Upload
others
View
1
Download
0
Embed Size (px)
Citation preview
ieqSegurança e Defesa na América do Sul: a cooperação sul-
americana em um contexto multipolar
Ana Karolina Morais da Silva1
Lucas Kerr de Oliveira2
Resumo: A consolidação da multipolaridade no Sistema Internacional, em um formato desequilibrado/assimétrico, competitivo e marcado pelo aprofundamento progressivo das disputas entre as Grandes Potências por áreas de influência e aliados regionais, tem resultado em um padrão de conflito indireto permanente entre esses polos de poder. Com o acirramento da disputa interestatal entre as Grandes Potências, a América do Sul se vê inserida em um contexto geopolítico intrincado, ocupando parte central das disputas geopolíticas contemporâneas, especialmente no que se refere à política externa e de segurança dos Estados Unidos para a região. Neste sentido, a cooperação em segurança e defesa apresenta-se como um desafio para os Estados sul-americanos, uma vez que a construção de um espaço político integrado a nível securitário demanda o desenvolvimento conjunto de capacidades defensivas por parte destes Estados. Por outro lado, este desafio também representa uma oportunidade para a região movimentar-se dentro do Sistema Internacional, uma vez que os ciclos de competição interestatal abrem possibilidades para os Estados periféricos buscarem reposicionar-se dentro da hierarquia sistêmica.
Palavras-chave: Cooperação; Segurança; Defesa; América do Sul; Multipolaridade.
Introdução
O século XXI representou uma mudança no padrão de relacionamento
entre os países sul-americanos. A primeira década deste século foi marcada pela
erosão da influência estadunidense na região, concomitantemente ao maior
protagonismo brasileiro nas relações internacionais e o aprofundamento da
multipolaridade a nível sistêmico. Tal contexto, aliado à particularidades
regionais – como a ascensão de governos progressistas em diversos países sul-
americanos – foi seguido por uma significativa mudança na forma como a
1 Mestranda em Relações Internacionais pela Universidade Federal da Integração Latino-Americana (PPGRI/UNILA). E-mail: [email protected]. 2 Docente de Relações Internacionais e Integração e do Mestrado em Integração Contemporânea da América Latina (PPG-ICAL) da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA). Doutor em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). E-mail: [email protected].
segurança e a defesa eram pensadas e implementadas na América do Sul. Em
poucas palavras, os governos sul-americanos neste período conduziram um
esforço político-institucional para implementar na região um modelo de
segurança cooperativa mais dinâmico do que o anterior, modelo cujo resultado
final ainda não foi definido completamente (FUCILLE, 2014).
Equilíbrio de Poder e Polaridade no Sistema Internacional
O conceito de equilíbrio de poder remonta à origem histórica do moderno
sistema interestatal, o qual para Arrighi se originou do embate entre a lógica
capitalista e a lógica territorialista. Devido à necessidade dos Estados europeus
de garantirem condições jurídicas favoráveis para a acumulação de capital (a
proteção da propriedade privada), a lógica capitalista prevaleceu e, a partir da
constituição de jurisdições nacionais independentes, os Estados elaboraram um
sistema interestatal anárquico, no qual não há uma entidade supranacional que
interfira na soberania de cada Estado (como era a Igreja Católica no sistema
medieval, uma mediadora de conflitos internacionais), e a partir do marco da Paz
de Vestfália de 1648 a autonomia jurídica passou a ser responsável pelo o que
denomina-se como equilíbrio de poder entre os Estados modernos, um equilíbrio
necessário para que esses Estados acumulassem capital, e que só poderia ser
obtido através da secularização do Estado; o sistema interestatal moderno,
portanto, se consolidou como consequência e também como um alicerce para o
desenvolvimento capitalista (ARRIGHI, 2006, p. 32-36).
Entretanto, a igualdade jurídica existente entre os Estados, ou seja, o
equilíbrio de poder formal, “es una ficción, por la sencilla razón de que algunos
Estados tienen más poder que otros, lo cual lleva a que el derecho internacional
sea una telaraña que atrapa a la mosca más débil pero que deja pasar a la más
fuerte” (GULLO, 2018, p. 151). A igualdade jurídica não se traduz
automaticamente em igualdade de fato porque o poder – e não a normatividade
jurídica – é o elemento que determina as relações interestatais e,
consequentemente, os Estados mais poderosos nem sempre se submetem à
ordem jurídica.
