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Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Curitiba, PR – 4 a 7 de setembro de 2009
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Identidades Culturais e Cidadania no Contexto dos Processos Comunicacionais
Kaingang na Região Metropolitana de Porto Alegre1
Carmem Rejane Antunes Pereira2
Resumo O objetivo deste texto é apresentar algumas reflexões oriundas de pesquisa em andamento que trata das relações entre memória e configurações da identidade cultural nos processos comunicacionais Kaingang. As reflexões têm por base as proposições teórico-metodológicas das mediações socioculturais e contribuições da história oral, para investigar os lugares indígenas nas construções midiáticas e nas apropriações operadas por interlocutores situados nos fluxos da Região Metropolitana de Porto Alegre(RS). Palavras-chave: Kaingang; mídias, memória; identidade cultural; cidadania.
1. Introdução
O texto apresenta reflexões teórico-metodológicas de pesquisa em andamento,
focalizando as configurações da identidade cultural no âmbito dos processos
comunicacionais Kaingang. A identidade cultural está vinculada à problemática da
cidadania, enquanto demandas oriundas das lutas contra a desigualdade e a exclusão
social e cultural (SANTOS, 2005), contextualizadas por grupos indígenas situados nos
fluxos da Região Metropolitana de Porto Alegre. Para compreender essas demandas,
considero as mediações sociais, históricas e políticas que desencadeiam a visibilidade
midiática dos lugares indígenas, entendendo estes como espaços de sobrevivência
material e simbólica.
Kaingang é o nome da etnia indígena com maior população no Sul do Brasil.
Segundo estimativas do Instituto Sociambiental (ISA), a população poderia chegar hoje
a 30 mil pessoas, considerando aquelas que vivem em 32 Terras Indígenas3, aquelas que
1 Trabalho apresentado no GP Comunicação para a Cidadania do IX Encontro dos Grupos/Núcleos de Pesquisa em Comunicação, evento componente do XXXII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação 2 Doutoranda em Ciências da Comunicação da UNISINOS, e-mail [email protected] 3 Instituto Socioambiental (ISA).
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vivem nas zonas urbanas e rurais próximas as TIs ou ainda aquelas que passaram a viver
na região metropolitana de Porto Alegre, formando aldeias ou em núcleos domésticos.
A oscilação das informações demográficas é resultante da precariedade dos
dados obtidos pelos censos, já que as famílias kaingang vivem em mudança contínua
entre comunidades/aldeias. Além disso, o crescimento vegetativo é considerado bastante
alto, assim como o índice de mortalidade infantil é elevado. De modo geral, quando os
dados dos censos são divulgados, já se encontram defasados.
Os Kaingang pertencem à família lingüística Jê, a qual está inserida no grande
“tronco lingüístico” Macro-Jê, formado por seis famílias lingüísticas. Culturalmente
estão vinculados às sociedades Jê-Bororo, especialmente aos Jê setentrionais centrais
Akwén, Apinajé, Kayapó, Kren-Akôre, Suyá e Timbira. Juntamente com os Xokleng
compõem o grupo de sociedades indígenas Jê meridionais, cujas aldeias ou famílias que
fazem parte das suas redes de parentesco estão localizadas em São Paulo, Santa Catarina
e Rio Grande do Sul. Estudos arqueológicos apontam que o seu processo histórico-
sociocultural nesta região remonta há dois mil anos. (SILVA, 2008)
A organização social Kaingang foi estudada por vários autores4, destacando o
dualismo desta etnia, que se caracteriza pela existência de duas metades exogâmicas,
patrilineares, assimétricas e complementares, designadas como Kamé e Kainru-kré.
Silva (2005), compartilhando com Nimuendaju (1914), destaca que as
patrimetades são apenas um dos aspectos de toda uma concepção dual do universo,
fundamentada em mitos ancestrais. Todos os seres, objetos, fenômenos naturais são
divididos em duas categorias, sendo uma vinculada ao gêmeo ancestral Kamé e outra ao
gêmeo ancestral Kainru-kré.
A relação dialética de oposição e complementaridade entre os heróis míticos se
expressa em distinções físicas e emocionais como Kainru “é de caráter fogoso, capaz de
decisões rápidas, mas é instável; seu corpo é esbelto e leve”; por outro lado, Kamé “é
(...) pesado, de corpo como de espírito, mas é perseverante (SILVA, 2005, p.90).
Também se verifica na pintura corporal utilizada em rituais e manifestações, sendo a
característica de Kainru as manchas pintadas como marcas redondas, e a de Kamé as
listras em padrão de marcas compridas.
