Upload
dangphuc
View
215
Download
0
Embed Size (px)
Citation preview
Idade Média, Idade Mídia: paralelos do espaço sagrado na construção da morte digital Renata REZENDE Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal Fluminense; Professora Assistente do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Espírito Santo. UFF, Rio de Janeiro / UFES, Espírito Santo - Brasil [email protected]
GT de História da Mídia Digital
Resumo
Este trabalho dá continuidade a nossa pesquisa sobre a ressignificação da morte nas sociedades ocidentais contemporâneas diante da imbricação entre corpo, comunicação e mídias digitais1. Nessa análise, investimos na perspectiva de que as comunidades virtuais de mortos do Orkut (como exemplo, tomaremos a Profiles de Gente Morta2
1 Pesquisa desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal Fluminense (UFF), desde 2007. Em 2008, apresentamos nesse mesmo Grupo de Trabalho, a comunicação Inferno, Purgatório ou Paraíso? Narrativas da morte na mídia digital. In: Anais do VI Congresso de História da Mídia: 200 anos de mídia no Brasil – Historiografia e Tendências, 13 a 16 de maio de 2008. [recurso eletrônico] - Rio de Janeiro: Rede Alcar, 2008.
) se aproximam da configuração medieval cristã de espaço sagrado. Desta forma, vamos traçar uma breve reflexão sobre a história do espaço, relacionando a construção da espacialidade contemporânea às questões sobre o Além e ao conceito de espaço sagrado, a partir das referências de Margaret Wertheim (2001), Jacques Le Goff (2006) e Mircea Eliade (1992), na tentativa de compreender a construção do lugar da morte que nos atravessa no presente: a morte digital, representada no ciberespaço. A intenção é encontrar indícios que nos ajudem a perceber a relação do suporte tecnológico com as atitudes diante do morrer e, como as mesmas são transformadas, em função do espaço e, consequentemente, da relação com o corpo, e do funcionamento da sociedade e da cultura em diferentes épocas.
Palavras-chave: Mídia digital; tecnologia; espaço; sagrado; corpo; morte;
2 Comunidade mais antiga da rede social digital Orkut que reúne perfis de pessoas mortas. Foi criada em dezembro de 2004 e, atualmente, conta com mais de 60 mil membros. Disponível em: http://www.orkut.com/Community.aspx?cmm=993780. O acesso à comunidade depende de cadastro prévio. [Acesso em: 09/01/2009].
Habitamos diferentes lugares: espaços físicos, imaginados, representados.
Espaços reais, materiais, mas também espaços virtuais, que produzimos e
transformamos, em nossa história, com nossa cultura, atravessados por um tempo.
Inúmeras técnicas possibilitaram ao homem a criar esses lugares, que, frequentemente,
foram movidos pelo desejo de encontrar uma resposta que pudesse situar o dilema
humano de localizar o corpo e a alma e, assim, talvez, pudesse encontrar sentido para a
morte.
Hoje, a percepção desse antigo binômio está voltada ao ambiente digital, ao
ciberespaço, que se configura como um novo suporte de comunicação e de práticas
culturais, envolvendo sujeitos e objetos no interior de uma teia de conexões. Tal lugar
difere-se de outros espaços físicos, concretos, na medida em que se configura como
lugar de conexões, onde novas possibilidades são desenvolvidas e múltiplos sentidos
são atualizados.
Num primeiro momento, caracterizado como espaço complexo, o ciberespaço se
configura como um território presente em vários lugares e, ao mesmo tempo, em lugar
algum. Ao desconectar a tomada do equipamento que o abriga (determinado
computador), ele desaparece, mas continua existindo alhures. Tal onipresença está
transformando esse local em espaço sagrado, cuja crença forneceria às narrativas da
morte um novo sentido, na medida em que a matéria seria descartada e o corpo poderia
habitar a liberdade.
As narrativas da morte, bem como suas representações, sempre estiveram
relacionadas ao local em que ocorreram e à conjuntura a que estão expostas ou pela qual
são influenciadas. Os acontecimentos, bem como as práticas comunicacionais, estão
enraizados em um espaço, que é ao mesmo tempo produtor e produto de sentidos. É
para esse elemento que chamamos atenção, na justificativa de que a análise de uma
sociedade depende de forma integral da situação criada ou existente em uma
determinada conjuntura (CERTEAU, 2000).
