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UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO FACULDADE DE HUMANIDADES E DIREITO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO IGREJAS ORGÂNICAS - MOBILIDADE E RECONFIGURAÇÃO RELIGIOSA: O CASO DO “CAMINHO DA GRAÇA” LIVAN CHIROMA São Bernardo do Campo 2014

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UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO

FACULDADE DE HUMANIDADES E DIREITO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

IGREJAS ORGÂNICAS - MOBILIDADE E RECONFIGURAÇÃO RELIGIOSA:

O CASO DO “CAMINHO DA GRAÇA”

LIVAN CHIROMA

São Bernardo do Campo 2014

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LIVAN CHIROMA

IGREJAS ORGÂNICAS - MOBILIDADE E RECONFIGURAÇÃO RELIGIOSA:

O CASO DO “CAMINHO DA GRAÇA”

Dissertação apresentada em cumprimento às exigências parciais do Programa de Pós Graduação em Ciências da Religião da Faculdade de Humanidades e Direito da Universidade Metodista de São Paulo para a obtenção do grau de mestre. Área de concentração: Religião, Sociedade e Cultura. Linha de Pesquisa: Religião e Dinâmicas Socioculturais

Orientador: Prof. Dr. Leonildo Silveira Campos.

Universidade Metodista de São Paulo

São Bernardo do Campo

2014

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FICHA CATALOGRÁFICA

C446i

CHIROMA, Livan

Igrejas orgânicas – mobilidades e reconfiguração religiosa: o caso do “Caminho da Graça” / Chiroma Livan -- São Bernardo do Campo, 2014.

138fl.

Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião) – Faculdade de Humanidades e Direito, Programa de Pós-Graduação Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo

Bibliografia

Orientação de: Leonildo Silveira Campos

1. Trânsito religioso 2. Protestantismo 3. Cristianismo primitivo I. Título

CDD 280

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A dissertação de mestrado sob o título "IGREJAS ORGÂNICAS - MOBILIDADE E

RECONFIGURAÇÃO RELIGIOSA: O CASO DO ´CAMINHO DA GRAÇA´",

elaborada por LIVAN CHIROMA, foi apresentada e aprovada em 09 de Outubro de

2014, perante a banca examinadora composta por Prof. Dr. Leonildo Silveira Campos

(Presidente/UMESP), Prof. Dr. Paulo Ayres Mattos (Titular/UMESP) e Prof. Dr.

Ronaldo Rômulo Machado de Almeida (Titular/UNICAMP).

____________________________________________

Prof. Dr. Leonildo Silveira Campos

Orientador e presidente da Banca Examinadora

____________________________________________

Prof. Helmut Henders

Coordenador do Programa de Pós Graduação

Programa: Pós-Graduação em Ciências da Religião

Área de Concentração: Religião, Sociedade e Cultura

Linha de Pesquisa: Religião e Dinâmicas Socioculturais

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AGRADECIMENTOS

Ao CNPq pela concessão da bolsa.

Sou grato à minha mãe Yasu Chiroma Veiga e ao meu pai, o qual não viu este texto concluído por conta de seu falecimento em agosto de 2012. A Francisco Ferreira Veiga (1936-2012) dedico este trabalho.

Agradeço ao Professor Leonildo Silveira Campos, meu orientador, pelas sugestões, horas de orientação e conversas; sobretudo, por seu empenho para que esta dissertação se concretizasse na reta final. Sou privilegiado por ter sido orientado por um tão reconhecido pesquisador.

À Profa. Dr. Sandra Duarte e ao Prof. Dr. Nicanor Lopes, pelas colaborações na banca de qualificação.

Aos integrantes do GIPESP – Grupos de pesquisa interdisciplinar do Protestantismo.

Aos professores do PPG em Ciências da Religião da UMESP, pela dedicação.

A Caio Fábio D´Araújo Filho, Carlos Bregantim, Ana D´Araújo, Marcelo Quintela, Leonardo Silva, Gito Wendel, Wagner H. Silva e a todos das “Estações do Caminho” Campinas, São Paulo e diversos colaboradores participantes de “Igrejas Orgânicas” e do “Caminho da Graça” que generosamente foram solícitos aos meus questionamentos.

A Alex Fajardo, que me cedeu seu acervo pessoal das Revistas VINDE;

Aos amigos do curso de Ciências Sociais da Unicamp e aos participantes do Laboratório de Antropologia da Religião - LAR. Ali participei de diversos debates que colaboraram neste para este texto.

Aos amigos e amigas que sentiram minha ausência, obrigado pela compreensão.

À Dayana Façanha, pela amizade, paciência e incentivo por conta da produção desta dissertação, nos momentos de incertezas e distância.

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CHIROMA, Livan. Igrejas Orgânicas – mobilidade e reconfiguração religiosa: o caso do “Caminho da Graça”, dissertação de mestrado, Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo, 2014.

RESUMO

Este texto é a apresentação do resultado de uma pesquisa empreendida sobre o recrudescimento de um movimento que convencionamos denominar de “Igreja Orgânica” (IO). Para este estudo, diante de centenas de grupos encontrados durante o período da pesquisa, escolhemos a análise do “Caminho da Graça” (CdG), comunidade iniciada em meados de 2004, e que atualmente conta com cerca de 70 grupos no Brasil e no exterior. O grupo foi iniciado pelo (ex) reverendo Caio Fábio de Araújo Filho, ou simplesmente Caio Fábio, sustentados por uma mensagem de “contracultura evangélica” ou um “retorno da Igreja cristã tal como era no Novo Testamento”. Embora o CdG categoricamente não se auto declare uma IO, pudemos enquadrá-lo nesta tipologia observando as práticas e discurso das principais lideranças. Vemos na consolidação do Neopentecostalismo, especialmente nos anos de 1990, o início das suspeitas e decepções em massa com o universo evangélico, sobretudo advindas deste segmento do cristianismo; sendo assim estas comunidades alternativas vêm acolher dissidentes “decepcionados” e “feridos” por estas expressões religiosas. Fez-se necessário, portanto, compreender a morfologia das igrejas no período do cristianismo original, uma vez que um dos pontos de contestação destes grupos é o retorno às experiências comunitárias dos primeiros cristãos, tais quais narradas no Novo Testamento; evidenciar a biografia das principais lideranças do movimento e; enfatizar os conflitos e as motivações intracampo e extracampo existentes para compreender o êxodo e circulação dos fiéis em direção a uma experiência de fé mais pormenorizada e “pós moderna”; houve também necessidade de uma observação participativa, de inspiração etnográfica, para a condução de abordagens teóricas.

Palavras-chaves: Protestantismo; Caminho da Graça, Igrejas Orgânicas, Trânsito

Religioso, Evangélicos não Determinados, Cristianismo primitivo.

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CHIROMA, Livan. Organic Churches – mobility and religious rearrangement: the “Caminho da Graça” case, Master thesis, Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo, 2014.

ABSTRACT

This text is the presentation of the results of a study on the rise of a movement here conventionally called “Organic Church” (OC). For the present study, among hundreds of groups met during the research period, “Caminho da Graça” (CdG), a community founded by mid-2004 and currently numbering around seventy groups in Brazil and abroad, was chosen as the object of analysis. The group was started by the (ex-) Rev. Caio Fábio de Araújo, or simply Caio Fábio, backed by a message of “Evangelical counterculture” or a “return to the Christian Church as it was in the New Testament.” Although CdG categorically denies the OC label, we can fit them into the movement observing the practices and discourse of the main leadership. The consolidation of Neo-Pentecostalism, especially in the 1990s, is seen as the beginning of suspiciousness and mass disappointment with the Evangelical, and above all the Neo-Pentecostal, worldview. Thus, these alternative communities welcome dissidents “hurt” by these contexts. It was therefore necessary, firstly, to understand the morphology of churches in the original Christianity period, since one of these groups’ points of dispute is the return to community experiences lived in the New Testament; secondly, to expose the biographies of the main leaders of the movement; thirdly, to emphasize the conflicts and motivations both within the church context and outside of it in order to understand the exodus and the movement of believers towards a more thorough faith experience; and lastly, to perform ethnographically-inspired participative observation in order to conduct theoretical approaches.

Keywords: Protestantism; Caminho da Graça, Organic Churches, Religious Transit,

Undetermined Evangelicals, Christian Unspecified, Primitive Christianity.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ............................................................................................................. 09

CAPÍTULO I – Cristianismo orgânico ou institucionalizado? ..................................... 15

1.1 Em busca das experiências fundantes ................................................................ 20 1.2 Algumas questões teóricas preliminares ............................................................ 23 1.3 Identidades e comunidade no cristianismo original: sombras e luzes ............... 29

1.3.1 Movimento de Jesus ............................................................................... 31 1.3.2 O surgimento das Ekklésias ................................................................... 37 1.3.3 O papel das redes familiares na expansão do cristianismo .................... 39 1.3.4 Conflitos na Igreja “primitiva” .............................................................. 46

1.4 O início de uma igreja segundo o modelo imperial ........................................... 49

CAPÍTULO II - “Igreja Orgânica”: teoria e técnica ...................................................... 52

2.1 Igrejas orgânicas como construtoras de uma realidade “livre” .......................... 55 2.2 Análise dos produtores culturais ........................................................................ 65

2.2.1 Frank Viola e a denúncia do “Cristianismo Pagão” ............................... 65 2.2.2 Neil Cole - plantando a fé onde a vida acontece .................................... 71 2.2.3 Simson Wolfgang – “casas que transformam o mundo” ....................... 73

CAPÍTULO III – “CAMINHO DA GRAÇA: TRAJETÓRIA DE UMA IGREJA

ORGÂNICA .................................................................................................................. 78

3.1 O fundador: Biografia, trajetória e peregrinações ............................................. 81 3.1.1 Do Amazonas ao Rio de Janeiro ............................................................ 83 3.1.2 No Rio de Janeiro uma nova fase: “A era Caio Fábio” ......................... 88

3.1.3 Controvérsias – Associação Evangélica Brasileira (AEVB) x Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) ................................................................. 91

3.2 Estrutura da Visão Nacional de Evangelização -VINDE .................................. 96 3.2.1 A VINDE na televisão ........................................................................... 97 3.2.2 VINDE Revista ...................................................................................... 99 3.2.3 A VINDE na área de assistência social: A Fábrica da Esperança ....... 99

3.3 A Queda de Caio Fábio ................................................................................... 102 3.4 História do “Caminho da Graça” ..................................................................... 103 3.5 Estações do Caminho – novo (não) lugares religiosos .................................... 113

CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................... 128

BIBLIOGRAFIA ......................................................................................................... 132 ANEXOS ..................................................................................................................... 141

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INTRODUÇÃO

O objetivo deste trabalho é analisar o fenômeno das “Igrejas Orgânicas” (IO)1,

tomando-se como objeto de estudo o movimento “Caminho da Graça”, fundado pelo

pastor Caio Fábio de Araújo Filho. Procurei trabalhar as biografias, as técnicas e teorias

de alguns dos principais pensadores dessa forma de praticar o cristianismo, para

sublinhar a recomposição das formas religiosas desenvolvidas pelos sujeitos dissidentes

dos principais eixos denominacionais, em direção a uma experiência religiosa menos

institucionalizadas. Desta maneira, é importante destacar a construção cultural que os

principais líderes dessa tendência usam para recusar o modelo “Igreja Institucional”.

Dentro desse esforço daremos enfoque especial ao chamado “Caminho da Graça”, aqui

representado como modelo de uma das principais formas no Brasil de questionar a

institucionalização da igreja cristã.

As primeiras pesquisas que fiz sobre a religião começaram nos trabalhos para

conclusão dos cursos nas faculdades de Comunicação e depois na de Teologia. Em

ambos os casos tratei de temas que envolviam religião, sociedade e mercado numa

perspectiva sociológica. Na primeira, realizei pesquisas sobre o marketing religioso em

uma Igreja neopentecostal; na segunda fiz uma análise dos métodos de plantação de

igrejas em áreas urbanas, destacando-se a alteridade e os aspectos “transculturais”, que

normalmente são pensados nas missões evangélicas que se voltam a uma cultura

exótica. Porém, neste caso, salientamos que as metrópoles possuem seu próprio mundo

simbólico, que é traduzido pelo missionário ou pelo “plantador de igrejas” nas áreas

urbanas, estabelecendo sua própria tradução Na época da graduação li o livro Teatro,

templo e mercado de Leonildo Silveira Campos, que despertou interesse pelas pesquisas

no campo das Ciências da Religião e da Sociologia.

Ao iniciar o Mestrado, o interesse se concentrou na análise do trânsito religioso

entre os jovens evangélicos, sob a influência da “pós-modernidade”. Este fenômeno

tornou-se digno de atenção através de observações pessoais e intuitivas, ao notar que

muitos dos meus conhecidos e amigos evangélicos estavam deixando o hábito de

1 Apesar de outras nomenclaturas, como “Igreja nos Lares”, Igreja Simples”, “Igreja doméstica”, “Igreja não denominacional”, neste trabalho usaremos a expressão “Igreja Orgânica” ou “IO”.

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congregar em suas igrejas, sobretudo os mais jovens, demonstrando, com isso, um

“desânimo religioso”.