4Entre eles, Mabilde ( 1983) e os estudos no século XX de Nimuendaju (1987 [1914]), Horta Barbosa (1947), Baldus (1937 e 1947), E. Schaden (1953), Métraux (1946), Becker & Schmitz (1967), Becker (1976), Veiga (1994, 2000) e Crépeau (1994; 1995)
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A matriz mitológica Kaingang cria todo um campo semântico que permeia a
visão de uma sociedade ideal, construída por diferenças binárias, mas apontando para a
relação harmoniosa entre mundos concebidos diferentemente.
Exemplo dessa matriz fundante é representado pela instituição do cunhadio
masculino, configurada pelas relações entre os iambrés de metades opostas que
desempenham papéis ideais de amizade, ajuda mútua, cooperação e
complementaridade. O iambré é um companheiro, de quem se espera uma relação de
camaradagem.
Nessa concepção do cosmos, atua também a instituição do Kuiã, enquanto
elemento que intermedia as forças entre natureza e sociedade, o “matão” e a
‘inteligência’. O Kuiã é investido pelo poder que vem do mato, o iangrë – xamã, ser que
dá poder ao kuiã (xamã), domesticando esta força para curar e prevenir.
Da natureza, também vêm os nomes masculinos e femininos Kaingang, ligando
a pessoa aos poderes imateriais oriundos do mato. As nominações tradicionais estão
sendo retomadas pelos Kaingang, convivendo com os nomes não-indígenas,
portugueses e cristãos, como pude perceber junto a vários interlocutores, especialmente
aqueles que vivem na região metropolitana de Porto Alegre.
Outra instituição Kaingang diz respeito à organização política das comunidades
através das lideranças indígenas do tipo cacique _ o pa i _ reconhecida pela maioria dos
Kaingang com quem dialoguei. A nomenclatura dos cargos que compõem essa liderança
traz marcas das políticas do extinto Serviço de Proteção ao Índio (SPI)5; entretanto
alguns atributos podem ser entendidos a partir das configurações atuais, que dão conta
dos processos de organização política contemporâneos. A idade, com acento nos mais
velhos, não é um atributo imperioso, mas sim o fato de saber falar e entender a língua
materna e a capacidade que articula a idéia de “força” à qualidade de “querer bem a
todos”, isto é, atuar como líder político e diplomático, em defesa da comunidade.
2. O contexto da recepção e as mediações socioculturais
No contexto de fluxos humanos marcados por matrizes ancestrais _ como a
língua, os nomes tribais e as marcas clânicas _ desenvolvo a presente pesquisa de
recepção, considerando as itinerâncias contemporâneas como uma das mediações
5 O SPI foi fundado em 1910 e extinto em 1967, devido a irregularidades administrativas e denúncias sobre massacres de grupos indígenas, dando lugar a FUNAI, criada no mesmo ano, durante o governo militar. (LAROQUE, 2005)
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socioculturais relevantes para investigar e compreender as configurações da identidade
cultural nas práticas comunicacionais e apropriações midiáticas operadas por indígenas
Kaingang situados nos fluxos da região metropolitana de Porto Alegre.
A proposição teórico-metodológica das mediações (MARTÍN-BARBERO,
2003) permite pensar a comunicação desde a vigência de matrizes culturais e
dimensionar a recepção em perspectiva histórica (BONIN, 2008, p.140). Neste
caminho, a recepção é concebida como processos de produção de sentido gerados pelos
públicos, para o que é necessário considerar, entre outros aspectos, as marcas das
experiências vitais e sociais dos grupos e a possibilidade de situá-los na multiplicidade
da “história pessoal, familiar, de classe, de etnia, de região, de competências e de
concepções”(MALDONADO, 2000, p.4)
As demandas comunicacionais Kaingang são pensadas na confluência de
mediações socioculturais em concomitância com a espessura que os meios adquirem
enquanto expansão da cultura midiática, como matriz organizadora do sentido (MATA,
1999), e configuradora do ethos midiatizado (SODRÉ, 2006). São entendidas ainda
como processos de hibridação (CANCLINI, 2002) em que a historicidade dos públicos
pode ser compreendida pela ação de diversos tempos e a sua especificidade nas relações
hegemônicas que definem a comunicação como relações de dominação e de resistência
desde dentro da cultura.