O sistema político fundado por Vestfália, de acordo com Fiori, é um
sistema em plena expansão, no qual os Estados competem entre si por força de
uma coerção sistêmica que os leva à expandirem-se para sobreviver. Esta
“compulsão expansiva” do sistema leva os Estados que o compõem a buscarem
mais territórios para acumularem posições monopólicas de poder e de riqueza,
o que por consequência gera a busca por um “poder cada vez mais global”, que
possua abrangência sobre amplos territórios e populações (FIORI, 2007, p. 80).
Na prática, o equilíbrio de poder é um estado no qual as unidades do
Sistema Internacional neutralizam o poder umas das outras mutuamente. Neste
ponto, faz-se importante conceitualizar o que significa poder no Sistema
Internacional. Neste trabalho, o conceito de poder adotado será o mesmo
empregado por Raymond Aron, para o qual “poder é a capacidade que tem uma
unidade política de impor sua vontade às demais”, e distingue entre “potência
defensiva (a capacidade de uma unidade política de resistir à vontade de outra)
e potência ofensiva (a capacidade de uma unidade política de impor a uma outra
sua vontade)” (ARON, 2002, p. 99).
Ademais, o poder pode ser compreendido tanto como uma potencialidade
(poder potencial) como uma realidade material (poder concreto). Existem três
tipos de fontes de poder: (i) fontes naturais: território, população, recursos
naturais; (ii) fontes tangíveis de poder: recursos econômicos, desenvolvimento
industrial-tecnológico, capacidade militar; e (iii) fontes intangíveis de poder:
imagem nacional, apoio público, capacidade de liderança (MINGST, 2003, p.
106-109).
Neste sentido, o conceito de polaridade faz referência ao número de
atores que compõem um dado equilíbrio de poder dentro do sistema. A
unipolaridade faz referência a uma estrutura na qual há apenas uma grande
potência despontando em relação às demais, e esta possui ampla superioridade
em todos os âmbitos da política internacional (econômico, geopolítico,
sociocultural, etc), bem como a capacidade para ditar as normas e a agenda da
ordem internacional e controlar as principais fontes de poder disponíveis. A
bipolaridade se refere a um equilíbrio de poder entre duas grandes potências, no
qual uma sempre está balanceando a outra nos diversos âmbitos da política
internacional. A multipolaridade, por fim, se refere a um equilíbrio de poder
composto por múltiplas potências, sendo que o poder de cada uma destas pode
estar mais ou menos concentrado em cada um dos âmbitos da política
internacional.
Para Fiori, existe uma contradição intrínseca ao sistema mundial que
torna impossível a ascensão de um império global: a constante necessidade de
expansão do poder dos Estados que compõem o sistema. Embora haja uma
clara tendência à centralização e à monopolização do poder e da riqueza, esta
nunca se materializou em um império global porque a ascensão de um império
global implicaria na anulação das possibilidades de expansão do poder dos
Estados que compõem o sistema mundial e, portanto, seria destruído o
mecanismo de acumulação que mantém o próprio sistema em constante
expansão. Portanto, embora a ascensão de um império global que controle
isoladamente o Sistema Internacional seja dificultado pela própria necessidade
sistêmica de expansão contínua, a tendência à centralização e à monopolização
do poder e da riqueza ainda é latente. Esta tendência se traduz na formação de
hierarquias entre os Estados que compõem o sistema (FIORI, 2007).
Ditas hierarquias dividem os Estados entre Estados centrais e Estados
periféricos. Para Gullo, os Estados periféricos passaram por um processo de
subordinação ideológica, o que faz com que em sua atuação internacional esses
Estados não busquem seus interesses nacionais. Dita subordinação é fruto de
um longo processo histórico de estruturação do poder dos Estados centrais, no
qual estruturas hegemônicas de poder foram consolidadas para a manutenção
da posição favorável em que se encontram os Estados do centro do sistema
internacional. Assim, os Estados periféricos estão condicionados pelas
estruturas hegemônicas de poder político e econômico dos Estados centrais, que
perpetuam uma dinâmica internacional desigual (GULLO, 2015).
