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Ideologia Propriedade Intelectual Vianna

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  • 89RevistadaEMERJ,v.8,n.30,2005

    A IDEOLOGIADA PROPRIEDADEINTELECTUAL

    (AINCONSTITUCIONALIDADEDATUTELAPENALDOSDIREITOSPATRIMONIAISDEAUTOR)

    Tlio Lima ViannaProfessor de Direito Penal da PUC-MG.Doutorando (UFPR) eMestre (UFMG) emDireito.

    Seanaturezaproduziuumacoisamenos suscetveldepro-priedadeexclusivaquetodasasoutras,essacoisaaodopoderdepensarquechamamosde idia,queumindivduopodepossuircomexclusividadeapenassemantmparasimesmo.Mas,nomo-mentoemquedivulga,elaforosamentepossudaportodomundoe aquele que a recebe no consegue se desembaraar dela. Seucarterpeculiartambmqueningumapossuidemenos,porquetodososoutrosapossuemintegralmente. Aquelequerecebeumaidiademim,recebeinstruoparasisemquehajadiminuiodaminha, damesma formaque quem acende um lampio nomeu,recebe luzsemqueaminhasejaapagada.Thomas Jefferson

    Traduo:ORTELLADO,Pablo.Porquesomoscontraapropriedadeintelec-tual.Disponvelem:http://riseup.net/anarquista/porque_somos_contra.htm

    1. A INVENODA PROPRIEDADE INTELECTUALHistoricamente, a preocupao coma tutela dos direitos de

    autores deobras intelectuais bastante recente.NaAntigidade enamaiorpartedaIdadeMdiaasdificuldadesinerentesaosproces-sodereproduodosoriginais,porsis,jexerciamumpoderosocontroledadivulgaodeidias,poisonmerodecpiasdecadaobraeranaturalmentelimitadopelotrabalhomanualdoscopistas.

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    Comainvenodaimprensa,ossoberanossentiam-seamea-ados com a iminente democratizao da informao e criaramumardiloso instrumentode censura, consistente emconceder aosdonos dos meios de produo dos livros o monoplio dacomercializaodos ttulosqueeditassem, a fimdequeestes, emcontrapartida, velassempara queo contedono fosse desfavor-velordemvigente.

    Em1557,dezoitoanosdepoisqueWiliamCaxtonl[naIngla-terra] introduziuamquinadeescrever(prittingpress),FelipeeMariaTudorconcederamassociaodedonosdepapelariaelivreirosomonopliorealparagarantir-lhesacomercializaodeescritos.Acorporao,ento, tornou-seumavaliosaaliadadogovernoem suacampanhapara controlar aproduo im-pressa.Eramcomerciantesque,emtrocadaproteogoverna-mental ao seudomniodemercado,manipulavamos escritosdo indivduoaocontedo,exercendoacensurasobreaquelesque lhe fossemdesfavorveisnaoposio realeza.Aesseprivilgionocontroledosescritoschamou-secopyright,quenasceu,pois,deumdireitoasseguradoaoslivreiros,enocomoumdireitodoautordosescritos.Duroumaisoumenosduzentos anos, e a semente das leis (Statutes) relativas aessedireitoherdadaspelaInglaterra,e,maistarde,pelosEsta-dosUnidosdaAmricadoNorte.1

    Estaperversasimbioseentreopoderdominanteeosdonosdemeiosdeproduode livrosnovisava tutelarqualquerdireitodeautor,masto-somentegarantiromonopliodereproduodasobras,daporque foramchamadosdecopyright (direitodecpia).

    "FoiaRevoluoFrancesa,paralelamenteRevoluoIndus-trial, com seu ideriode igualdade, liberdade e fraternidade,que fezahistriadooutrodireito,daoutra facetadodireitoautoral,o seucontedomoral,de respeitos idiasdecadaumna sua integridade e significado poltico, ideolgico ou

    1ABRO,ElianeYachouh.Direitosdeautoredireitosconexos.p.28.

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    meramenteficcional.PierreRechtnoticiaquenaFrana,desdeosculoXVI,osautoresiniciavamaconscinciadequeteriamumdireitosobreassuascriaes.Mas,domesmomodoquenaInglaterra,aediode livrosera tambmumaconcesso real.Aprimeiraobraeditadafoide1686,eosescritorescomearama reivindicar seusdireitos na venda, na reproduodaobra,comoumcorolriodeseudireitoautoraldepropriedade.Foi a jurisprudncia francesa, ento,quecomeouadiscipli-narasrelaesentreescritoreseeditores,eoslaosperptuosqueosuniam,obrigando,emhistricadecisoquedasfuturastransaesdessesdireitosparticipassemosherdeirosdegran-desescritorescomoLaFontaineeFnelon.Em30/8/1777novasregrasforamestabelecidasnaFranaentreautores,editoreselivreiros.Emboramantidososprivilgiosnacomercializao, reconheceramaoautorodireitodeeditarevenderassuasobras.AindasegundoRecht,obracitada,p.32,asnormasproduziramumadiferenacapitalnanaturezajur-dica das duas categorias de privilgios: a dos autores, umapropriedadededireito,eadoeditor,umaliberalidade.2

    Ainvenodapropriedadeintelectualremonta,pois,sori-gensdosistemacapitalista,quandoporpressodosautoresdeobrasintelectuais, toma-se por propriedadeumente incorpreoque emrigortrabalho intelectual.