Nessa perspectiva, também é importante compreender as práticas populares a
partir de lógicas específicas e modos de fazer que correspondem a jogos de força, onde
a noção de táticas se revela em redes de antidisciplina e desvela astúcias milenares
(CERTEAU, 2002). As práticas apontam para as relações de consumo dos produtos
midiáticos, indicando maneiras de usar, negociações e rejeições6, atentando para as
padronizações, para aquilo que é constituído enquanto habitus7, mas também para
aquilo que se caracteriza como não-funcional, não-reprodutivo.
A identificação das mediações é demarcada no âmbito de movimentos
exploratórios iniciados em 2006, tendo como estratégia o levantamento de pistas sobre o
uso dos meios de comunicação, a partir de entrevistas realizadas com interlocutores que
se auto-atribuem Kaingang, residentes na região metropolitana de Porto Alegre há mais
de dez anos. A maioria dos entrevistados forma unidades familiares, morando em
6 Maldonado (2000) 7 Conceito apresentado por Bourdieu para se referir aos esquemas mentais que orientam a percepção, ação e valorações ou classificações realizadas pelos sujeitos, a partir dos processos de interação social.
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núcleos domésticos ou em aldeias formadas pelos deslocamentos oriundos das “terras
de origem”, as reservas indígenas instituídas e demarcadas ao longo dos séculos XIX e
XX.
Na qualificação do contexto, considero a mobilidade como resultante de matrizes de longa
duração e também das forças que tecem o presente, quando não só os homens mudam de lugar, mas
também os produtos, as imagens e as idéias. Ou seja, tomo a itinerância a partir de “mundo do
movimento” (SANTOS, 2004, p. 263) em que a noção de residência e lugar de trabalho não se esvaem,
pois formam o entorno vital, os quadros de vida que têm peso na produção do homem.
A itinerância compõe, assim, as mobilidades do sujeito em suas táticas de
sobrevivência e suas práticas de ocupar o espaço (CERTEAU, 2002), bem como nas
suas estratégias de se construir como grupo étnico, enquanto fronteiras que são
mobilizadas no processo de memória coletiva para fortalecer a identidade social, tais
como a língua, as marcas clânicas e os nomes tribais. Falar e entender a língua
Kaingang são elementos de distinção para com os fóg (os brancos) e também nas
relações intraculturais, em que a categoria nativa kaingang-pé8 é construída para
salientar aquele ou aquela que fala a língua e mantém o “costume”.
Essas fronteiras ativadas pela memória coletiva, compreendidas no sentido
oferecido por Barth (1998), são mais ou menos realçadas, conforme as situações que
promovem a visibilidade cultural e também funcionam como capital simbólico nas
relações que sustentam os coletivos Kaingang, sejam eles grupos familiares ou aldeias,
constituindo configurações espaciais de uma organização política diferenciada,
sustentada em uma hierarquia formada pelo pa i, conselheiros e demais cargos de
comando.
Mais que um espaço geográfico considero os lugares Kaingang como lugares de sobrevivência
material e simbólica. São elos de uma rede social, formando quadros de vida, que são mediados pela
organização política e pela construção da memória coletiva, tecida na pluralidade dos contextos
geracionais, de gênero e nas diferentes formas de inserção no mundo não-indígena.
2. Memória e processos identitários
Ao identificar a memória como uma mediação relevante para compreender as
configurações da identidade cultural Kaingang é necessário pensá-la como fenômeno
8 Kaingang-pé forma as bases das categorias nativas “índio puro” ou “mestiço”. Kaingang-pé é traduzido como índios de tradição e está associado à força e à permanência cultural indígena nos processos de miscigenação. Freitas explica esse termos no conjunto das redes de reciprocidade e espaços inter-societários das cidades, que ainda fragmentados são sistematicamente interligados pelo fluxo eco-social indígena. (FREITAS, 2006, p. 226)
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histórico e social, brotado da aceleração do presente e como marca de uma sociedade
ansiosa pelo passado (LE GOFF, 1990; HUYSSEN, 2004). Perspectiva que remete às
inquietações de Benjamin (1996) sobre a experiência do progresso moderno, sustentada
pela filosofia da novidade, mas igualmente estimula a pensar sobre processos
identidários geradores de desejo pelo passado, “que não se esgotam na evasão moldada
pelo mercado, e sim expressam os reclamos de nossos corpos por ocupar menos espaço
e mais lugar” (MARTÍN-BARBERO, 2006, p. 71).