Porém, no decorrer das disciplinas cursadas no Mestrado, pude compreender o

fenômeno dos “desigrejados” como fator subjacente da secularização, a atomização da

religiosidade, a relativização institucional e a ação religiosa forjada em ambientes web,

formando ”rebanhos virtuais”2

Logo, como parte do processo ao longo da pesquisa, o desafio inicial foi o de

delimitar o objeto a ser analisado. Nesta fase guardamos a publicação que estimularia as

primeiras indicações do que seria posteriormente pesquisado. Refiro-me à matéria no

jornal Folha de S. Paulo, do dia 15/08/2011 cujo título era “cresce o número de

evangélicos sem ligação com igrejas”. A reportagem, pautada nos dados estatísticos

publicados pelo Instituto FGV, a partir dos dados de Pesquisa de Orçamento Familiar

(POF), dizia assim: “especialistas dizem que processo pode ser análogo ao de quem se

identifica como 'católico não praticante'. Pesquisa mostra que, entre 2003 e 2009, fatia

de fiéis que dizem não ter vínculo institucional saltou de 4% para 14%”.3

O aspecto que mais chamou atenção foi o recrudescimento dos “evangélicos não

determinados”, ou seja, aqueles que se afirmam cristãos, mas optam por não se

estabelecerem em uma denominação específica. Seria isso um sintoma do fenômeno do

“desigrejamento”? Neste sentido, análise de Campos4 é oportuna:

“O aparecimento de uma nova categoria, “evangélicos sem igreja” ou os “evangélicos não determinados”, foi uma novidade que já havia se manifestado em pesquisas anteriores, como a de 2009 (POF), que tomou por base os números da pesquisa dos orçamentos familiares. Esses “evangélicos não determinados” chegaram ao índice de 4,8%, acima dos 4% dos evangélicos de missão (ou tradicionais), porém, abaixo dos pentecostais, 13,3%”.

2 “Rebanho virtual” e o individualismo religioso. Entrevista especial com Leonildo Silveira Campos. <www.ihu.unisinos.br/entrevistas/512839-rebanho-virtual-e-o-individualismo-religioso-entrevista-especial-com-leonildo-silveira-campos> Acessado em 29/08/2014. 3 <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/poder/po1508201102.htm>. Acessado em 20/08/2014. 4 Idem.

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Ora, a categoria dos “evangélicos não determinados” é uma vertente sobre a qual os

especialistas estão ainda por desvendar suas tramas, levantando diversas hipóteses

(TEIXEIRA & MENEZES: 2012). Por conseguinte, é oportuno lembrar da pesquisa de

Regina Novais5 que não relaciona a aversão dos indivíduos às religiões

institucionalizadas ao ateísmo ou no agnosticismo; ou seja, segundo Novais, há um tipo

de fé que “circula”, porém desvinculada de uma agência. Seriam estes religiosos

“circuláveis” praticantes de algum tipo de culto ou formato congregacional particular?

Assim, caímos no problema principal – a formação de comunidades cristãs

evangélicas de “margem”, constituídas por aqueles que optaram em deixar as fileiras

das igrejas evangélicas “institucionais”, normalmente motivados por infortúnios e

decepções eclesiásticas variadas ou então movidos por um convencimento “teológico”

de que as práticas das “igrejas tal qual a conhecemos” estão equivocadas, sendo

necessário retornar as experiências religiosas tal qual eram encontradas no Novo

Testamento. Neste trabalho, denominamos estes grupos de “Igrejas Orgânicas” (IO),

movimento crescente na América do Norte6. Segundo o Jornal Fox News “Um estudo

realizado pelo Barna Group, uma empresa especializada em dados sobre religião e

sociedade, estima que 6 a 12 milhões de americanos frequentam igrejas domésticas”. 7

Logo, através de uma simples busca do termo “Igreja Orgânica” no Google ou no

Facebook encontramos centenas destes grupos autônomos. São diversos os movimentos

que, dentro do espectro cristão – evangélico, advogam pelos “grupos domésticos”, o

sistema da “igreja simples”, o anticlericalismo, ou, como convencionamos chamar, a

“Igreja Orgânica”. Porém, escolhemos delimitar nossas hipóteses pesquisando o

movimento “Caminho da Graça”, pela ação expressiva de seu líder, Caio Fábio Filho.

Cerca de 70 “Estações do Caminho” se espalham pelo Brasil e pelo exterior. Outro

argumento para nossa delimitação é que, mesmo não havendo uma declaração clara de

que o “Caminho” fosse uma “Igreja Orgânicas”, em nosso entender, analisando suas

práticas, pudemos traçar algumas relações que tornaram esta comparação possível:

5 "Os jovens "sem religião": ventos secularizantes, "espírito de época" e novos sincretismos. Notas preliminares".www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142004000300020. Acessado em 28/08/2014. 6 "Cresce o movimento de cristãos que ´pulam o sermão´, adoram em pequenos grupos em seus lares" [tradução livre do autor]. <www.foxnews.com/us/2010/07/21/growing-movement-christians-skip-sermon-worship-small-groups-home>. Acessado em 20/11/2013. 7 Idem. Tradução livre do autor.

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ethos anti institucional; sentimento anticlerical; lideranças leigas; reuniões nos lares e

em locais “não sagrados”; um profundo discursos de retorno ao “Cristianismo

primitivo”.

Nossa análise de campo foi realizada em Campinas, uma cidade do interior de São

Paulo, junto a grupo com cerca de 30 pessoas, de Junho de 2013 até Fevereiro de

2014.8Além disso, realizamos pesquisas na “Estação da Graça” em São Paulo-Capital, e

ainda em uma outra, ainda em fase de “implantação”. Para cumprir nosso objetivo de

análise também acompanhamos a mídia social e assistimos incontáveis vídeos no

Youtube e na “Vem e Vê TV”9, a mídia do “Caminho da Graça”. Adicionamos também

anotações no caderno de campo e conversas informais com seus principais expoentes;

esta análise é seguramente uma fotografia, pois o movimento está em constante

remodelagem.

Para o pesquisador, confirmado através dos meses de pesquisa participativa em

campo, O “Caminho da Graça” é, de fato, um movimento ligado ao recrudescimento do

descontentamento recente dos cristãos protestantes com o “universo evangélico”. Este

descontentamento, como veremos no transcorrer dos capítulos, colabora para a

liquefação das identidades religiosas dos indivíduos, proporcionando uma intensa busca

por agrupamentos mais “autênticos”, menos “rígidos”, com mais “liberdade”, e que

sejam menos “hipócritas”, conforma a opinião de alguns entrevistados.

No que tange à temática desta pesquisa, não foram encontrados temas similares

nos diretórios e bancos de dados de teses e dissertações da Capes que tomassem como

objeto de pesquisa essas duas linhas que se entrecruzam em nossa abordagem principal,

a “Igreja Orgânica” e o “Caminho da Graça”. Ponderamos que a realidade da “Igreja

Orgânica” no Brasil ainda é desconhecida, não havendo reflexões acadêmicas sobre

uma de suas expressões “Caminho da Graça” apesar da proeminência midiática de seu

líder, Caio Fábio D´Araújo Filho, particularmente nos anos de 1980 e 1990 e, em

tempos recentes, via web. Mas será que o fenômeno “igreja orgânica” existe no Brasil?

Ou em outras palavras, o fenômeno tem densidade significante para uma dissertação de

mestrado? Nós apontamos uma resposta afirmativa. Pois nos EUA e Europa,

pesquisadores já tem tentado registrar academicamente tal movimento há mais de duas

décadas, principalmente entre organizações confessionais e missionárias. Seminários e 8 O período foi intermitente, devido as dinâmicas do grupo e do pesquisador. 9 Web TV de Caio Fábio. www.vemevetv.com.br

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centros de pesquisa da religião já registram investigação sobre o tema. Por exemplo a

tese defendida no Fuller Theological Seminary por Jares James Looney, City harvest: a

study os organic church planting in a global city, no Instituto de Estudos Interculturais

é um exemplo. Porém, esses têm um tom de catequese, ou de elucidar sociologicamente

o fenômeno a fim de captura-lo para fins estratégicos e missionários.

A justificativa para a pesquisa que empreendemos encontra-se no fato de que o

perfil de nosso objeto de análise, o Caminho da Graça e suas dezenas de “Estações”

espalhadas pelo Brasil, sustenta um tipo particular de pertencimento, rotatividade,

liderança, práticas litúrgicas e lógicas de seus aplicativos espirituais que torna complexo

ao pesquisador identifica-la com os tipos tradicionalmente canonizados pela Sociologia

da Religião. Sendo que, devido as movimentações do campo religioso brasileiro nos

últimos trinta anos, com a “fragmentação”, a “privatização das experiências de fé”,

podemos indicar um novo tipo de rede religiosa-associativa, ainstituicional, podendo

sugerir que estamos diante uma “hiper-fragmentação” do tecido cristão: o

protestantismo rasgou o cristianismo do estilo católico em pedaços de 100 x 100. O

fenômeno dos sem-igreja, em pedaços de 10 x 10.

Nossos referenciais teóricos foram os conceitos formulados acerca da sociologia

do cristianismo primitivo de Gerd Theissen e Howard Clark Kee; a teoria do campo

religioso, de Pierre Bourdieu, e as contribuições de Danièle Hervieu-Léger sobre

mobilidade e transmissão religiosa. Igualmente foram importantes para a pesquisa, os

trabalhos de Leonildo Silveira Campos, Antônio Gouvêa Mendonça, Ronaldo de

Almeida e Ricardo Mariano, entre outros, nas abordagens mais gerais sobre o

protestantismo, pentecostalismo e neopentecostalismo.

Assim, no capítulo 1 “Igreja Orgânica”: raízes e história no cristianismo

original, analisa-se a morfologia das ekklésias do período conhecido como

“Cristianismo primitivo”. Para atingir tal objetivo consideramos ser importante retomar

a trajetória da família nas sociedades judaica, romana e cristã, levantando dados sobre o

modelo de interação entre família, sociedade e igreja, isto é, acompanhando o núcleo

familiar do ponto de vista sociológico. Com isso, verificaremos as alterações

eclesiológicas da insurgente religião cristã espalhada em comunidades bem distintas

umas das outras e com notadas diferenças político-teológicas. Por isso procuraremos, no

decorrer do texto iluminar conflitos étnicos-religioso, mutações de crenças,

hibridizações de cosmovisões inerentes aos vários cristianismos ao redor do líder

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messiânico – carismático Jesus até a adoção de religião cristã pela suposta conversão do

Imperador Constantino. Assim, neste bloco caracterizaremos o período reivindicado

pelas “Igreja Orgânicas” como sendo o período original de intensa “harmonia e coesão”

na comunidade dos discípulos de Jesus.

No capítulo 2, “Igreja Orgânica”: teoria e técnica, a análise recai em como as

expressões de “igrejas orgânicas” contemporâneas são pensadas na produção cultural de

seus principais teóricos. Este capítulo pretende apresentar a estrutura, características e

principais traços destes grupos. Pretende-se ainda verificar as relações existentes com os

demais “modelos eclesiásticos” informais, procurando também compreender o

surgimento de um mercado religioso voltado à um cristianismo “descompromissado” e

mais “simplificado”.

No capítulo 3, Caminho da graça: trajetória de uma “Igreja Orgânica”

analisaremos o movimento “Caminho da Graça” / ”Estações do Caminho” tomando-o

como exemplo de um tipo de “Igreja Orgânica”. Esse capítulo foi dividido em duas

seções. Na primeira, é levantado o histórico de seu fundador, Caio Fábio de Araújo

Filho, ou simplesmente Caio Fabio, relacionando-o à atual negação do modelo

institucional do cristianismo. Julgamos que a partir de seus dados biográficos foi

possível compreender e correlaciona-los aos deslocamentos no campo religioso

brasileiro, sobretudo no último quarto do século XX. Por meio dessa análise

procuramos levantar algumas hipóteses para o surgimento das “Igrejas Orgânicas”

contemporâneas, categoria na qual incluímos o CdG (Caminho da Graça), mediante a

similaridade de sua tipologia. A segunda será dedicada a pesquisar a história do CdG

com suas “Estações”, procurando também levantar hipóteses sobre seu perfil sócio

religioso à luz dos estudos da Sociologia da Religião. Nossa premissa inicial é que trata-

se de grupos constituídos por dissidentes de outras denominações que buscam

expressões alternativas e informais para manifestarem sua espiritualidade. Debateremos

este detalhe durante a etnografia.

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CAPÍTULO I

CRISTIANISMO ORGÂNICO OU INSTITUCIONALIZADO?

“É preciso destacar a distorção de Hollywood que mostra

milhares de pessoas presentes aos sermões de Jesus.

Devemos imaginar um grupo seleto, reduzido a cerca de

trinta pessoas, apinhadas numa casa particular para ouvir um

mestre extraordinariamente desafiador

(CHASRLESWORTH, James. H. “Jesus dentro do

Judaísmo”. Rio de Janeiro: Imago Dei, 1992)

A que tradição do cristianismo dos primeiros séculos se pode recorrer para

estudar um possível período anterior ao cristianismo institucionalizado de nossos dias?

A justificativa para este empreendimento se fundamenta no fato de que uma das

propostas do “Caminho da Graça” (CdG), objeto de nossa pesquisa, é o retorno às

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experiências religiosas equivalentes às que teriam sido vivenciadas pelos cristãos do

primeiro século também conhecido como período “pré-constantiniano”10. É o que

pretendemos analisar neste primeiro capítulo.