Assim como todas as outras coisas, o espaço também possui uma história. Os
ambientes que habitamos ou atravessamos estão impregnados de imaginários que os
constituíram da forma como os conhecemos. Com o ciberespaço não é diferente. Os
sentidos empregados nesse lugar remontam às questões antigas, do início da era cristã.
Segundo Margaret Wertheim (2001; p.13), “para o cristão convicto, a morte não é o fim,
mas o início. O início de uma jornada cujo destino é a cidade sagrada de Nova
Jerusalém, o Paraíso supremo, onde os eleitos sempre residirão à luz do senhor”.
Em sua História do Espaço: de Dante à Internet, Wertheim propõe um percurso
sobre a constituição da espacialidade, considerando que fatores presentes na cultura
ocidental resultaram em uma crença de que o ciberespaço, hoje, tornou-se o foco de
sonhos essencialmente religiosos. A autora (2001, p.13) tenta compreender porque esse
novo espaço digital é visto como uma tentativa de se construir um substituto
tecnológico para o lugar cristão do Paraíso, onde, “junto com a libertação da dor, virá
também a libertação máxima, pois morte não haverá mais”.
Transcender a carne e gozar da “vida eterna” é uma das temáticas que está no
cerne da discussão sobre as possibilidades do ambiente digital, mas que abriga um
antigo imaginário religioso da sacralização dos espaços do corpo, e, principalmente, da
alma.
Segundo o historiador Jacques Le Goff, o cristianismo é uma religião da
salvação e, por isso, a preocupação com o pós-morte, que sempre ocupou um lugar
essencial no ocidente medieval, está ainda presente no imaginário contemporâneo. “O
cristianismo professa a ressurreição dos corpos, cujo modelo e garantia é a ressurreição
de Jesus após sua morte terrestre na cruz” (2006, p.21). Tal cuidado, segundo o
historiador, não concerne apenas ao “estado” dos indivíduos, mas à localização de suas
vidas futuras. É nesse sentido que o homem medieval se preocupa com o espaço
destinado à alma após a morte do corpo: o espaço do Além.
O espaço medieval
Até o século XII, o espaço pós-morte estava representado por um sistema binário
que distinguia e opunha a situação dos homens: os bons viveriam as delícias do Paraíso
e os maus estariam condenados aos suplícios do Inferno. A partir de então, a geografia
desse Além se transforma, significativamente, com a invenção de um outro lugar, um
terceiro, intermediário: o Purgatório.
Le Goff (2006) afirma que até a invenção desse terceiro lugar do Além, a
sistematização Juízo Final/Inferno/Paraíso representou inúmeros problemas ao
cristianismo. A localização binária do Além em relação à terra foi instaurada de forma
que o Inferno estava situado sob a terra e o Paraíso no céu, tanto que os termos céu e
paraíso tornaram-se sinônimos.
Diante dessa concepção binária de Paraíso/Inferno, algumas “propostas” foram
consideradas para se pensar a possibilidade de espera em um outro lugar para os futuros
eleitos. Nos primeiros séculos do cristianismo, imaginou-se o refrigerium, um lugar de
repouso, localizado entre os espaços do Além, e ainda o “seio de Abraão”, que, para os
cristãos, era uma espécie de “sala de espera”. Essas referências produziram uma
iconografia variada na época, com elementos que expressavam diversas concepções
“como a ausência de castigos, de penas, de suplícios para esses mortos privilegiados,
privados, no entanto, da maior felicidade de que gozam no Paraíso os eleitos definitivos:
a graça de ver Deus face a face” (LE GOFF, 2006, p.25). Tais referências foram, aos
poucos, substituídas pela invenção do Purgatório.
Segundo Le Goff (1993), o nascimento do Purgatório deveu-se às
transformações religiosas e sociais que modificaram a visão do mundo terreno e do
Além. O Purgatório, de acordo com Le Goff, tem um sentido estabelecido: não se saía
dele senão para ir ao Paraíso, não se podia retornar ao Inferno, mas tal ascensão
dependia diretamente dos “sufrágios” (preces, esmolas, missas) que os vivos, parentes
ou amigos, “pagavam” para abreviar o tempo de purgatório dessas almas. Dessa forma,
esse espaço uniu o tempo dos vivos e dos mortos, na medida em que estabeleceu essa
dependência: os mortos dependiam dos “favores” dos vivos para terem acesso à “vida
eterna”.
