por grande parte da doutrina e por um

pequeno número de operadores, não há como avançar na direção de uma justiça penal mais humana, mais

legítima e mais democrática enquanto o atual paradigma permanecer intocado nos seus contornos mais

marcantes: o processo penal como manifestação de autoridade, o direito penal como exercício do poder”.7

Mesmo diante da ineficiência do sistema penal, este resiste intocável e irredutível a qualquer

movimento de reforma mais profunda, introduzindo apenas modificações superficiais, as quais apenas

ratificam as inúmeras falências da Justiça Criminal.

É necessário reduzir o exercício do poder punitivo do sistema penal e substituí-lo por alternativas

eficientes à solução dos conflitos, possibilitando a construção de um novo paradigma, capaz de colaborar

com a transição ao Estado Democrático de Direito, promulgado pela Constituição Federal de 1988 e

neutralizado até então pela resistência articulada pelo sistema penal.8 Como sustentado por Zehr: devemos

trocar as lentes pelas quais enxergamos o crime e a justiça.9

3. Justiça restaurativa x justiça retributiva

A partir do reconhecimento das falhas do sistema punitivo, Rolim questiona:

“E se, no final das contas, estivéssemos diante de um fenômeno mais amplo do que o simples mau

funcionamento de um sistema punitivo? Sem aí, ao invés de reformas pragmáticas ou de

aperfeiçoamentos tópicos, estivéssemos diante do desafio de reordenar a própria idéia de ‘Justiça

Criminal’? Seria possível imaginar uma justiça que estivesse apta a enfrentar o fenômeno moderno da

criminalidade e que, ao mesmo tempo, produzisse a integração dos autores à sociedade? Seria possível

imaginar uma justiça que, atuando para além daquilo que se convencionou chamar de ‘prática

restaurativa’, trouxesse mais satisfação às vítimas e às comunidades? Os defensores da Justiça

Restaurativa acreditam que sim”.10

7 SICA, Leonardo. Justiça restaurativa e mediação penal: o novo modelo de justiça criminal e de gestão de crime. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 119.

8 Idem, ibidem, p. 8.

9 ZEHR, Howard. Op. cit., p. 90.

10 ROLIM, Marcos. A síndrome da Rainha Vermelha: policiamento e segurança pública no século XXI. Rio de Janeiro: Jorge Zahar; Oxford, Inglaterra: University of Oxford, Centre for Brazilian Studies, 2006. p. 90.

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Diante disso, o modelo de Justiça Restaurativa se apresenta como um paradigma contraste à

Justiça Criminal, indicando soluções às principais falhas e ineficiências deste, alterando os focos e as

soluções, conforme será indicado.

Inicialmente, verifica-se que o processo penal é voltado exclusivamente à questão da culpa do

acusado e, uma vez estabelecida, as garantias processuais e os direitos fundamentais são deixados de lado,

resultando em uma menor atenção ao desfecho do processo, conforme destaca Zehr.11

Ainda, ao ser apurada a culpa, focaliza-se o passado, pois se tenta “reconstruir” o fato delituoso em

questão.12 Assim, é possível concluir que o foco não está no dano causado à vítima, ao infrator e à

comunidade, ou na experiência destas na ocorrência do delito, como a Justiça Restaurativa faz, mas sim na

violação à lei e a determinação da culpa.

Em contraposição, o modelo restaurativo foca sua atenção no ato danoso, nos prejuízos causados

aos envolvidos: vítima, ofensor e comunidade e nas possíveis soluções do conflito.

Posteriormente ao estabelecimento da culpa, desloca-se à determinação da punição. Nas palavras

de Zehr: “Culpa e punição são os fulcros gêmeos do sistema judicial. As pessoas devem sofrer por causa do

sofrimento que provocam. Somente pela dor terão sido acertadas as contas. [...] O objetivo básico de nosso

processo penal é a determinação da culpa, e uma vez estabelecida, a administração da dor”.13

Dessa forma, afirma-se que o sistema retributivo busca apenas retribuir o mal feito, sem trazer

qualquer beneficio à comunidade, ou ao infrator e, principalmente, à vítima. Nesse sentido, Zehr assevera

que as instituições e métodos do direito são partes integrantes do ciclo de violência ao invés de soluções

para ela.14

Por sua vez, a Justiça Restaurativa expressa uma forma de justiça centrada na reparação,

representando uma verdadeira ruptura em relação aos princípios de uma justiça retributiva, a qual se baseia

somente nas sanções punitivas.

11 ZEHR, Howard. Op. cit., p. 64.

12 Idem, ibidem, p. 64.

13 Idem, p. 74.

14 Idem, p. 74.

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Além do mais, o processo penal afasta as partes realmente envolvidas no conflito. A manifestação

do acusado resume-se somente ao seu interrogatório quanto aos fatos delituosos, sem haver qualquer

indagação quanto aos motivos que o levaram a cometer o delito, bem como as consequências que este

trouxe em sua vida.

As vítimas são substituídas pela autoridade do Estado, tendo mínima participação no processo

penal, atuando como testemunha ou através de um assistente de acusação, nos delitos processados

mediante ação penal pública incondicionada. Ainda, outorga-se legitimidade às vítimas nos delitos que se

processam mediante ação penal privada e pela ação penal pública condicionada à representação.

Em oposição, a Justiça Restaurativa traz as partes ao centro do processo, oferecendo-lhes

autonomia para expor seus sentimentos e necessidades, bem como a possibilidade de ouvir a outra parte,

num discurso equilibrado. Conforme expõe Pinto, a Justiça Restaurativa promove a democracia

participativa das partes, superando o modelo retributivo:

“A vítima, o infrator e a comunidade se apropriam de significativa parte do processo decisório, na busca

compartilhada de cura e transformação, mediante uma recontextualização construtiva do conflito,

numa vivência restauradora. O processo atravessa a superficialidade e mergulha fundo no conflito,

enfatizando as subjetividades envolvidas”.15

Possivelmente, a maior diferença entre os dois modelos de justiça seja a definição de crime adotada

por cada um deles. Morris refere que o sistema de Justiça Criminal convencional enxerga o crime

principalmente como uma violação de interesses do Estado. Em contraste, a Justiça Restaurativa vai além,

oferecendo decisões sobre como melhor atender àqueles que mais são afetados pelo crime, dando

prioridade aos seus interesses.16

A Justiça Restaurativa propõe reconstruir a noção de crime, especificando que este é mais que uma

transgressão de uma norma jurídica ou uma violação contra o Estado; é, também, um evento causador de

prejuízos e consequências.

15 PINTO, Renato Sócrates Gomes. Justiça restaurativa é possível no Brasil? In: SLAKMON, C.; DE VITTO, R.; PINTO, R. (Orgs.). Justiça restaurativa. Brasília: Ministério da Justiça e Programa das Nações Unidas para o desenvolvimento, 2005. p. 19-40. p. 22.

16 MORRIS, Alisson. Criticando os críticos: uma breve resposta aos críticos da justiça restaurativa. In: BASTOS, Márcio Thomaz; LOPES, Carlos; RENAULT, Sérgio Rabello Tamm (Orgs.). Justiça restaurativa: Coletânea de artigos. Brasília: MJ e PNUD, 2005. Disponível em: <http://www.justica21.org.br/interno.php?ativo=biblioteca>. Acesso em: 21 maio 2011.