Para saírem de sua posição periférica, os Estados precisariam modificar
sua condição de “objetos” da política internacional para a condição de “sujeitos”,
adotando certo grau de autonomia em relação ao centro. Gullo denomina de
“processo de insubordinação fundante” a subversão da condição de objeto por
parte dos Estados periféricos. Na origem da insubordinação fundante está,
invariavelmente, um impulso estatal que converte em poder concreto as
potencialidades dos Estados. O autor afirma que “Todos los procesos
emancipatorios exitosos fueron el resultado de una adecuada conjugación de
una actitud de insubordinación ideológica para con el pensamiento hegemónico,
y de un eficaz impulso estatal” (GULLO, 2015, p. 22).
A multipolaridade assimétrica na triangulação EUA-Rússia-China
A política externa e de segurança dos EUA, em uma perspectiva de longa
duração, foi historicamente direcionada para assegurar a hegemonia regional na
América do Norte e, a partir disso, alcançar uma hegemonia global
(MEARSHEIMER, 2007; FRIEDMAN, 2012). A operacionalização dessa política
de grande potência, que pode ser entendida também como uma Grande
Estratégia, até a Primeira Guerra Mundial foi influenciada de maneira alternada
por agendas de política externa baseadas nos pressupostos da Doutrina Monroe
(busca pela hegemonia hemisférica) ou do Destino Manifesto (busca pela
hegemonia global). A partir da Primeira Guerra Mundial, a Grande Estratégia
estadunidense foi influenciada por uma terceira vertente multilateralista de
inspiração wilsoniana, a qual foi retomada em governos como os de Roosevelt e
Barack Obama (FRANÇA et al, 2013).
Na contemporaneidade, a crise hegemônica dos Estados Unidos implica
numa transformação da geopolítica internacional ao passo que abre margem
para a atuação de potências “alternativas”, que não necessariamente ocupam o
centro do sistema internacional:
Depois de uma década de intervenções desnecessariamente prejudiciais comandadas pelos americanos, é difícil ver como os Estados Unidos poderiam recuperar o status de que desfrutaram depois da Segunda Guerra Mundial ou depois da Guerra Fria. A visibilidade dos Estados Unidos talvez seja global, mas sua influência se resume, de fato, a fatores muito específicos: suas forças armadas estão em atividade em alguma parte? Onde suas empresas investem? Que lobbies influenciam sua política para com determinado país? Fazer essas perguntas — e não as perguntas retóricas sobre o “país indispensável” — é a forma correta de pensar sobre os Estados Unidos menores num mundo complicado (KHANNA, 2011, p. 22).
Para Kaplan, a estratégia chinesa “mais se limita a preencher vácuos do
que a investir contra Estados rivais” (KAPLAN, 2013, p. 216). É uma estratégia
que prioriza as fronteiras terrestres imediatas do Estado chinês, o que exige uma
capacidade para preencher os vácuos que surgem em seu entorno territorial,
indicando que a China goza de uma segurança terrestre altíssima, uma vez que
é capaz de preencher esses vácuos sem a necessidade de uma força terrestre
expedicionária. Isto se deve ao esforço da diplomacia chinesa nos últimos anos
para promover resoluções aos seus conflitos fronteiriços (exceto com a Índia).
Assim, “É provável que a China tente dominar a Ásia da mesma forma
que os Estados Unidos dominam o Hemisfério Ocidental” (MEARSHEIMER,
2004, p. 4). Seguindo esta estratégia, a China precisa ampliar a lacuna de poder
entre si e seus vizinhos para evitar que outros Estados da Ásia tenham os meios
para ameaçá-la. É improvável que a China busque superioridade militar para
invadir os países vizinhos; o mais provável é que o país vise influenciar o
comportamento dos países vizinhos. Ademais, Mearsheimer argumenta que a
hegemonia regional é o único caminho pelo qual a China terá Taiwan de volta
(idem).