    Apropriedade,esemprefoi,uminstitutojurdicocaracteri-zado fundamentalmente pelo direito de usar, gozar e dispor comexclusividade da coisa.3

    "Nodireitodepropriedade,encontram-seintegradososdireitosde serusadaa coisa, conformeosdesejosdapessoaaquempertence(jusutendioudireitodeuso);odefruiregozaracoisa(jusfruendi),tirandodelatodasasutilidades(proveitos,benefci-osefrutos),quedelapossamserproduzidas,eodedispordela,

    2ABRO,ElianeYachouh.Direitosdeautoredireitosconexos.p.30.

    3Cf.art.1.228doCdigoCivil.

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    transformando-a,consumindo-a,alienando-a(jusabutendi),se-gundoasnecessidadesouavontadedemonstrada.4

    Umproprietriodeumapartamento, por exemplo, tem inte-ressenousoexclusivodoimvel,poisevidentequenosesentiriaconfortvelcomapresenadepessoasestranhasemsuasala,cozi-nhaoubanheiro. J o autor deum livroouo compositor deumamsicatemjustamenteointeresseoposto,poisningumproduzumaobraartsticaparaoseudeleiteegostico.Quantomaispessoas le-rem e ouviremuma criao, tantomaior prazer trar a seu autorqueterseutalentoreconhecido.

    Umproprietrio deuma fazenda tem interesse em fruir comexclusividadedosfrutosdesuaterraenaturalquenodesejedividirsuacolheitacomningum.Oescritordeumaobradecartertcni-co-cientfico,poroutrolado,teminteresseemsercitadoemobrasdeoutrosautorese longededesejar impedirqueoutros fruamde suasidias,sente-sehonradocomamenoquefazemaseutrabalho.

    Porfim,somenteaoproprietriocabeodireitodealienar(doar,permutarouvender) acoisa,pelobviomotivodequeao faz-loperderosdireitosdedelausarefruir.Oautor,porm,nadaperdecomacpiadasuaobra.Pelocontrrio,quantomaispessoasleremseustextos,ouviremsuamsicaeapreciaremasuaarte,tantomaisreputao ganhar na sociedade.

    Aobraintelectual,comoseuprprionomeindica(lat.opra,aetrabalhomanual),no,pois,umaespciedepropriedade,massimplesmente trabalho intelectual. A inveno da propriedadeintelectualnasorigensdosistemacapitalistateveafunoideol-gicadeencobrirestasuanaturezadetrabalho.

    Enquantootrabalhomanualmodificaamatria-prima,produ-zindo perceptveis variaes nos objetos trabalhados e, com isso,aumenta seu valor de uso naturalmente vinculado ao objetocorpreo, o trabalho intelectual no temnecessariamente seu va-lordeusovinculadoaqualquerobjeto,poisasidiasso,pornatu-reza, entes incorpreos.

    4SILVA,DePlcidoe.Vocabulriojurdico.p.477.

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    Assim, ainda que o trabalho intelectual tenha um imensovalordeusoemqualquer sociedade, seu valorde trocaestarsemprecondicionadoaumavendacasadadeprodutos (operga-minho,opapel)eservios(acpiamanual,acpiaimpressa).Umaidia,quandoreproduzidaoralmente,pormaiorvalordeusoquetenha,nopossuiqualquervalordetrocapelosimplesfatodepo-derserreproduzidainfinitamentesemestarlimitadapeloproblemafundamental da economia: a escassez.

    2. A questo da escassezNohbemmaispreciosoparaossereshumanosdoqueoar

    querespiramos.Noobstanteseu imensovalordeuso,oarnotemhojequalquervalordetroca,pelofatodeexistirnanaturezaem abundncia.H sculos a gua potvel tambmno possuavalordetrocanamaioriadassociedades,masaotornar-seescas-sanasociedadeatual,adquiriuvalordetrocaepassouaserven-dida.

    V-se,pois,queovalorde trocadedeterminadobemestdiretamenterelacionadosuadisponibilidadenasociedade.Some-seaestaconstataoo fatodequeamaioriaabsolutadosbenseservios que consumimos so socialmente escassos:

    1. Nossos desejosmateriais so virtualmente insaciveis eilimitados.2.Osrecursoseconmicossolimitadosouescassos.Devidoaestesdoisfatosdavida,nopodemostertudoquedesejamos.Portanto,enfrentamosanecessidadede fazerescolhas.5

    Assim,naturalqueseopteporcomprarumapartamentoouumacasa;porumcarroouumamotocicleta;porumaviagemnasfriasdejaneirooudejulho.Taisescolhassonecessriasemvirtu-dedenossoslimitesprodutivos.

    Pormuitotempo,oproblemadaescassezlimitouaquantida-dedecpiasedefiniuovalorde trocadeobras intelectuais.Noperodoanterior invenoda imprensa,aaquisiodeumaobraintelectualimplicavaemumanecessriaaquisioconjuntadebens

    5WONNACOTT,Paul.WONNACOTT,Ronald.Economia.p.23

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    e servios, consistente emummeiomaterial (umpergaminho, porexemplo)soboqualrealizou-seumservio(acpiamanualdaobraintelectual).

    Coma invenoda imprensa,manteve-seanecessria aqui-sioconjuntadebense servios,poisovalorde trocadaobracontinuavavinculadosuaconsubstanciaoemmeiofsico.Adrs-tica reduodos custos do serviode cpia, possibilitadapela re-produo em srie, obrigou os autores a alienarem seu trabalhointelectual aos detentores dos meios de produo que, emcontrapartida,exigiram-lhesaconcessodomonopliodadistribui-odasobras.