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Zehr define as lentes da justiça retributiva como: “O crime é uma violação contra o Estado, definida pela

desobediência à lei e pela culpa. A justiça determina a culpa e inflige dor no contexto de uma disputa entre

ofensor e Estado, regida por normas sistemáticas”.17

Por outro lado, Zehr descreve a forma como a Justiça Restaurativa enxerga o delito: “O crime é

uma violação de pessoas e relacionamentos. Ele cria a obrigação de corrigir os erros. A justiça envolve a vítima, o

ofensor e a comunidade na busca de soluções que promovam reparação, reconciliação e segurança”.18

Conforme expõe Achutti, a infração, na Justiça Restaurativa, deixa de ser um mero tipo penal

violado e passa a ser vista como advinda de um contexto bem mais amplo, de origens obscuras e

complexas, e não de uma mera relação de causa e efeito.19

Brancher destaca que a Justiça Restaurativa define uma nova abordagem sobre a questão do crime

e das transgressões, o que possibilita um referencial paradigmático na humanização e pacificação das

relações sociais envolvidas num conflito.20

Diferentemente das alternativas adotadas, a Justiça Restaurativa se baseia em um paradigma não

punitivo, que apresenta soluções às ineficácias do sistema de justiça criminal atual, alterando o foco do

processo penal no estabelecimento da culpa e punição para o ato danoso, suas consequências e suas

possíveis soluções.

4. A implementação da justiça restaurativa no Brasil

Nos países do sistema common law, o sistema jurídico é mais receptivo ao encaminhamento de

casos à Justiça Restaurativa, principalmente pela grande discricionariedade atribuída ao promotor em

processar ou não, segundo o princípio da oportunidade. Ao contrário do nosso sistema, que continua

17 ZEHR, Howard. Op. cit., p. 171.

18 Idem, ibidem, p. 171.

19 ACHUTTI, Daniel. Modelos contemporâneos de justiça criminal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. p. 73.

20 BRANCHER, Leoberto Narciso. Justiça restaurativa. A cultura da paz na prática da Justiça. Disponível em: <http://jij.tj.rs.gov.br/jij_site/docs/just_restaur/vis%C3o+geral+jr_0.htm>. Acesso em: 8 maio 2011.

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sendo mais restritivo, em virtude da adoção do princípio da indisponibilidade da ação penal pública e da

legalidade.21

Segundo Giacomolli, o princípio da legalidade significa que os agentes oficiais, representantes do

Estado nas funções de investigar, acusar e julgar, não podem agir de acordo com o que lhes convém, mas

segundo critérios estabelecidos na legislação22. Dessa forma, o início, desenvolvimento e término do

processo penal não podem se submeter ao juízo da oportunidade ou a atitudes discricionárias.

Quanto ao princípio da indisponibilidade da ação penal, o autor refere que o Ministério Público,

diante do preenchimento dos requisitos legais à acusação, tem a obrigação de fazê-la, sustentá-la e de

promover sua execução, perante o órgão judicial.23

Todavia, com o advento da Constituição Federal de 1988, com a reforma do Estatuto da Criança

e do Adolescente e, principalmente, com a Lei 9.099/1995 e com base no princípio da oportunidade,

possibilitou-se a aplicação do modelo restaurativo no sistema jurídico brasileiro, em determinados casos.

A Constituição Federal, em seu art. 98, inciso I,24 possibilitou a conciliação e transação em casos

de infração penal de menor potencial ofensivo. Conforme argumenta Pinto, com esta inovação, arrisca-se a

afirmar que o princípio da oportunidade passou a coexistir com o princípio da obrigatoriedade da ação

penal, no sistema jurídico brasileiro.25

21 PINTO, Renato Sócrates Gomes. A construção da justiça restaurativa no Brasil: O impacto no sistema de justiça criminal. Disponível em: <http://www.idcb.org.br/documentos/sobre%20justrestau/construcao_dajusticarestaurativanobrasil2.pdf>. Acesso em: 8 maio 2011.

22 GIACOMOLLI, Nereu José. O processo penal contemporâneo em face do consenso criminal: diálogos corrompidos e persistência no monólogo vertical. In: GAUER, Ruth Maria Chittó (Org.). Criminologia e sistemas jurídico-penais contemporâneos. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2008. p. 245.

23 Idem, ibidem, p. 246.

24 “Art. 98. A União, no Distrito Federal e nos Territórios, e os Estados criarão: I – juizados especiais, providos por

juízes togados, ou togados e leigos, competentes para a conciliação, o julgamento e a execução de causas cíveis de

menor complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo, mediante os procedimentos oral e

sumaríssimo, permitidos, nas hipóteses previstas em lei, a transação e o julgamento de recursos por turmas de juízes

de primeiro grau.”

25 PINTO, Renato Sócrates Gomes. A construção da justiça restaurativa no Brasil: o impacto no sistema de justiça criminal. Disponível em: <http://www.unaerp.br/revistas/index.php/paradigma/article/view/54/65>. Acessado em: 13 jul. 2012.

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Destacam-se, também, todos os crimes processados mediante ação penal privada ou ação penal

pública condicionada à representação da vítima. Segundo Sica, por se tratar de hipóteses em que a

manifestação de vontade da vítima é suficiente para afastar a intervenção penal, abre-se uma oportunidade

direta para conciliação ou discussão quanto à reparação de danos.26

Por outro lado, a Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais regula o procedimento para a

conciliação e julgamentos dos crimes de menor potencial ofensivo, possibilitando a aplicação da justiça

restaurativa, através dos institutos da composição civil (art. 72), transação penal (art. 76) e suspensão

condicional do processo (art. 89).

Primeiramente, o art. 72 da Lei 9.099/1995,27 prevê a possibilidade de composição dos danos

entre as partes, presente representante do Ministério Público, e a aceitação da proposta de aplicação de

pena não privativa de liberdade, em audiência preliminar.

Ainda, o art. 7928 prevê que, em audiência de instrução e julgamento, quando infrutífera a

tentativa de conciliação entre as partes e não havendo proposta pelo Ministério Público, deverá o

magistrado ofertar a composição civil.

Segundo, o art. 76, do mesmo diploma legal,29 disserta quanto à transação penal, referindo que,

havendo representação da vítima ou sendo crime de ação penal pública incondicionada, poderá o

Ministério Público propor pena restritiva de direito ou multas.30

26 SICA, Leonardo. Bases para o modelo brasileiro de Justiça Restaurativa. Revista Jurídica do Ministério Público do Estado de Minas Gerais, Belo Horizonte, n. 12, p. 411-447, 2009. p. 412.

27 “Art. 72. Na audiência preliminar, presente o representante do Ministério Público, o autor do fato e a vítima e, se

possível, o responsável civil, acompanhados por seus advogados, o Juiz esclarecerá sobre a possibilidade da

composição dos danos e da aceitação da proposta de aplicação imediata de pena não privativa de liberdade.”

28 “Art. 79. No dia e hora designados para a audiência de instrução e julgamento, se na fase preliminar não tiver havido possibilidade de tentativa de conciliação e de oferecimento de proposta pelo Ministério Público, proceder-se-á nos termos dos arts. 72, 73, 74 e 75 desta Lei.”

29 “Art.76. Havendo representação ou tratando-se de crime de ação penal pública incondicionada, não sendo caso de

arquivamento, o Ministério Público poderá propor a aplicação imediata de pena restritiva de direitos ou multas, a

ser especificada na proposta.”

30 “Art.76. Havendo representação ou tratando-se de crime de ação penal pública incondicionada, não sendo caso de

arquivamento, o Ministério Público poderá propor a aplicação imediata de pena restritiva de direitos ou multas, a

ser especificada na proposta.”

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Por fim, abre-se possibilidade para a aplicação da Justiça Restaurativa pela redação do art. 89 da

Lei 9.099/1995.31 Nesse caso, amplia-se o rol de crimes contemplados para serem alcançados os crimes de

médio potencial ofensivo, eis que o instituto de suspensão condicional do processo não se limita aos crimes

de menor potencial ofensivo, como os artigos referidos.

Verifica-se, portanto, que para as situações que admitam a suspensão condicional do processo

pode ser feito, também, o encaminhamento do caso à Justiça Restaurativa, pois a par das condições legais

obrigatórias, previstas no § 1.º do referido artigo,32 o § 2.º33 permite a especificação de outras condições,

indicando outra abertura à aplicação do modelo restaurativo.