Se é correto o pressuposto de muitos do “Caminho da Graça”, a era apostólica,

representa uma rede semântica atemporal que ganhou um status de experiência

“instituínte” (BASTIDE, p.250) ou “fundante”, presente nas narrativas universais dos

cristãos e, a partir desta configuração pré estatal do cristianismo, pode-se localizar um

“núcleo verdadeiro e puro” – para se recorrer a uma tipologia weberiana. Essa idílica

“comunidade cristã perfeita” teria sido desfigurada e contaminada nos séculos

posteriores sobretudo pelos processos de institucionalização da Igreja no período pós-

pascal (período apostólico) e pela adesão do imperador romano, Constantino, em

outubro de 312 E.C. (RAMALHO, p.95).

Seguindo este critério, a conversão do imperador de Roma marcaria o auge de

um processo político-social que tornaria estatal o movimento cristão e, sob o manto do

império, se consolidaria definitivamente um processo de cristalização do cristianismo

que ganha vultuosa presença demográfica e cultural naqueles três primeiros séculos da

Era Comum (E.C.). Durante aquelas décadas que precederam a adesão do império às

lógicas monoteístas do Deus altíssimo, a hipótese é que há um progressivo

desvirtuamento da mensagem inicial pregada pelo taumaturgo-messias, Jesus de Nazaré,

calcada na simplicidade e na construção de relacionamentos. Esta mensagem estaria

marcada por dois principais pontos: a ação de sistematização teológica das igrejas

nascentes, realizado pelo apóstolo Paulo, assim como pela oficialização através dos

concílios, entre eles, o de Nicéia.

Primeiramente, é preciso delimitar os termos empregados na pesquisa e nesta

exposição: o que seria a constituição “orgânica” de uma instituição? Nas ciências

sociais modernas, o primeiro autor que considerou as sociedades, instituições e grupos,

como se fossem corpos vivos foi Herbert Spencer (1820 -1903). Este sociólogo e

filósofo, procurou demonstrar o funcionamento das sociedades por meio de um modelo

análogo aos processos naturais, em que os órgãos são beneficiados por adaptações

contínuas, tal qual a vertente do darwinismo social. Desta maneira, seguindo suas

sugestões, os grupos humanos estão inseridos em processos históricos que os

10 Verificar ANEXO I.

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aperfeiçoariam, à luz da teoria da evolução, elaborada por Charles Darwin. No

evolucionismo spenceriano as sociedades caminham em direção à um “organismo

social” cada vez mais harmônico. Assim, aos poucos, sociedades ditas “primitivas”

seriam substituídas por outras, com maior aperfeiçoamento técnico-científico. A

premissa partilhava do pensamento das luzes, em que homem místico era substituído

pelo homem científico. No entanto, as crises no início do século XX, seguida das duas

grandes guerras, colocou em cheque o espírito evolucionista.

As teorias da administração também nos oferecem colaborações para o

entendimento do que significa “orgânico”. Gareth Morgan (2002) formulou certas

metáforas que qualificam os tipos de sistemas de gestão, com fim de aperfeiçoa-los:

“máquinas”, “cérebros”, “sistemas”, “políticos”, “organismo” etc. Segundo essas

metáforas de Morgan, é possível pensar as organizações como se fossem organismos

vivos. Desta forma, neste modelo de “gestão orgânica” o que vale é a permeabilidade

dos indivíduos em relação ao sistema total da empresa. O empreendimento, como corpo

operacional, dialoga com suas unidades mínimas, seus trabalhadores. Todos têm suas

perspectivas particulares e humanas valorizadas, diferentemente da visão mais

mecanicista da gestão empresarial. Assim, segundo o autor, as empresas que valorizam

as necessidades particulares de cada sujeito têm seu modo de gestão qualificado como

“orgânico”. Morgan (2002, p.52) ainda assinala que “desta forma, vamos vê-las [as

organizações] como sistemas vivos, que existem em ambientes mais amplos dos quais

dependem para a satisfação de várias necessidades. Consequentemente, o exame do

mundo organizacional, permite a percepção de que é possível identificar diferentes

espécies de organização em diferentes tipos de ambientes”.

Já no cristianismo, o primeiro a empregar esta metáfora foi o apóstolo Paulo. Ele

utilizou a metáfora do corpo para referir-se a natureza da Igreja e sua particular

inclinação à relacionalidade e interdependência coletiva:

“Ora, assim como o corpo é uma unidade, embora tenha muitos membros, e todos os membros, mesmo sendo muitos, formam um só corpo, assim também com respeito a Cristo. [...] O corpo não é feito de um só membro, mas de muitos. Se o pé disser: ´Porque não sou mão, não pertenço ao corpo´, nem por isso deixa de fazer parte do corpo. E se o ouvido disser: ´Porque não sou olho, não pertenço ao corpo´, nem por isso deixa de fazer parte do corpo. Se todo o corpo fosse olho, onde estaria a audição? Se todo o corpo fosse ouvido, onde estaria o olfato? De fato, Deus dispôs cada um dos membros no corpo, segundo a sua vontade. Se todos fossem um só membro, onde estaria o corpo? Assim, há muitos membros, mas um só corpo. (1Co 12,1-20)

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Neste texto Paulo expõe a ideia de que há uma interdependência no “corpo de

Cristo”, fazendo uma analogia direta aos sistemas biológicos. O apóstolo faz uso de

outras metáforas, mas encontramos nesta perícope a mensagem de que os diversos

membros da comunidade cristã estabelecida em Roma compreendessem que

participavam de uma comunidade onde se faz necessário o uso do “dom” de cada um;

também, todos são importantes, “não há menos, nem maior”. Ademais Paulo estava

desejoso em explicar que eles faziam parte de uma comunidade global, a ekklésia, a

universal.

Spencer, Morgan e Paulo nos ajudam na compreensão do que é “orgânico”. Suas

metáforas apontam para um tipo de comunidade de fé “orgânica”, que seria um

cristianismo de vida comunitária, interdependente, harmonioso. Como lemos na citação

de Paulo acima, e veremos posteriormente nos enunciados dos líderes das “Igrejas

Orgânicas” contemporâneas, é no cristianismo neotestamentário que encontraríamos

este estilo de vida capaz de fazer surgir “uma só alma e um só coração”11. A seguir,

pretendemos aprofundar este debate a fim de construir algumas tentativas de

comprovação desta tese.

Em relação à importância do tema, há que se destacar também o modo como a

temática das origens do cristianismo assume destaque no âmbito dos debates

empreendidos pelos clássicos do pensamento social moderno: vejamos o enfoque de

Marcell Mauss e Marx/Engels12.

Marcel Mauss (1974) ao dissertar sobre a “noção de pessoa, a de ‘eu’” como

uma categoria do espírito humano, tem como principal pressuposto que a noção de

“eu/pessoa” não é inerente à condição humana. Esta noção não é uma consciência

intuitiva, mas decorre de um encadeamento de processos sociais historicamente

sedimentados. Mauss arquiteta um “museu de fatos” (MAUSS, 1974, p.371),

elaborando um complexo e erudito arcabouço etnográfico sócio-histórico-cultural da

11 Atos dos apóstolos 4,42. 12 Encontramos outras significativas contribuições dos clássicos. Max Weber (1864-1920), em busca das causalidades para a “racionalização” do mundo, procurando em diversas sociedades fatores que poderiam eclodir no capitalismo, faz interessantes abordagens em sua “Sociologia da Religião”. Destacamos também Peter Ludwig Berger (1929-), na obra “O Dossel Sagrado”, dedica alguns parágrafos à análise das raízes da religião cristã, encontrando as vertentes mais primitivas da secularização na transição da religiosidade “primitiva”, ou tribal, para uma religiosidade organizada e monoteísta.

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categoria “eu”. Neste ensaio, o autor almeja reconstruir uma genealogia histórica das

perspectivas na “noção de pessoa” em diversas culturas com diferentes noções de

indivíduo/coletividade. No subcapítulo “A pessoa cristã”, o antropólogo afirma que:

“Nossa própria noção de pessoa humana é ainda fundamentalmente a noção cristã”,

Mauss (p. 392). Para isso ele toma como base a Epístola aos Gálatas 3.38: “Já não sois,

um frente ao outro, nem judeu, nem grego, nem escravo, nem livre, nem homem, nem

mulher, pois todos sois um, em Jesus Cristo”. Maus afirma que esta unidade (Cristo e a

humanidade em uma só substância), misteriosamente similar a duas outras substâncias,

a trindade e as duas naturezas de Cristo, deu origem a uma noção de pessoa como

“substância racional indivisível, individual”: segundo Mauss “a passagem da noção de

pessoa, homem investido de um estado, à noção de homem simplesmente, de pessoa

humana”.

Uma segunda citação a ser feita parte de Friedrich Engels (1895). Engels parte

de seu interesse pela ordem política ao observar a religião cristão original.

Evidentemente compartilha com Marx a visão materialista e ateia do fenômeno

religioso. Engels privilegia a importância do cristianismo de origem na construção

histórica da sociedade ocidental. Diante da clássica assertiva sobre o caráter

entorpecedor da religião, poderíamos perguntar: houve colaboração dele à reflexão

dedicada ao Cristianismo Primitivo? Encontramos no ensaio Contribuição para a

História do Cristianismo Primitivo (ENGELS,1895) a seguinte observação: “Desde o

início, a diferença manifesta-se gritante entre este cristianismo e a religião universal de

Constantino formulada pelo concílio de Nicéia”. Seu esforço é estabelecer o paralelismo

estrutural entre o cristianismo original e o socialismo moderno; assim comentado por

Lowy (1998): “a lembrança do primeiro cristianismo está presente em todos os

movimentos populares e revolucionários”. Para Engels (1895), “o movimento [cristão]

recrutara a maioria de seus primeiros adeptos entre os escravos do Império Romano. Ao

substituir as diversas religiões nacionais, locais e tribais dos escravos, destruídas pelo

império Romano, o cristianismo foi a “primeira religião universal possível”. A tentativa

de Engels estava em fornecer autoridade e transferir a mística cristã para as causas

trabalhistas-marxistas. Dentro desta teoria, é na relação do comunismo e do

“Cristianismo primitivo” que se percebe um grande suspiro por igualdade social em

ambientes ideológicos aparentemente antagônicos. Para Engels e Marx alcança-se o

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comunismo pela revolução do proletariado, enquanto no cristianismo pelo víeis sócio-

religioso.

1.1 Em busca das experiências fundantes

O cristianismo, como todo sistema de crença, tem uma história. Requerer o

primado legítimo desta herança religiosa é um recurso recorrente de seus derivados

movimentos. Isso é perceptível quando há dissidências e disputa pela linhagem mais

“pura”. Assumir a proximidade dos sentimentos e pensamento dos fundadores é uma

tentativa de assegurar uma purificação da mensagem do grupo. Sendo assim, toda

religião é construída a partir de uma mobilização da memória coletiva.

Mircea Eliade (1972) também contribui, a nosso ver, na compreensão do

potencial dos processos de reconstrução da memória afetiva-religiosa que gravitam em

torno de seus elementos fundantes. Tomemos desse autor o conceito de “mito vivo”.

Este pode ser localizado em centelhas das narrativas eclodidas no evento sagrado

fundador da religião e em suas origens. Essa centelha instituínte tem a potência de criar

padrões de condutas, pilares institucionais e emocionais supratemporais que tem o

potencial de reatualizar o momento primordial (ou o Tempo Sagrado) das experiências

fundantes. Estas reatualizações são fundamentais para a manutenção do habitus de cada

religião. Apreende-se, através desta sua trajetória social, a rotinização do ritos e mitos

que fundamentam as religiosidades e suas formas, como uma habitus. Para Bourdieu

(1992, p.191) o habitus pode ser representado como “sistema de disposições

socialmente constituídas que, enquanto estruturas estruturadas e estruturantes,

constituem o princípio gerador e unificador do conjunto das práticas e das ideologias

características de um grupo de agentes”.

Para Eliade: (1972, p.47) “O homem religioso sente necessidade de mergulhar

por vezes nesse Tempo sagrado e indestrutível. Para ele, é o Tempo Sagrado que torna

possível o tempo ordinário”. Rememorar o Tempo Sagrado garante vivacidade ao grupo

religioso. Por conseguinte, através desta recordação dos elementos primordiais, é

possível reintegra-los ao cotidiano intramundano como se o mito estivesse lá nos

antepassados, mas também aqui e agora, através de uma substância mística. Eliade

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recorre ao termo “tempo forte”, referindo-se ao momento histórico onde o prodigioso se

manifestou plenamente. Assim, ao mesmo tempo que o “mito vivo” revela ao indivíduo

sua origem e lugar existencial-social, ele reitera a necessidade da reverificação da

partícula ígnea para a manutenção do presente. Portanto a chave de leitura proposta por

Eliade ajuda no entendimento da mancha histórica cultural produzida tanto no

“Cristianismo primitivo” como também na noção de um “tempo forte” universal dos

cristãos.

