16
ieqSegurança e Defesa na América do Sul: a cooperação sul- americana em um contexto multipolar Ana Karolina Morais da Silva 1 Lucas Kerr de Oliveira 2 Resumo: A consolidação da multipolaridade no Sistema Internacional, em um formato desequilibrado/assimétrico, competitivo e marcado pelo aprofundamento progressivo das disputas entre as Grandes Potências por áreas de influência e aliados regionais, tem resultado em um padrão de conflito indireto permanente entre esses polos de poder. Com o acirramento da disputa interestatal entre as Grandes Potências, a América do Sul se vê inserida em um contexto geopolítico intrincado, ocupando parte central das disputas geopolíticas contemporâneas, especialmente no que se refere à política externa e de segurança dos Estados Unidos para a região. Neste sentido, a cooperação em segurança e defesa apresenta-se como um desafio para os Estados sul-americanos, uma vez que a construção de um espaço político integrado a nível securitário demanda o desenvolvimento conjunto de capacidades defensivas por parte destes Estados. Por outro lado, este desafio também representa uma oportunidade para a região movimentar-se dentro do Sistema Internacional, uma vez que os ciclos de competição interestatal abrem possibilidades para os Estados periféricos buscarem reposicionar- se dentro da hierarquia sistêmica. Palavras-chave: Cooperação; Segurança; Defesa; América do Sul; Multipolaridade. Introdução O século XXI representou uma mudança no padrão de relacionamento entre os países sul-americanos. A primeira década deste século foi marcada pela erosão da influência estadunidense na região, concomitantemente ao maior protagonismo brasileiro nas relações internacionais e o aprofundamento da multipolaridade a nível sistêmico. Tal contexto, aliado à particularidades regionais como a ascensão de governos progressistas em diversos países sul- americanos foi seguido por uma significativa mudança na forma como a 1 Mestranda em Relações Internacionais pela Universidade Federal da Integração Latino- Americana (PPGRI/UNILA). E-mail: [email protected]. 2 Docente de Relações Internacionais e Integração e do Mestrado em Integração Contemporânea da América Latina (PPG-ICAL) da Universidade Federal da Integração Latino- Americana (UNILA). Doutor em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). E-mail: [email protected].

ieqSegurança e Defesa na América do Sul: a cooperação sul- … · 2019. 10. 18. · segurança e a defesa eram pensadas e implementadas na América do Sul. Em poucas palavras,

  • Upload
    others

  • View
    1

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

  • ieqSegurança e Defesa na América do Sul: a cooperação sul-

    americana em um contexto multipolar

    Ana Karolina Morais da Silva1

    Lucas Kerr de Oliveira2

    Resumo: A consolidação da multipolaridade no Sistema Internacional, em um formato desequilibrado/assimétrico, competitivo e marcado pelo aprofundamento progressivo das disputas entre as Grandes Potências por áreas de influência e aliados regionais, tem resultado em um padrão de conflito indireto permanente entre esses polos de poder. Com o acirramento da disputa interestatal entre as Grandes Potências, a América do Sul se vê inserida em um contexto geopolítico intrincado, ocupando parte central das disputas geopolíticas contemporâneas, especialmente no que se refere à política externa e de segurança dos Estados Unidos para a região. Neste sentido, a cooperação em segurança e defesa apresenta-se como um desafio para os Estados sul-americanos, uma vez que a construção de um espaço político integrado a nível securitário demanda o desenvolvimento conjunto de capacidades defensivas por parte destes Estados. Por outro lado, este desafio também representa uma oportunidade para a região movimentar-se dentro do Sistema Internacional, uma vez que os ciclos de competição interestatal abrem possibilidades para os Estados periféricos buscarem reposicionar-se dentro da hierarquia sistêmica.

    Palavras-chave: Cooperação; Segurança; Defesa; América do Sul; Multipolaridade.

    Introdução

    O século XXI representou uma mudança no padrão de relacionamento

    entre os países sul-americanos. A primeira década deste século foi marcada pela

    erosão da influência estadunidense na região, concomitantemente ao maior

    protagonismo brasileiro nas relações internacionais e o aprofundamento da

    multipolaridade a nível sistêmico. Tal contexto, aliado à particularidades

    regionais – como a ascensão de governos progressistas em diversos países sul-

    americanos – foi seguido por uma significativa mudança na forma como a

    1 Mestranda em Relações Internacionais pela Universidade Federal da Integração Latino-Americana (PPGRI/UNILA). E-mail: [email protected]. 2 Docente de Relações Internacionais e Integração e do Mestrado em Integração Contemporânea da América Latina (PPG-ICAL) da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA). Doutor em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). E-mail: [email protected].