Neste contexto de desgaste da hegemonia estadunidense e ascensão da
China como um importante polo da economia capitalista global, a Rússia voltou
a ocupar o posto de importante polo de poder político-militar no Sistema
Internacional. Em 2004, o intento da Revolução Laranja no território ucraniano
foi um ponto de inflexão que tensionou as relações da Rússia com o Ocidente
(FRIEDMAN, 2012, p. 154). Já em 2008 o ataque georgiano contra a Ossétia do
Sul foi rapidamente respondido pela Federação Russa, que derrotou o exército
da Geórgia e ocupou parte do seu território. Também no ano de 2008 deu-se
início ao maior programa de modernização e capacitação das forças armadas
russas desde a queda da URSS (MATVEEV & RUSAKOVA, 2015). A partir
deste ponto, a Rússia voltou a agir de maneira mais assertiva sobre suas
fronteiras, visando consolidar uma zona de influência regional que estabilize o
cenário político em sua periferia. Após isso, a anexação da Crimeia e a
intervenção russa no conflito sírio confirmaram a intenção e a capacidade do
país de posicionar-se como uma grande potência militar.
Portanto, alguns dos elementos que explicitam a tendência à
multipolaridade assimétrica no Sistema Internacional Contemporâneo são a crise
da hegemonia estadunidense, que sucedeu ao emprego da guerra ao terror; a
reascensão dos polos de poder euroasiáticos, China e Rússia, nos âmbitos
econômico e militar, respectivamente; o acirramento da disputa interestatal,
principalmente na triangulação EUA-China-Rússia; e a centralidade do Estado
dentro do imperialismo do século XXI, sendo os Estados fortalecidos através dos
aspectos militares e econômicos, denotando ainda uma clara hierarquia entre as
grandes potências no âmbito militar e uma redistribuição do poder econômico
mundial (MEARSHEIMER, 2007; FRIEDMAN, 2012; OSÓRIO, 2018).
O cenário gerado pelo acirramento das disputas interestatais é definido
por Khanna (2011) como uma era caótica, uma era de impasses políticos
generalizados que fogem ao controle das grandes potências globais e das
instituições que regem o sistema internacional, criando um ambiente
internacional de incertezas e potencialidades conflitivas. Podemos acrescentar
a esta visão o conceito de caos sistêmico de Arrighi, que refere-se a uma
situação que surge pela escalada do conflito entre os polos de poder do sistema
e que tende a generalizar a demanda por “ordem” conforme o caos aumenta;
essa demanda acaba por possibilitar a ascensão de um poder hegemônico que
esteja em condições para atender à demanda sistêmica por ordem (ARRIGHI,
2006).
A era caótica ou o caos sistêmico possibilitam que hoje observemos no
sistema internacional a construção de uma multipolaridade de tipo assimétrica,
na qual os principais polos de poder possuem diferentes capacidades e
diferentes recursos de poder à sua disposição. Podemos ainda dizer que este
processo é marcado pela triangulação EUA-Rússia-China e também pela
emergência de novos polos de poder regionais, que parece caminhar para o
aprofundamento do conflito entre Ocidente e Oriente. A triangulação EUA-
Rússia-China é uma tendência internacional que segue desde a Guerra Fria,
sendo que o poder mais díspar é constantemente balanceado pela aliança dos
outros dois. Neste sentido, o sistema caminha para uma estrutura de
multipolaridade assimétrica, estrutura a qual, em geral, a partir de uma
perspectiva histórica, tende a gerar grandes guerras ou “guerras centrais” (como
entre 1914 e 1945). Sem uma grande guerra central, a recomposição
hegemônica do sistema pode se dar: (i) através de guerras limitadas e locais,
feitas por intermédio de proxies, visando a destruição de economias mais do que
com o propósito de violar fronteiras, ou (ii) a guerra central pode se dar sem
confrontos diretos entre o triângulo, por intermédio de guerras locais prolongadas
e mais ou menos intensas (MARTINS, 2013, p. 195).
A cooperação em segurança e defesa na América do Sul do século XXI
A cooperação em segurança e defesa possui amplo potencial para
vertebrar processos de integração. Os aspectos que dizem respeito à segurança
influenciam diretamente a adesão dos Estados à projetos integracionistas, pois
“a percepção de ameaças, entendidas como algo – manifestação, sinal ou gesto
– percebido como o prenúncio de uma situação indesejada ou de risco vital para
quem percebe, pode ser decisiva para tanto” (MALLMANN, 2017, p. 48).