Eric Hobsbawn (2008), por sua vez nos lembra que muitas tradições que

parecem antigas são, na verdade, narrativas recentes inventadas com o objetivo de

imprimir continuidade em relação ao passado. Isto é, são tentativas de tornar imutáveis

alguns aspectos da vida social em contraste às constantes mutações que um sistema

social pode sofrer no mundo moderno.

“Por ‘tradição inventada’ entende-se um conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras tácitas ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente; uma continuidade em relação ao passado. Aliás, sempre que possível, tenta-se estabelecer continuidade com um passado histórico apropriado. [...] É o contraste entre as constantes mudanças e inovações do mundo moderno e a tentativa de estruturar de maneira imutável e invariável ao menos alguns aspectos da vida social” (HOBSBAWN, 2008, p. 9-10).

Assim podemos estabelecer que, para uma análise minimamente equilibrada, é

necessário observar o cristianismo como um fenômeno histórico. Eduardo Hoornaert

(1995) elucida esta questão ao propor que a religião cristã, para muitos devotos e

“convictos”, pode ser entendida como uma realidade “meta-histórica”, idealizada e

naturalizada como a religião definitiva, para além da concretude de um fenômeno que

subjaz em um tempo histórico. Hoornaert, ao observar o cristianismo como “uma

realidade histórica, formada por um processo histórico específico”, acentua que nossas

opções metodológicas não são coincidentes com a teologia ou à uma certa tentativa de

“catecismo”, recorrentes em pesquisa originadas em instituições confessionais.

Desta forma, é nossa intenção analisar a configuração das comunidades cristãs

originais a partir de sua eclesiologia13. Cabem aqui algumas perguntas: Será que, de

fato, os cristãos originais estariam comprometidos com o bem-estar da coletividade e

13 Entendida aqui como o estudo da organização da igreja e suas morfologias.

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em completa harmonia e coesão entre os indivíduos? Quais resistências sócio-políticas

os cristãos do primeiro século encontrariam com o avanço da religião no mundo

mediterrâneo? Qual a morfologia das comunidades emergentes quanto à identidade de

seus sujeitos e quanto às redes sociais familiares?

Para atingir tais objetivos consideramos ser importante retomar a trajetória da

família nas sociedades judaica, romana e cristã, levantando dados sobre o modelo de

interação entre família, sociedade e igreja cristã, isto é, acompanhando o núcleo familiar

do ponto de vista sociológico. Com isso verificaremos as alterações eclesiológicas da

insurgente religião cristã espalhada em comunidades bem distintas umas das outras e

com notadas diferenças político-teológicas. Nesse contexto ganha importância a

afirmação de que a Igreja neste período de sua história experimentava um estágio

romântico. Estaria correta a proposta de Justo González de que “é um erro comum entre

muitas pessoas idealizar a igreja do Novo testamento” (GONZÁLEZ, p.32)? Por isso,

no decorrer do texto, procuraremos iluminar conflitos étnicos-religioso, mutações de

crenças, hibridizações de cosmovisões inerentes aos vários cristianismos ao redor do

líder messiânico–carismático Jesus.

Cabe nesta discussão inicial relembrar o que afirma Cecília Loreto Mariz, sobre

a viabilidade do ideário do “Cristianismo primitivo” aplicado por ela ao tempo presente

no estudo das Novas Comunidades Católicas14. Assim se expressa Mariz:

“Acho difícil responder a essa pergunta, se de fato as novas comunidades conseguem viver esse ideário, porque projeto e discurso podem ser diferentes da realidade cotidiana, e me parece muito difícil fazer uma análise de uma realidade que terminaria por ser um julgamento: estaria ela sendo cristã como quer mesmo? Se elas conseguem viver esse ideário cristão de fato? Não sei, mas sem dúvida o ideário das novas comunidades é o ideário comunitário do cristianismo primitivo. Creio que isso também explica seu forte apelo para tantos.”15

14 A renovação carismática, a partir dos anos 1970, especialmente em meados dos anos 1980, fizera-se notar pela retomada de um ideário de vida comunitária ao redor da categoria nativa do "carisma". Além disso, as Novas Comunidades Católicas rapidamente ganharam destaque ao implementar na liturgia católica os cultos com ampla ênfase musical e espontaneidade; a exemplo do processo que acompanhou os protestantes na mesma época, fizeram brotar no seio da ICAR, as performances midiáticas e uma profunda inclinação para a vida comunal. (CARRANZA, 2009) 15 “O ideário das novas comunidades é o ideário comunitário do “Cristianismo primitivo”. <http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=2793&secao=307>. Acessado em 10/10/2013.

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1.2 Algumas questões teóricas preliminares

Este primeiro capítulo, sendo uma pesquisa realizada no campo das Ciências da

Religião, caracteriza-se, portanto, pela interdisciplinaridade. Por isso, como método de

pesquisa, é necessário realizar uma acurada verificação multidisciplinar dentro do

território comum formado pelas disciplinas e campos de estudos necessários para

organizar este debate de abertura sobre o cristianismo original, buscando construir um

todo coerente. Neste momento assumimos uma direção alternativa, mas não

concorrente, da proposta metodológica assumida no início da dissertação, na qual

apresentamos nossas referências teóricas gerais. Convém dizer ainda que debruçar-se

sobre a História e a Sociologia do “Cristianismo primitivo” é, antes de tudo, deparar-se

com processos históricos complexos diante dos quais requer acessar uma caixa de

ferramentas envolvendo análise nas áreas de literatura, sociologia, arqueologia,

antropologia, teologia. Os estatutos e limites das disciplinas e as latitudes

metodológicas16, para que esta tentativa seja razoável e ganhe densidade empírica,

move-nos para estabelecer certas limitações e demarcações necessárias, que convergem

nas formas possíveis de uma análise da história e cultura antiga.

Segundo Howard Clark Kee (1983, p 10), o primeiro a empreender um trabalho

sério na reconstituição do cristianismo das origens através da análise crítica das fontes

foi Ferdinad Christian Baur (1792-1869). Kee afirma que o primeiro estudo de Baur

tomou como objeto uma suposta unidade comunitária radical no seio da religião cristã.

Por meio da análise dos partidos existentes na igreja de Corinto - o partido paulino

liberto da lei e o partido petrino judaizante - verificou-se a existência de “conflitos e

contrastes de opinião desde os tempos mais remotos que o historiador pode traçar”

(KEE:10). O autor ainda destaca as importantes contribuições no final do século XIX e

no início do século XX dos teólogos Adolf Von Harnack (1851 -1930) e Rudolf

Bultmann (1884-1976) . Harnack, teólogo e historiador do cristianismo pretendeu

abstrair todas as infiltrações na religião cristão primitiva a fim de iluminar o que seria o

cerne, a essência de um cristianismo. Já os estudos do teólogo Bultmann são

reconhecidos pelo processo de desmitologização das narrativas canônicas, sendo um dos

principais fomentadores para o amadurecimento da teologia liberal.

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Pode-se ainda perguntar: quais são os documentos e historiografias nos quais

podem-se enquadrar nossos esforços? Seguiremos Chevitarese (2005, p.9), que ao

dissertar sobre as fontes disponíveis da vida de Jesus de Nazaré e do cristianismo antigo,

enumera “os manuscritos do Novo Testamento; as escavações arqueológicas; as

descobertas de Qumran (manuscritos do Mar Morto) e de Nag Hammadi, no Egito,

escritos judaicos e no segundo caso escritos gnósticos; e os testemunhos de fora do

ambiente judaico-cristão”.. Chevitarese afirma que “a história se faz com documentos”.

Ela pode ser acessada através do testemunho de documentações, materiais ou não-

materiais, tudo de que se pode inferir algo, são fontes de informações historiografias.

Chevitarese também ressalta que nos tempos das primeiras comunidades cristãs

a maioria das pessoas era analfabeta e os livros, rolos de papiros, nada práticos para a

leitura. Poucos dominavam a escrita. Os antigos decoravam longas passagens,

recorrendo a uma tradição oral. Além disso, o historiador destaca a subjetividade da

memória. Recordamos aquilo que atende aos próprios interesses. Memorizamos certas

passagens e suprimimos outras. Por conseguinte, fatos mais exotizados, como os

milagres bíblicos, seriam motivo de maior vitalidade neste processo de recepção,

memória e descrição. Logo os textos traduzem também um problema da alteridade

discursiva; um enaltecimento das perspectivas do próprio enunciador em relação aos

seus destinatários (CHEVITARESE, 2005, p. 9-14).

Por isso, optamos por realizar a nossa pesquisa por meio da análise dos textos

canônicos e de fontes subjacentes, às quais acrescentamos a análise de diversos

debatedores. Nosso percurso bibliográfico foi traçado a partir das próprias demandas e

perguntas surgidas no decorrer da pesquisa. Sobre os textos canônicos, Pedro Paulo A.

Funari (2006, p.12) afirma que

“Os pesquisadores têm se voltado, de forma interdisciplinar, para o estudo do momento central de origem e formação desse movimento social e religioso que continua mais atual do que nunca. Essas pesquisas bebem na tradição multissecular de exegese dos textos bíblicos, mas buscam instrumentos de análise na teoria social, que permitam entende como se deu a constituição das identidades cristãs”

Antes de prosseguir propomos conceituar “Cristianismo primitivo”. Para fins de

análise, compreendemos que é um período que vai do nascimento de Jesus (ano seis

antes da Era Comum) até meados da suposta conversão do Imperador Constantino, em

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312 E. C. Embora haja diversas tendências quanto ao assunto, optamos por este corte.

Por sua vez, este período pode ser divido em três partes: a) “Movimento de Jesus” - do

nascimento de Jesus Cristo, até sua crucificação. b) “Era Apostólica” (Ano 34-100),

morte de Jesus até a morte dos primeiros apóstolos. Período marcado pela propagção

geográfica do cristianismo para fora da palestina, sobretudo nas províncias romanas

através da atuação dos Apóstolos c) “Cristianismo pós-apostólico” (anos 100 até

meados do ano 300), período inicial da progressiva institucionalização do Cristianismo.

Além disso, é preciso frisar algo mais sobre o “Cristianismo primitivo”.

Podemos delimita-lo como um fato histórico. Porém, para além desta delimitação

possível, gostaríamos de ressaltar sua representação como um “espírito”, tal qual propôs

Max Weber em sua “Ética protestante...”, uma “conduta de vida”, uma entidade capaz

de organizar metodicamente o mundo, capilarizando-se na cultura e que, em um

determinado momento de seu desenvolvimento, divorcia-se dos significados de sua

causa primária. O que queremos propor não é comparar o “Cristianismo primitivo” ao

protestantismo de ascese intramundana, como propôs Weber, mas tão somente utilizar

sua originalidade vernacular e sugerir o “Cristianismo original” como uma Zeitgeist, em

suma, o conjunto de “climas emocionais”. Resumidamente, o “Cristianismo primitivo”

como um horizonte de afetos perseguidos por todas dissidências ou um “espírito” de

gradientes múltiplos, mas que subjaz toda tentativa de encontrar-se com o fenômeno

causal da gênese cristã, no mito original.

A esta altura nos reportamos a uma pergunta de Paul Marie Veyne (1995): a

história “não faz os fatos reviverem”? Como localizar o cristianismo antigo em sua

amplitude, marcados por inúmeras agências e conflitos, continuidades e rupturas,

diversidade autoral e circulações étnico - culturais? Ainda, como suspeitar o

supracitado cristianismo original, avaliando-o através de suas documentações e fontes,

uma vez que a história, ainda conforme Veyne (1995), afirma que o ofício do

observador - historiador não é “puro”, é realizado a partir dos próprios projetos e

edições, olhares e perspectivas, tomando decisões de descrição e interpretação durante

seu percurso de análise, privilegiando tramas em detrimento de outras e assim construir

um tipo de literatura que contenha insights e subjetividades cotejadas diante de uma

série documental.

Concordando com Pedro Paulo A. Funari (1995), para quem os objetos de

estudo antigo, como documentos, vestígios materiais, artísticos e arqueológicos, são

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construções complexas da realidade e podem ser acessados pela análise do discurso,

introduzidos pela moderna semiótica, pois os mesmos tem autoria, públicos e objetos

específicos, vozes polifônicas e devem ser analisados de múltiplas maneiras, diante de

diferentes paradigmas e disciplinas.

Porém, as pesquisas com fontes históricas nem sempre valorizaram tais “vozes

polifônicas”. Para Paulo Celso Micelli (1999) até o início do século XX a disciplina

“História” era elaborada a partir de relatos de “grandes fatos” em que personagens

históricos tornavam-se verdadeiros heróis do passado. Neste viés, eventos tornavam-se

magistrais e, a partir de sua documentação, “oficialmente verdadeiros”. Os fatos,

descritos a partir de um documento oficial era considerado de indubitável verdade, com

influências positivistas que tentavam mostrar os fatos, reconstruindo uma realidade tal

qual realmente aconteceu enaltecendo feitos heroicos e magistrais, o que se considera

ser uma “história dos vencedores”. Portanto, diante do historicismo positivista, a

história sempre será o registro dos reis, papas, generais e bispos, datas importantes e

nacionais, eventos históricos que causaram grandes rupturas.

Este contexto não torna possível a dialogia, a polifonia de vozes e diferentes

tramas que compõem uma análise histórica que acolhe réstias, coleta detalhes para

compor sua tapeçaria que privilegia texturas e interlocutores diversos e subalternos.