  • segurança e a defesa eram pensadas e implementadas na América do Sul. Em

    poucas palavras, os governos sul-americanos neste período conduziram um

    esforço político-institucional para implementar na região um modelo de

    segurança cooperativa mais dinâmico do que o anterior, modelo cujo resultado

    final ainda não foi definido completamente (FUCILLE, 2014).

    Equilíbrio de Poder e Polaridade no Sistema Internacional

    O conceito de equilíbrio de poder remonta à origem histórica do moderno

    sistema interestatal, o qual para Arrighi se originou do embate entre a lógica

    capitalista e a lógica territorialista. Devido à necessidade dos Estados europeus

    de garantirem condições jurídicas favoráveis para a acumulação de capital (a

    proteção da propriedade privada), a lógica capitalista prevaleceu e, a partir da

    constituição de jurisdições nacionais independentes, os Estados elaboraram um

    sistema interestatal anárquico, no qual não há uma entidade supranacional que

    interfira na soberania de cada Estado (como era a Igreja Católica no sistema

    medieval, uma mediadora de conflitos internacionais), e a partir do marco da Paz

    de Vestfália de 1648 a autonomia jurídica passou a ser responsável pelo o que

    denomina-se como equilíbrio de poder entre os Estados modernos, um equilíbrio

    necessário para que esses Estados acumulassem capital, e que só poderia ser

    obtido através da secularização do Estado; o sistema interestatal moderno,

    portanto, se consolidou como consequência e também como um alicerce para o

    desenvolvimento capitalista (ARRIGHI, 2006, p. 32-36).

    Entretanto, a igualdade jurídica existente entre os Estados, ou seja, o

    equilíbrio de poder formal, “es una ficción, por la sencilla razón de que algunos

    Estados tienen más poder que otros, lo cual lleva a que el derecho internacional

    sea una telaraña que atrapa a la mosca más débil pero que deja pasar a la más

    fuerte” (GULLO, 2018, p. 151). A igualdade jurídica não se traduz

    automaticamente em igualdade de fato porque o poder – e não a normatividade

    jurídica – é o elemento que determina as relações interestatais e,

  • consequentemente, os Estados mais poderosos nem sempre se submetem à

    ordem jurídica.

    O sistema político fundado por Vestfália, de acordo com Fiori, é um

    sistema em plena expansão, no qual os Estados competem entre si por força de

    uma coerção sistêmica que os leva à expandirem-se para sobreviver. Esta

    “compulsão expansiva” do sistema leva os Estados que o compõem a buscarem

    mais territórios para acumularem posições monopólicas de poder e de riqueza,

    o que por consequência gera a busca por um “poder cada vez mais global”, que

    possua abrangência sobre amplos territórios e populações (FIORI, 2007, p. 80).

    Na prática, o equilíbrio de poder é um estado no qual as unidades do

    Sistema Internacional neutralizam o poder umas das outras mutuamente. Neste

    ponto, faz-se importante conceitualizar o que significa poder no Sistema

    Internacional. Neste trabalho, o conceito de poder adotado será o mesmo

    empregado por Raymond Aron, para o qual “poder é a capacidade que tem uma

    unidade política de impor sua vontade às demais”, e distingue entre “potência

    defensiva (a capacidade de uma unidade política de resistir à vontade de outra)

    e potência ofensiva (a capacidade de uma unidade política de impor a uma outra

    sua vontade)” (ARON, 2002, p. 99).

    Ademais, o poder pode ser compreendido tanto como uma potencialidade

    (poder potencial) como uma realidade material (poder concreto). Existem três

    tipos de fontes de poder: (i) fontes naturais: território, população, recursos

    naturais; (ii) fontes tangíveis de poder: recursos econômicos, desenvolvimento

    industrial-tecnológico, capacidade militar; e (iii) fontes intangíveis de poder:

    imagem nacional, apoio público, capacidade de liderança (MINGST, 2003, p.

    106-109).

    Neste sentido, o conceito de polaridade faz referência ao número de

    atores que compõem um dado equilíbrio de poder dentro do sistema. A

    unipolaridade faz referência a uma estrutura na qual há apenas uma grande

    potência despontando em relação às demais, e esta possui ampla superioridade

    em todos os âmbitos da política internacional (econômico, geopolítico,

    sociocultural, etc), bem como a capacidade para ditar as normas e a agenda da

  • ordem internacional e controlar as principais fontes de poder disponíveis. A

    bipolaridade se refere a um equilíbrio de poder entre duas grandes potências, no

    qual uma sempre está balanceando a outra nos diversos âmbitos da política

    internacional. A multipolaridade, por fim, se refere a um equilíbrio de poder

    composto por múltiplas potências, sendo que o poder de cada uma destas pode

    estar mais ou menos concentrado em cada um dos âmbitos da política

    internacional.