Tais reflexões levam em conta a economia informativa que fabrica o presente e a
expansão e as transformações da memória, em concomitância com os processos de
midiatização societária, pelos quais as mídias também constituem as significações
sociais, sejam como representações ou como expressão de realidades culturais. Daí
porque os lugares indígenas podem ser pensados nos seus entrecruzamentos com as
mídias, observando registros e suas ancoragens nas temporalidades que emergem nas
histórias de vida comunicacional.
A investigação dessas ancoragens se ampara nas contribuições metodológicas da
história oral buscando alguns aportes na noção de organização da memória oferecida
por Pollack (1992). “A priori, a memória parece ser um fenômeno individual” afirma
este autor, para ressaltar com Halbwachs, que a memória deve ser entendida, sobretudo,
como “um fenômeno construído coletivamente e submetido a flutuações,
transformações, mudanças constantes”. (POLLACK, 1992, p.2) Entretanto, também
lembra que junto a essa mutabilidade existe marcos tais como acontecimentos,
personagens e lugares que podem servir como critérios para investigar a memória desde
uma dimensão pública, comemorativa, individual, sem que isso represente uma
separação estanque, mas dimensões de um mesmo processo.
Os fenômenos da memória também podem ser compreendidos como produtos
humanos externos ao indivíduo e acessíveis a coletividade. Conforme Montesperelli
(2005), a memória não é só um acervo de conhecimentos interior a cada indivíduo, ela
se projeta ao exterior, tornando-se compartida e intersubjetiva. Essa projeção, esse
compartilhamento que caracteriza a memória coletiva, faz parte de todas as sociedades
humanas e também pode ser remetida à idéia de próteses, noção que Leroy-Gourhan
utiliza para pensar os elementos que solicitam ou potencializam as lembranças ou
memórias individuais, tais como os textos, imagens, testemunhos, arquivos, etc.
Retomando a noção de lugares de memória (NORA, 1991) pode-se pensar essa
noção, a partir de Pollack, no que eles se relacionam com as memórias e as identidades
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dos diferentes e múltiplos grupos sociais, enquanto valores disputados e compartidos
nos processos que põem em questão os reconhecimentos de alteridades históricas. Por
esse prisma, a memória desempenha um papel fundamental na construção da identidade,
pois se configura em:
“um elemento constituinte do sentimento de identidade, tanto individual como coletiva, na medida em que ela é também um fator extremamente importante do sentimento de continuidade e de coerência de uma pessoa ou de um grupo em sua reconstrução de si” (POLLACK, 1992, p.5).
O fato de se referir aos grupos e não a toda sociedade faz com que a memória
social abarque uma multiplicidade de categorias, tais como lugares, identidades,
culturas, interesses, atores, instituições e várias outras, e que sua compreensão torne-se
intrinsecamente plural: “é o resultado, nunca adquirido definitivamente, de conflitos e
compromissos entre vontades de distintas memórias” (MONTESPERELLI, 2005, p.15)
que se enfrentam na esfera pública, competindo pela hegemonia de discursos plausíveis
e relevantes dentro do conjunto da sociedade.
4. O Kaingang nos registros comunicacionais e midiáticos
Os lugares indígenas são ativadores da memória grupal e também configuram os
cenários que oferecem uma idéia do trabalho de organização da memória e da
exteriorização e da “exacerbação” (SILVA, 2008) das identidades indígenas. Enquanto
comunidades políticas se tornam objeto de notícias, relatos, depoimentos em vários
dispositivos midiáticos, fabricando registros, cujos efeitos de sentido estão relacionados
às condições de produção em que são gerados e demarcando relações interculturais em
diferentes espacialidades midiatizadas.
Exemplo disso está na capa de Zero Hora, edição de 13 de abril de 2004, que
noticia a ocupação desencadeada por 23 famílias kaingang no Parque Natural Morro do
Osso, unidade de conservação municipal, localizado na zona sul de Porto Alegre, e
justificada por ser a área um território tradicional. Comparando com outras construções
midiáticas do Kaingang, no mesmo jornal, durante o mês de abril, em cinco anos de
observação, a foto que estampa a manchete e algumas outras que são publicadas nos
espaços das suítes, sugerem que se os conflitos de terra são eventos relevantes para
garantir a visibilidade midiática, há marcas desse processo que organizam o sentido do
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relato através de elementos diferenciais, tais como as lanças, os cocares e pinturas
faciais que marcam o corpo indígena na espacialidade da notícia.