Observa-se, ainda, a possibilidade de aplicação da Justiça Restaurativa nos crimes contra idosos,

uma vez que o art. 94 da Lei 10.741/2003,34 determina o emprego do procedimento da Lei 9.099/1995

nos delitos cuja pena privativa de liberdade não exceda quatro anos.

O Estatuto da Criança e do Adolescente também impulsiona à implementação da Justiça

Restaurativa, uma vez que recepciona o instituto da remissão, através do art. 126.35 Nesse caso, o processo

poderá ser excluído, suspenso ou extinto, desde que a composição do conflito seja perfectibilizada entre as

partes, de forma livre e consensual.

31 “Art. 89. Nos crimes em que a pena mínima cominada for igual ou inferior a um ano, abrangidas ou não por esta

Lei, o Ministério Público, ao oferecer a denúncia, poderá propor a suspensão condicional do processo, por dois a

quatro anos, desde que o acusado não esteja sendo processado ou não tenha sido condenado por outro crime,

presentes os demais requisitos que autorizem a suspensão condicional da pena (art. 77 do Código Penal).”

32 “Art. 89. (...) § 1.º Aceita a proposta pelo acusado e seu defensor, na presença do Juiz, este, recebendo a denúncia, poderá suspender o processo, submetendo o acusado a período de prova, sob as seguintes condições: I – reparação do dano, salvo impossibilidade de fazê-lo; II – proibição de frequentar determinados lugares; III – proibição de ausentar-se da comarca onde reside, sem autorização do Juiz; IV – comparecimento pessoal e obrigatório a juízo, mensalmente, para informar e justificar suas atividades.”

33 “§ 2.º O juiz poderá especificar outras condições a que fica subordinada a suspensão condicional do processo, desde que adequadas ao fato e a situação pessoal do acusado.”

34 “Art. 94. Aos crimes previstos nesta Lei, cuja pena máxima privativa de liberdade não ultrapasse 4 (quatro) anos, aplica-se o procedimento previsto na Lei 9.099, de 16 de setembro de 1995, e, subsidiariamente, no que couber, as disposições do Código Penal e do Código de Processo Penal.”

35 “Art. 126. Antes de iniciado o procedimento judicial para apuração de ato infracional, o representante do

Ministério Público poderá conceder a remissão, como forma de exclusão do processo, atendendo às circunstâncias

e consequências do fato, ao contexto social, bem como à personalidade do adolescente e sua maior ou menos

participação no ato infracional. Parágrafo único. Iniciado o procedimento, a concessão da remissão pela autoridade

judiciária importará na suspensão ou extinção do processo.”

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Além disso, diante do amplo elastério das medidas socioeducativas, previstas no art. 112 e

seguintes,36 do mesmo diploma legal, verifica-se, da mesma forma, abertura ao modelo restaurativo por

meio da obrigação de reparar o dano.

Seria possível vislumbrar ainda uma ponte para aplicação do modelo restaurativo o instituto do

perdão judicial, previsto nos arts. 107, inciso IX37 e 12038, ambos do Código Penal.

Segundo Pinto, a intervenção dos operadores jurídicos nas práticas restaurativas requer uma

sensibilização e uma capacitação específica para lidar com os conflitos deontológicos e existenciais na sua

atuação, pois estarão, por um lado, jungidos a sua formação jurídico-dogmática e seus estatutos funcionais

e, por outro, convocados a uma nova práxis, que exige mudança de perspectiva.39

O autor esclarece que o procedimento restaurativo jamais poderá contrariar os princípios e regras

constitucionais e infraconstitucionais, violando o princípio da legalidade em sentido amplo. A aplicação da

Justiça Restaurativa deve respeitar as condições para que sua existência, validade, vigência e eficácia sejam

reconhecidas. Caso contrário, o procedimento e seus atos restaram inexistentes, nulos e/ou ineficazes e,

portanto, inaptos para irradiar efeitos jurídicos.40

A implementação da Justiça Restaurativa no Brasil representa a oportunidade de uma Justiça

Criminal mais democrática, que opere real transformação, abrindo caminho para a nova forma de

promoção dos direitos humanos e da cidadania, da inclusão e da paz social com dignidade. Entretanto, as

barreiras e preconceitos jurídicos impedem uma maior aplicação e evolução da Justiça Restaurativa no

Brasil, sendo ainda necessário “mudar aquela velha opinião formada sobre tudo”.

5. Considerações finais

36 “Art. 112. Verificada a prática do ato infracional, a autoridade competente poderá aplicar ao adolescente as seguintes medidas: I – advertência; II – obrigação de reparar o dano; III – prestação de serviço à comunidade; IV – liberdade assistida; V – inserção em regime de semi-liberdade; VI – internação em estabelecimento educacional; VII – qualquer uma das previstas no art. 101, I a VI.”

37 “Art. 107. Extingue-se a punibilidade: (...) IX – pelo perdão judicial, nos casos previstos em lei.”

38 “Art. 120. A sentença que conceder perdão judicial não será considerada para efeitos de reincidência.”

39 PINTO, Renato Sócrates Gomes. Justiça restaurativa: um novo caminho? Revista IOB de Direito Penal e Processo Penal, Porto Alegre, v. 8, n. 47, p. 190-202, dez. 2007-jan. 2008.

40 Idem, ibidem, p. 190-202.

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Aparentemente, a Justiça Restaurativa se apresenta como um modelo utópico, com soluções

simples e, ao mesmo tempo, brilhantes às falhas do sistema de Justiça Criminal. Toma força essa ideia

principalmente diante da adoção de um paradigma, e pensamento, puramente punitivo-retributivo.

Entretanto, durante anos se tentou a implementação de diversas alternativas superficiais, as quais

somente remendaram o sistema e, ao final, ratificaram a sua ineficiência.

A sociedade acredita que a imposição de castigo e dor compõe o conceito de justiça, e que o

diálogo e compreensão não podem fazer parte deste. Além disso, pensa que crime é apenas uma violação às

leis do Estado.

É preciso “trocar as lentes” pelas quais enxergamos o crime e a justiça, conforme sustenta Zehr. E a

Justiça Restaurativa propõe uma verdadeira troca de lentes, alterando o foco do processo penal ao

estabelecimento de culpa e punição para o ato danoso, suas consequências e suas soluções.

A Justiça Restaurativa se mostra como um modelo mais humano, que aproxima as partes

realmente envolvidas e afetadas pelo delito e devolve a estas a competência de resolução dos conflitos.

A adoção do modelo restaurativo indica uma verdadeira forma de transformação, de uma real

possibilidade de mudanças. É um caminho para a concretização da aceitação dos direitos humanos e do

Estado Democrático de Direito.

6. Referências bibliográficas

ACHUTTI, Daniel. Modelos contemporâneos de justiça criminal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009.

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Palas Athena, 2008.

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Embargos infringentes em ação penal originária no STF

Sebastião Ventura Pereira da Paixão Jr. Especialista em Direito do Estado pela UFRGS.

Advogado.

Resumo: O julgamento da Ação Penal 470 – batizada marcialmente de “mensalão” – inaugurou importante discussão processual sobre o cabimento, ou não, de embargos infringentes em ações penais originárias no egrégio STF. O Regimento Interno do Supremo autoriza o recurso. No entanto, a Lei 8038/90 silenciou. Eis, o mérito e oportunidade do presente artigo. Palavras-chave: Mensalão; Embargos Infringentes; Ação Penal Originária; Supremo Tribunal Federal; Devido processo legal. Abstract: The trial of criminal action 470, popularly known as “mensalão” opened an important procedural discussion about the suitability or not of rehearing en banc for original criminal actions at the distinguished Federal Supreme Court. Internal guidelines from that Court authorize the use of that appeal. However, law 8038/90 has silenced it. The aim of this paper is to address these issues. Key words: Mensalão; [request for] rehearing en banc; original criminal action; Federal Supreme Court; due process of law.