    Para Fiori, existe uma contradição intrínseca ao sistema mundial que

    torna impossível a ascensão de um império global: a constante necessidade de

    expansão do poder dos Estados que compõem o sistema. Embora haja uma

    clara tendência à centralização e à monopolização do poder e da riqueza, esta

    nunca se materializou em um império global porque a ascensão de um império

    global implicaria na anulação das possibilidades de expansão do poder dos

    Estados que compõem o sistema mundial e, portanto, seria destruído o

    mecanismo de acumulação que mantém o próprio sistema em constante

    expansão. Portanto, embora a ascensão de um império global que controle

    isoladamente o Sistema Internacional seja dificultado pela própria necessidade

    sistêmica de expansão contínua, a tendência à centralização e à monopolização

    do poder e da riqueza ainda é latente. Esta tendência se traduz na formação de

    hierarquias entre os Estados que compõem o sistema (FIORI, 2007).

    Ditas hierarquias dividem os Estados entre Estados centrais e Estados

    periféricos. Para Gullo, os Estados periféricos passaram por um processo de

    subordinação ideológica, o que faz com que em sua atuação internacional esses

    Estados não busquem seus interesses nacionais. Dita subordinação é fruto de

    um longo processo histórico de estruturação do poder dos Estados centrais, no

    qual estruturas hegemônicas de poder foram consolidadas para a manutenção

    da posição favorável em que se encontram os Estados do centro do sistema

    internacional. Assim, os Estados periféricos estão condicionados pelas

    estruturas hegemônicas de poder político e econômico dos Estados centrais, que

    perpetuam uma dinâmica internacional desigual (GULLO, 2015).

  • Para saírem de sua posição periférica, os Estados precisariam modificar

    sua condição de “objetos” da política internacional para a condição de “sujeitos”,

    adotando certo grau de autonomia em relação ao centro. Gullo denomina de

    “processo de insubordinação fundante” a subversão da condição de objeto por

    parte dos Estados periféricos. Na origem da insubordinação fundante está,

    invariavelmente, um impulso estatal que converte em poder concreto as

    potencialidades dos Estados. O autor afirma que “Todos los procesos

    emancipatorios exitosos fueron el resultado de una adecuada conjugación de

    una actitud de insubordinación ideológica para con el pensamiento hegemónico,

    y de un eficaz impulso estatal” (GULLO, 2015, p. 22).

  • A multipolaridade assimétrica na triangulação EUA-Rússia-China

    A política externa e de segurança dos EUA, em uma perspectiva de longa

    duração, foi historicamente direcionada para assegurar a hegemonia regional na

    América do Norte e, a partir disso, alcançar uma hegemonia global

    (MEARSHEIMER, 2007; FRIEDMAN, 2012). A operacionalização dessa política

    de grande potência, que pode ser entendida também como uma Grande

    Estratégia, até a Primeira Guerra Mundial foi influenciada de maneira alternada

    por agendas de política externa baseadas nos pressupostos da Doutrina Monroe

    (busca pela hegemonia hemisférica) ou do Destino Manifesto (busca pela

    hegemonia global). A partir da Primeira Guerra Mundial, a Grande Estratégia

    estadunidense foi influenciada por uma terceira vertente multilateralista de

    inspiração wilsoniana, a qual foi retomada em governos como os de Roosevelt e

    Barack Obama (FRANÇA et al, 2013).

    Na contemporaneidade, a crise hegemônica dos Estados Unidos implica

    numa transformação da geopolítica internacional ao passo que abre margem

    para a atuação de potências “alternativas”, que não necessariamente ocupam o

    centro do sistema internacional:

    Depois de uma década de intervenções desnecessariamente prejudiciais comandadas pelos americanos, é difícil ver como os Estados Unidos poderiam recuperar o status de que desfrutaram depois da Segunda Guerra Mundial ou depois da Guerra Fria. A visibilidade dos Estados Unidos talvez seja global, mas sua influência se resume, de fato, a fatores muito específicos: suas forças armadas estão em atividade em alguma parte? Onde suas empresas investem? Que lobbies influenciam sua política para com determinado país? Fazer essas perguntas — e não as perguntas retóricas sobre o “país indispensável” — é a forma correta de pensar sobre os Estados Unidos menores num mundo complicado (KHANNA, 2011, p. 22).