Essa organização do espaço celestial na Idade Média é o primeiro ponto de
aproximação com a “Idade Mídia”, na medida que o espaço da comunidade Profiles de
Gente Morta inclui membros vivos e mortos da rede social. Além disso, os mortos
adquirem uma espécie de sobrevida pela interferência direta dos vivos que prolongam
sua existência.
Espaço dos vivos e dos mortos
A comunidade do Orkut Profiles de Gente Morta reúne participantes que
agregam os perfis (profiles) de mortos (ou supostamente mortos) da rede, funcionando
da seguinte forma: todo usuário precisa de um login e senha para criar e acessar seu
profile e circular naquele espaço.
Figura 1. Tela de apresentação da comunidade PGM
Em seu profile, o usuário disponibiliza perfil pessoal, profissional e outros
interesses, além de fotos, vídeos, depoimentos, poesias, e o que mais desejar, traçando
uma espécie de identidade, ainda que fluida e temporária. Nessa espécie de “diário
digital público”, o participante agrega amigos, familiares e outros conhecidos (ou
desconhecidos), conforme sua vontade. Também participa de comunidades variadas,
criadas por outros usuários, como comunidades de filmes, músicas, celebridades, etc.
No entanto, como cada profile no Orkut, geralmente é individual, somente o próprio
usuário possui o login e a senha de acesso à comunidade, assim, caso ele morra no
espaço real, seu ‘corpo digital’ continua circulando no ciberespaço. Ou seja, mesmo
mortas no “mundo presencial”, essas pessoas continuam recebendo recados, como que
se virtualmente pudessem ouvir aos apelos publicados.
É nesse sentido que a comunidade torna-se um espaço de relação entre os vivos
e os mortos. Uma espécie de “além digital”, onde os vivos podem oferecer aos mortos
os “sufrágios contemporâneos”: uma imagem, um texto, um vídeo, etc.
Desta forma, retomamos essa temática na “idade midiática”, aproximando as novas
representações dos lugares da morte, aqui especificadamente a comunidade Profiles de
Gente Morta, aos espaços celestes medievais.
Em nossa compreensão, o espaço medieval (como texto e imagem, ou seja,
como representações) antecede a criação de mundos virtuais, na medida em que nos
projeta para realidades que nos absorve. Isso acontece pelas técnicas empregadas, mas
ainda pelo laço entre o espaço do corpo e o espaço da alma que o cristianismo ajudou a
construir. Hoje, os suportes que abrigam as atuais narrativas estão inflados de
perspectivas como esta, em que é possível descartar a matéria e desfrutar “da vida
eterna”. O ciberespaço é um desses locais contemporâneos, onde se espera prolongar a
vida sem o corpo.
O Ciberespaço
O termo ciberespaço, inventado pelo escritor de ficção científica William
Gibson, em 19843
Se a tendência da física foi gradualmente abolir a matéria em função do espaço
(corpo como matéria), ancorada em um sonho muito antigo de se alcançar à
imortalidade, no ciberespaço a questão do corpo (sua presença nesse espaço de
informação) torna-se fundamental. Sendo um local de informação, tudo se torna fluido e
mutável. Desta forma, a Internet passou a ser vista com um novo espaço do espírito,
, descrevia um conjunto de redes de computadores por meio dos quais
todas as informações circulavam. Desta forma, é possível compreender o ciberespaço
como um ambiente simulado (realidade virtual) e como o conjunto de redes de
computadores, interligadas por meio da internet. Nesse sentido, o ciberespaço é uma
entidade real (LEMOS, 2002), pois faz parte de uma cultura planetária crescente. Em
vez de um espaço fechado, é um local transnacional onde o “corpo” é suspenso pela
abolição da própria noção de espaço e pelos usuários que entram em jogo em diversos
meios de sociabilidade.
3 O termo apareceu pela primeira vez no livro Neuromancer, onde os personagens poderiam fazer download de suas mentes para o espaço digital, deixando o corpo para trás. No romance há uma visão dualista, na qual a mente pode ser separada do corpo. Ver mais in GIBSON, William. Neuromancer. São Paulo: Aleph: 2003.
com sonhos contemporâneos de imortalidade e ressurreição, reemergindo algo parecido
com o além cristão medieval, onde a alma viveria em um espaço infinito, fora do tempo.