    Anaturezado trabalho intelectual,quepoderiaser replicadoad infinitum,acaboupor ser tomadacomopropriedade intelectu-al,mesmocontra todaasevidnciasdeque,umavezalienada,apropriedadenopodemaisserutilizadaporquemumdiaapossuiu.Firmou-seentoaideologiadapropriedadeintelectual,ocultandoavendadotrabalhointelectualdosautoresaosdetentoresdosmeiosdeproduo.

    NosculoXX,comainvenodossistemasinformticoseoadventodaInternet,asfunesdedivulgaoedistribuiodasobrasintelectuais, que tradicionalmente eram realizadas pelas editoras,gravadoras e produtoras, puderam ser realizadas diretamente peloprprio autor atravs de pginas pessoais.Assim, qualquer pessoaconectadaInternetpodeteracessoalivros,msicas,filmesepro-gramasdecomputadorproduzidosemqualquerlugardomundoe,emquestodehoras,oumesmominutos,podecopi-losaumcustonfimoparaseucomputador.

    Osuportematerialdaobra,queatentoerapredominante-mente o papel, foi substitudopor dispositivos de armazenamentomagnticos(disquetes,discosrgidosetc)epticos(CDs,DVDsetc)debaixssimocustoecomgrandecapacidade,possibilitandoaqual-querpessoatergigantescasbibliotecaspessoaisemformatodigital.Oservionecessrioreproduodaobrafoiminimizadoapontodeserrealizadopessoalmentepeloprpriointeressadoemquestodeminutos.Ocustodereproduodevolumosascoleesdelivrostornou-se praticamente insignificante.

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    Estenovosistemadedistribuiodotrabalhointelectualredu-ziuocustodosbenseserviosnecessriosaquisiodeumaobraapraticamentezeroesuprimiuoproblemadaescassez.Comocon-seqncia direta disso, o valor de troca do trabalho intelectual,quesempreestevevinculadoescassez inerentevendaconjuntadebenseservios,nopdemaissermantido.Osistemacapitalis-tasedeparoucomumarealidadequea ideologiadapropriedadeintelectualatentomuitobemocultara:nolivremercadoova-lordetrocadotrabalhointelectualzero,poispodeserreproduzi-doad infinitum e no est limitadopela escassez.

    Esta constatao, longe de colocar em risco a remuneraodotrabalhointelectualdosautores,demonstrato-somenteque,nosistema capitalista, imprescindvel a consubstanciao da obraintelectual emmeio fsico para que esta adquira valor de troca.No obstante a ausncia de escassez emmeio digital, a vendacasadadaobraintelectualcomprodutos(papel)eservio(impres-so)continuaocorrendo.

    Adigitalizaodasobras intelectuaisnoaboliua impressodelivros.Asleis,quesempreforamdedomniopblico,estofarta-mente disponveis na ntegra na Internet,mas as editoras jurdicascontinuamproduzindoevendendocdigosimpressos.Inmerastra-duesdaBbliapodemserencontradasnaInternetcomfacilidade,masaobrasagradacontinuasendoolivromaisvendidonomundo.Agenial literaturadeMachadodeAssis,emdomniopblicopelopassardotempo,tambmpodeserencontradanaInternet,masv-rias editoras continuam imprimindo seus trabalhos, inclusive emedies luxuosas.

    Seassimcomasobrasdedomniopblico,domesmomodosercomasobrastuteladaspelodireitoautoral.Apesardadivul-gaodestestrabalhosemmeiodigitaledasuaconseqenteausn-ciadeescassez,aindaassimhaverinteressadosemadquiri-lasemedies palpveis.Dessemodo,manter-se- o velho esquemadealienaopelos autores do trabalho intelectual aos proprietriosdosmeiosdeproduo,garantindoquelesaremuneraoporseutrabalhoeaestesolucroporseuinvestimento.

    Ladooutro,nasociedadecapitalistadigital,otrabalhointelec-tualmesmo innaturapossuiconsidervelvalordetrocaenquan-

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    topermanecer indito.Opioneirismonaexploraodeuma idiagarante ao capitalista umperodo de vantagem em relao suaconcorrncia.Assim,acompradotrabalhointelectualinditope-losdetentoresdomeiodeproduogaranteoslucrosderivadosdopioneirismode suaexplorao.

    Este fenmenoparticularmentevisvelem toda sortede in-venesda indstria tecnolgicaque,apsseremcomercializadas,so logocopiadaspelaconcorrncia.No soaspatentesquega-rantemos lucros das empresas,mas principalmente o segredo in-dustrialeopioneirismo.

    3. O NOVO PARADIGMADA TUTELA JURDICA DO TRA-BALHO INTELECTUAL

    Onovo paradigma de remunerao do trabalho intelectualcomeou a ser disciplinado em1984, quando surgiu nos EstadosUnidos da Amrica ummovimento liderado pelo programadorRichard Stallman, com o objetivo de desenvolver um sistemaoperacionaldelivredistribuio.Esta iniciativaresultounacriaodaFree Software Foundation FSF (Fundaopara o Software Li-vre)e,parafundamentarjuridicamenteoprojeto,foiredigidaaGNUGeneralPublicLicense -GPL (LicenaPblicaGeraldoGNU)querompiacomaantigatuteladodireitodecpia(copyright):