    Para Kaplan, a estratégia chinesa “mais se limita a preencher vácuos do

    que a investir contra Estados rivais” (KAPLAN, 2013, p. 216). É uma estratégia

    que prioriza as fronteiras terrestres imediatas do Estado chinês, o que exige uma

    capacidade para preencher os vácuos que surgem em seu entorno territorial,

    indicando que a China goza de uma segurança terrestre altíssima, uma vez que

  • é capaz de preencher esses vácuos sem a necessidade de uma força terrestre

    expedicionária. Isto se deve ao esforço da diplomacia chinesa nos últimos anos

    para promover resoluções aos seus conflitos fronteiriços (exceto com a Índia).

    Assim, “É provável que a China tente dominar a Ásia da mesma forma

    que os Estados Unidos dominam o Hemisfério Ocidental” (MEARSHEIMER,

    2004, p. 4). Seguindo esta estratégia, a China precisa ampliar a lacuna de poder

    entre si e seus vizinhos para evitar que outros Estados da Ásia tenham os meios

    para ameaçá-la. É improvável que a China busque superioridade militar para

    invadir os países vizinhos; o mais provável é que o país vise influenciar o

    comportamento dos países vizinhos. Ademais, Mearsheimer argumenta que a

    hegemonia regional é o único caminho pelo qual a China terá Taiwan de volta

    (idem).

    Neste contexto de desgaste da hegemonia estadunidense e ascensão da

    China como um importante polo da economia capitalista global, a Rússia voltou

    a ocupar o posto de importante polo de poder político-militar no Sistema

    Internacional. Em 2004, o intento da Revolução Laranja no território ucraniano

    foi um ponto de inflexão que tensionou as relações da Rússia com o Ocidente

    (FRIEDMAN, 2012, p. 154). Já em 2008 o ataque georgiano contra a Ossétia do

    Sul foi rapidamente respondido pela Federação Russa, que derrotou o exército

    da Geórgia e ocupou parte do seu território. Também no ano de 2008 deu-se

    início ao maior programa de modernização e capacitação das forças armadas

    russas desde a queda da URSS (MATVEEV & RUSAKOVA, 2015). A partir

    deste ponto, a Rússia voltou a agir de maneira mais assertiva sobre suas

    fronteiras, visando consolidar uma zona de influência regional que estabilize o

    cenário político em sua periferia. Após isso, a anexação da Crimeia e a

    intervenção russa no conflito sírio confirmaram a intenção e a capacidade do

    país de posicionar-se como uma grande potência militar.

    Portanto, alguns dos elementos que explicitam a tendência à

    multipolaridade assimétrica no Sistema Internacional Contemporâneo são a crise

    da hegemonia estadunidense, que sucedeu ao emprego da guerra ao terror; a

    reascensão dos polos de poder euroasiáticos, China e Rússia, nos âmbitos

  • econômico e militar, respectivamente; o acirramento da disputa interestatal,

    principalmente na triangulação EUA-China-Rússia; e a centralidade do Estado

    dentro do imperialismo do século XXI, sendo os Estados fortalecidos através dos

    aspectos militares e econômicos, denotando ainda uma clara hierarquia entre as

    grandes potências no âmbito militar e uma redistribuição do poder econômico

    mundial (MEARSHEIMER, 2007; FRIEDMAN, 2012; OSÓRIO, 2018).

    O cenário gerado pelo acirramento das disputas interestatais é definido

    por Khanna (2011) como uma era caótica, uma era de impasses políticos

    generalizados que fogem ao controle das grandes potências globais e das

    instituições que regem o sistema internacional, criando um ambiente

    internacional de incertezas e potencialidades conflitivas. Podemos acrescentar

    a esta visão o conceito de caos sistêmico de Arrighi, que refere-se a uma

    situação que surge pela escalada do conflito entre os polos de poder do sistema

    e que tende a generalizar a demanda por “ordem” conforme o caos aumenta;

    essa demanda acaba por possibilitar a ascensão de um poder hegemônico que

    esteja em condições para atender à demanda sistêmica por ordem (ARRIGHI,

    2006).

    A era caótica ou o caos sistêmico possibilitam que hoje observemos no

    sistema internacional a construção de uma multipolaridade de tipo assimétrica,

    na qual os principais polos de poder possuem diferentes capacidades e

    diferentes recursos de poder à sua disposição. Podemos ainda dizer que este

    processo é marcado pela triangulação EUA-Rússia-China e também pela

    emergência de novos polos de poder regionais, que parece caminhar para o

    aprofundamento do conflito entre Ocidente e Oriente. A triangulação EUA-

    Rússia-China é uma tendência internacional que segue desde a Guerra Fria,

    sendo que o poder mais díspar é constantemente balanceado pela aliança dos

    outros dois. Neste sentido, o sistema caminha para uma estrutura de

    multipolaridade assimétrica, estrutura a qual, em geral, a partir de uma

    perspectiva histórica, tende a gerar grandes guerras ou “guerras centrais” (como

    entre 1914 e 1945). Sem uma grande guerra central, a recomposição

    hegemônica do sistema pode se dar: (i) através de guerras limitadas e locais,

  • feitas por intermédio de proxies, visando a destruição de economias mais do que

    com o propósito de violar fronteiras, ou (ii) a guerra central pode se dar sem

    confrontos diretos entre o triângulo, por intermédio de guerras locais prolongadas

    e mais ou menos intensas (MARTINS, 2013, p. 195).