Os sujeitos que entram no espaço digital possuiriam uma espécie de
bimaterialidade, uma real e outra virtual, na medida em que seu corpo permanece no
espaço físico diante do computador e sua imagem, seu espectro, navega no espaço
digital. Apesar de não possuir o peso da matéria, o espaço digital inclui características
que fornecem a ilusão corporal. Simulando o espaço físico, a partir de um ambiente
multisensorial (imagem, texto, som, movimento), o ciberespaço remete, de certa forma,
às proporções de comprimento, largura, espessura e, talvez, principalmente duração.
Essas características, apesar de imateriais, fornecem a impressão de materialidade.
Como nos sonhos, as imagens se materializam apesar de continuarem sendo imateriais.
O ciberespaço, nesse sentido, é uma espécie de “Além”, uma outra dimensão na qual
nossos corpos podem viajar sem fechar os olhos ou sair do lugar.
A sua própria arquitetura como rede de informação de computadores já possui as
características do ilimitado. O conceito de rede aparece como um conglomerado de nós
e de bifurcações. De cada nó é possível enxergar outro nó e nunca sua borda. Isso faz
com que tenhamos a impressão de estarmos imersos em um espaço infinito – não que
ele não tenha fim, mas porque não conseguimos ver o fim.
Para o filósofo Michael Heim (apud WERTHEIM), o ciberespaço é visto como
um local onde os homens estariam libertos do corpo físico. Um lugar acessível a todos
(desde que haja um computador ligado a internet), onde as distâncias geográficas seriam
abolidas e não houvesse mais diferenças (físicas, raciais, de classe, etc). Essa visão é
partilhada ainda por alguns cientistas e historiadores da tecnologia, como o especialista
em Robótica, Hans Moravec, o pioneiro em inteligência artificial Marvin Minsky e o
historiador David Noble4
É a partir dessa concepção que o ciberespaço aproxima-se do imaginário
espacial medieval, um espaço mágico, caracterizado pelo tempo vivo e pelo espaço não-
físico. Paradoxalmente, seu conceito está ligado à velha questão entre ciência
(tecnologia) e religião (mitologia) que marca, de maneira geral, o desenvolvimento das
tecnologias e suas apropriações. Desta forma, o ciberespaço pode ser visto como um
espaço sagrado (lugar de movimentação de conhecimento, de informação, mas pelo
.
4 Ver mais in WERTHEIM (2001).
pensamento mágico, onde o mundo está imerso em ritos e códigos secretos). Por outro
lado, pode ser visto como uma passagem do mundo industrial para o pós-industrial,
onde a ciência desenvolveu técnicas cada vez mais impressionantes para estender o
corpo e a mensagem (como memória), na tentativa de libertar-se, como acredita Mircea
Eliade:
“A criação infinitamente retomada desses inumeráveis
universos imaginários, em que o espaço é transcendido e o peso abolido, diz muito sobre a verdadeira dimensão do ser humano. O desejo de romper os liames que o mantém preso à terra [...] constitui o homem, enquanto existindo no gozo de um modo de ser único no mundo. Tal desejo de libertar seus limites sentidos como uma queda, e de reintegrar-se a espontaneidade e a liberdade [...] significa um ato de transcendência” (ELIADE, 1992, p.94).
O espaço sagrado
Num mundo dessacralizado da contemporaneidade, o “sagrado” se encontra
presente e ativo principalmente nos universos imaginários
O conceito de espaço sagrado, proposto por Eliade aplica-se, por diversas razões
ao espaço digital. Para o historiador, “o espaço sagrado é, em última análise, à realidade
por excelência” (1992; p.18). Uma realidade que está saturada de ser, ao mesmo tempo,
que é um espaço perene e eficaz, e, por isso, o homem deseja dele participar, tornando-
o, pela força da ação, realidade. Eliade também caracteriza o espaço sagrado como
heterogêneo porque sua manifestação faz diferença no que, até então, era considerado
como homogêneo, revelando, assim, algo novo que diz muito a respeito do sentido do
homem. Para o autor, quando o sagrado se manifesta, “não só rotura na homogeneidade
do espaço, como também revela uma realidade absoluta que se opõe a não-realidade da
, como verificamos no
ciberespaço. Em muitos contextos, isso está relacionado à incapacidade do homem de
exprimir o mundo, de compreende-lo. Por isso é importante destacar que a Internet não
é criação de uma estrutura religiosa, mas do processo de desenvolvimento humano que,
em determinados momentos, apóia-se em discursos religiosos, por diferentes fatores que
atravessam questões políticas, econômicas, culturais. Criar espaços sagrados é uma
forma de estabelecer conexões com o mundo que não conseguimos compreender, mas
também é uma forma de habitar esse mundo.