Tomando como exemplo a experiência europeia, é possível observar o papel
estratégico que a agenda securitária possui para pautar projetos de integração
mais abrangentes: no pós-Segunda Guerra a Europa Ocidental se via
ameaçada, por um lado, pela URSS, e por outro, pela emergência dos Estados
Unidos como uma grande potência. Neste sentido, os fatores securitários são
cruciais para os rumos da integração em um sentido mais amplo (idem).
As relações interamericanas se viram profundamente afetadas pelo fim da
Guerra Fria. Após 1991, os Estados Unidos alteraram sua retórica acerca da
segurança internacional e passou a exportar para a América do Sul a agenda
das chamadas “novas ameaças”. Para tal, a potência norte-americana
impulsionou a criação das Conferências de Ministros de Defesa das Américas
(CMDA). Através das CMDAs os Estados Unidos impuseram uma agenda de
defesa para toda a América, fundamentada nas “ameaças compartilhadas” e na
defesa da democracia (MATHIAS, 2003). Neste período o conceito de segurança
regional foi ressignificado, e temas como narcotráfico e criminalidade passaram
a constituir parte central da agenda de segurança da região. Desta forma:
[...] segurança regional passou a ser definida em termos distintos daqueles consagrados durante a polarização do sistema internacional. De um lado, passa a prevalecer a noção de segurança como “defesa coletiva da democracia”, constituindo-se como mecanismo de garantia da estabilidade e da segurança regional. De outro lado, passa-se a identificar a promoção de reformas econômicas e a integração regional como fatores catalisadores de uma ordem regional mais estável (OLIVEIRA; ONUKI, 2000, p. 109).
Como consequência deste processo, os acordos de Segurança e Defesa
se multiplicaram por toda a região, especialmente no âmbito das chamadas
“medidas de confiança em defesa”, entendidas enquanto “processos políticos
e/ou militares que objetivam mitigar e prevenir os efeitos negativos ou
percepções erradas decorrentes dos ‘dilemas de segurança’ nas relações
internacionais” (SAINT-PIERRE; PALACIOS JUNIOR, 2014, p. 23). Entretanto,
as crises securitárias dos anos 2000 evidenciaram a debilidade de tais medidas
para a garantia da estabilidade regional:
Essas situações permitiram aos governos constatar uma preocupante morosidade dos foros e instrumentos de segurança interamericana para lidar com situações de crise. A percepção dessa fragilidade talvez explique a busca de uma nova via de cooperação multilateral e um foro regional de antecipação, prevenção e resolução de conflitos e crises na América do Sul (SAINT-PIERRE; PALACIOS JUNIOR, 2014, p. 23).
Seguindo à reorganização do pós-Guerra Fria, a crise da unipolaridade
estadunidense, especialmente a partir das invasões do Afeganistão e do Iraque,
bem como a onda de governos progressistas na América do Sul, levaram a outra
reorganização do âmbito de segurança e defesa na região. A potência
hegemônica passou a ter sua legitimidade questionada internacionalmente a
partir da sua ação unilateral no Oriente Médio e, como aponta Mallmann, este
contexto favorece a reorientação dos arranjos regionais. Os Estados periféricos,
nestas circunstâncias, tendem a associar-se para fortalecerem-se frente à
debilidade do hegemon, gerando o movimento de reacomodação de forças
(MALLMANN, 2017).
O novo mapa geopolítico regional, particularmente na América do Sul, responde ao surgimento e à consolidação de novas lideranças e de novos esquemas de articulação e integração regionais funcionais para elas. A focalização dos interesses geopolíticos dos EUA no Oriente Médio e em outras regiões do mundo a partir de 11 de setembro de 2001 possibilitou, somada a outras mudanças, uma maior autonomia regional e o aparecimento de um amplo espectro de governos de orientação progressista e de esquerda na América do Sul (SERBIN, 2009, p. 5).
Neste contexto, instituições e mecanismos como a Organização dos
Estados Americanos (OEA), a Junta Interamericana de Defesa (JID), o Tratado
Interamericano de Assistência Recíproca (TIAR), entre outros, foram perdendo
gradativa e exponencialmente sua credibilidade, o que apontava para o
esfacelamento do complexo de segurança hemisférico estruturado pelos
Estados Unidos a partir de 1930 mas principalmente a partir da segunda década
do século XX. A agenda estadunidense de combate ao terrorismo, a retomada
de uma ofensiva russa em suas fronteiras imediatas e o crescimento econômico
chinês ampliaram as possibilidades de autonomia para a região sul-americana.