    Software livre se refere liberdade dos usurios executa-rem, copiarem,distriburem, estudarem,modificareme aper-feioaremosoftware.Maisprecisamente,eleserefereaqua-trotiposdeliberdade,paraosusuriosdosoftware: Aliberdadedeexecutaroprograma,paraqualquerpro-psito(liberdaden.0) A liberdade de estudar como o programa funciona, eadapt-loparaas suasnecessidades (liberdaden1).Acessoaocdigo-fonteumpr-requisitoparaesta liberdade. Aliberdadederedistribuircpiasdemodoquevocpos-saajudaraoseuprximo(liberdaden.2). Aliberdadedeaperfeioaroprograma,eliberarosseusaperfeioamentos,demodoquetodaacomunidadesebene-

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    ficie(liberdaden.3).Acessoaocdigo-fonteumpr-requi-sitoparaesta liberdade.6

    Garantia-sealivredistribuioemodificaodasobrase,emcontrapartida, as novas distribuies ficavamvinculadas mesmalicena.Assim,umprogramadorpoderiaatmodificarumsoftwarelivre,masnecessariamenteonovoprograma resultante destasmo-dificaesdeveriaserdistribudonostermosdaGPL.

    Pela primeira vez, consagrava-se juridicamente a realida-deeconmicadeque,no sistemacapitalista,o trabalho intelec-tual innaturanopossui valorde troca emvirtudeda ausn-cia de escassez.

    Aestaslicenasquegarantiamodireitodedistribuiremodifi-car livremente as obras intelectuais convencionou-se chamar deCopyleft,emumantidaalusoderepdios licenas tradicionaisdeCopyrightquegarantiamomonopliododireitodereproduodasobrasintelectuais.NotardouparaqueonovoconceitodelivredistribuioealteraodosoftwarepassasseaseraplicadoaoutrasformasdecriaointelectualefoicriadaaGNUFreeDocumentationLicense (GFDL Licena deDocumentao Livre doGNU), apli-cvela textos, imagens,msicas, filmeseoutrosdocumentos.

    Paradoxalmente, oCopyleftno veda a comercializao daobra.Desdequepermitamalivredistribuioemodificaodaobraproduzida, as empresas podemexplor-la comercialmente.Assim,umaeditora pode editar e vender livremente umaobradistribudanaInternetsobCopyleft,demodosemelhantesobrasemdomniopblico,mas jamais poder impedir que algumcopieo livro im-presso,porqualquermeio,ouqueoutraeditoraopublique,poisalicenaoriginalnopermiteaesmonopolistas.

    ApartirdoCopyleft, surgiramoutras licenascom tratamen-tos diversos dos direitosmorais do autor, em especial no que dizrespeitoatribuioobrigatriadonomedoautor,vedaoaalte-raes da obra e vedao de distribuio com fins comerciais.Estasnovas licenasconsagramummodelodedistribuiodo tra-

    6GNU.Oquesoftwarelivre?Disponvelem:http://www.gnu.org/philosophy/free-sw.pt.html.

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    balhointelectualquepermitealivrecpiadaobraemformatodigi-tal (ondenoh escassez) e aomesmo tempo garante ao autor odireito de ser remunerado quando seu trabalho intelectual forconsubstanciadoemmeio fsicopara finsdecomrcio.Trata-sedasuperaodavelha ideologiadapropriedade intelectualemproldeumnovoparadigmadetuteladotrabalhointelectual.

    Onovo paradigma, porm, no agradou aos detentores dosdireitosdeproduo,quemantiveramadefesainarredveldaideo-logiadapropriedadeintelectual,capazdesustentaromonopliodedistribuiodasobras.Estemonopliooinstrumentoquega-rante a escassez da obra intelectual e, conseqentemente, criaartificialmente um valor de troca, pois um trabalhoquepoderiaser reproduzido ad infinitum em um livremercado comandadopela escassez, in natura teria valor de troca zero.

    Dessa forma, umdos elementosdefinidores dessa nova Eraseralutaentreaesferaculturaleaesferacomercial;aculturalprimandopela liberdadedeacesso,eacomercialbuscandoocontrolesobreoacessoeocontedodessaproduocultural,com intuito comercial. Evidentemente, estamospassandoporumperododetransio,delongoprazo,deumsistemabasea-donaproduoindustrialparaumaproduocultural,emqueoimportantenoapropriedadedobem,masoacessoaele.Arealizaodautopiamarxiana?Nestecontextohabundnciadebensculturaiseintelectuaisediantedistoavelhaeconomiaagoniza,baseadaquenadefe-sa irracionalda indstria cultural, emdetrimentodacultura edosverdadeirosprodutoresdacultura,osautoresintelectuais.7

    Natentativadesustentaraideologiadapropriedadeintelec-tual, a indstria cultural cria estatsticasmirabolantes para afir-mar a tesedequeapirataria acarretaprejuzodebilhesde reaisporano.Osofismafunda-senoargumentocretinodequetodoaquelequepirateia umaobra intelectual, caso fosse impedidode faz-lo,necessariamente compraria o produto.

    7ROVER,AiresJos."Ospaadoxosdapoteopopiedadeintelectual".In:Internetlegal:oDireitonaTecnologiadaInformao.p.177.