imensa extensão envolvente” (p.26). É um ato misterioso, pois promove a manifestação
de algo de “ordem diferente” de uma realidade que não pertence ao mundo em objetos
que pertencem, o que provoca um paradoxo: “manifestando o sagrado, um objeto
qualquer se torna outra coisa e, contudo, continua a ser ele mesmo, porque continua a
participar do meio cósmico envolvente” (1992; p.18).
Neste sentido podemos compreender a sacralização do ciberespaço na
contemporaneidade, na medida que a manifestação dá-se em um objeto (mesmo que
abstrato) pertencente a nosso mundo (o corpo, por exemplo), mas que é apropriado para
se tornar uma outra possibilidade (corpo virtual). Segundo Eliade, isso ocorre porque o
homem tende a viver o mais possível no sagrado ou a transformar objetos em territórios
sagrados, na medida que o sagrado equivale à potência. O autor explica que a oposição
sagrado/profano traduz-se muitas vezes no binômio real e irreal ou pseudo-real e, desta
forma, o sagrado estaria associado à realidade por excelência.
Hoje, com as novas tecnologias de comunicação e de informação, o homem
parece buscar incessantemente novos espaços sagrados, como se apresentasse nesses
locais uma experiência total da vida, diferente daquela de que participa em sua
experiência cotidiana. Nesse sentido, a comunidade virtual Profiles de Gente Morta
(PGM) também apresenta aproximações com o espaço sagrado. Os usuários ao entrarem
nesse espaço podem experimentar, ao mesmo tempo, no mesmo local, o passado, o
presente e o futuro.
O passado por meio dos vestígios, dos rastros, dos restos que indicam a
existência de um sujeito (o usuário que morreu). Tais marcas podem ser observadas por
meio das fotografias, dos vídeos, dos textos deixados pelo usuário quando vivo. O
presente pode ser verificado por meio das informações que são atualizadas a todo
instante: as notícias, os fóruns, as discussões on line, mas ainda pela conexão do corpo
real (matéria) ao corpo virtual (imaterial, isto é, sem peso, mas com forma e com
imagem). O futuro por meio da possibilidade de entrar no espaço infinito - no Paraíso
tecnológico - de se tornar imortal, de transcender a carne e “gozar da vida eterna” por
meio do corpo digital, o que, em certa medida, resultaria em uma espécie de futuro
como presente contínuo.
A funcionalidade do espaço sagrado é o fato de que ele proporciona abertura
para o contato com o transcendente, que se torna para o homem algo real por
excelência, segundo Eliade (1992). Nesse sentido, participar da Profile de Gente Morta
é assumir um corpo digital, transformando-se em informação, em imagem. No espaço
sagrado, o limite é, ao mesmo tempo, a porta, a fronteira que distingue e opõe os dois
mundos (sagrado e profano) e o lugar paradoxal onde esses dois mundos se comunicam,
onde se pode efetuar a passagem. Na Profiles de Gente Morta, a porta que se estabelece
como limite direto é a autorização de seu criador (Guilherme Dorta) para que usuário
possa entrar no espaço. Como o conteúdo da comunidade é restrito aos membros, para
acessar o espaço é preciso solicitar uma filiação, que se dá pelo link “participar da
comunidade”, como observamos na figura 2. Esse é o limiar direto da comunidade, mas
há ainda a porta que consideramos como primeira fronteira, que é o login e a senha da
rede social Orkut.
Figura 2. Tela principal da PGM com link “participar”
Ao clicar em “participar”, uma nova janela é aberta para confirmar o desejo de
entrada do usuário no local, como verificamos na figura abaixo (fig.3).