Aguçados às casualidades e histórias cotidianas, surge uma nova geração de

historiadores constituídos ao redor do periódico Annales d'histoire économique et

sociales: A Escola de Annales. Nos anos de 1920, época da crise de 1929 e das duas

grandes guerras mundiais quando a utilização de pesquisas enviesados positivamente

que tomavam por base os grandes processos e minimizava as entrelinhas da vida,

privilegiando as grandes estruturas e desconsiderando os interlocutores-sujeitos ou as

“micro histórias”; correndo-se o risco de aviltar a vida humana. A partir desse escopo a

tarefa do historiador se torna a de mergulhar como protagonista em diferentes ritmos,

interlocutores e escalas. Sobre isso regista Micelli (1999, p. 31): “Uma sociedade com

os seus tipos humanos, os seus hábitos e as suas ações, na sua originalidade mais

irredutível e, ao mesmo tempo, mais cotidiana; a naturalidade desse quadro, que não

ofusca nenhuma abstração”.

Roger Chartier (1994, p. 8) propõe a seguinte questão: “Qual é a distância entre

o autor na sua origem e neste seu ponto de chegada?” As percepções do social estão

inseridas em um jogo de estratégias e práticas que impõe a construção de uma

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“autoridade” em seus enunciados, considerando os pequenos geradores de classificação

e de percepção, próprios de cada grupo ou meio, incorporados sob a forma de categorias

mentais e de representações coletivas nas demarcações da organização social. Nos

estatutos da história cultural esta intenção de identificar como uma realidade social é

construída, pensada e descrita.

Deve-se observar que as representações do mundo que tendem a ser

universalistas não são neutras, representam o projeto dos interlocutores que as

enunciam, conforme já escreveu Chartier (1994, p. 17-18). De igual modo, Eliane

Moura da Silva (1997, p.7) contribui também, dentro da perspectiva da História

Cultural, onde o domínio, segundo a historiadora, recai sobre a análise de um quadro

dos fenômenos religiosos múltiplos, onde se pretende ressaltar as construções de

identidades fluídas e memórias coletivas. Logo “para estudar os fenômenos religiosos,

o historiador deve sempre estar atento ao uso e sentidos dos termos que em

determinadas situações geram crenças, ações, instituições, condutas, mitos, ritos etc.”.

Para Pedro Paulo A. Funari (2010), apenas a partir da Segunda Guerra Mundial

(1939-1945) houve um questionamento em relação à homogeneidade social propalada

desde o fim do século XVII, quando os nascentes estudos sociais enfatizavam uma

coesão social, a luz de uma racionalidade positivistas, e as ciências humanas

procuravam entender a sociedade como um organismo coeso. As crises sociais eram

encaradas como anomalias nos estudos de Émile Durkheim (1858-1917). “A crise moral

e política dos anos sessenta estimulou vasta manifestação de busca de identidade social”

(KEE, p. 14) e os movimentos pelo direito das minorias (emancipação feminina, direitos

dos jovens, levantes contra a guerra do Vietnã) expuseram o “projeto de sociedade

monolítica (FUNARI, 2010, p.11) e evidenciaram um interesse pelas sociedades em

outras escalas e diversidades. Com a implosão dos antigos contextos que conferiam

homogeneidade às identidades, Funari (FUNARI, 2010, p. 13) lança um olhar

apontando para alguns aspectos metodológicos de importância na discussão do assunto:

“A partir da década de 1960, a partir também das pesquisas empíricas de campo, foi possível detectar a fluidez das identidades, nos indivíduos e nos agrupamentos humanos. Essa perene mudança foi atribuída a diversos fatores, desde interesses materiais e imateriais e objetos, como fatores psicológicos ou simbólicos. De qualquer forma, as identidades passaram a ser consideradas sempre no plural e em constante mutação. Esse movimento afetou, de forma decisiva, o estudo do mundo antigo, que ainda era muito marcado pelos modelos normativos e pela analogia direta entre o antigo e o moderno”.

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Por isso, ainda segundo Funari (2010, p. 218), “as fontes escritas partem sempre

de um ponto de vista que reflete interesses de classe, de grupo, de ideologia, de modo

que são construções altamente subjetivas e enviesadas” e aborda a inserção de um

estudo da cultura material (no caso, arqueológica) para entrecruzar interesses e desta

maneira fornecer mais informações sobre o mundo em que viveu Jesus. Respondendo à

pergunta de “como a arqueologia [pode] interagir com temas ligados à fé e ás crenças?”

(2010, p. 225) O autor remete à “arqueologia bíblica” que inverteu o papel de “serva do

texto bíblico” para contribuir de maneira ativa para a compreensão do funcionamento

das redes da antiguidade e não tão somente legitimar as conclusões dos exegetas.

Como notamos, os estatutos e limites das teorias e as latitudes metodológicas

nos leva a estabelecer as fronteiras e as demarcações de variadas disciplinas que

convergem nas formas possíveis de análise da história e cultura antiga que para Gerd

Theissen (2009, p. 11) está : “a fim de descobrir o que movia os primeiro cristãos no

mais íntimo de seu ser, é preciso perscrutar por inteiro a vida deles e inserir suas

afirmações teológicas em contextos semiótico, social, psíquico e histórico que não são

imediatos ´teológicos´”.

Por conseguinte, concordamos com Wayne A. Meeks (1992, p. 15), quando

afirma o “uso [...] a teoria aos poucos, à medida que vai sendo necessário e onde

convém”. Para o sociólogo a sociedade é encarada como um processo, onde as culturas

são criadas continuamente através de interações por meio de símbolos no campo das

experiências. A religião é parte integrante deste tecido, e como uma subcultura participa

da construção desta rede de significados. E procuramos estar próximos

metodologicamente à Clifford Geertz (2008) quando considera a cultura como um

“tecido de significados”, interpretados através de uma “descrição densa” e cujos

entrelaçamentos dá sentido ao mundo. Desta forma, atentos ao modo como os cristãos

agiam, analisaremos ecleticamente, selecionando formatos da caixa de ferramentas.

Desta forma, um dos aportes que este exercício oferece à pesquisa é de

desenvolver um debate de história das religiões comparadas privilegiando a “micro

história” e as tramas e redes formadas pelos indivíduos. Pretendemos, ao desenrolar da

análise, compreender o arco histórico-social no cotejo de faces diferentes da mesma

moeda, por um lado, a religião marginal (“de margem”) do incipiente “Cristianismo

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primitivo” e, de outro, seu horizonte contemporâneo, quando a religião cristã, em suas

várias vertentes, assume o posto de produtora sócio religiosa majoritária no mundo

ocidental. Conforme propõem Filoramo e Roda (1997, p. 7):

“Conclui-se pela necessidade de uma história por assim dizer comparada, isto é, que inscreva em seu próprio código a tensão a comparar, continuamente o fluir das instituições, das práticas e das crenças cristãs com as contemporâneas instituições, práticas e crenças pagãs, a fim de evidenciar melhor, pela comparação, continuidades e diferenças, empréstimos e especificidades”.

1.3 - Identidades e comunidade no cristianismo original: sombras e luzes

O problema que diz respeito à origem e a evolução da organização igreja é um

dos mais controvertidos e difíceis da história eclesiástica. Deste modo, é para a

organização igreja que devemos nos voltar para compreender como, em seus períodos

originais, modelavam-se as identidades cristãs primitivas. As contribuições de

pesquisadores contemporâneos continuam a depurar as ingenuidades das narrativas

predominantes até o passado recente, purgando uma perspectiva cândida do germe do

cristianismo.

Como em toda pesquisa histórica faz-se necessário delimitar o método e o

período a ser analisado antes de se aprofundar na questão. Retomamos este ponto para

uma última fase, de ajustes finos. Seria falso afirmar a existência de um único

movimento “puro”, sem considerar que o Movimento de Jesus foi sucedido por vários

outros movimentos, com diversos nomes e práticas. Podemos citar alguns: paulino,

judaico, gnóstico, monástico, cenobítico, entre outros. Afinal, quando falamos do

“Cristianismo primitivo”, estamos falando de qual cristianismo? Cada qual com suas

ênfases e paradigmas, acreditavam trazer consigo a mensagem de Jesus. Daí a proposta

de colocar nome a este subtítulo de “sombras” e “luzes”.

Diante desta questão seguiremos os critérios propostos por Gerd Thiessen em

“A religião dos primeiros cristãos: uma teoria do “Cristianismo primitivo” (2009). Seu

método é o da “plausibilidade contextual” e fazemos uso dele como categoria

epistemológica para nossas indagações. Lançaremos mão do sistema formulado por

Theissen, pois “nos dá a chave para ler a história de Jesus”. Através do processo

metodológico proposto pelo autor, torna-se possível a leitura de Jesus e seus

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coadjuvantes em seu tempo, assumindo os lugares dentro de variados ambientes e em

diferentes comunidades de interpretação conforme sugere Sean Freyne (2008, p. 12).

Esse autor sustenta que a teoria de Theissen, sobre a “plausibilidade” permite pensar o

objeto e as narrativas conflituosas dentro de um quadro maior, em consonância com o

contexto cultural de seu tempo. O método de Thiessen se aproxima das considerações

de Wayne A. Meeks (1996) quanto ao estreitamento metodológico e com a definição de

que a religião é um “sistema cultural de sinais” formulado por Clifford Geertz (2008, p.

65-91).

Outro aspecto norteador deste empreendimento é a proposta de Leonildo

Silveira Campos (1997, p. 170), ao assinalar que os estudos sociológicos permitem aos

pesquisadores verificarem “como foram criadas e sobrepostas as camadas de

interpretação produzidas pelos cristãos daquela época, na vivência diária da mensagem,

originalmente anunciada por Jesus de Nazaré”. Por isso, as pregações de Jesus, os

evangelhos, os processos de canonização, foram organizados de acordo com processos

comunicacionais/políticos complexos, seguindo o fluxo de institucionalização das

comunidades originais, tornando nebuloso o horizonte para a captura de um tipo ideal

de “Cristianismo primitivo”:

A complexidade dos cristãos do primeiro século, exteriorizada nesses e em outros episódios de negação da sociedade organizada, nos impede de encararmos com seriedade as várias tentativas de ´volta a igreja primitiva´, existentes em todos os grupos cismáticos, inclusive nos pentecostais. É preciso que reconheçamos que “Igreja Primitiva´ é apenas um tipo ideal recriado muito mais a partir da imaginação do que de evidências históricas. Daí a violência apologética à verdade dos fatos, a reconstrução feita por alguns grupos [...] de um ponto de referência idealizado, ao qual que, entre outros pecados, estaria o de ter abandonado a ênfase carismática e a centralidade do Espírito Santo. Esta reconstrução [...] só é possível se abandonarmos dezenove séculos de cultura cristã[...] e a constituição da igreja cristã como movimento e instituição” (CAMPOS, 1997, p. 169)

Nesse sentido, é importante pensarmos no Movimento de Jesus dotado de um

programa de insurgência religiosa, inserido em uma sociedade já penetrada por diversas

religiões. A personagem principal deste momento é seguramente Jesus: o profeta

carismático nômade, que junto ao seu núcleo inicial de seguidores, operava sinais e

milagres como comunicação da proximidade do Reino de Deus. No entanto, os textos

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canônicos sugerem pouca sistematização neste grupo inicial de discípulos, assim como

poucas as atividades que podem ser consideradas como institucionais neste conjunto

inicial. Realizam-se refeições e atividades cotidianas em conjunto, impondo-se somente

dois sacramentos, o batismo e a ceia, Já em um segundo momento seria interessante

recompor o cristianismo “pós pascal” em expansão, analisado em sua composição

básica: as redes familiares (judaicas, romanas e gregas que se convertiam) e o

surgimento destas igrejas domésticas na cidade. Diante da fértil atuação dos apóstolos

progressivamente estas congregações ganhavam um certo padrão e uma certa

homogeneidade teológica, isto é, eles se institucionalizavam. Esta já não era a situação

no século IV quando do surgimento de um cristianismo institucionalizado conforme o

modelo do império.

1.3.1 - Movimento de Jesus

Como eram os processos de interação no chamado Cristianismo de origem? Para

John Drane (1985, p. 10), a igreja “começou com a vida [...] de Jesus de Nazaré” (p.

10). Assim, embora moldada por diversas tendências e, sobretudo, controvérsias em

relação à autoridade das fontes e as metodologias empregadas, o início do cristianismo

inexoravelmente se assenta nas figuras de Jesus e sua comunidade germinal de

discípulos.

Theissen & Merz (2004, p. 21-33) destacam cinco fases na pesquisa sobre a vida

de Jesus: 1) “Os impulsos críticos para a questão do Jesus histórico” por H. S. Reimarus

(1694-1768) e David Friedrich Strauss (1808-1874). Reimarus foi pioneiro na

interpretação da literatura da “religião da razão”. Seu ponto de partida foi a premissa de

que a pregação de Jesus só pode ser compreendida dentro de seu contexto histórico.