    A cooperação em segurança e defesa na América do Sul do século XXI

    A cooperação em segurança e defesa possui amplo potencial para

    vertebrar processos de integração. Os aspectos que dizem respeito à segurança

    influenciam diretamente a adesão dos Estados à projetos integracionistas, pois

    “a percepção de ameaças, entendidas como algo – manifestação, sinal ou gesto

    – percebido como o prenúncio de uma situação indesejada ou de risco vital para

    quem percebe, pode ser decisiva para tanto” (MALLMANN, 2017, p. 48).

    Tomando como exemplo a experiência europeia, é possível observar o papel

    estratégico que a agenda securitária possui para pautar projetos de integração

    mais abrangentes: no pós-Segunda Guerra a Europa Ocidental se via

    ameaçada, por um lado, pela URSS, e por outro, pela emergência dos Estados

    Unidos como uma grande potência. Neste sentido, os fatores securitários são

    cruciais para os rumos da integração em um sentido mais amplo (idem).

    As relações interamericanas se viram profundamente afetadas pelo fim da

    Guerra Fria. Após 1991, os Estados Unidos alteraram sua retórica acerca da

    segurança internacional e passou a exportar para a América do Sul a agenda

    das chamadas “novas ameaças”. Para tal, a potência norte-americana

    impulsionou a criação das Conferências de Ministros de Defesa das Américas

    (CMDA). Através das CMDAs os Estados Unidos impuseram uma agenda de

    defesa para toda a América, fundamentada nas “ameaças compartilhadas” e na

    defesa da democracia (MATHIAS, 2003). Neste período o conceito de segurança

    regional foi ressignificado, e temas como narcotráfico e criminalidade passaram

    a constituir parte central da agenda de segurança da região. Desta forma:

  • [...] segurança regional passou a ser definida em termos distintos daqueles consagrados durante a polarização do sistema internacional. De um lado, passa a prevalecer a noção de segurança como “defesa coletiva da democracia”, constituindo-se como mecanismo de garantia da estabilidade e da segurança regional. De outro lado, passa-se a identificar a promoção de reformas econômicas e a integração regional como fatores catalisadores de uma ordem regional mais estável (OLIVEIRA; ONUKI, 2000, p. 109).

    Como consequência deste processo, os acordos de Segurança e Defesa

    se multiplicaram por toda a região, especialmente no âmbito das chamadas

    “medidas de confiança em defesa”, entendidas enquanto “processos políticos

    e/ou militares que objetivam mitigar e prevenir os efeitos negativos ou

    percepções erradas decorrentes dos ‘dilemas de segurança’ nas relações

    internacionais” (SAINT-PIERRE; PALACIOS JUNIOR, 2014, p. 23). Entretanto,

    as crises securitárias dos anos 2000 evidenciaram a debilidade de tais medidas

    para a garantia da estabilidade regional:

    Essas situações permitiram aos governos constatar uma preocupante morosidade dos foros e instrumentos de segurança interamericana para lidar com situações de crise. A percepção dessa fragilidade talvez explique a busca de uma nova via de cooperação multilateral e um foro regional de antecipação, prevenção e resolução de conflitos e crises na América do Sul (SAINT-PIERRE; PALACIOS JUNIOR, 2014, p. 23).

    Seguindo à reorganização do pós-Guerra Fria, a crise da unipolaridade

    estadunidense, especialmente a partir das invasões do Afeganistão e do Iraque,

    bem como a onda de governos progressistas na América do Sul, levaram a outra

    reorganização do âmbito de segurança e defesa na região. A potência

    hegemônica passou a ter sua legitimidade questionada internacionalmente a

    partir da sua ação unilateral no Oriente Médio e, como aponta Mallmann, este

    contexto favorece a reorientação dos arranjos regionais. Os Estados periféricos,

    nestas circunstâncias, tendem a associar-se para fortalecerem-se frente à

    debilidade do hegemon, gerando o movimento de reacomodação de forças

    (MALLMANN, 2017).