Figura 3. Tela de confirmação para a entrada do usuário
Se o usuário prosseguir na opção “participar”, uma nova tela será aberta (ver
figura 4), desta vez com a informação de que sua entrada dependerá da aprovação do
mediador da comunidade, ou seja, dependerá do guardião.
Figura 4. Tela que confirma a aprovação do mediador
Todas as portas dos espaços sagrados têm guardiões, responsáveis por proibir a
entrada dos adversários. Na comunidade Profile de Gente Morta, os guardiões são
representados pelos moderadores ou ainda pelo próprio criador, que têm como principal
objetivo impedir a entrada de fakes – perfis falsos criados por usuários da rede, muitas
vezes com intenção de desorganizar o espaço. Tais porteiros também controlam a
entrada do conteúdo na comunidade, quando o mesmo infringe as regras estabelecidas
no espaço. Verificamos os dois exemplos nas figuras abaixo. Na figura 5, os perfis
“Odete Roitman” e “Soninha Matos” são fakes, personagens fictícios apropriados pelos
usuários da rede. Já na figura 6, destacamos o filtro de conteúdo por meio do espaço
onde as regras são dispostas.
Figura 5. Exemplo de fakes – perfis falsos
Figura 6. Trecho das regras da comunidade
Para Eliade (1992), o limiar trata-se de um símbolo e, ao mesmo, de um veículo
de passagem. No interior do recinto sagrado, o mundo profano é transcendido, e torna-
se possível a comunicação com o Além. O espaço sagrado é um templo que tem como
objetivo destacar um território do meio cósmico que o envolve e o torna diferente.
Os usuários da comunidade também viajam entre a materialidade e a
imaterialidade, pois, conectado a um computador, o corpo encontra-se fora da tela, mas,
dentro dela, torna-se um espectro. Desta forma, é preciso evocar as formas ou figuras
sagradas com objetivo imediato de orientar à homogeneidade do espaço para encontrar
um ponto de apoio absoluto. Tal ponto seria o centro desse espaço que permite o
direcionamento na “homogeneidade caótica”, servindo como origem ou fundação do
mundo e promovendo o viver real para o homem. Ou seja, na medida que o homem
organiza o caos, ele sistematiza o espaço que elegeu para habitar.
De acordo com Eliade (1992), o homem religioso só consegue viver numa
atmosfera impregnada do sagrado, e, por isso, é preciso dar conta de uma quantidade de
técnicas destinadas a consagrar tal local. Desta forma, o sagrado é o real por excelência,
ao mesmo tempo poder, eficiência, fonte de vida e fecundidade e essa “gestão da
técnica” nos permite compreender melhor a construção dos espaços sagrados. Na
Profiles de Gente Morta, o próprio suporte multimidiático é responsável por nos inserir
num espaço outro, onde além do texto, as imagens, os sons, e a possibilidade de
interação “ao vivo” conduz a essa atmosfera impregnada do sagrado de que fala Eliade.
O desejo do homem de viver nesse espaço é o desejo de se situar na realidade, de
viver num mundo eficiente e, por essa razão, elabora técnicas de orientação que são
técnicas de construção do espaço sagrado com o desejo de compreender o cosmo e o
caos.
O significado desse ritual é complexo e compreende diversas articulações
porque a consagração de um território equivale à sua cosmização. Um território
desconhecido, estrangeiro, desocupado faz parte de uma modalidade fluida e, ocupá-lo,
sobretudo, instalando-se em um cosmos mediante a uma repetição ritual, dá-lhe formas
e normas. É nesse contexto que nos apropriamos do conceito de espaço sagrado para
compreender o espaço digital contemporâneo das comunidades virtuais dos mortos,
acreditando que o mesmo foi fundado a partir de repetições de ritualísticas configuradas
em tempos outros, uma espécie de passagem, na longa duração de uma Idade Média a
atual Idade Mídia. Constitui-se um espaço sagrado “criando-o” de novo. O ciberespaço
dos mortos está revestido de espaços medievais, que se prolongam agora no espaço
tecnológico, simulado das comunidades virtuais. Os meios de comunicação e de
informação engendram, nesse sentido, as articulações que ajudam a constituir esse lugar
(as estruturas, as interfaces), porque o espaço desconhecido é como um outro mundo,
estrangeiro.