Strauss, discípulo de F. C. Baus e F. W. Hegel, aplicou aos evangelhos o conceito de

mito. 2) A fase da pesquisa “liberal” sobre a vida de Jesus, cujo representante maior foi

Heinrich Julius Holtzmann (1822-1910). Holzmann evidenciou a crítica literária sobre

as fontes mais antigas sobre Jesus (O evangelho de Marcos e a fonte Q). 3) “o colapso

da pesquisa sobre a vida de Jesus”, na virada para o séc. XX, enfraqueceu-se o

liberalismo teológico; 4) “A nova ´pergunta´ pelo Jesus histórico”, desenvolvida dentre

os discípulos de Bultmann, quando “no lugar da reconstrução crítico literária das fontes

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mais antigas na ‘antiga’ pesquisa da vida de Jesus da teologia liberal, entra em cena a

metodologia da comparação que emprega a história das religiões e a história da

tradição: ´o critério da diferença´” (p. 26); e por fim, a quinta fase 5) A third quest, temo

cunhado por T. Wright/S. Neil. Ainda Chevitarese & Funari (2012) mostram como

diversas escolas e movimentos tangenciaram as pesquisas acerca da figura de Jesus,

sobretudo com os influxos do movimento europeu que privilegiava o uso da razão, a

erudição e a ordenação da natureza para encontrar a verdade, dentro do espírito do

iluminismo.

É digno de nota situar o Movimento de Jesus a partir dos clássicos da Sociologia

da Religião. Tomando-se por base o carisma, um conceito chave forjado por Max

Weber (1864-1920) e desenvolvido por Pierre Bourdieu (1992), podemos inferir sobre a

tensão entre “profeta” e “sacerdote” já presente no ministério de Jesus. Estes termos

weberianos permitem a clivagem do messias cristão como o tipo carismático. Basta

seguir a tendência do messias à dissidência e a desordem e a maneira como Jesus reagiu

contra a classe religiosa operante em sua sociedade; foi criado no seio do judaísmo e de

lá insurgiu como um pregador carismático do “Reino de Deus”. A sua pregação soava

como uma mensagem subversiva aos ouvidos habituados às observações das leis

judaicas e subordinação ao governo romano. Como taumaturgo, Jesus de Nazaré

expulsou demônios, curou enfermos e os relatos iluminam seus feitos miraculosos que

alimentaram a fé de inúmeras gerações, rompendo com a ordem estabelecida em seu

tempo. Para Guy Bonneau (2003, p. 9) “Em várias religiões, é o profeta que traz em si o

carisma”, e que “Weber definiu o profeta como um indivíduo carismático, que se

insurge contra a estrutura religiosa estabelecida, com a finalidade de provocar eventuais

mudanças ou então de fundar uma entidade nova e diferente, nela reunindo os

simpatizantes de sua nova ideologia” (p. 9).

Segundo Howard Clark Kee (1983) o tipo ideal weberiano profeta “ético” é o

tipo carismático mais apropriado para nossas intenções. Assim, para Weber este líder

encontra-se imbuído da convicção de uma vocação particular, e é confiante que suas

ações estão em harmonia com as do divino. “A potência de sua habilidade carismática

manifesta-se nos dons especiais que possui (como curar ou a capacidade de prever) e na

eficácia de sua pregação” (KEE, 1992, p.48)

Tomando como base a metáfora weberiana, se por um lado o sacerdote faz a

manutenção do status quo, cabe ao profeta carismático fazer implodir a estrutura

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tradicional. Weber auxilia a fundamentar a constante tensão presente no Novo

Testamento - em um polo o cristianismo de Jesus de Nazaré, caraterizado pela ruptura

com os dogmas reguladores e subversor dos sistemas; e por outro, segundo o autor, o

processo de rotinização deste carisma, quando a novidade efervescente tende a se

estabelecer e perde a vitalidade. Neste momento se estabelecem normas e rotinas, por

meio da “rotinização do carisma”. Para P. L. Berger e T. Luckmann (1973, p. 79): “A

instituição ocorre sempre que há uma tipificação recíproca de ações habituais por tipos

de atores. [...] qualquer uma dessas tipificações é uma instituição. O que deve ser

acentuado é a reciprocidade [entre os atores] das tipificações”.

Dito isto, antes de prosseguir, é importante munir-nos de um breve esboço

biográfico acerca de Jesus, esboçando sua vida e atuação.

Pouco se sabe sobre o Jesus da história e o que sabemos dele é por meio de

relatos “hagiográficos”. Porém o que conhecemos sobre a práxis cotidiana de Jesus

junto a sua comunidade de discípulos (“dos 12”)? Gunther Bornkamm (2005, p .100)

sustenta que os “evangelhos falam muito mais de suas pregações, de suas discussões

com os adversários, de suas curas e da ajuda que ele presta aos que sofrem [...] o povo

corre a ele, os discípulos seguem, mas também seus inimigos entram em ação e se

multiplicam”. Por conseguinte, é uma tarefa difícil estabelecer como de fato era o dia a

dia do rabi Jesus, uma vez que a tradição oral do conteúdo religioso tende a enaltecer

fatos cotidianos e privilegiar atos extraordinários. No entanto, podemos arriscar a

construção de certo cenário.

Gerhard Lohfink (2011) propõe uma divisão da comunidade inicial do

“carismático” nazareno, em dois diferentes segmentos de discípulos. Primeiro os

“estáticos”, aqueles que acolheram sua mensagem, no entanto permaneciam em suas

aldeias aguardando o reino vindouro. Neste grupo podemos incluir José de Arimatéia

(Mc 5,43), também recordar Zaqueu, que prometeu restituir aqueles aos quais causou

dano financeiro quadruplamente (Lc 19,8) e doar metade de seus bens aos necessitados

e, ainda citar, Lázaro (denominado amigo de Jesus) (Jo 11,1) que permanece em

Betânia.

O segundo grupo de discípulos são os itinerantes. Ainda segundo Lohfunk

(2001, p. 56-57), “bem mais delimitado”. São os mais próximos e sobre os quais Jesus

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exercia certa responsabilidade17 e tutela pessoal. Seus alunos-discípulos se

diferenciavam da relação entre os alunos dos rabinos, estes interessados em aprender da

Lei; os discípulos de Jesus o seguiam porque compreenderam que o Reino estava

próximo e assimilavam uma mensagem mais prática. Eles deixavam suas profissões e

famílias (Lc 9,59; Mc 1,16-20). Para Lohfunk (2001, p. 57), “Jesus exige, portanto, dos

seus discípulos a renúncia decidida à própria família [...] em vez de sua família e de

todas as ligações de sangue e amizade entra a comunhão de vida com Jesus”.

Neste grupo inicial estavam Maria, mãe de Jesus, os apóstolos Pedro, Tiago e

João, Filipe, Tomé, Bartolomeu, Mateus, Tiago (filho de Alfeu), Simão (Zelote) e Judas

(filho de Tiago) e Matias substituto Judas, que se suicidou. Como dito acima, esta

agremiação inicial era reconhecida como os do “O Caminho”, ou o Grupos dos 12.

Estavam convencidos de que tinham uma mensagem que todo o Israel devia ouvir”.

Jerusalém era o centro da autoridade do judaísmo e a mensagem deveria ser difundida a

todos. Jesus levou uma vida itinerante junto a estes seguidores. Abrigavam e

alimentavam-se nas aldeias, em que permaneciam por pequenos prazos. Era

acompanhado, além dos doze Galileus, por um círculo de pessoas que o admiravam e

desejavam sua pregação e atos mágicos. Este seu nomadismo era recusado por alguns,

que, como dissemos, preferiam permanecer em suas cidadelas (aparentemente, após sua

morte, o estilo “nômade” ficou restrito aos apóstolos e profetas. (SKARSAUNE,145).

A análise das fontes aponta para a existência de um “Movimento de Jesus” que

não se deixa condicionar pelas circunstâncias religiosas de sua sociedade. Nas tensões

da sociedade em que vive, dominada por religiosos tradicionalistas vinculados a vários

tipos de dominações estrangeiras, políticas, dogmáticas e ideológicas, Jesus surge como

um homem livre, sem reconhecer os limites impostos pela sua própria cultura religiosa.

Isso implicava em nutrir em seus seguidores experiências religiosas outsiders, que não

constavam no cardápio do senso comum religioso de seus contemporâneos. Estas

experiências vividas pelos discípulos foram fundamentais para consolidar o posterior

grupo carismático e extático dentro das comunidades paulinas. Desta forma, as

narrativas de Jesus apontam que o líder messiânico valorizava a vida interior,

apregoando a ideia de piedade e não uma religiosidade de obras meritórias e de religião

17 Verificando Mc 2.24 - “Vê! como fazem ele o que não é permitido fazer no sábado?”, percebemos que “aos olhos de seus vigiais, é responsável por seus discípulos, assim como os doutores da lei são responsáveis por seus alunos” para Lohfinkk, (2011, p. 57)

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cerimoniais.

O insurgente profeta não se limita às regras dos fariseus: omite os rituais

purificatórios e tradições excludentes como a cura ao sábado, não da atenção as

prescrições religiosas (Mc 1,29; 3,1-7a); não respeitar os preceitos sobre o puro e o

impuro nas prescrições alimentares (Mc 7,1-23); colocar-se contra a lei religiosa que

proibia caminhar com pessoas de má fama, relacionava-se com prostitutas, cobradores

de impostos e categorias marginalizadas, como no caso das mulheres que também o

seguiam.

Jesus também ironiza a necessidade dos dirigentes religiosos-políticos de

sobressair-se em solenidades exageradas e na exploração dos mais fracos: chama-os de

“bandidos” (Mt 21,13), denunciando-os, quanto a sua hipocrisia. Ainda diz a

preferência de Deus pelas prostitutas aos sacerdotes saduceus (Mt 21,28-32). Quanto às

autoridades civis, Jesus não se amedrontava frente a Pilatos ou de Herodes (Lc 13,31s;

Lc 23,6-9), conforme Juan Mateo & Fernando Camacho (1992, p. 63-76).

As pesquisas de Mateo e Camacho (1992, p. 69) revelam que Jesus “nunca

aparece nos evangelhos participando de atividades no templo”, a não ser quando

participando de festas e utilizando-as como espaço público de pregação. Jesus muda o

conceito da relação do espaço do sagrado, propondo novas liturgias. Suas críticas ao

próprio culto voltam-se ao fato de que nestes rituais eram realizadas atividades

esplendorosas, sustentadas pelos impostos religiosos e donativos dos fiei - sublinhando

o contraste entre os sacrifícios oficiais e a pobreza/opressão do povo sob domínio

romano. Apesar de frequentar a sinagoga, seu objetivo era iluminar novas perspectivas

religiosas aos seus frequentadores. Diante de um doutrinamento farisaico, o culto, para

o messias Jesus, não requeria espaços sagrados (João 4,21): “O culto e a própria vida

animada em amor” (MATEOS & CAMACHO,1992, p. 69).

A luz do que já foi exposto podemos notar a antinormatização de suas práticas e

contextos, era importante para Jesus deixar uma sociedade minimamente constituída por

seus seguidores com determinado grau de princípios régios. Desta forma, ao invés de

sistemas teológicos sofisticados, sugeriu aos seus seguidores os ritos mais simples: o

batismo e a ceia. Para Robert Hastings Nichols (1997, p. 21-22):

“Ele não modelou qualquer organização ou plano de governo para esta

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sociedade. Não indicou oficiais para exercerem autoridade sobre os membros de tal organização. Credo algum prescreveu para ela. Nenhum código de regras lhe fora imposto. Não prescreveu ordens ou formas de culto. [...]. Deixou a igreja livre para escolher as formas de organização e de culto, afirmações de crença, métodos e trabalho, etc.“

Com essa afirmação Nichols (1997) nos leva a compreender as experiências da

comunidade inicial como ontologicamente vinculadas ao líder Jesus. Como ele não

sugeriu qualquer padrão sistematizador para seu primevo grupo, após sua morte este

novo grupo basicamente era vitalizado pela sua memória viva, um “jeito de viver” em

que ele mesmo permanecia latente na comunidade, na vida cotidiana, no modo de

conduzir esta coletividade como lhes parecerem mais apropriado.

Desta forma, para manter certa homogeneidade doutrinária que distinguisse a

Igreja de Jesus dos demais movimentos coetâneos, surgia aos primeiros cristãos a

necessidade de definir fronteiras. Em resposta a esta lacuna, despontava a atuação

emergente dos tutores teológicos, função certamente logo ocupada pelos apóstolos.

Assim, do efervescente grupo de seguidores de Jesus, a Era Apostólica foi marcada por

conflitos e tensões no processo de sistematização das igrejas que emergiam no

Mediterrâneo. Para Campos (1997, p. 247): “Com a desaparecimento da primeira

geração de fiéis cristãos, surgiu a necessidade de sistematizar as narrativas”. Assim,

concordando com a análise de Peter Ludwig Berger & Thomas Luckmann (1973, p. 77).

Para Berger & Luckmann, o movimento inicial se petrifica no decorrer do processo para

que suas próprias fronteiras e identidade religiosa fossem estabelecidas, assim sendo

“toda atividade humana está sujeita ao hábito, toda ação freqüentemente repetida torna-

se moldada em um padrão, que pode em seguida ser reproduzida com economia de

esforço”.