Esses elementos que demarcam a corporeidade indígena dão idéia das maneiras
como as demandas Kaingang são interpostas no espaço midiático, utilizando códigos
que funcionam no espectro de estereótipos, permitindo reconhecer o “índio” e, ao
mesmo, dando conta da sua especificidade em movimentos de luta pela terra, enquanto
direito básico de existência.
Nesse processo, as coletividades indígenas também se tornam objeto de relatos
discriminatórios, produzidos no acirramento de conflitos que envolvem interesses
fundiários e mobiliários. Concomitantemente, provocam a reprodução de velhos e novos
preconceitos que se atualizam em falas tais como as sediadas pelo portal da Associação
dos Moradores do Sétimo Céu, entidade que reúne proprietários de alta renda no Morro
do Osso. Em novembro de 2004, a internauta Tenini, ao narrar suas “observações” sobre
a Aldeia diz o seguinte:
“sobre o trabalho, quase não constatamos as presenças de índios mais velhos do sexo masculino e sim, de jovens que, às vezes, tramam balaios e outras, jogam baralho. Sobre os homens adultos, fomos informadas que andavam em reuniões na FUNAI ou vendendo as quinquilharias, como camelôs.(...) foram mostrados colares e
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pulseiras sem nenhuma criatividade (....) não verificamos as tão propaladas (...) tradições e hábitos indígenas (...) uma das índias pareceu-nos muito inteligente e esperta (...) a visão do Bagé (e não Pajé) (...) houve depredações...retiradas de cipós e um rastro de sujeira por onde ficaram...” [grifei](http://www.amsc.org.br acessado em 20/10/2008)
Outro exemplo está no blog Porto Imagem, que é mantido por profissionais de várias
áreas, entre eles jornalistas, que se definem como habitantes e fãs de Porto Alegre. Uma das
suas discussões principais é o turismo:
“Turismo de preservação ecológica – Ao contrário do que se pensou durante muito tempo, não tocar na Amazônia não é necessariamente, a única maneira de preservá-la (...) em Porto Alegre (...) santuário ecológico (...) hoje invadido por índios aculturados, que instalaram suas casas com rede elétrica, televisão, proíbem (...) com hostilidade e o pior: outrora gente silvícola que vivia de harmonia com a natureza, os índios aculturados estão desmatando a mata Atlântica como nunca se viu...” [grifei] (http://www.portoimagem.wordpresscom acessado em20/10/2008)
A complexidade das lutas indígenas coloca a interculturalidade como problema
central em uma sociedade onde o direito à existência também passa pelo direito a ouvir
e ser ouvido, “fazer-se visível socialmente” (MARTÍN-BARBERO, 2006, p. 68).
Nesse sentido, o Kaingang como sujeito político, ao mesmo tempo em que é
invisibilizado em falas que constroem o índio de asfalto preconizando o índio remoto,
também fabrica registros dos seus lugares, os quais podem ser exemplificados a partir
de “vídeos” que relatam encontros de Pajés no Morro do Osso ou expressam as
reivindicações de aldeias, divulgados pelo site You Tube9.
Os diferentes registros nas múltiplas espacialidades midiáticas permitem, dessa
forma, pensar a aldeia enquanto lugar midiatizado, o que não significa transformar essa
relação em um fetiche10, e sim perceber a historicidade das interações entre
comunidades indígenas e mídias, a partir de processos comunicacionais que põem em
jogo demandas socioculturais de alteridades históricas.
9 No http://br.youtube.com/ Cacique Kaingang pede políticas públicas e Ritual em Tribu Indígena 10 A potencialidade de pensar a cultura midiática enquanto “práticas que intervém na modelação social” significa não dotá-la “de uma capacidade explicativa que transforme em midiático tudo o que se toca”. (MATA, 1999, p. 8)
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5. Os lugares, as demandas e as memórias
Nestes marcos, a dimensão da recepção abre caminho para investigar a
historicidade dos públicos, como sujeito de demandas comunicacionais, nas quais para
além de uma relação matizada pelos conflitos gerados em ações de despejo, questão
marcante para os grupos populares que reivindicam terra ou moradia, é preciso
considerar a concepção de imagem pública do indígena transposta aos meios de
comunicação. Essa questão pode ser percebida na fala de Francisco Rokàg dos Santos,
morador da Aldeia Morro do Osso e reconhecido como especialista, ou seja, aquele que
cataloga os vestígios materiais e agrega conhecimentos e técnicas de recursos naturais,
como as plantas que são processadas em balaios e cestos comercializados e trocados nas
feiras locais :
Às vezes a gente vê no noticiário (...) às vezes passam coisas reais e às vezes os próprios que filmam fazem ao contrário (...) aqui aconteceu pra nós (...) no primeiro dia (...) quando nós fomos despachados de dentro do morro pra cá eu chamei repórter (...) teve repórter que contou, mostrou, mas teve outros que fizeram mostrando outras páginas. Então o trabalho que a gente vê na televisão, quando a gente vê um irmão nosso lutando, sofrendo, que eu vi lá num resgate lá em Mato Grosso, a gente fica triste. A gente gosta de ver também, ser mostrado que é real para o cidadão, mostrar pro governo, no rádio também.