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    DeacordocomaABES[AssociaoBrasileiradeEmpresasdeSoftware],umapesquisadaPriceWaterCoopersrevelaque,seondicedepiratariadesoftwarebrasileiro,atualmenteem56%,fossereduzidoparaoequivalentedospasesdesenvolvidos,emtornode 25%, o setor deixaria de perder R$ 1,7 bilho emfaturamento equase25mil novos empregos seriamgerados,comaproximadamenteR$1,2bilhoarrecadadosem impostosdiretoseindiretos.Masaltol.Aindstrianoperde1,7bilhoporano.Estevalorcorresponde sua expectativade lucro casoquempirateia acimadam-dia no tivesse alternativa, nempara escolher software livrenemparainstalarsoftwarepirata.Acontahonestaseriaoutra.Desses56%,quantos instalariamsoftware livreoudeixariamdecomprarocomputadorsenopudessempiratear?Descon-tadosestes,oqueaindstriaperdeapenasovalordaslicen-as restantes.Valorquenoobrigaacorrespondersexpec-tativasde lucrodasempresas,masaoqueopoderaquisitivodosagenteseconmicosconsegueabsorver,comobemmos-traaatualcriseda telefoniaprivatizada.8

    Sobopretextodesetutelarosdireitosdeautor,ocombatepiratariato-somenteuminstrumentodereafirmaodavelhaide-ologiadapropriedade intelectual,nicacapazde legitimaromo-nopliododireitodecpiadosdetentoresdosmeiosdeproduo.

    Omonopliododireitodecpia(copyright), longedetute-larosdireitosdoautor,contrrioaseuinteressedemaiordivul-gaopossveldaobra.Oquegaranteaosautoresaremuneraoporseutrabalhonoomonopliododireitodecpia,masaali-enaodeste trabalhoaosdetentoresdosmeiosdeproduoqueiroconsubstanci-loemmeiofsicoevend-lonolivremercado.Pouco importaaoautoraausnciadeescassezdaobraemmeiodigital, oumesmo seumanicaouumadezenade empresas ir

    8RESENDE,PedroAntnioDouradode"ProgramasdeComputador:aoutrafacedapirataria".In:Internetlegal:oDireitonaTecnologiadaInformao.p.227.ParadadosatualizadosdaABES,cf:http://www.abes.org.br/polonego/dadoseto/dadose1a.htm#%CDndice%20de%20Pirataria%20no%20Software

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    produzir seu trabalho emmeio tangvel, pois sua remuneraodepende to-somente da venda da obramaterializada.

    A livre divulgaoda obra emmeio digital extremamenteinteressanteaoautor,poislhepermiteumavisibilidademuitomaior,dando-lheprestgioevalorizando-ocomoprofissionalnomercado.esteprestgiosocialquelhegarantiraofertadenovos trabalhosnaformadepalestras,shows,trabalhosporencomendaeoutrasativida-desqueindiretamentetambmremuneraroseutrabalhointelectual.

    OCopyleftasuperaojurdicadavelhaideologiadapro-priedadeintelectualeaconsagraodeumnovoparadigmadetu-teladotrabalhointelectualqueprivilegiaoautoremdetrimentodointeressedasempresasnomonopliododireitodecpia(copyright).

    4.O VELHO PARADIGMADA TUTELA PENALDA PROPRIE-DADE INTELECTUAL

    A superao da ideologia da propriedade intelectual e osurgimento,naesferacvel,doCopyleft comonovoparadigmadetuteladosdireitosdoautornoforam,atomomento,acompanha-dospeloDireitoPenal.

    Osart.184,caput,doCdigoPenaleart.12daLein9.609/98mantm-sefiisideologiadapropriedadeintelectual,tipificandoavagacondutadeviolardireitodeautor.

    Aopodolegisladorpelanormapenalembrancoproble-mtica, pois o tipo penal no pode fundar-se no merodescumprimentodeumanormacivil.

    Oconceitodetipo,introduzidoporBelingnadogmticape-nal,podeserdefinidodetrsdiferentespontosdevista:a)comotipo legal constitui a descriodo comportamento proibido,com todas suas caractersticas subjetivas, objetivas, descriti-vas e normativas, realizadas na parte especial doCP (e leiscomplementares);b)comotipodeinjustorepresentaadescri-oda lesodobemjurdico,compreendendoos fundamen-tospositivosdatipicidade(descriodocomportamentoproi-bido)eos fundamentosnegativosdaantijuridicidade(ausn-ciadecausasde justificao);c)comotipodegarantia(tipo

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    emsentidoamplo)realizaafunopoltico-criminalatribudaaoprincpiodalegalidade(art.5,XXXIX,CF),expressanafr-mulanullum crimen, nulla poena, sine lege, e compreen-detodosospressupostosdapunibilidade:almdoscaracteresdo tipode injusto (tipicidade e antijuridicidade), tambmosfundamentosde reprovaodoautorpela realizaodo tipodeinjusto(culpabilidade),assimcomoascondiesobjetivasdepunibilidadeeospressupostosprocessuais.9

    Soboaspectodetipolegal,aexpressoviolardireitodeau-tornodescreveocomportamentoproibidodeformaminimamen-te precisa. Ao remeter a um conceito da Lei civil n 9.610/98,esvanescetotalmentesuafunodegarantia,contrariandooprinc-pioconstitucionalda taxatividade.

    Apesar de expressar-se a lei penal empalavras e estas noseremnuncatotalmenteprecisas,nemporissooprincpiodalegalidadedeveserdesprezado,massimcabeexigirdolegis-lador que ele esgote os recursos tcnicos para dar amaiorexatido possvel sua obra. Da, no basta que acriminalizao primria se formalize em uma lei,mas simque ela seja feita de umamaneira taxativa e com amaiorpreciso tcnica possvel, conforme ao princpio damximataxatividade legal.10

    Ladooutro, a lei civil no supre a funo de garantia a eladelegadapelanormapenal,poisnaatual sistemtica impostapeloCopyleft, a tutelapatrimonial dosdireitos autorais regraquead-mite inmeras exceesdeordemmeramente contratual.Assim, aintricada leitura dos referidos tipos penais implicaria uma jornadadanormapenalembrancoleicivilqueacomplementa,masque,muitavez,remeteriaointrpreteaumalicenacomcaractersticas

    9SANTOS,JuarezCirinodos.Amodernateoriadofatopunvel.p.29.