O estranhamento provocado na primeira “visita” a Profiles de Gente Morta
passa pela relação com a técnica, com o suporte ainda desconhecido, que se torna um
campo de possibilidades, inclusive para as narrativas da morte. Os usos, no entanto,
estão articulados ao modus operandis de uma sociedade desejosa de técnicas que
possam prolongar cada vez mais a vida.
Eliade (1992) afirma que a cosmização dos territórios desconhecidos é sempre
uma consagração que tem base na religião. A crença dos antigos e, principalmente a
partir do desenvolvimento do cristianismo, o homem acreditou na comunicação com o
domínio celeste, tentando, assim, constituir espaços sagrados que servissem de
mediação com o transcendental. Portanto, a chave para se compreender esses espaços
perpassa pelas tentativas de se estabelecerem canais de comunicação.
De forma sistemática, Eliade (1992; p.38) estrutura o espaço sagrado da seguinte
maneira: primeiramente tal lugar constitui uma rotura na homogeneidade do espaço;
essa rotura é simbolizada por uma abertura, pela qual é possível atravessar uma região
cósmica a outra (do céu à terra, por exemplo); a comunicação nesse local dá-se por
determinadas imagens (códigos), todas elas referentes a um pilar; e em torno desse eixo
cósmico estende-se o mundo, logo esse eixo encontra-se “ao meio”, o que ele denomina
como centro do mundo.
Há uma multiplicidade de centros e essa reiteração da imagem do mundo constitui
uma das notas específicas do ciberespaço (nós) – o que podemos verificar na Profiles de
Gente Morta (com os espaços). O homem religioso sente necessidade de existir num
mundo organizado, num cosmos. Percebemos, nesse sentido, que por mais que o
ciberespaço seja, em certa medida, apresentado como caótico, onde as informações
estão dispersas e fluidas, a necessidade de organizá-lo em comunidades, por exemplo,
torna-o um cosmos. Instalar-se num território, construir uma morada tanto para o
indivíduo quanto para a comunidade é criar um mundo que se escolheu habitar. A
habitação nesse sentido é sempre santificada pois constitui uma imago mundi (ELIADE,
1992, p.49) .
É possível encontrar por toda parte o simbolismo do centro do mundo e é ele
que, na maior parte dos casos, permite a compreensão do comportamento religioso em
relação ao espaço que se vive (Idem:1992, p.39). O simbolismo da montanha cósmica,
por exemplo, sempre foi utilizado como referência para se chegar ao Céu, mesmo no
Cristianismo, pois a montanha é a representação entre o céu e a terra, o elo de ligação.
Na página principal da Profile de Gente Morta- a porta - , os vivos estão dispostos mais
ao alto e os mortos mais abaixo, como se, naquele espaço, os vivos pudessem estar mais
próximos da infinitude do Céu. Em outras palavras, é como se o sujeito só pudesse viver
em um espaço aberto para o alto, onde haveria a possibilidade de comunicação com
outro mundo (transcendental).
Há ainda outra característica interessante no conceito de espaço sagrado que é
sua função salvífica, ou seja, quando o homem se encontra nesse espaço, ele encontra
sua identidade, na medida em que se sente na realidade e, por isso, se sente protegido
das incertezas. Tal fato demonstra que a busca pelo espaço sagrado é, na verdade, a
busca por si mesmo, a busca crescente por segurança.
Todas essas crenças revelam um sentimento profundamente religioso. Em
termos cosmológicos é uma concepção que traduz a projeção de um território
privilegiado, que comporta características ímpares. Desta forma, segundo Eliade,
construir um espaço sagrado é transformar ritualmente a morada em cosmos, ou seja,
conferir-lhe o valor de imago mundi, assimilando-a ao cosmos pela projeção de um
ponto central ou pela instalação simbólica, repetindo um ritual de construção.
Em todas as culturas tradicionais, a habitação comporta um aspecto sagrado pelo
próprio fato de refletir o mundo. Na própria estrutura da habitação revela-se o
simbolismo cósmico. A Profile de Gente Morta representa, portanto, uma imago mundi,
sendo mais que uma imitação: é a atualização do simbolismo. A imago é o fundamento
da antropologia cristã, já que desde os primeiros versículos da Bíblia, quando o homem
é nomeado, é chamado de imagem: “a fórmula bíblica indica que, para o homem, a
história é um projeto que visa a restituição plena na semelhança perdida que, subsiste
apenas na condição de um traço (vestigium)” (SCHMITT, 2007, p.13).