O julgamento da Ação Penal 470 – batizada marcialmente de “mensalão” – tem suscitado um

importante debate sobre instigante tema processual: cabem ou não embargos infringentes de decisão

plenária da Suprema Corte em ação penal originária? Bem, antes de uma reposta categórica, é preciso ir

gradualmente dissecando o problema jurídico, evitando, assim, juízos prematuros ou precipitados. Em

especial, quando se fala de proteção da liberdade, é imperativo ter tato e cuidado na aplicação da norma

penal, pois o calor do ímpeto punitivo não pode incorrer em violação das garantias constitucionais

individuais. Nesse contexto, o poder-dever do Estado de impor sanções às transgressões de condutas, sob

hipótese alguma, pode solapar as regras e princípios inerentes ao devido processo legal.

Pois bem. Inicialmente, deve ser destacado que o art. 333 do Regimento Interno do Supremo

(RISTF) dispõe que “cabem embargos infringentes à decisão não unânime do Plenário ou da Turma” que

“julgar procedente a ação penal” (inciso I); posteriormente, o parágrafo único do mesmo art. 333/RISTF

estabeleceu: “O cabimento dos embargos, em decisão do Plenário, depende na existência, no mínimo, de

quatro votos divergentes, salvo nos casos de julgamento criminal em sessão secreta”. Logo, por pura e

simples subsunção normativa, havendo quatro votos divergentes, estaria autorizada a interposição de

embargos infringentes. É o que diz a norma regimental.

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Ocorre que a Lei 8.038/1990, que regulamentou o trâmite da ação penal originária perante as

Cortes Superiores, incorreu em hermético silêncio quanto ao cabimento de embargos infringentes. Assim

sendo, levantam-se vozes sustentando que a referida lei federal revogou tacitamente o art. 333 do RISTF,

colocando uma pá de cal sobre o referido tipo recursal. Entre as ilustres opiniões manifestadas a favor da

revogação, merece destaque o nobre timbre do Professor Lenio Luiz Streck, que pontuou a matéria

afirmando que “a Lei 8.038 foi elaborada exatamente para regular o processo das ações penais originárias.

Logo, não há como sustentar, hermeneuticamente, a sobrevivência de um dispositivo do RISTF que trata da

matéria de modo diferente”.1

Em que pese a respeitabilidade natural dos pareceres em sentido contrário, entendo que a Lei

8.038/1990 não revogou o art. 333 do RISTF. Ou seja, no caso de prolação de quatro votos divergentes,

será cabível a interposição de recurso de embargos infringentes, nos exatos termos da norma regimental.

Aliás, a Lei 8.038/1990, ao invés de revogar, reforçou o poder normativo do RISTF. Isso porque, no art.

12 da referida, foi expressamente estabelecido que: “finda a instrução, o Tribunal procederá ao julgamento,

na forma determinada pelo regimento interno”.

Frisa-se, por relevante e imperativo: “na forma determinada pelo regimento interno”! Ora, se a

própria lei se reporta ao regimento, é lógico que suas disposições normativas seguem vigentes. Até mesmo

porque é de intuir que, tratando de matéria penal vinculada ao sacrossanto direito à liberdade, o legislador

federal teria tratado de eventual revogação recursal de forma expressa e pontual, sem deixar dúvidas ou

questionamentos. E a única certeza que se tem é que a Lei 8.038/1990 se reportou expressamente às

disposições regimentais.

Dessa forma, salvo melhor juízo, o art. 333 do RISTF permanece absolutamente válido e

normativamente hígido. Conforme já destacado, a apontada Lei 8.038/1990, em nenhum momento, linha

ou entrelinha, disse ou fez menção de que almejava revogar o dispositivo regimental. É certo que o art. 44

da referida Lei dispôs que “revogam-se as disposições em contrário”. Todavia, as disposições que não a

contrariem, que a complementem ou versem sobre tópicos jurídicos autônomos e independentes

permanecem em absoluto vigor. Falando nisso, um detalhe merece ser realçado: a Lei 8.038/1990 não

disse uma vírgula sequer sobre “embargos de declaração” e, até agora, não há notícias de fontes a sustentar

o descabimento de declaratórios na espécie. O vazio da crítica especializada soa, no mínimo, sintomático e

revelador.

1 Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2012-ago-13/mensalao-nao-cabem-embargos-infringentes-supremo>.

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Aliás, tratando-se de tipo recursal penal e, por assim ser, vinculado à garantia fundamental da

ampla defesa, não parece razoável que a adoção de um critério de revogação tácita seria o melhor

conselheiro hermenêutico para o caso. Isso porque a defesa da liberdade não pode ficar à mercê de juízos

subjetivos sobre palavras não ditas ou plantadas na desconhecida imaginação do artífice da lei. Sobre o

ponto, merece destaque judicioso voto do Ministro Moreira Alves no qual afirma que “a revogação tácita só

ocorre quando há incompatibilidade entre leis que sucedem no tempo” (RE 90993/SP, 2.ª Turma, DJ

03.07.1979). Além disso, no caso em questão, o silêncio da lei deve ecoar em benefício do acusado e

jamais em favor do acusador, sob pena de resgatarmos tristes e vetustos métodos inquisitórios de

processualística penal.

Enaltecendo uma visão orgânica do ordenamento jurídico, bem como as diretrizes inerentes à

ampla defesa em matéria penal, é possível concluir que a Lei 8.038/1990 não é incompatível com o art.

333 do RISTF. Ao contrário, a referida Lei federal se compatibiliza com a referida norma regimental, pois

dispôs – em alto e bom som – que, “finda a instrução, o Tribunal procederá ao julgamento, na forma

determinada pelo regimento interno”. Portanto, enquanto pertencer ao RISTF, o art. 333 legitimará a

interposição de embargos infringentes em ações penais originárias da Suprema Corte. Aos mais apressados,

é bom que se diga que não se está, aqui, a premiar a impunidade ou a morosidade judicial, mas apenas

procurando garantir a inegociável defesa da liberdade, nos exatos termos da lei. E o que a lei quer, a

Constituição aprova, pois, como um dia disse Rui, “fora da lei não há salvação”.

Não há dúvida de que o Brasil precisa de melhores dias. Dias de legalidade, de espírito público e

decência. No entanto, nossa ânsia por dias melhores não pode significar, jamais, o menosprezo às garantias

traçadas na Constituição. Lembro, ainda, que os embargos infringentes não possuem regra geral, efeito

suspensivo, não prejudicando, assim, o imediato cumprimento da pena. É claro que, diante de alguma

anormalidade material ou processual, a defesa poderá buscar fundamentadamente a excepcional concessão

suspensiva. Nesse caso, caberá monocraticamente ao relator, ou ao órgão colegiado, deliberar pelo

deferimento ou não de eventual efeito suspensivo.

Aqui chegando, encerramos dizendo que procuramos fazer uma análise exclusivamente técnica da

possibilidade ou não do manejo de embargos infringentes em ações penais originárias perante a colenda

Suprema Corte. Entendemos que o Supremo, ao julgar o mensalão, cresce aos olhos da nação. Embora o

julgamento não esteja encerrado, já é possível dizer que a impunidade política não irá mais ter vida fácil no

Brasil. E não terá vida fácil porque a Alta Corte, ao contrário do que muitos pensavam, cumpriu o seu

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dever e está aplicando a lei. Só que a mesma lei que serve para punir, também tem que servir para

defender. E o exercício do direito recursal é a única forma que a defesa tem para corrigir eventuais deslizes

decisórios, inerentes à falibilidade humana. Se o duplo grau não é um princípio jurídico absoluto, o direito

de defesa deve ser tratado com absoluto cuidado. Ou será que o mundo da lei autoriza garrotes recursais?

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Questionamentos à constitucionalidade das prisões

Laís Freitas Cruz Universidade Estadual de Santa Cruz.