Ademais:
A baixa prioridade estratégica historicamente conferida pelo Departamento de Estado yankee à região, combinada à profunda alteração da agenda internacional deste país pós-setembro de 2001, os sucessivos reveses em temas como implantação da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA), os fracassos nas tentativas de eleger seus candidatos a secretário-geral da OEA, as negativas do Chile e México (então membros-rotativos do Conselho de Segurança da ONU) em dar seu aval à invasão do Iraque em 2003, entre outras questões, acabaram por consolidar um imaginário de espaço geográfico possível e passível de desenvolver políticas mais independentes, advindas de uma maior margem de autonomia (FUCILLE, 2014, p. 115).
Assim, Serbin aponta que nos anos 2000 duas estratégias de inserção
internacional surgiram na América do Sul: a estratégia chavista, de
enfrentamento anti-imperialista, e a estratégia brasileira, de diversificação de
parcerias e fortalecimento das relações sul-sul. Ambas estratégias, apesar de
serem profundamente diferentes, estavam de acordo com a visão de um sistema
internacional multipolar. Tal convergência em relação à multipolaridade levou a
confluência de diversos governos sul-americanos para a criação da União de
Nações Sul-Americanas, a UNASUL, pensada como um mecanismo para a
resolução e prevenção de crises – papel até então desempenhado
essencialmente pela OEA, sob a liderança estadunidense (SERBIN, 2009).
Como aponta Fucille:
No presente século, para além da integração física e econômica pretendida, o Brasil tem trabalhado na América do Sul procurando fomentar uma agenda comum de segurança e contra-arrestar a influência norte-americana na região (originalmente centrada na expansão de bases militares no subcontinente, reativação da IV Frota Naval e combate ao terrorismo e às drogas). A pactuação desta agenda comum permitiria, em tese, a criação até mesmo de uma comunidade de segurança, dada a centralidade da territorialidade na dinâmica dos estudos de segurança (FUCILLE, 2014, p. 116).
O Conselho de Defesa Sul-Americano (CDS), oficializado desde
dezembro de 2008 no seio da UNASUL, foi a proposta institucional mais
ambiciosa para o contexto geopolítico do princípio do século XXI. O projeto foi
aprovado pelos 12 países-membro da UNASUL em meio às tensões políticas
geradas pela Colômbia, histórica aliada de Washington na região, e a Venezuela
de Chávez, que impulsava a ideia da criação de um instrumento militar aos
moldes da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), uma Organização
do Tratado do Atlântico Sul (OTAS). Desta forma, o CDS representava uma
estrutura suavizada com capacidade para promover a concertação entre os
Estados sul-americanos, fomentar o desenvolvimento dos campos da segurança
e defesa, e condicionar as decisões a serem aprovadas por meio do consenso
(FUCILLE, 2014).
Entretanto, a partir de 2017 a UNASUL adentrou uma grave crise
institucional que impacta todo o panorama de cooperação em segurança e
defesa da região. Seguindo ao golpe parlamentar no Brasil em 2016, diversos
países sul-americanos reorientaram-se para o alinhamento geopolítico aos
Estados Unidos. Além do governo brasileiro, primeiramente sob o comando de
Temer e depois sob o comando de Bolsonaro, subordinam-se aos interesses
estratégicos e conservadores da potência norte-americana os governos de
Macri, na Argentina, Benítez, no Paraguai, Piñera, no Chile, Kuczynski, no Peru
(e Vizcarra, desde sua renúncia em março de 2018) e Duque, na Colômbia.
Somado a este processo, há também uma tendência à polarização política nos
países que mantiveram os governos da “onda progressista”: Venezuela, Equador
e Bolívia (JAEGER, 2019).