Nas relações entre mídia e comunidades indígenas, é possível compreender a
midiatização como um processo mais amplo (global) e também localizado (o lugar
midiatizado). Em outras palavras, não é uma construção que emana de fora, somente
nos meios, e muito menos com preponderância de um meio, mas também surge de
dentro das transformações culturais localizadas e entrecruzadas com o que se entende
por cultura midiática, desde a intervenção dos meios na configuração das práticas
sociais, que na sua dimensão significativa evidenciam peculiares interações e organizam
o sentido em diferentes contextos históricos.
Nessa senda, o cenário da Aldeia Morro do Osso também pode ser analisado
como um acontecimento, indagando como os lugares indígenas tornam-se objeto de
notícia e como esta construção é apropriada pelos indígenas que vivenciam o cotidiano
da aldeia, sejam eles moradores atuais, ex-moradores ou outros que, embora não tenham
residido ali, têm referências sobre a sua formação. Oriunda dos fluxos que caracterizam
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os deslocamentos, as mobilidades kaingang11, e fortalecedora da rede social étnica, a
Aldeia Morro do Osso, é considerada terra ancestral pelos seus moradores, ou seja, está
fundada no “caminho dos antigos”, argumento que organiza a fala dos interlocutores,
como o atual cacique Valdomiro Xe Vergueiro:
Os velhinhos (...) vinham de Nonoai (...) falar com os governadores aqui em Porto Alegre (...) buscar recurso para a comunidade deles. (...) eles vinham a pé, (...) a nossa vinda aqui pro Morro do Osso foi intermédio dos nossos velhinhos que contavam as notícias pra nós. Que goj-kafã-tü, [rio grande, O Guaíba] que era do lado de cá. Eles diziam que tinha uma área pro lado de lá do goj-kafã-tü,, que quer dizer um rio sem fim, muito grande. Isso ta na internet isso aí. E pro lado de lá eles diziam pra nóis que tinha uma área Ran Kri Kuka (...). E daí o branco disseram que era Morro do Osso, (...) Da onde eles vinha e ficavam ali vinham ali pra buscar recursos com os governadores, nas reunião... ali onde tem o pé de Deus (...) Uma pedra muito grande, eles ficavam por ali.
Como se pode observar nesta fala, a aldeia vai se configurando como um
acontecimento que está ancorado nos empenhos da memória grupal para criar
atualizações no presente, quando as “notícias” de ontem (dos velhinhos) são mediadas
pelas matrizes que dão existência ao goj-kafã-tü como patrimônio cultural e também são
mediadas pelos meios de comunicação.
Nesse caminho, é possível pensar que os lugares de memória não estão restritos
aos espaços físicos, porque também remetem a um conjunto de elementos que mediam a
construção das identidades culturais, mediante processos que fortalecem relações de
pertencimento e projeto e imbricações históricas com os processos de midiatização. Ao
mesmo tempo, pode-se refletir sobre o ethos midiatizado em outras escalas que não
somente a do consumo de produtos midiáticos, bem como discutir a recepção através
das marcas da cultura midiática nas vivências do Kaingang, o que significa
problematizar os cruzamentos entre cultura global e cultura local, urbana, comunitária e
ancestral, e buscar compreendê-los enquanto processos socioculturais que reelaboram as
identidades culturais (HALL, 2003) nas tessituras dos fluxos humanos e dos
movimentos étnicos de luta pela terra.
11 O termo deslocamento é utilizado por Aquino (2008) para se referir aos movimentos populacionais que dão origem a aldeia, como resultante dos conflitos internos em uma aldeia anterior. Esse movimento teria originado a Aldeia Morro do Osso, uma “terra antiga” (ga si) “perdida” para os brancos (fóg) em aldeia kaingang do Morro do Osso, onde existe um sítio arqueológico de tradição Guarani e onde os Kaingang coletavam matéria prima para confeccionar artesanato. (AQUINO: 2008, p. 42 )
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