  • O novo mapa geopolítico regional, particularmente na América do Sul, responde ao surgimento e à consolidação de novas lideranças e de novos esquemas de articulação e integração regionais funcionais para elas. A focalização dos interesses geopolíticos dos EUA no Oriente Médio e em outras regiões do mundo a partir de 11 de setembro de 2001 possibilitou, somada a outras mudanças, uma maior autonomia regional e o aparecimento de um amplo espectro de governos de orientação progressista e de esquerda na América do Sul (SERBIN, 2009, p. 5).

    Neste contexto, instituições e mecanismos como a Organização dos

    Estados Americanos (OEA), a Junta Interamericana de Defesa (JID), o Tratado

    Interamericano de Assistência Recíproca (TIAR), entre outros, foram perdendo

    gradativa e exponencialmente sua credibilidade, o que apontava para o

    esfacelamento do complexo de segurança hemisférico estruturado pelos

    Estados Unidos a partir de 1930 mas principalmente a partir da segunda década

    do século XX. A agenda estadunidense de combate ao terrorismo, a retomada

    de uma ofensiva russa em suas fronteiras imediatas e o crescimento econômico

    chinês ampliaram as possibilidades de autonomia para a região sul-americana.

    Ademais:

    A baixa prioridade estratégica historicamente conferida pelo Departamento de Estado yankee à região, combinada à profunda alteração da agenda internacional deste país pós-setembro de 2001, os sucessivos reveses em temas como implantação da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA), os fracassos nas tentativas de eleger seus candidatos a secretário-geral da OEA, as negativas do Chile e México (então membros-rotativos do Conselho de Segurança da ONU) em dar seu aval à invasão do Iraque em 2003, entre outras questões, acabaram por consolidar um imaginário de espaço geográfico possível e passível de desenvolver políticas mais independentes, advindas de uma maior margem de autonomia (FUCILLE, 2014, p. 115).

    Assim, Serbin aponta que nos anos 2000 duas estratégias de inserção

    internacional surgiram na América do Sul: a estratégia chavista, de

    enfrentamento anti-imperialista, e a estratégia brasileira, de diversificação de

    parcerias e fortalecimento das relações sul-sul. Ambas estratégias, apesar de

    serem profundamente diferentes, estavam de acordo com a visão de um sistema

  • internacional multipolar. Tal convergência em relação à multipolaridade levou a

    confluência de diversos governos sul-americanos para a criação da União de

    Nações Sul-Americanas, a UNASUL, pensada como um mecanismo para a

    resolução e prevenção de crises – papel até então desempenhado

    essencialmente pela OEA, sob a liderança estadunidense (SERBIN, 2009).

    Como aponta Fucille:

    No presente século, para além da integração física e econômica pretendida, o Brasil tem trabalhado na América do Sul procurando fomentar uma agenda comum de segurança e contra-arrestar a influência norte-americana na região (originalmente centrada na expansão de bases militares no subcontinente, reativação da IV Frota Naval e combate ao terrorismo e às drogas). A pactuação desta agenda comum permitiria, em tese, a criação até mesmo de uma comunidade de segurança, dada a centralidade da territorialidade na dinâmica dos estudos de segurança (FUCILLE, 2014, p. 116).

    O Conselho de Defesa Sul-Americano (CDS), oficializado desde

    dezembro de 2008 no seio da UNASUL, foi a proposta institucional mais

    ambiciosa para o contexto geopolítico do princípio do século XXI. O projeto foi

    aprovado pelos 12 países-membro da UNASUL em meio às tensões políticas

    geradas pela Colômbia, histórica aliada de Washington na região, e a Venezuela

    de Chávez, que impulsava a ideia da criação de um instrumento militar aos

    moldes da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), uma Organização

    do Tratado do Atlântico Sul (OTAS). Desta forma, o CDS representava uma

    estrutura suavizada com capacidade para promover a concertação entre os

    Estados sul-americanos, fomentar o desenvolvimento dos campos da segurança

    e defesa, e condicionar as decisões a serem aprovadas por meio do consenso

    (FUCILLE, 2014).

    Entretanto, a partir de 2017 a UNASUL adentrou uma grave crise

    institucional que impacta todo o panorama de cooperação em segurança e

    defesa da região. Seguindo ao golpe parlamentar no Brasil em 2016, diversos

    países sul-americanos reorientaram-se para o alinhamento geopolítico aos

    Estados Unidos. Além do governo brasileiro, primeiramente sob o comando de

  • Temer e depois sob o comando de Bolsonaro, subordinam-se aos interesses

    estratégicos e conservadores da potência norte-americana os governos de

    Macri, na Argentina, Benítez, no Paraguai, Piñera, no Chile, Kuczynski, no Peru

    (e Vizcarra, desde sua renúncia em março de 2018) e Duque, na Colômbia.