    10ZAFFARONI,EugenioRal.BATISTA,Nilo.Direitopenalbrasileiro:primeirovolumeteoriageraldodireitopenal.p.206-207.

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    contratuais,naqualoautordispensariaatutelalegaldosseusdirei-tos patrimoniais.Uma interpretao extremamente complexa atmesmoparaprofissionaisdoDireito,epraticamenteimpossvelparaocidadoleigo,aquemafunodegarantiadostipospenaisdeve-riacontemplar.11

    4.1. Em busca do bem jurdicosoboaspectodetipodeinjusto,porm,queseencontraa

    maisgraveofensaaoprincpioda taxatividade. Istoporqueavagadescrioda conduta tpica fundamenta-se na tutela penal de umbemjurdicotoimpreciso,quecontradizaobjetividadeinerentenaturezadobemjurdico.

    Quando o legislador encontra-se diante de um ente e teminteresse em tutel-lo, porque o valora. Sua valorao doente traduz-se emumanorma, que eleva o ente categoriade bem jurdico.Quandoquer dar uma tutela penal a essebem jurdico,combasenanormaelaboraumtipopenaleobemjurdicopassaaserpenalmentetutelado.Vejamos o que se passa comumpoucomais de clareza: olegislador encontra-se diante do ente vida humana e teminteresse em tutel-la, porque a valora (a considera positiva,boa,necessria,dignaderespeitoetc).Este interesse jurdicoemtutelaroentevidahumanadeveser traduzidoemnor-ma;quandoseperguntacomotutel-lo?,anicaresposta:proibindomatar.Estaanormaproibitivanomatars.12

    Aindaqueseconcebamtipospenaiscomplexos,comoorou-bo(emquesetutelamaliberdadeeopatrimnio),emtodoselesa

    11NestesentidodecidiuoTJMG:Violaodedireitosautorais.CDpirata-Oprincpioconstitucionaldalegalidadeagarantiadequetodocidadospodersercondenadocriminalmentesehouverleiprviaquepermitaaelesaber-aindaquepotencialmente-queacondutacrimenoordenamentojurdico.AexpressoviolardireitosautoraisdemasiadamentevagaeatmesmoespecialistasemDireitoPenalnopoderiamprecisaroseumbitodesignificao,quantomaisumvendedorambulantesemeducaojurdica.Odesconhecimentodaleiescu-svelseestanoforsuficientementeclaraparapermitirquequalquerumdopovopossacompreender-aindaquepotencialmente-oseusignificado.ApelaoCriminaln1.0172.04.910501-5/001,Relator:EronydaSilva.Dispo-nvelem:http://www.tjmg.gov.br/juridico/jt/

    12ZAFFARONI,EugenioRal.PIERANGELI,JosHenrique.Manualdedireitopenalbrasileiro:partegeral.p.455.

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    individualidadedecadaumdosbensjurdicostuteladosdeveestarper-feitamentedemarcada.Destaforma,obemjurdicodevesercaracteri-zadoporumnicoe indivisvel interesse jurdicoa ser tuteladopelanormapenalenoporumconjuntodeinteressesdifusosreunidosarbi-trariamentesobumaabstrata ideologiadepropriedadeintelectual.

    A funo de garantia individual exercida pelo princpio dalegalidadeestariaseriamentecomprometidaseasnormasquedefinemoscrimesnodispusessemdeclarezadenotativanasignificaode seuselementos, inteligveispor todososcida-dos.Formulartipospenaisgenricosouvazios,valendo-sedeclusulasgeraisouconceitos indeterminadosouam-bguosequivaleteoricamenteanadaformular,masprticae,politicamente,muitomaisnefastoeperigoso.13

    Adoutrinanacional14 indicaosdireitosautoraiscomobemjurdicopenalmentetuteladopelodelitodeviolaodedireitosdeautor.Estes,porsuavez,soconsideradosto-somenteumaesp-ciedognero propriedade intelectual.15

    Odelito de violaode direitos de autor um tipopenalvago, fundamentado em umbem jurdico indeterminado. umaverdadeiraafrontaaoprincpioconstitucionalda taxatividade,poisrenesobortulodepropriedadeintelectualumagamadeinte-ressestodiversosquanto:odireitodeatribuiodeautoria,odirei-todeassegurara integridadedaobra (oudemodific-la),odireitodeconservaraobraindita,entreoutrosdireitosmorais,eosdireitosde edio, reproduo (copyright) e outros patrimoniais. Trata-se,

    13BATISTA,Nilo.IntroduocrticaaoDireitoPenalBrasileiro.p.78.

    14Nestesentido:FRAGOSO,HelenoCludio.Liesdedireitopenal:parteespecial:arts.121a212doCP.p.504;PRADO,LuizRegis.Cursodedireitopenalbrasileiro,volume3:parteespecial:arts.184a288.p.53;MIRABETE,JulioFabbrini.Manualdedireitopenal:parteespecial:arts.121a234doCP.p.374.DELMANTO,Celsoetal.Cdigopenalcomentado.p.437.Emsentidosemelhante,afirmandoserapropriedadeintelectualobemjurdicotutelado:NUCCI,GuilhermedeSouza.Cdigopenalcomentado.p.609.