A Colômbia possui notável destaque dentro do novo contexto da
segurança regional sul-americana: o país se tornou o primeiro país latino-
americano a se tornar parceiro externo da Organização do Tratado do Atlântico
Norte (OTAN) em 2018, bem como membro Organização para a Cooperação e
Desenvolvimento Econômico (OCDE). Ainda, em 2019 o presidente colombiano
fez um pronunciamento público acerca do PROSUL, uma proposta de bloco
regional para integrar a América do Sul, a qual conta com o apoio do governo
chileno. Tal iniciativa abre um precedente incomum para as relações
internacionais sul-americanas, até então marcadas pela liderança política-
institucional brasileira e a integração do eixo Brasil-Argentina (JAEGER, 2019).
Mais recentemente, em agosto de 2019, ex-comandantes das FARC-EP
anunciaram a retomada da luta armada na Colômbia. Entre os motivos
apresentados para tal, estão a perseguição à líderes sociais e ex-guerrilheiros,
bem como a acusação de descumprimento por parte do governo colombiano do
acordo firmado em Havana em 2017, que levou à desmobilização da guerrilha
(BBC, 2019). Já em setembro de 2019, o Tratado Interamericano de Assistência
Recíproca, TIAR, foi acionado mediante pedido do autoproclamado presidente
interino da Venezuela, Juan Guaidó. O tratado prevê a defesa mútua dos países
da região em caso de um ataque estrangeiro; entretanto, Guaidó alega que a
crise venezuelana apresenta um elemento desestabilizador para a América do
Sul e, portanto, o acionamento do tratado seria para a contenção dos efeitos da
crise. Tal ação foi duramente criticada por diversos governos, especialmente os
de Uruguai e México, contudo, para ser aprovada a ação contou com 12 votos
favoráveis dentro da OEA. Durante a sessão de votação do pedido de Guaidó,
foi rejeitada uma emenda que limitaria o uso de força para a aplicação do tratado
neste caso específico – a proposta foi apresentada pelo governo da Costa Rica
(ALVES, 2019).
Considerações finais
A retomada da luta armada na Colômbia e a ativação do TIAR no contexto
da crise venezuelana apresentam potencialidades conflitivas para toda a região.
Como observado ao longo do trabalho, a cooperação em segurança e defesa na
América do Sul passou por distintas fases nos anos recentes e, atualmente,
encontra-se em um processo de retrocesso, após um curto período de busca por
maior autonomia para os processos políticos da região. O retorno à agenda
securitária estadunidense, a chamada agenda de segurança hemisférica, limita
as possibilidades de cooperação entre os Estados sul-americanos, uma vez que
tal agenda é responsável por delimitar a pauta da cooperação regional de
maneira verticalizada – do Norte, para o Sul.
O contexto geopolítico regional da América do Sul sofreu profundas
mudanças desde o início do século XXI. Se no princípio dos anos 2000 falava-
se em construir um bloco regional sólido o suficiente para reposicionar a América
do Sul a nível sistêmico como um polo de poder relativamente alternativo aos
grandes centros, na atualidade os governos dos principais países da região
retornaram ao histórico alinhamento geopolítico com os Estados Unidos, o que,
na prática, tem sistematicamente travado os processos de integração regional
sul-americanos. Atualmente, a UNASUL e o CDS encontram-se atrofiados desde
o ponto de vista institucional, e a agenda integracionista da região – em um
sentido mais amplo – tem retomado o discurso economicista (especificamente
voltado para a integração comercial) típico do regionalismo aberto dos anos
1990, enquanto a agenda de defesa regride ao retomar passivamente os
pressupostos securitários do sistema de segurança hemisférica propostos desde
os anos 1930 pelos EUA à região.
Referências bibliográficas
ALVES, A. R. OEA aprova pedido de Guaidó para ativar contra Maduro tratado que prevê defesa mútua no continente. O Globo, 11 de setembro de 2019. Disponível em: . Acesso em: 16/09/2019.
ARON, R. Paz e guerra entre as nações. Trad. Sérgio Bath (1a. edição)
Brasília: Editora Universidade de Brasília, Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2002.
ARRIGHI, G. O longo século XX: dinheiro, poder e as origens de nosso tempo. tradução Vera Ribeiro; revisão de tradução César Benjamin; Rio de Janeiro: Contraponto. São Paulo: Editora UNESP, 2006.
BARBÉ, E. Relaciones Internacionales. Madrid: Editorial Tecnos S.A., 1995.