Tal como um santuário, a Profiles de Gente Morta é um templo onde se discute
e se atualizam as narrativas da morte. Alguns exemplos, como os que verificamos
integram diversos aspectos de um mesmo simbolismo, que se mantém vivo através dos
tempos.
Como tudo o que participa a uma só vez do corpo e da alma, do espaço terreno e
do espaço celeste, a “visão espiritual” é, a exemplo das imagens materiais, lugar de uma
tensão permanente, de uma contradição entre forças antagônicas que, com a imaginatio
arrasta o peso do corpo e os desejos da carne. É a interatividade entre a imagem e quem
a vê, ou, o que mais exatamente é visto por ela, que dá vida a esses vultos. Imagens
feitas de visões, de sonhos, de desejos, que agora por meio da tecnologia multimidiática
fornecem à matéria inerte, a aparência e o movimento da vida. A arquitetura do
ciberespaço não faz mais, portanto, do que retomar e desenvolver o simbolismo
cosmológico já presente na concepção de espaço sagrado, imaginado por diversas
religiões.
Assim, mesmo no mundo científico da tecnologia, diversas imagens reforçam o
sentido do homem religioso, sedento pela sacralização dos espaços. A construção desses
locais equivalem a um novo começo, a uma nova vida. Expressões mitológicas e
encenações ritualísticas estão relacionadas à diversas experiências da sacralização do
espaço. O imaginário religioso, desta forma, permanece e persiste, como verificamos
em nosso exemplo, com as tecnologias de comunicação, são aspectos de um mesmo
mundo ainda mágico-religioso.
Na contemporaneidade, pautada pela descrença, pela dessacralização do
cosmos, a partir da transformação do pensamento científico e, sobretudo, das
descobertas tecnológicas, é paradoxal a perpetuação que o sagrado alcançou nos novos
espaços digitais, oferecendo novas possibilidades de ser e de viver.
Referências Bibliográficas:
CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano 1: Artes de Fazer. RJ: Petrópolis, Vozes, 2000. ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. A essência das religiões. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
GIBSON, William. Neuromancer. São Paulo: Aleph: 2003.
LE GOFF, Jacques. O nascimento do purgatório. Tradução portuguesa. Lisboa: Estampa, 1993. _________________. História e Memória. 5.ed. Campinas, Editora da Unicamp, 2003. LE GOFF & SCHMITT, Dicionário Temático do Ocidente Medieval. São Paulo: Edusc, 2006. LEMOS, André. Cibercultura: tecnologia e vida social na cultura contemporânea. Porto Alegre: Sulina, 2002. ORKUT. Comunidade Virtual [on line]. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Orkut. [Acesso em 28/01/2009]. PROFILES DE GENTE MORTA. Comunidade Virtual [on line]. Disponível em: http://www.orkut.com/Community.aspx?cmm=993780 [Acesso em: 09/01/2009].
RIBEIRO, Renata Rezende. Fragmentos de um corpo: as novas tecnologias da comunicação e a construção da morte contemporânea. Anais do XXX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, Intercom/Unisanta/Unisantos/Unimonte, 29 de agosto a 02 de setembro de 2007 / organizado por Sueli Mara S. P. Ferreira. [recurso eletrônico]- São Paulo: Intercom, 2007.
____________________________. Inferno, Purgatório ou Paraíso? Narrativas da morte na mídia digital. Anais do VI Congresso de História da Mídia: 200 anos de mídia no Brasil – Historiografia e Tendências, 13 a 16 de maio de 2008. [recurso eletrônico] - Rio de Janeiro: Rede Alcar, 2008.
SCHMITT, Jean-Claude. Os vivos e os mortos na sociedade medieval. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
___________________.O corpo das imagens: ensaios sobre a cultura visual na Idade Média. São Paulo: Edusc, 2007.
___________________. Corpo e Alma. In: LE GOFF & SCHMITT, Dicionário Temático do Ocidente Medieval. São Paulo: Edusc, 2006. WERTHEIM, Margaret. Uma história do espaço: de Dante à Internet. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.