    15Emrelaosobrasliterrias,cientficasoufilosficas,denominadasdeobrasouproduesdopensamento,esobrasartsticas(escultura,pintura),apropriedadeintelectualgeralmenteconhecidapeladenominaodireitosautorais.Equantosinvenes,naterminologiadoDireitoComercial,designam-se,especialmente,propriedadesindustriais,queseconcretizampelaspatentesdeinvenes,expedidaspelopoderpblicoemfavordosinventores.(SILVA,DePlcidoe.Vocabulriojurdico.p.479-480).

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    portanto,deumtipopenalcomplexoquetutelanoum,masinme-rosbensjurdicosdenaturezamoralepatrimonial,agrupadossobaideologiadapropriedade intelectual. 16

    Pelaprpria funode garantiado tipopenal, adecomposi-odohipotticobemjurdicopropriedadeintelectual(oudirei-tosautorais)emsuasunidadesmnimastemconseqnciasimpor-tantssimas.Secertoointeressejurdiconatutelapenaldosdirei-tosmoraisdoautor,atutelapenaldosdireitospatrimoniaisbastan-te controversa.

    Huminteresse individualesocialemse tutelaraautentici-dadedeumaobra,bemcomosuaintegridade.NosdeinteressedePicasso queo pblico saiba queGuernica foi pintadopor ele,mastambmdeinteressedopblicoedehistoriadoresdaarteterconhecimento de que aquela obra provmdasmos deste artista.Damesma forma,do interessenosdoautor,masdopblico,queapinturapermaneanotommonocromtico,adequadoaotema,equeningumamodifiquecomdetalhesemdourado.

    A reproduodesta obra em livros de arte, porm, longedelesaruminteressedoartistaoudopblico,beneficiaratodos.As-simcomointeressanteparaoartistaterseutrabalhoapreciadoporumpblicomaior,deinteressedopblicoteracessomaiorvari-edadedeobraspossvel.

    Nohqualquerinteressejurdicodoautoremevitararepro-duodesuaobra,muitopelocontrrio,quantomaisseutrabalhointelectualfordivulgado,maiorprestgiosocialeleganhar.Oin-teresseemlimitarareproduodaobrato-somentedosdetento-resdosmeiosdeproduo,queprocurammanterummonoplionadistribuiodaobrapara,comisso,produziremartificialmenteumaescassez inexistente na era digital.

    Adecomposiodobemjurdicopropriedadeintelectualoudireitosautoraisdemonstraquehnosumatuteladeinteresses

    16Acercadanaturezajurdicadamatria,amelhordoutrinaptria(AntonioChaves,WalterMoraes,CarlosAlbertoBittar,JosdeOliveiraAsceno,FabioMariadeMattia)unanimentedualista:direitosdeautorsoumconjuntodeprerrogativasdeordemmoraledeordempatrimonial,queseinterpenetramquandodadisponibilizaopblicadeumaobraliterria,artsticae/oucientfica.Osdireitosmoraispertencemexclusivamentepessoafsicadocriador,e,nocasodaobraaudivisual,soexercidospelodiretor.Ospatrimoniais,aocriadororiginrio,senoostransferiu,ouaoterceiro,pesoafsicaoujurdica,aquemostenhacedidooulicenciado.(ABRO,ElianeYachouh.Direitosdeautoredireitosconexos.p.16)

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    diversos(moraisepatrimoniais),masdeinteressesdepessoasdiver-sas:autoreindstriacultural.Seointeressepatrimonialdoautorvenderseutrabalhointelectualaoproprietriodosmeiosdepro-duo,queirconsubstanci-loemmeiofsicoecomercializ-lo,ointeressedaindstriaculturalmanterummonopliodomerca-doquelhegarantiramaximizaodoslucros.

    A tutelapenalda violaodedireitosde autor tal comoconcebidahoje umdisparate jurdicoque s se justificaquandoencobertopelaideologiadapropriedadeintelectual.Taldelitotu-telaaomenostrsbensjurdicosabsolutamentediversos:a)osdirei-tosmoraisdoautor;b)odireitodoautorremuneraopelotraba-lhointelectualexploradopelosdetentoresdosmeiosdeproduoec)mirabiledictu,odireitodemonopliodemercadodosproprie-triosdosmeiosdeproduo.

    4.2. A tutela penal de uma obrigao civilQuantoaosdireitosmoraisdoautor,porsetrataremdedirei-

    tos personalssimos, que abarcam interesses pblicos e privados, bastante justificvel a tutela penal. Em relao aos direitospatrimoniais,porm,suanaturezaeminentementecivilafastaqual-querinteressepbliconatutelapenal,sejadosinteressesdosauto-resemreceberemumaremuneraoporseutrabalho,sejadosinte-ressesdas empresasdemanterem seumonoplio comercial.

    Apiratariaemmeiofsicoatingeosinteressesdoautor,quetemseu trabalho intelectual comercialmente explorado sema corres-pondenteremuneraopeloproprietriodosmeiosdeproduo.Tra-ta-se,noentanto,deumadvidacivil,jamaisdeilcitopenal.

    Seo legisladorababsurdocriasseuma lei tipificandoacon-duta:violardireitode locador,ningumteriadvidasemafirmaraabsolutainconstitucionalidadedanorma.

    Argumentar-se-ia, por certo, que os direitos do locador sovrioseestanormalesariaoprincpioconstitucionaldataxatividade.Aindaqueosdiversosbensjurdicostuteladosporestedelirantetipopenalcomplexo fossemdecompostos,emdeterminadoaspectoeleseria visivelmente inconstitucional: tratar-se-ia de umacriminalizaododescumprimentodeumaobrigaocivil,vedadaexpressamente pelaConstituio Federal:

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    Art.5,LXVIInohaverprisocivilpordvida,salvoadoresponsvelpelo inadimplementovoluntrioe inescusveldeobrigaoalimentciaeadodepositrio infiel.