Resumo: A história das sanções é a história do próprio Direito Penal. Pensar em uma forma de solucionar os entraves sociais causados pela prática de ato que figure como ilícito penal, ou seja, que foge ao convencionado socialmente, ainda é um dos maiores problemas encontrados pela Criminologia. É considerando essa realidade que se apresenta o estudo em tela, questionando a eficácia e constitucionalidade do instituto da pena privativa de liberdade que, hodiernamente, é a sanção aplicável à maior parte dos delitos cometidos nas sociedades civis conhecidas. Palavras-chave: criminologia; prisões; constitucionalidade; prisão provisória; ressocialização.

Abstract: The history of sanctions is the history of criminal Law itself. Finding a way to deal with social barriers that are caused by an act which is featured as a criminal violation, that is, an act which is not socially convenient is still one of the major problems found by criminology. This paper will be considering this reality and challenging the efficacy and the constitutionality of a sentence with deprivation of freedom, which currently, is the sanction applied to most offenses committed in the known civil societies. Key words: criminology; prisons; constitutionality; pre-trial detention; re-socialization.

Sumário: 1. A importância do crime e a função social da pena – 2. Os fundamentos e objetivos da prisão – 3. Críticas aos métodos diversos da prisão para a manutenção da ordem social – 4. Conflitos principiológicos na Constituição e o uso da ponderação – 5. A prisão provisória e sua flagrante inconstitucionalidade – 6. Referências bibliográficas.

Questionar a constitucionalidade das penas restritivas de liberdade é tarefa deveras árdua.

Mister, para atingir tal fito, remontar os fatores históricos que levaram a prisão a se tornar uma

das, senão a mais importante forma de sancionar os atos considerados ofensivos ao bem-estar

social.

Na Europa absolutista do século XVI o rei era detentor soberano de todo o poder.

Questionar suas decisões era conduta inadmissível para qualquer súdito. Com tamanho poder

concentrado em suas mãos, o rei poderia, ao seu critério, determinar quais punições seriam

aplicadas a cada caso. Esse foi um período em que as maiores atrocidades foram cometidas:

torturas, execuções, castigos das mais diversas naturezas, dentre outros. A prisão, até então, nada

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mais era que uma forma de assegurar que a sanção cabível estipulada pelo rei absoluto fosse

aplicada.

Com a ascensão do Iluminismo, todavia, essa ideia de embate físico e humilhante entre o

Estado e o indivíduo delinquente passou a ser desconstruída, sendo propostas alternativas, como o

trabalho forçado, a desonra e o banimento do indivíduo, para melhor promover a punição pelas

ações ofensivas à ordem social. Michel Foucault, em sua obra Vigiar e punir, discorre acerca do

que sucedeu à época:

“O protesto contra os suplícios é encontrado em toda parte na Segunda metade do século XVIII:

entre os filósofos e teóricos do direito; entre juristas, magistrados, parlamentares; nos chaiers de

doléances e entre os legisladores das assembléias. É preciso punir de outro modo: eliminar essa

confrontação física entre soberano e condenado; esse conflito frontal entre a vingança do

príncipe e a cólera contida do povo, por intermédio do supliciado e do carrasco.(...) Pode-se

compreender o caráter de obviedade que a prisão-castigo muito cedo assumiu. Desde os

primeiros anos do século XIX, ter-se-á ainda consciência de sua novidade; e entretanto ela

surgiu tão ligada, e em profundidade, com o próprio funcionamento da sociedade, que relegou

ao esquecimento todas as outras punições que os reformadores do século XVIII haviam

imaginado”.1

Passado esse período, as propostas iluministas, em sua maioria, foram rejeitadas ou

cumpridas de forma insatisfatória, mas deixaram, entretanto, um traço importante para moldar o

pensamento social, qual seja: não se deve pensar apenas no dano, deve-se priorizar o indivíduo.

Dessa valorização do “pensar o indivíduo”, bem como com as alterações trazidas pelo capitalismo,

surge a necessidade de controle social em detrimento da mera reparação do dano, o que, em

suma, corroborou com o desenvolvimento da ideia de prisão-sanção, que até então estava

adormecida.

Admitindo a prisão-sanção como um instituto relativamente recente para o Direito e

levando em consideração ter sido ela, para o contexto em que se instaurou, a melhor alternativa

1 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. 25. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2002. p. 63-195.

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para uma sociedade cansada dos massacres absolutistas e necessitada de uma forma humanista de

controle das massas, é que se pode passar a questionar o seu fundamento, bem como a sua

aplicabilidade nos moldes dos princípios constitucionais brasileiros.

Será a prisão o melhor meio que o Estado tem para preservar o equilíbrio social? Será essa

a alternativa ideal para a redução e prevenção da criminalidade? Ela se coaduna aos fundamentos

constitucionais? E a prisão provisória, deve ser analisada por outro prisma? Esses são apenas alguns

dos questionamentos que se podem fazer a respeito dos aspectos constitucionais da prisão, os

quais serão alvos dos tópicos seguintes.

1. A importância do crime e a função social da pena

O estudo dos fatores que impulsionam o crime, bem como o impacto que o mesmo causa

na sociedade, é determinante para definir políticas de combate e prevenção do mesmo. Entender

o que leva alguém a delinquir e como isso se reflete no contexto de determinado grupo tem sido

objeto de estudo de muitos pensadores desde os períodos mais remotos.

Emile Durkheim, por exemplo, criou a noção de fato social, ou seja, pensou a existência

de determinadas ações e acontecimentos que seriam comuns a uma convivência em sociedade.

Dentro da noção de fato social ele inseriu o crime. Para ele o crime seria um fato social normal,

sem qualquer característica patológica, partindo da verificação de que em toda e qualquer

sociedade haverá o crime, independentemente de fatores econômicos, políticos ou culturais. Sobre

isso ele discorre:

“Não há, portanto, um fenômeno que apresente de maneira tão irrefutável como a

criminalidade todos os sintomas da normalidade, dado que surge como estreitamente ligado às

condições da vida coletiva. Transformar o crime numa doença social seria o mesmo que

admitir que a doença não é uma coisa acidental mas que, pelo contrário, deriva em certos casos

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da constituição fundamental do ser vivo; consistiria em eliminar qualquer distinção entre o

fisiológico e o patológico”.2

O crime existe, segundo Durkheim, pois uma sociedade possui também uma consciência

coletiva, formada pela união de várias consciências individuais, de modo que a ação capaz de ir

contra essa consciência seria considerada criminosa. Impossível assim, na opinião do filósofo, que

o crime desaparecesse de qualquer meio social, já que, ainda que determinados sentimentos

coletivos fossem expurgados do grupo em que se inserem, outros viriam como consequência do

desaparecimento dos anteriores, e novas ações criminosas seriam então concebidas. Essa noção de

pensamento/sentimento coletivo implica, inclusive, o entendimento de que a linha tênue entre o

imoral e o criminoso é consequência deste “senso comum”, em que o primeiro nada mais seria

que um mero prolongamento do segundo. É o que se extrai dos seguintes ensinamentos:

“Para que os assassinos desapareçam é preciso que o horror pelo sangue vertido se acentue nessas

camadas sociais donde provêm os assassinos; mas para que isto aconteça é necessário que a

sociedade global se ressinta do mesmo modo. (...) Assim, o roubo e a simples desonestidade não

chocam senão um único sentimento altruísta, o do respeito pela propriedade alheia. Mas este

sentimento é menos chocado por um destes atos do que pelo outro; e como, por outro lado, não

tem na consciência média a intensidade suficiente para sentir vivamente a mais ligeira destas

duas ofensas, esta é alvo de uma maior tolerância. Eis a razão por que apenas se critica o

desonesto enquanto se pune o ladrão”.3

Diante disso, Durkheim entende que o crime é necessário e útil à sociedade, posto estar

ligado às condições fundamentais para o seu desenvolvimento legal e moral, dada sua

característica de representar as mudanças que vêm ocorrendo no pensamento coletivo. Deixar de

pensar o crime como uma patologia e pensá-lo então como fato social útil e necessário faz surgir

uma nova ideia para a própria pena, já que esta nada mais é senão a consequência daquele:

2 DURKHEIM, Emile. As regras do método sociológico. São Paulo: Martin Claret, 2002. p. 83.

3 Idem, p. 84.

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“Com efeito, se o crime é uma doença, a pena é o remédio para ele e não pode ser concebida de

modo diferente; assim, todas as discussões que levante incidem sobre a questão de saber em que

deve consistir para desempenhar seu papel de remédio. Mas, se o crime não tem nada de

mórbido, a pena não pode ter como objetivo curá-lo e a sua verdadeira função deve ser outra”.4

Conforme já explanado anteriormente, a pena, em seus moldes iniciais, tinha a função de

repressão, um castigo quase bíblico pelo mal causado. Para Kant e para Hegel a sua principal

finalidade era restabelecer o equilíbrio social e a ordem. Com a mudança do pensar o crime e

repensar a punição, passou-se a buscar a função preventiva e protetiva da pena, não mais se

aceitando a função única de castigar e punir. Nesse sentido, preleciona Cesare Beccaria em seu

livro Dos delitos e das penas:

“É melhor prevenir os crimes do que ter de puni-los; e todo legislador sábio deve procurar antes

impedir o mal do que repará-lo, pois uma boa legislação não é senão a arte de proporcionar aos

homens o maior bem estar possível e preservá-los de todos os sofrimentos que se lhes possam

causar, segundo o cálculo dos bens e dos males da vida”.5

Com essa humanização da pena e a substituição das corporais pelas privativas de liberdade

buscou-se a futura reinserção do criminoso no seio social, surgindo, dessa forma, a função

ressocializadora da pena, para que, após o seu efetivo cumprimento, aquele indivíduo não mais

viesse a delinquir. Teria de haver, em harmonia com a privação da liberdade, fatores que

impulsionassem o convívio sadio em comunidade daquele que, anteriormente, causara algum mal

ao sentimento social. A grande questão é saber se pode haver ressocialização em conjunto com a

segregação, conceitos tão distintos entre si.

2. Os fundamentos e objetivos da prisão

4 Idem, p. 88.

5 BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. 13. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 1999. p. 125.

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Sabendo que a prisão surge com o fito de ser a sanção ideal para punir aquelas condutas

lesivas à sociedade em substituição às desumanas penas impostas pelo regime absolutista, cabe

traçar os fundamentos com os quais foram instituídas, bem como os objetivos a que se destinam.

A prisão, em sua forma mais primitiva, demonstra conter elementos de origem cristã, pautada

principalmente na penitência, de modo que sua finalidade inicial era a de submeter o criminoso a

condições precárias de vida como pagamento pelo mal que teria causado à sociedade. O

sofrimento, nesse caso, seria a forma de libertação e a moeda de troca pelo perdão divino e,

consecutivamente, social. Apesar dos apelos humanistas do século XVIII, a pena de prisão,

inicialmente, não se constituiu em um instrumento de recuperação do indivíduo nem como

medida exemplar para coibir novas possibilidades de transgressão.

Com a mudança do pensamento político e social após o século XVIII, os objetivos da

prisão também foram reformulados. Passou-se a vislumbrar, além da intimidação ou prevenção, a

recuperação social e moral do condenado. Nesse sentido, deve-se ter em mente que a prisão, em

sentido amplo, está sujeita a diferentes lógicas sociais, dentre as quais podemos destacar duas

delas: a neutralização do indivíduo pelo encarceramento, a fim de que ele não mais conviva em

sociedade, tendo em vista que sua participação em qualquer meio social se mostra danosa; e a

prisão ressocializadora, que é aquela que surge como meio de, além de punir o indivíduo pela sua

conduta desviada, recuperar o delinquente e torná-lo apto a conviver harmoniosamente em

sociedade.

Vale salientar a importância dos próprios fundamentos do poder de punir do Estado, ou

seja, da sanção penal, como principais legitimadores para o cárcere-sanção. Álvaro Pires6 defende

a existência de quatro principais justificativas para a sanção penal, quais sejam: a dissuasão, que

visa à prevenção, o que seria, em outras palavras, a punição como um exemplo para que as

pessoas, ao se depararem com as consequências do crime, desistam, motivadas pelo medo de

sofrerem mal análogo, de cometer delitos; a expiação, esta adotada, inclusive, por Kant, o qual

denominou "retribuição". Consiste na ideia de que a pena deve ser aplicada na proporção do dano

6 PIRES, Álvaro. A racionalidade penal moderna, o público e os direitos humanos. Novos Estudos CEBRAP, n. 68, São Paulo: CEBRAP, 2004.

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causado. Remete ao pensamento da Lei de Talião: “olho por olho, dente por dente”; a eliminação

do crime, ou seja, o impedimento de que aqueles interessados em delinquir assim o façam. Esse

pensamento é importante para fundamentar a pena de morte em alguns países como a única

alternativa para aqueles que são considerados “irrecuperáveis”; por fim, e mais importante para o

tema em tela, é a reinserção, que nada mais é senão o objetivo do Estado de tornar aquele

indivíduo, com manifesta conduta diversa da considerada pela sociedade como correta, apto a

conviver na comunidade em que delinquiu.

Esse último fundamento da sanção é justamente aquele que se coaduna a um dos

principais objetivos da prisão, qual seja, a ressocialização do indivíduo, já que, como nosso Estado

não contempla a punição pela aplicação da prisão perpétua, entende-se que o encarceramento

pressupõe a intenção de um livramento posterior. Para tanto, esse indivíduo que será privado da

sua liberdade e futuramente reinserido em um meio social não deve mais exibir a mesma conduta

causadora da sua condenação. O outro objetivo, conforme já exposto, é a punição retributiva do

mal causado pelo criminoso, de modo que, além de estabelecer um verdadeiro castigo pelo crime,

previna a prática de novos delitos, tanto pelo próprio condenado, quanto pelos demais integrantes

da sociedade, que terão como exemplo a punição aplicada àquele caso.

O maior problema da prisão como meio ressocializador reside justamente na

impossibilidade lógica de tal função para o cárcere. Ora, não se pode adaptar uma pessoa a uma

vida social removendo-a do meio em que se encontrava. A cultura da comunidade carcerária, após

certo período, acaba imbricando-se no preso de tal forma que se torna tarefa hercúlea reaver nele

os traços que o ligavam aos comportamentos da sociedade fora dos presídios. É o que confirma o

entendimento de Della Torre:

“Os grupos isolados muito tempo vão assumindo forma própria, caracterizada pelas suas

condições naturais e, ao mesmo tempo, pela ação do meio que os obriga a determinadas

atividades. (...) depois que o indivíduo está socializado, integrado à sociedade, se sofrer

isolamento durante longo período, poderá ocorrer: diminuição das funções mentais (torna-se

imbecil ou melancólico) ou mesmo loucura (está sujeito a delírios, alucinações e até

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desintegração mental). Há inúmeros casos de prisioneiros que enlouqueceram nas prisões ou que

quando de lá saíram já não eram os mesmos”.7

Dessarte, nesse ínterim, o que se extrai é a certeza de que apenas o objetivo da punição

vem sendo atingido, ainda que de forma desproporcional – já que em muitos dos casos as penas

acabam sendo mais lesivas ao indivíduo que o crime cometido o foi para a vítima –, já que vimos

que a ressocialização do indivíduo pela utilização do cárcere se mostra ineficaz, o que, de certo

modo, nos remete aos fundamentos ainda cristãos do sofrimento como remissão pelos pecados,

fundamento esse ao qual o Estado, em uma visão humanista, há muito se comprometeu a afastar

da aplicação do seu Poder de Punir.