    Somado a este processo, há também uma tendência à polarização política nos

    países que mantiveram os governos da “onda progressista”: Venezuela, Equador

    e Bolívia (JAEGER, 2019).

    A Colômbia possui notável destaque dentro do novo contexto da

    segurança regional sul-americana: o país se tornou o primeiro país latino-

    americano a se tornar parceiro externo da Organização do Tratado do Atlântico

    Norte (OTAN) em 2018, bem como membro Organização para a Cooperação e

    Desenvolvimento Econômico (OCDE). Ainda, em 2019 o presidente colombiano

    fez um pronunciamento público acerca do PROSUL, uma proposta de bloco

    regional para integrar a América do Sul, a qual conta com o apoio do governo

    chileno. Tal iniciativa abre um precedente incomum para as relações

    internacionais sul-americanas, até então marcadas pela liderança política-

    institucional brasileira e a integração do eixo Brasil-Argentina (JAEGER, 2019).

    Mais recentemente, em agosto de 2019, ex-comandantes das FARC-EP

    anunciaram a retomada da luta armada na Colômbia. Entre os motivos

    apresentados para tal, estão a perseguição à líderes sociais e ex-guerrilheiros,

    bem como a acusação de descumprimento por parte do governo colombiano do

    acordo firmado em Havana em 2017, que levou à desmobilização da guerrilha

    (BBC, 2019). Já em setembro de 2019, o Tratado Interamericano de Assistência

    Recíproca, TIAR, foi acionado mediante pedido do autoproclamado presidente

    interino da Venezuela, Juan Guaidó. O tratado prevê a defesa mútua dos países

    da região em caso de um ataque estrangeiro; entretanto, Guaidó alega que a

    crise venezuelana apresenta um elemento desestabilizador para a América do

    Sul e, portanto, o acionamento do tratado seria para a contenção dos efeitos da

    crise. Tal ação foi duramente criticada por diversos governos, especialmente os

    de Uruguai e México, contudo, para ser aprovada a ação contou com 12 votos

    favoráveis dentro da OEA. Durante a sessão de votação do pedido de Guaidó,

  • foi rejeitada uma emenda que limitaria o uso de força para a aplicação do tratado

    neste caso específico – a proposta foi apresentada pelo governo da Costa Rica

    (ALVES, 2019).

    Considerações finais

    A retomada da luta armada na Colômbia e a ativação do TIAR no contexto

    da crise venezuelana apresentam potencialidades conflitivas para toda a região.

    Como observado ao longo do trabalho, a cooperação em segurança e defesa na

    América do Sul passou por distintas fases nos anos recentes e, atualmente,

    encontra-se em um processo de retrocesso, após um curto período de busca por

    maior autonomia para os processos políticos da região. O retorno à agenda

    securitária estadunidense, a chamada agenda de segurança hemisférica, limita

    as possibilidades de cooperação entre os Estados sul-americanos, uma vez que

    tal agenda é responsável por delimitar a pauta da cooperação regional de

    maneira verticalizada – do Norte, para o Sul.

    O contexto geopolítico regional da América do Sul sofreu profundas

    mudanças desde o início do século XXI. Se no princípio dos anos 2000 falava-

    se em construir um bloco regional sólido o suficiente para reposicionar a América

    do Sul a nível sistêmico como um polo de poder relativamente alternativo aos

    grandes centros, na atualidade os governos dos principais países da região

    retornaram ao histórico alinhamento geopolítico com os Estados Unidos, o que,

    na prática, tem sistematicamente travado os processos de integração regional

    sul-americanos. Atualmente, a UNASUL e o CDS encontram-se atrofiados desde

    o ponto de vista institucional, e a agenda integracionista da região – em um

    sentido mais amplo – tem retomado o discurso economicista (especificamente

    voltado para a integração comercial) típico do regionalismo aberto dos anos

    1990, enquanto a agenda de defesa regride ao retomar passivamente os

  • pressupostos securitários do sistema de segurança hemisférica propostos desde

    os anos 1930 pelos EUA à região.

    Referências bibliográficas

    ALVES, A. R. OEA aprova pedido de Guaidó para ativar contra Maduro tratado que prevê defesa mútua no continente. O Globo, 11 de setembro de 2019. Disponível em: . Acesso em: 16/09/2019.

    ARON, R. Paz e guerra entre as nações. Trad. Sérgio Bath (1a. edição)

    Brasília: Editora Universidade de Brasília, Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2002.