No próximo passo, notaremos um arco do Movimento de Jesus até os limiares da

institucionalização definitiva da religião cristã (“constantinização”), imbricando as

diversas comunidades emergentes no mediterrâneo. Apesar de heterogêneo, veremos

que compartilhavam certos sentimentos comuns (por exemplo, a esperança escatológica

da volta do messias). No entanto, com a expansão progressiva daquilo que

posteriormente viria a ser considerado o “cristianismo”, estes novos grupos nasciam

híbridos, com cores regionais e interpenetrados religiosamente a medida que indivíduos

advindos de outras crenças traziam ao nascente cristianismo resquícios de sua devoção

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anterior.

Neste ínterim, como veremos mais adiante, o movimento cristão se expande

impulsionado pelo vigor das viagens missionárias do apóstolo Paulo, contando com a

hospitalidade de redes familiares espalhadas pelo interior do império. Paulo atuou

capilarmente no ambiente urbano, em diversas cidades, culturas e entornos filosóficos.

Iniciada a perseguição aos cristãos, o cristianismo dilata-se para além de Jerusalém em

várias cidades - Éfeso, Corínto, Antioquia, etc. Sobre este aspecto, Wilisson Walker

observa que: (1967, p. 67)

“Um dos problemas mais controvertidos e difíceis da história eclesiástica é o que diz respeito a origem e a evolução da organização da Igreja. Isso se deve ao número reduzido de provas de que dispomos. É provável que o desenvolvimento da organização tenha sido diferente nas diversas localidades. As congregações cristãs não tinham todas as instituições de forma idêntica”.

1.3.2 - O surgimento das Ekklésias

Para Ekkehard W. Stegemann e Wolfgang Stegemann (2004) os cristãos iniciais

se reuniam em pequenos grupos autodenominados ekklésias, uma palavra grega

utilizada para representar “comunidades domésticas e para todos os crentes em Cristo”.

Nesse texto, Stegemann & Stegemann (2004, p. 297) registrou que Ekklésia é:

“Comunidade, reunião comunitária, igreja [...] no centro de uma história social deve estar a construção de ekklésias como uma grandeza social ou empírica, em que determinadas pessoas se reuniam, mas que também tinha vínculos comunitários que iam além das reuniões concretas”.

Segundo esses autores, estas reuniões aconteciam “predominantemente em casas

particulares”, porque “não existia um prédio com função sacral propriamente dito

(igreja)”. É por meio de Stegemann & Stegemann (2004, p. 132-133) que podemos

deduzir que o número de membros estava em conformidade com a capacidade física de

cada residência, estimando-se uma quantidade modesta de membros em cada

comunidade.

O debate proposto por Stegemann & Stegemann (2004, p. 298) sobre o conceito

da ekklésia no protocristianismo, destaca duas tendências quanto ao seu significado. Em

primeiro lugar ekklésia é uma “reunião efetiva”. Neste conteúdo semântico, a

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linguagem neotestamentária está vinculada ao sistema de linguagem comum judaica,

“não religiosa”, cujo significado é simplesmente uma “assembleia política dos cidadãos

com direito a voto (somente homens) de uma cidade”; tanto no conceito extra bíblico

pela comunidade judaica e pagã como na interpretação bíblica, ekklésia significa o ato

de “reunir-se”. Assim, ainda segundo os autores, as ekklésias na experiência social

“primitiva”, incluindo em outras regiões da Ásia menor e Grécia (onde circulavam as

cartas de Paulo), o vocábulo era entendido como sendo uma “reunião”. O segundo

conceito para ekklésia é o de “comunidade”. O conceito também pode designar pessoas

sob a verve de uma identidade, implicando um grupo com determinada pertença,

reunidas ou não. Portanto, para Stegemann & Stegemann (2004, p. 299-300) “[ekklésia]

sugere que a comunidade crente em Cristo pode ser entendida como um tipo de

comunidade doméstica ou família [...] predominante estabelecidas em ambiente citadino

que registrava uma comensalidade entre diferentes: judeus e gentios, entre os membros

judaicos e não judaicos”.

Meeks (1992, p. 121-122) também aponta para o fato de que nas epístolas

paulinas, comunidades específicas são traduzidas como “a assembleia na casa do

fulano”. Desta forma, outros grupos de ekklésias foram fundados em residências

particulares, como Aristóbulo e de Narciso (Romanos 16.10). Por sua vez, o livro de

Romanos, no novo testamento, nos capítulos 16 e14, apresenta uma lista extensa:

Assíncrito, Flegante, Hermes, Pátrobas e Hermas, Filólogo, Júlia, Nereu e sua irmã,

Cloé (1 Coríntios 1.11) e na casa de César (Filipenses 4.22). Algumas casas eram bem

amplas; e o conceito de família, como veremos adiante, incluía não só a família

consanguínea, mas também os escravos e funcionários em geral. A “célula básica” do

movimento cristão era as ekklésias do mundo grego-romano.

Além disso, como sustenta Meeks (1992, p. 122), em determinados encontros,

várias destas “assembleias” se serviam de uma só residência para realizar seus encontros

distritais (1Coríntios 16.15s; Romanos 16.23). As ekklésias ainda se reuniam a céu

aberto ou em salas alugadas (At 20.7, 19,9: scholé/schola). Seguramente poderia haver

diversas dessas ekklésias em cada cidade. Consequentemente, não é incomum encontrar

abordagens sore os cultos dos primeiros cristãos configurados a partir de Ekklésias,

reuniões predominantemente domésticas. Logo este formato tem raízes em seu

horizonte cultural. O culto doméstico não era um elemento diferenciador para os

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cristãos originais, pois era muito comum a prática de devoção às outras divindades ao

redor do lar.

1.3.3 – O papel das redes familiares na expansão do cristianismo

Nas sociedades antigas, assim como na antiga Palestina, “família” tinha um

papel e um significado bem diferente do que entendemos na sociedade contemporânea.

O núcleo familiar representava uma rede de segurança para o indivíduo. Nos entornos

das populações que circulavam no Mediterrâneo antigo resistia-se ao processo de

atomização no qual a pessoa-indivíduo era a unidade mínima da sociedade. Até porque

o indivíduo e a família faziam parte de um tecido social mais amplo. As famílias

compunham a unidade mínima dos grupos de pertencimento da composição social,

sendo que a cidade ou aldeamento representava uma escala mais ampla, ou expandida,

da família, conforme John Paul Meier (1994, p. 312).

A esta altura julgamos ser necessário uma breve fundamentação de ordem

antropológica sobre o sistema de parentesco judaico. Notemos ser ele um produto

histórico-cultural e por isso não deve ser encarado como a-histórico ou “divinizado”. O

tema do parentesco em geral é caro a Antropologia desde os seus primórdios, sobretudo

as análises clássicas relacionadas às sociedades “ditas” primitivas. Lewis Henry Morgan

(1974) iniciou seus estudos de desnaturalização dos sistemas de parentescos em sua

pesquisa pioneira nos primórdios da Antropologia. Morgan (1974) realizou sua

“etnografia” entre os Iroqueses, grupo de nativos norte-americanos da região dos

Grande Lagos. Sua análise etnológica elucidou a superação da centralidade dos sistemas

de parentescos que privilegiava somente a perspectiva europeia de família. Notamos que

em sua publicação A sociedade antiga (1877) a hipótese de que outras formas de

vínculos configurados “parentesco” poderiam ser constituídas através de indivíduos de

famílias diferentes - não consanguíneas - compondo grupos com outras relações e

lógicas internas.

Já Claude Lévi-Strauss (1982) interpretou os sistemas de parentescos partindo

da exogamia. Suas anotações ressaltavam a circulação das esposas entre os homens de

uma comunidade. Esta rotatividade auxiliava na construção dos laços de

relacionamentos entre os grupos. Ora, tanto Morgan quanto o estruturalista Lévi-Strauss

possibilitaram uma nova forma de pensar a família judaico-cristã, apresentando-a como

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uma construção sócio histórica não como um produto “sagrado”. (KIPPENBERG,1988,

p. 14-29)

Feito este breve excurso sobre a categoria “família”, retornemos ao eixo

principal desta apresentação. Na família israelita a solidariedade familiar é bastante

forte, sendo do tipo patriarcal, pois o pai goza de toda autoridade. “O cabeça da família

era espelho do rei” (BRANICK,1994, p. 37). Aliás, era assim também na família

romana. Porém as famílias conectam-se às outras e todas juntas se ligam a uma

complexa rede de convertidos em cada cidade, formando uma rede de solidariedade que

compunha a “ekklésia da cidade”, unidade maior da “ekklésia” como vocábulo referente

à congregação de uma única casa.

Para Marie-Françoise Baslez (in Alain Corbin, 2009, p.29-34) a via associativa é

um fator marcante das sociedades do oriente romano na época apostólica. O

desenvolvimento familiar (ou do “oikos”, no grego) insere o núcleo doméstico em toda

sorte de redes de sociabilidade, formando redes de profissionais e de ajuda mútua, em

associações, grêmios e coletivos esportivos e culturais. As redes de convívio eram de

suma importância para a subsistência diária. Baslez (2009, p.30) nos informa que “a

maneira como os cristãos desenvolveram estruturas de ajuda mútua impressionou seus

contemporâneos, [...] dando ao cristianismo sua primeira visibilidade, na falta de

imagens e monumentos”. O núcleo germinal desta rede certamente era a comunidade

doméstica, ainda segundo, pois “os cristãos se organizavam [...] em pequenas

comunidades muito personalizadas. De seis, dez, doze indivíduos, estrutura que subsiste

na época [...] nos séculos II e III”.

Para Baslez (2009, p. 29) a missão paulina estava baseada nas casas e grupos

familiares. Para isso Baslez usa os seguintes termos:

“A missão paulina, a única que podemos realmente estudar, foi organizada como uma penetração por capilaridade, que utiliza todas as redes da cidade antiga, funcionando esta última como uma imbricação de comunidades, da menor – que é a família – à maior – que é a cidade. A célula-tronco da missão é a ´casa´, a oikos, ao mesmo tempo comunidade familiar e comunidade de atividade, exploração agrícola, fábrica ou loja. Ao contrário da família nuclear moderna, a oikos antiga reúne pessoas de estatuto diferente, incluindo mulheres e crianças, escravos e líberos em grande número nas famílias de elite: sua composição transcende as divisões da cidade antiga entre gregos e bárbaros, homens e mulheres, livres e não livres. Os cristãos de uma cidade se reúnem seja por oikos, seja na residência mais espaçosa de um homem ilustre, que convida seus

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vizinhos e amigos. Esta prática continuou durante dois séculos. Em Roma como em Doura Europos, na Síria, os primeiros edifícios cristãos identificáveis no tecido urbano, em meados do século II, resultam da reforma de grandes residências: são ´casas-igrejas´”

A despeito do exposto acima, é importante avançar mais um pouco incorporando

a colaboração de outros pesquisadores a composição de um panorama mais amplo sobre

o enlace entre família e religião. Para perscrutar a relação que ao nosso ver existe entre

a tradição da família israelita e o crescimento do cristianismo no período inicial de sua

história, recorremos a Vincent Branick (1994) e sua reconhecida obra A igreja

doméstica nos escritos de Paulo, em que o autor salienta que “os cristãos mais

primitivos reuniam-se em casas particulares. Para eles o lar com seu ambiente familiar

era a Igreja” (BRANICK,1994, p. 11), concordando com Meeks (1992, p.121) ao

registrar que “Os lugares de reuniões dos grupos paulinos e, provavelmente de outros

grupos cristãos primitivos, eram casas particulares”. Branick (1994, p.124-127) ainda

nos ajuda a consolidar nosso argumento quanto a sequência de citações extraídas do

capítulo “Formação da Ekklésia”, no qual ele elucida o auto grau de comprometimento

e intimidade desfrutadas pelos participantes dos grupos originais. Pois ali ocorriam as

interações “face a face eram possíveis e estimuladas” [...] “os estudantes de associações

privadas geralmente concordam em afirmar que suas metas primordiais eram o

companheirismo e a convivência [...] por outro lado, os grupos de cristãos eram muito

mais inclusivos em termos de estratificação social e de certas categorias sociais”. Ainda,

para fins de nossa pesquisa, concordamos com sua observação e questão abaixo

levantada por Meeks (1992, p. 124):

“A centralidade da casa tem implicação posterior para a maneira como concebemos a missão paulina: ela mostra como são inadequadas nossas concepções individualistas modernas de evangelização e conversão. Se a casa existente era a célula básica da missão, então deduzimos que os motivos básicos para alguém integrar uma ekklésia provavelmente variaria de um membro para o outro. Quando uma casa se convertia ao cristianismo mais ou menos em bloco, nem todos os que adotavam as novas práticas faziam-na com o mesmo grau de compreensão e de participação. A solidariedade social deveria ser mais importante para persuadir alguns membros a serem batizados do que o seriam a compressão ou as convicções sobre crenças específicas”

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Ora, as reuniões domésticas, mesmo sendo um expediente usado por judeus e

helenistas em muitos lugares, não sendo, portanto, uma exclusividade do cristianismo,

reforçava a atuação das redes sociais de solidariedade, “comunhão” e pertencimento de

forma muito intensa. Neste ponto, devemos reiterar a indagação: é possível comparar o

programa do cristianismo antigo, como suas redes compostas de igrejas familiares-

domésticas e o contexto atual dos grupos ditos “orgânicos” contemporâneos, levando

em consideração as transformações axiais dos sistemas sociais durante os últimos 20

séculos e a construção do conceito de família ocidental? Esta questão será debatida

posteriormente.