BBC. Por que parte das Farc está voltando à luta armada na Colômbia. BBC News, 29 de agosto de 2019. Disponível em: . Acesso em: 16/09/2019. FIORI, J. L. A nova geopolítica das nações e o lugar da Rússia, China, Índia, Brasil e África do Sul. OIKOS, Rio de Janeiro, Vol. 6, No 2., 2007.
FRANÇA, A. et al. Política externa e de segurança dos Estados Unidos. In:
MARTINS, J. M. Q. (org) Relações internacionais contemporâneas 2012/2: estudos de caso em política externa e de segurança. Porto Alegre, Instituto Sul-Americano de Política e Estratégia (ISAPE), 2013.
FRIEDMAN, G. A próxima década: Onde estamos… e para onde iremos.
Ribeirão Preto, SP: Novo Conceito Editora, 2012.
FUCCILLE, A. O Brasil e a América do Sul: (re)pensando a segurança e a defesa na região. Rev. Bra. Est. Def. ano 1, nº 1, jul./dez., p. 112-146, 2014.
GULLO, M. La insubordinación fundante: Breve historia de la construcción del poder de las naciones. Caracas, Venezuela: Fundación
Editorial El perro y la rana, 2015.
https://oglobo.globo.com/mundo/oea-aprova-pedido-de-guaido-para-ativar-contra-maduro-tratado-que-preve-defesa-mutua-no-continente-23940707https://oglobo.globo.com/mundo/oea-aprova-pedido-de-guaido-para-ativar-contra-maduro-tratado-que-preve-defesa-mutua-no-continente-23940707https://oglobo.globo.com/mundo/oea-aprova-pedido-de-guaido-para-ativar-contra-maduro-tratado-que-preve-defesa-mutua-no-continente-23940707https://www.bbc.com/portuguese/internacional-49455482
GULLO, M. Relaciones Internacionales: una teoría crítica desde la periferia sudamericana. Buenos Aires: Biblos, 2018.
JAEGER, B. C. Crise e colapso da UNASUL: o desmantelamento da integração sul-americana em tempos de ofensiva conservadora. Revista
Conjuntura Austral, Porto Alegre, v.10, n. 49, p.5-12, jan./mar. 2019.
KHANNA, P. Como governar o mundo: Um roteiro para o próximo
Renascimento. Tradução de Berilo Vargas. Revisão Técnica de Márcio Scalércio, 2011.
MARTINS, J. M. Q. Considerações finais: recomposição hegemônica e inserção internacional do Brasil. In: MARTINS, J. M. Q. (org) Relações internacionais contemporâneas 2012/2: estudos de caso em política externa e de segurança. Porto Alegre, Instituto Sul-Americano de Política e Estratégia (ISAPE), 2013.
MATHIAS, S. K. Defesa e segurança hemisférica: um tema controverso. Notas à declaração sobre segurança nas Américas. Informes RESDAL, Dezembro de 2003. Disponível em: . Acessado em 16/09/2019.
MATVEEV, V. RUSAKOVA, T. The changing Russian army. Russia Beyond,
23 dez. 2015. Disponível em:. Acesso em: 10 set. 2017.
MEARSHEIMER, J. A Tragédia da Política das Grandes Potências. Lisboa: Gradiva, 2007.
MINGST, K. Essentials of International Relations. 2nd ed. New York: W. W.
Norton & Company, 2003.
OLIVEIRA, A. J.; ONUKI, J. Brasil, Mercosul e a segurança regional. Rev.
Bras. Polít. Int. 43 (2): 108-129, 2000.
OSÓRIO, L. F. Imperialismo, Estado e Relações Internacionais. São Paulo: Ideias & Letras, 2018.
SAINT-PIERRE, H. L.; PALACIOS JUNIOR, A. M. C. As medidas de confiança no Conselho de Defesa Sul-americano (CDS): análise dos gastos em Defesa (2009–2012). Rev. Bras. Polít. Int. 57 (1): 22-39, 2014.
SERBIN, A. A América do Sul em um mundo multipolar. A Unasul é a alternativa? Nueva Sociedad Especial em Português, Dezembro de 2009.
Tradução de Ivony Lessa.
https://www.resdal.org/campo/art-news-kalil.htmlhttps://www.resdal.org/campo/art-news-kalil.html