3. Críticas aos métodos diversos da prisão para a manutenção da ordem social

Ao se conceber a prisão como método ineficaz no cumprimento da função social da pena,

qual seja, a ressocialização, há de se pensar em alternativas para sancionar os atos lesivos à ordem

social. Diante disso, o ilustríssimo doutrinador Claus Roxin8, em seu trabalho Tem futuro o

direito penal?, discorre acerca das formas possíveis de combate à criminalidade e sua efetividade.

Em um primeiro ponto se pensa na prevenção como principal forma de combate ao

crime. O que se questiona é se uma vigilância perfeitamente ativa pode levar a criminalidade ao

desaparecimento. A resposta é negativa. Não se pode atingir esse fito, em suma por contrariar as

concepções básicas do Estado de Direito. Implementar uma vigilância capaz de prevenir todos os

tipos de crimes praticáveis em um Estado Democrático seria o mesmo que invadir a esfera privada

do cidadão, cercear direitos e liberdade, o que iria muito além dos interesses precípuos de tal

medida, incorreria em um desequilíbrio demasiado entre direitos individuais e coletivos. É o que

preleciona Roxin na obra em apreço:

7 DELLA TORRE, Maria Benedita Lima. Homem e a sociedade: uma introdução à sociologia. 12. ed. São Paulo: Editora Nacional, 1984. p. 51.

8 ROXIN, Claus. Tem futuro o direito penal? Revista dos Tribunais, São Paulo, n. 790, ago. 2001.

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“Acima de tudo, a limitação à esfera privada e íntima que um sistema de vigilância traz

consigo não é de modo algum ilimitadamente permitida num Estado de Direito Liberal. Se,

por exemplo, toda a esfera privada dos suspeitos, até seu dormitório, for submetida a uma

vigilância acústica e óptica, retira-se destas pessoas, entre as quais se encontrarão

necessariamente vários inocentes, qualquer espaço em que possam construir sua vida livres da

ingerência estatal, atingindo-se, assim, o núcleo de sua personalidade. Isto seria um preço

demasiado caro, mesmo para um combate eficiente ao crime”.

Isto posto, a conclusão a qual se chega é a de que uma vigilância tão intensiva que seja

capaz de desaparecer com a criminalidade seria inviável em um Estado de Direito, dado seu

caráter invasivo. Esta pode servir, todavia, dentro dos limites do permitido, como efetivo auxiliar

do Direito Penal para reduzir e combater o crime.

Em um segundo momento se pensa no desenvolvimento tecnológico e científico capaz de

propiciar um tratamento psíquico ou social para o infrator. Ocorre, todavia, que conforme já

discorrido em tópico anterior, não se deve pensar no crime como uma patologia, de modo que

apenas alguns delinquentes realmente necessitam de tratamento médico, e dentre estes, apenas

outra quantidade restrita responderia ao mesmo, já que em determinados tratamentos é

estritamente necessária a cooperação do paciente.

Pensa-se ainda na descriminalização e na diversificação, como forma de evitar a sanção

penal. Essa alternativa, em tese, seria a mais aplicável, de modo que se eliminem dos dispositivos

penais aquelas ações cuja sanção legal não seja necessária na manutenção da ordem e da paz social.

Roxin explica:

“Comportamentos que somente infrinjam a moral, a religião ou a political correctedness, ou

que levem a não mais do que uma autopericlitação, não devem ser punidos num Estado Social

de Direito. Pois o impedimento de tais condutas não pertence às tarefas do direito penal, ao

qual somente incumbe impedir danos a terceiros e garantir as condições de coexistência

social””.9

9 Op. cit., p. 465.

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Aqui se vislumbra um futuro promissor para o Direito Penal. Todavia, ainda não se

denota a substituição da pena privativa de liberdade, já que nem todas as condutas podem ser

descriminalizadas, restando aquelas que, por sua gravidade (entre os comportamentos que lesam o

sentimento coletivo), devem continuar sendo sancionadas pelo Estado.

Para esses casos a diversificação tem se mostrado uma alternativa interessante. Dessa

forma, pode-se pensar em evitar a punição/condenação determinada por um Juiz de Direito em

detrimento de serviços prestados à comunidade, bem como a reparação do dano em questão. Nas

palavras do supracitado autor:

“Ficou demonstrado que contra autores não habituais de delitos de menor gravidade, o início

de um processo penal ou as mencionadas medidas impeditivas da pena possuem uma eficácia

preventiva, que torna supérflua a punição. A diversificação é um meio de combate ao crime

mais humano do que a pena, devendo portanto ser preferida a esta. Neste ponto está a parcial

razão do abolicionismo. Mas a diversificação só é possível dentro de certos limites, e ainda

assim sob a vigilância estatal”.10

Para substituição total da pena privativa de liberdade ainda não existe uma solução viável.

Contudo, até que esta solução seja encontrada, pode-se lançar mão da junção dessas opções

supraelencadas para que se reduza a sanção por meio da privação de liberdade a um núcleo

restrito.

4. Conflitos principiológicos na Constituição e o uso da ponderação

Um grande problema enfrentado quando a questão é Direitos Individuais versus Direitos

Coletivos é justamente o conflito entre os princípios constitucionais que se instaura em tais casos.

Quando se trata do Direito Penal, em especial, entram em contraponto o princípio da presunção

de inocência (individual) e o princípio da segurança e ordem pública (coletivo).

10 Op. cit., p. 467.

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A melhor solução para o magistrado, nesses casos, é fazer uso da ponderação e, em cada

caso concreto, aplicar aquele que se sobressaia e que demonstre mais relevância para a situação. É

assim que se posiciona Robert Alexy:

“Deve-se reconhecer aos princípios uma dimensão de peso ou importância. À vista dos elementos

do caso concreto, o intérprete deverá fazer escolhas fundamentadas, quando se defronte com

antagonismos inevitáveis, como os que existem entre a liberdade de expressão e o direito de

privacidade, a livre iniciativa e a intervenção estatal, o direito de propriedade e a sua função

social. A aplicação dos princípios se dá, predominantemente, mediante ponderação”.11

Essa ponderação, em suma, é regida pelo princípio da razoabilidade, no qual o

ordenamento é visto como um todo, para que se entenda como deve se dar a análise

principiológica de determinado caso dentro de um contexto constitucional, com fulcro no que a

Carta Magna, como um todo, sugere, evitando, assim, que qualquer um desses princípios seja

completamente afastado, senão “valorado” como subsidiário em relação ao mais adequado na

situação em apreço. Ainda nos atendo às lições de Alexy temos que:

“[...] Não significa declarar inválido o princípio afastado nem que no princípio afastado tenha

que se introduzir uma cláusula de exceção. O que sucede, mais exatamente, é que, sob certas

circunstâncias, um dos princípios precede o outro. Sob outras circunstâncias, a questão da

precedência pode ser solucionada de maneira inversa. É isto o que se quer dizer quando se

afirma que, nos casos concretos, os princípios têm diferente peso e que prevalece o princípio com

maior peso”.12

O que ocorre, ademais, é a impossibilidade de flexibilização dos Fundamentos da

República, que são os verdadeiros pilares que regem o nosso Estado. Diante disso, ao se analisar a

Constituição como um todo a fim de realizar a ponderação, é bem verdade que estará se

recorrendo a esses fundamentos para verificar qual princípio deverá ser maior valorado em relação

ao outro.

11 ALEXY, Robert. Apud ROTHENBURG, Walter Claudius. Princípios constitucionais. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2003.

12 ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997.

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Um desses Fundamentos Republicanos é justamente a aclamada Dignidade da Pessoa

Humana, que deve ser buscada sempre e de toda forma, independentemente da situação, não

podendo haver, como tal, flexibilização da mesma em detrimento de qualquer princípio. É

justamente diante dessa fundamentação que se verifica a total desconformidade do atual sistema

penal brasileiro com um dos pilares constitucionais, já que, manter em cárcere, dando tratamento

animalesco ao ser humano, privando-o da sua liberdade – um dos bens mais preciosos de

qualquer indivíduo – em muito contraria essa busca constante pela Dignidade Humana.