    EpelaConvenoAmericanasobreDireitosHumanosPactodeSanJosdeCostaRica:

    Artigo7Direito liberdadepessoal(...)7.Ningumdeveserdetidopordvidas.Esteprincpiono limitaosmandadosdeautoridadejudiciriacompetenteexpedidosemvirtudedeinadimplementode obrigao alimentar.

    Seassimemrelaotuteladapropriedadematerial,razoalguma haveria para se proteger commaior nfase uma abstratapropriedadeintelectualque,nesteaspecto,tutelaodireitodoau-torareceberaremuneraoporseutrabalhointelectual,exploradocomercialmenteporumproprietriodosmeiosdeproduo.

    Deixardereceberumarendaousalrio,aindaquesetratededescumprimentodeobrigao civil, jamais pode ser equiparado auma lesopatrimonial semelhanteaocrimede furto.Nodelitodefurto h umdecrscimopatrimonial, na violaodedireitos auto-rais,oautordeixadeterumacrscimoemseupatrimnio.Nofurto,hofensaaumdireito real;naviolaodedireitosautorais,aumdireitoobrigacional.Naqueletemosumavtima;neste,umcredor.

    Aproduodeobras intelectuaisemmeio fsicoqueno foiautorizadapeloautor,portanto,to-somenteumdescumprimentodeobrigao civil.Dada a suanatureza eminentemente privada eseu carter exclusivamente pecunirio, sua criminalizao afrontano s o princpio da interveno penalmnima,mas tambm avedaoconstitucionalsprisespordvidas.

    Apiratariadigital,poroutrolado,lesaprincipalmenteosinte-ressesdaempresa,poisnosistemacapitalistaotrabalhointelectualinnaturanopossuiqualquervalordetrocaeoautorsremu-neradodiretamente coma vendadaobra emmeio fsico.A fonteprimordial de sua remunerao o salrio indireto, decorrente doprestgioadquiridocomarepercussodesuaobra.

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    Assim, a criminalizaoda pirataria digital tem comonicafunogarantirindstriaculturalomonopliododireitodere-produodaobra(copyright),mesmocontrariandoosinteressesdoautor namaior divulgaopossvel de seu trabalho intelectual.ODireito Penal travestido, pois, em instrumento de regulao domercadoeconmico,garantindoummonopliodedireitodecpiaconcedidopeloEstadoaosdetentoresdosmeiosdeproduo.

    Se o Estado brasileiromantm seu contestvel interesse naconcessodestemonopliododireitodereproduoaospropriet-riosdosmeiosdeproduo,develimitar-seagaranti-lopormeiodesanescveis, taiscomoaquelasprevistasnoTtuloVIIdaLein9.610/98.Atutelapenaldestemonoplioviolanosoprincpioda intervenomnima,mas tambme,principalmente,avedaoconstitucionalprisopordvidas.

    5. GUISADE CONCLUSOOmonopliododireitodereproduodasobrasintelectuais

    (copyright)surgiuhsculoscomoinstrumentodecensurapolticaemuma simbiose dosmonarcas comos detentores dosmeios deproduo.Como advento do sistema capitalista, estemonopliopassouasersustentadoatosdiasdehoje,sobaideologiadapro-priedadeintelectual,embenefciodosdetentoresdosmeiosdepro-duo,eacabouporconstituirverdadeiracensuraeconmica.

    Oaltovalordelivros,CDs,DVDsedeprogramasdecomputa-dorsustentadoporumaescassezdeobrasintelectuaiscriadaartifi-cialmenteporummonopliododireitodecpiaconcedidopeloEsta-doaosdetentoresdosmeiosdeproduo.Estaescassezartificial,lon-gedetutelarosdireitosdoautordaobraintelectual,beneficiaprinci-palmenteaindstriacultural,emdetrimentodaclassehipossuficientedapopulao,queobrigadaaescolherentreoconsumodebensdesubsistncia edebens culturais e acabaoptando impreterivelmenteporaqueles.Destaforma,aumenta-seofossoculturalexistenteentrepases desenvolvidos e subdesenvolvidos e, internamente, entre osmembrosdeumaeliteeconmicaeculturaleamassadapopulaofadadaaotrabalhobraal,misriaeignorncia.

    Sob a secular ideologia da propriedade intelectual, a in-dstriaculturalprocuradesesperadamente justificaranecessidade

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    deumatutelapenaldacondutadeviolardireitosdeautor.Umadetidaanlisedobemjurdicotuteladodemonstra,noentanto,an-tida dicotomia entre a justificada tutela penal dos direitospersonalssimos do autor e a inconstitucional criminalizao dodescumprimento de obrigaes civis originadas dos direitospatrimoniaisdeautor.

    Necessriose fazumaimediatareleituradosartigos184doCP e 12 da Lei 9.608/98 pelos Tribunais para que se declareinconstitucional a tutela penal dos direitos patrimoniais de autor,sejapelainobservnciadoprincpioconstitucionaldataxatividade,sejapelainobservnciadavedaoconstitucionalprisopord-vidas.EntenderdeformadiversaconsagrarainstrumentalizaodoDireitoPenalcomomeiodecoeroaopagamentodedvidascivis e de interveno econmica para a garantia demonopliosprivados..