    ARRIGHI, G. O longo século XX: dinheiro, poder e as origens de nosso tempo. tradução Vera Ribeiro; revisão de tradução César Benjamin; Rio de Janeiro: Contraponto. São Paulo: Editora UNESP, 2006.

    BARBÉ, E. Relaciones Internacionales. Madrid: Editorial Tecnos S.A., 1995.

    BBC. Por que parte das Farc está voltando à luta armada na Colômbia. BBC News, 29 de agosto de 2019. Disponível em: . Acesso em: 16/09/2019. FIORI, J. L. A nova geopolítica das nações e o lugar da Rússia, China, Índia, Brasil e África do Sul. OIKOS, Rio de Janeiro, Vol. 6, No 2., 2007.

    FRANÇA, A. et al. Política externa e de segurança dos Estados Unidos. In:

    MARTINS, J. M. Q. (org) Relações internacionais contemporâneas 2012/2: estudos de caso em política externa e de segurança. Porto Alegre, Instituto Sul-Americano de Política e Estratégia (ISAPE), 2013.

    FRIEDMAN, G. A próxima década: Onde estamos… e para onde iremos.

    Ribeirão Preto, SP: Novo Conceito Editora, 2012.

    FUCCILLE, A. O Brasil e a América do Sul: (re)pensando a segurança e a defesa na região. Rev. Bra. Est. Def. ano 1, nº 1, jul./dez., p. 112-146, 2014.

    GULLO, M. La insubordinación fundante: Breve historia de la construcción del poder de las naciones. Caracas, Venezuela: Fundación

    Editorial El perro y la rana, 2015.

    https://oglobo.globo.com/mundo/oea-aprova-pedido-de-guaido-para-ativar-contra-maduro-tratado-que-preve-defesa-mutua-no-continente-23940707https://oglobo.globo.com/mundo/oea-aprova-pedido-de-guaido-para-ativar-contra-maduro-tratado-que-preve-defesa-mutua-no-continente-23940707https://oglobo.globo.com/mundo/oea-aprova-pedido-de-guaido-para-ativar-contra-maduro-tratado-que-preve-defesa-mutua-no-continente-23940707https://www.bbc.com/portuguese/internacional-49455482

  • GULLO, M. Relaciones Internacionales: una teoría crítica desde la periferia sudamericana. Buenos Aires: Biblos, 2018.

    JAEGER, B. C. Crise e colapso da UNASUL: o desmantelamento da integração sul-americana em tempos de ofensiva conservadora. Revista

    Conjuntura Austral, Porto Alegre, v.10, n. 49, p.5-12, jan./mar. 2019.

    KHANNA, P. Como governar o mundo: Um roteiro para o próximo

    Renascimento. Tradução de Berilo Vargas. Revisão Técnica de Márcio Scalércio, 2011.

    MARTINS, J. M. Q. Considerações finais: recomposição hegemônica e inserção internacional do Brasil. In: MARTINS, J. M. Q. (org) Relações internacionais contemporâneas 2012/2: estudos de caso em política externa e de segurança. Porto Alegre, Instituto Sul-Americano de Política e Estratégia (ISAPE), 2013.

    MATHIAS, S. K. Defesa e segurança hemisférica: um tema controverso. Notas à declaração sobre segurança nas Américas. Informes RESDAL, Dezembro de 2003. Disponível em: . Acessado em 16/09/2019.

    MATVEEV, V. RUSAKOVA, T. The changing Russian army. Russia Beyond,

    23 dez. 2015. Disponível em:. Acesso em: 10 set. 2017.

    MEARSHEIMER, J. A Tragédia da Política das Grandes Potências. Lisboa: Gradiva, 2007.

    MINGST, K. Essentials of International Relations. 2nd ed. New York: W. W.

    Norton & Company, 2003.

    OLIVEIRA, A. J.; ONUKI, J. Brasil, Mercosul e a segurança regional. Rev.

    Bras. Polít. Int. 43 (2): 108-129, 2000.

    OSÓRIO, L. F. Imperialismo, Estado e Relações Internacionais. São Paulo: Ideias & Letras, 2018.

    SAINT-PIERRE, H. L.; PALACIOS JUNIOR, A. M. C. As medidas de confiança no Conselho de Defesa Sul-americano (CDS): análise dos gastos em Defesa (2009–2012). Rev. Bras. Polít. Int. 57 (1): 22-39, 2014.

    SERBIN, A. A América do Sul em um mundo multipolar. A Unasul é a alternativa? Nueva Sociedad Especial em Português, Dezembro de 2009.

    Tradução de Ivony Lessa.

    https://www.resdal.org/campo/art-news-kalil.htmlhttps://www.resdal.org/campo/art-news-kalil.html