5. A prisão provisória e sua flagrante inconstitucionalidade

A Constituição Federal de 1988, em seu art. 5.º, estabelece que: "ninguém será privado de

liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;", e que: "ninguém será considerado culpado até o

trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Além disso, a Declaração Universal dos

Direitos Humanos, em seu art. 11.1, versa que:

"Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não se

prova sua culpabilidade, de acordo com a lei e em processo público no qual se assegurem todas

as garantias necessárias para a sua defesa".

A despeito de tudo isso, temos em nosso ordenamento as chamadas prisões provisórias,

como a prisão em flagrante, a prisão preventiva, e a prisão temporária. Essas modalidades de

prisão possuem natureza cautelar, e tem como justificativa resguardar a garantia do resultado útil

do processo. Para tanto, insta salientar seu caráter de medida excepcional e não permanente.

É necessário ressaltar a importância dos artigos narrados inicialmente, para que se entenda

que, de acordo com eles, estabeleceu-se o princípio constitucional da presunção de inocência, o

qual dispõe, basicamente, que todos devem ser considerados inocentes até prova em contrário. O

Estado não pode, em hipótese alguma, restringir direitos ou aplicar sanções ao indivíduo

motivado pela simples suspeita da prática de ato delituoso, de forma a presumir a sua

culpabilidade.

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Essas prisões provisórias restringem a liberdade do indivíduo muitas vezes antes até da

instauração processual, como é o caso da prisão temporária, na qual não há sequer uma ação penal

movida em desfavor do indiciado, servindo a mesma apenas para atender a finalidades

investigatórias prévias.

O que se denota é que esse tipo de prisão remonta as características dos tribunais da

inquisição, em que toda e qualquer forma de coação era válida no intuito de promover a

“voluntária confissão” por parte do réu. Essa medida acaba por tornar ainda mais penoso e

degradante o processo penal, que tanto já agride o ser humano.

Nesse sentido, discorre Gomes Filho:

"À luz da presunção de inocência, não se concebem quaisquer formas de encarceramento

ordenadas como antecipação da punição ou que constituam corolário automático da

imputação, como sucede nas hipóteses de prisão obrigatória, em que a imposição da medida

independe da verificação do periculum libertatis”. 13

A regra para o Direito deve ser a liberdade, a qual necessariamente deve ser protegida de

todas as formas e, ainda que seja indispensável a realização de um processo penal regular, não se

pode proceder uma supervalorização do princípio do in dubio pro societatis em detrimento da

mesma. É preciso que exista igualdade entre os sujeitos do processo, de modo que a relação

processual não fique desequilibrada.

A prisão provisória possui um caráter de arbitrariedade; dada a desnecessidade de

fundamentação por meio de qualquer prova de que o indivíduo que terá sua liberdade cerceada

realmente concorreu para a prática do delito pelo qual está, antecipadamente, sendo sancionado;

que se desvia do ideal de Estado Democrático de Direito, de modo que isso, por si só, implica

uma total inadequação do meio para atingir a finalidade que almeja.

6. Referências bibliográficas

13 GOMES FILHO, Antonio Magalhães. Presunção de inocência e prisão cautelar. São Paulo: Saraiva, 1991.

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ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentais. Madrid: Centro de Estúdios Constituionales,

1993.

BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. 13. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 1999.

DELLA TORRE, Maria Benedita Lima. Homem e a sociedade: uma introdução à sociologia. 12. ed.

São Paulo: Editora Nacional, 1984.

DURKHEIM, Emile. As regras do método sociológico. São Paulo: Martin Claret, 2002.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. 25. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2002.

GOMES FILHO, Antonio Magalhães. Presunção de inocência e prisão cautelar. São Paulo: Saraiva,

1991.

KANT, Immanuel. A metafísica dos costumes. Trad. Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2003.

PIRES, Álvaro. A racionalidade penal moderna, o público e os direitos humanos. Novos Estudos

CEBRAP, n. 68, São Paulo: CEBRAP, 2004.

ROTHENBURG, Walter Claudius. Princípios constitucionais. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2003.

ROXIN, Claus. Tem futuro o direito penal? Revista dos Tribunais, São Paulo, n. 790, ago. 2001.

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Iniciar com a titulação acadêmica (da última para a primeira); caso exerça o magistério,

inserir os dados pertinentes, logo após a titulação; em seguida completar as informações

adicionais (associações ou outras instituições de que seja integrante) – máximo de três;

finalizar com a função ou profissão exercida (que não seja na área acadêmica).

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Exemplo:

Pós-doutor em Direito Público pela Università Statale di Milano e pela Universidad de

Valencia. Doutor em Direito Processual Civil pela PUC-SP. Professor em Direito

Processual Civil na Faculdade de Direito da USP. Membro do IBDP. Juiz Federal em

Londrina.

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português e em outra língua estrangeira, preferencialmente em inglês;

5.4. Palavras-chaves (máximo de 10) em português e em outra língua estrangeira,

preferencialmente em inglês: palavras ou expressões que sintetizam as ideias centrais do

texto e que possam facilitar posterior pesquisa ao trabalho.

6) Não serão aceitos trabalhos publicados ou pendentes de publicação em outro veículo, seja em

mídia impressa ou digital.

7) As referências bibliográficas deverão ser feitas de acordo com a NBR 10520/2002 (Norma

Brasileira da Associação Brasileira de Normas Técnicas – ABNT).

8) As referências legislativas ou jurisprudenciais devem conter todos os dados necessários para sua

adequada identificação e localização. Em citações de sites de Internet, deve-se indicar

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Jamais deve ser usada a sublinha. Citações de textos de outros autores deverão ser feitas entre

aspas ou em itálico.

10) A seleção e análise dos trabalhos para publicação é de competência do Conselho Editorial da

Tribuna Virtual IBCCRIM. Os trabalhos recebidos para análise fisicamente não serão

devolvidos.

10.1. Após a verificação do atendimento das normas de publicação, o trabalho será

submetido à análise prévia da Coordenação, para verificação de adequação à linha editorial

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do IBCCRIM. Após essa avaliação, o artigo terá suprimidos os elementos que permitam a

identificação de seu autor e será remetido à análise de três pareceristas, membros do

Conselho Editorial da Tribuna Virtual IBCCRIM, para avaliação qualitativa de sua forma

e conteúdo, seguindo o sistema do duplo blind peer review e atendendo os critérios

constantes do formulário de parecer.

10.1.1. Os pareceres anônimos ficam à disposição dos autores, que serão cientificados

de eventual rejeição dos trabalhos, a fim de que possam adaptar o trabalho ou

justificar a manutenção do formato original. Em todo caso, a decisão final sobre a

publicação ou não dos artigos em que o autor manteve o formato original cabe à

Coordenação da Tribuna Virtual IBCCRIM.

10.1.2. Em casos excepcionais, poder-se-á encaminhar o trabalho a parecerista

estranho ao Conselho Editorial da Tribuna Virtual IBCCRIM, desde que a

especificidade do tema e o notório conhecimento do parecerista na área assim o

justifique.

10.2. Independentemente de blind peer review e do atendimento ao formato padrão de

publicação, a Coordenação da Tribuna Virtual IBCCRIM poderá excepcionalmente

aceitar trabalhos de autores convidados, sempre que se considerar a contribuição do autor

de fundamental importância para o tema.

11) Não serão devidos direitos autorais ou qualquer remuneração, a qualquer título, pela

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conteúdo dos textos publicados, que são de exclusiva responsabilidade de seus autores e não

representam necessariamente as opiniões do Instituto.

12) Serão aceitos trabalhos redigidos em língua portuguesa, inglesa e espanhola. Trabalhos

redigidos em outras línguas deverão ser traduzidos para alguma das três línguas aceitas.

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"chamada" (Headline) em português, pois o sistema de busca do site foi desenvolvido para

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