O corte das primeiras décadas, senão séculos, mediante o uso de da categoria

analítica “Cristianismo primitivo”, permite-nos observar que na constituição das

famílias, tanto a família israelita, quando a romana e a helênica, era comanda por

pessoas de gênero masculino. O homem era a cabeça do lar, tinha a primazia no espaço

doméstico e também na sociedade, excluindo-se, é claro, a situação dos homens que

estavam em escravidão

Podemos ainda focalizar essa visão acompanhado a argumentação de Carlos

Jeremias Klein (2007) no que tange ao chamado “Cristianismo primitivo”. Vejamos que

para Klein (2007, p.27-33); os capítulos 1º a 7º do livro de Atos trata da 1) comunidade

de Jerusalém, presidida por Pedro, neste contexto, as narrativas bíblicas relatam a morte

de Estevão (At 7). A seguir teria havido entre 4 e 43 e. c. Tiago, irmão de Jesus teria

sido morto este ao mando de Herodes. 2) Igrejas da Samaria e Galileia já no capítulo 9

de Atos (v, 31) há referência da existência de uma comunidade cristã em Samaria, sem

maiores detalhes; 3) Comunidade cristãs gentílicas – plantadas pela evangelização de

um etíope por Felipe (At 9-10); 3) Igrejas da Missão Paulina – sobre esta missão temos

como fonte o livro de Atos. Somam-se três “viagens missionárias” de Paulo, para

expandir o “Reino de Deus”, se afirmando apóstolo entre os gentis. Na primeira viagem

organiza comunidade cristãs em Chipre, Perga, Antioquia da Psídia, Icônico, Derbe e

Listra (At 13-14), neste momento Paulo é acompanhado por Barnabé. Em sua segunda

viagem, na companhia de Silas, visitando outros centros importantes e na terceira

empreitada: Filipos, Éfeso, Atenas e Corinto. 4) a missão palestinense; que deu origem

as comunidades do Egito e aramaicas e por fim 5) a missão petrina; liga-se a expansão

da igreja nas regiões de Bitínia, da Capadócia e da Galácia.

Podemos também recorrer a alguns casos específicos salientados por Branik

(1994, p. 58-97) no estudo já citado de colaboradores diretos e indiretos de Paulo, em

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cujo lares se reuniam ekklésias regularmente. De Éfeso, Paulo saúda, em carta, Aquila e

Pricila (ou Prisca) sediados na cidade de Corinto “enviam-vos efusivas saudações no

Senhor Áquila e Priscila com a igreja que se reúne na casa deles” (1Coríntios 16,19),

anos mais tarde o casal se encontra em Roma e mais uma vez recebe o amparo do

apóstolo “saudai Priscila e Áquila [...] e também a Igreja que se reúne da casa deles”

(Romanos 16,35). O casal seria, mais tarde, responsável pela organização de uma

comunidade em Éfeso (1Coríntios 16,19) e também Roma (Romanos 16,3). A casa

deles é descrita por Apolo como local de ensinamento cristão (At 18,26). Filemon e

Ápia também são citados como hospedeiros de um grupo de irmãos e irmãs (“a igreja

que está em sua casa” – Fl 2). Na lista aparece Tício Justo, “um temente ao Senhor” (At

18,7), que receberá Paulo após a estadia na casa de Prisca. Crispo, um líder na sinagoga

é outro que abraça a mensagem de Paulo com toda sua família (At 18,8). Já Acaia,

primeiro batizado por Paulo na cidade de Corinto, é responsável pela conversão de

Estéfanas e sua família (1Co 1,16). Entre outros muitos exemplos (Gaio, Erasto, Febe,

Andrônico e Junia. Finalmente citamos Ninfas, que é saudada na carta aos Colossenses:

“[...] saudações são os [...] exemplos nos quais Paulo fala explicitamente sobre igrejas

domésticas: assembleias de cristãos que eram formadas dentro e ao redor de famílias

particulares”

Para Branick (1994), Paulo elegeu como metodologia evangelizadora a escolha

de famílias proeminentes e entusiastas à mensagem do evangelho para criar sua base

operacional nas grandes cidades. Seu método inicial era recorrer à evangelização nas

Sinagogas, mas vemos que este programa teve pouco sucesso. Por isso, em um segundo

momento, Paulo recorria às famílias de Israel, já aclimatadas as mensagens messiânicas.

A menção de conversões de famílias inteiras (“Cornélio com toda sua casa”,

Crispo, com “toda sua casa”, verificar 1Co 1,16, At 16,13-34;17-2-9;18-1-11) é uma

alusão à Pater famílias18, onde o homem-pai, líder doméstico, normalmente composto

por sua esposa, filhos e escravos etc. se convertia, resultando na “conversão” de todos

seus subordinados. Evidentemente podemos supor um gradiente de convicções e

engajamento pessoal desta rede familiar, diante do fato da pressão social sobre estes

indivíduos para a “conversão”. Nem todos abraçavam a fé do “cabeça da casa” de igual

modo (BRANICK,1994, p 16-19).

18 Talvez Lídia (Atos 16:14) seja uma exceção. Poderia esta personagem encabeçar um grupo doméstico.

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As redes centralizadas nas famílias eram fundamentais para o sucesso das

viagens de Paulo. Pois o apóstolo dependia da boa acolhida generosa como ponto chave

para sua missão caracterizada pela mobilidade e ousadia. A hospitalidade garantia a

Paulo não só um apoio material, mas um sinal afetivo que sua mensagem era

compartilhada para aqueles que o recebiam. “A família era a base de operações. A

chave para a missão era ser aceito por uma família [...] A igreja doméstica funcionava,

portanto, como núcleo da comunidade cristã” (Branick,1994, p. 18-19). O cabeça do lar

assegurava segurança espiritual e era autoridade para aquele grupo. Ao receber Paulo e

Silas, Jasão responsabilizou-se pela fiança deles e teve problemas por recebe-los (At

17,6-9). A supremacia da figura masculina com autoridade da Pater Família é muito

importante para entendermos os períodos posteriores, quando a igreja é desvinculada do

espaço doméstico e os líderes vindouros levaram a figura de “Pais” (p.e. “Pais da

Igreja”). (Branik,1994, p. 20)

Por outro lado há alguns cuidados que devem ser tomados quando traduzimos os

termos do vocabulário de Paulo relativo à família. Os temos oikos, oikia, traduzidos

como “casa, lar, família”, dependia da recepção à cultura à qual ele se reportava.

“Considerando as raízes helênicas ou judaicas, o conceito de oikos é consideravelmente

mais abrangente do que nosso conceito de família” (Branick,1994, p. 36). Então qual

seria o conceito a que Paulo se referia? Além da família imediata, temos que considerar

nesta compreensão de “família” também os agregados: parentes independentes,

escravos, trabalhadores contratados, inquilinos, entre outros. “Cícero define domus ou

família através de um relacionamento de dependência, não de parentesco [grifo meu].

De fato a família era constituída pelas relações recíprocas de proteção e subordinação”.

A partir do século II já encontramos maior sistematização dos grupos cristãos; e

também o surgimento dos primeiros locais destinados exclusivamente para o culto

cristão.

Portanto pudemos notar como era o contexto das famílias e suas redes nos

entornos do cristianismo das origens e a centralidade dela no processo de expansão do

cristianismo, pelo grau e sistemas de parentesco que engendravam um profundo grau de

convívio entre os pares religiosos; logo potencializava a transmissão religiosa

intradoméstica, sendo que a igreja, à época, formava-se ao redor de redes de cristãos,

que por sua vez reuniam-se em casas, ou em casas expandidas.

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1.3.4 - Conflitos na Igreja “primitiva”

Os primeiro discípulos e apóstolos são as figuras principais que atuam nas redes

de igrejas familiares que iremos aqui discutir. Desprivilegiados da presença do líder,

nutrem-se pela força herdada através do convívio com Jesus e a presença de seu

“Espírito encorajador”. Alain Corbim (2009, p. 18-19), em um trecho de sua obra,

colabora para compreendermos este período nascente: “Jesus não é o fundador do

cristianismo como religião independente. [De seus discípulos surge] [...] um movimento

de origens proféticas”.

Porém, não são grandezas equivalentes o grupo de discípulos de Jesus no âmbito

de seu tempo e as comunidades de origem judaica na Palestina, originadas pela

pregação de seus discípulos imediatos, como Tiago, Pedro e Paulo. Em um ambiente

anterior, Jesus é um pregador-itinerante e taumaturgo que, insurgente ao sistema

religioso-político de sua época é julgado, condenado e morto. Por conseguinte, temos

um novo tempo, “pós-pascoal”; sem a presença do messias emerge o novo desafio em

expandir a mensagem de Cristo: “Ide por todo mundo e pregai o evangelho”, epilogo

encontrado no livro de Marcos como característica universal da fé cristã, logo é preciso

propagar a “todas as nações”.

Para Philippe Tourault (1996, p. 27), após a morte de Jesus, as igrejas primitivas

atravessaram por momentos difíceis em sua relação com a sociedade tanto quanto na

relação dos próprios cristãos. Os embates iniciais, ao redor do anúncio do redentor

como substituição à velha aliança custou a vida de Estevão, o primeiro mártir da Igreja

Cristã. O apedrejamento, denunciado no texto de Lucas (Atos 7) e a morte de Tiago, o

Maior, irmão de João, a partir de uma solicitação de Agripa I, revela como a

comunidade não cristã interagia os “do caminho”. Diversas suspeitas recaiam sobre os

primeiros discípulos. As acusações eram diversas, podemos destacar as relacionadas ao

canibalismo (afirmavam “comer o corpo de Cristo”) e da prática do incesto (por se

tratarem mutuamente como “irmãos” e “irmãs”).

A “Igreja primitiva” já enfrentava resistência das autoridades nacionais desde

seu nascimento. Como exemplo, vejamos uma narrativa de resistência ao conteúdo da

pregação, em Atos capítulo 5. O sinédrio decidiu prender os 12, pois pregavam a

ressureição de Cristo no próprio monte do Templo “a montanha do senhor” (At. 3.11-

26; 5.12,21-26,42), doutrina estranha aos sistemas judaicos. Porém, sem maiores

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acusações e com a familiaridade e apego dos apóstolos as tradições antigas, não houve

como mantê-los encarcerados.

Os conflitos no templo foram os primeiros enfrentamentos políticos que

marcaram a impetuosidade da Igreja primitiva em Jerusalém. As autoridades locais

resistiam a ideia de permitirem que pescadores Galileus, crentes na ressureição de Jesus,

pregassem no “Monte do Senhor”. Esta resistência vinha dos principais sacerdotes

Saduceus, que negavam a ressurreição dos mortos (Mt. 22.23-33;At. 23.6-9).

É essencial a afirmação acima, pois esta impetuosidade define a vibrante

segunda onda no decorrer da história dos primórdios do cristianismo, a Era Apostólica.

Podemos, logo de início, dispensar a ideia que este agrupamento é pacífico e

harmonioso, logo um “comunismo” celestial. Na próxima seção discutiremos com mais

atenção a premissa que elege o cristianismo original como um tipo ideal atemporal para

todos os demais cristianismos, porque, supostamente em seu interior, não haveria

conflitos agudos. Exige cautela do pesquisador a leitura social do capítulo 4 do livro de

Atos, em especial, dos versículos 32 ao 35:

“Da multidão dos que criam, era um só o coração e uma só a alma, e ninguém dizia que coisa alguma das que possuía era sua própria, mas todas as coisas lhes eram comuns. Com grande poder os apóstolos davam testemunho da ressurreição do Senhor Jesus, e em todos eles havia abundante graça. Pois não havia entre eles necessitado algum; porque todos os que possuíam terras ou casas, vendendo-as, traziam o preço do que vendiam e o depositavam aos pés dos apóstolos. E se repartia a qualquer um que tivesse necessidade”. (Atos 4, 32-35, versão João Ferreira de Almeida)

O versículo acima sugere o clima de docilidade atribuído aos primeiros cristãos.

Segundo Lucas, os primeiros conflitos na igreja de Jerusalém foram enfrentados sem

grandes dificuldades pelos discípulos. A substituição de Judas por Matias, para compor

o colegiado dos doze, logo na introdução do Livro de Atos, foi realizada de modo

natural (At 1,26).

Podemos dizer que, se contarmos apenas com a leitura do Livro dos Atos dos

Apóstolos, podemos ter a impressão de que a “Igreja primitiva” experimentou uma

existência pacífica – quase um sistema social de total equilíbrio relacional–emocional.

A escrita de Lucas, a quem se atribuí a autoria do livro, destaca um espírito de

concordância entre as várias seções da igreja. Porém se somarmos a leitura do livro de

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Atos às cartas de Paulo, nos são reveladas situações de divergências profundas,

antagonismos, que complementam o relato de Lucas (Drane, 1985, p. 58).

Dito de outra forma, ao contrário do que poderíamos esperar dos indivíduos

convertidos do paganismo, as epístolas de Paulo nos revelam um povo que estava longe

de ser perfeito. Atentemos para a citação de Howard Clark Kee (1983, p.80) elucidando

as disputas e divergências no seio desta “Igreja primitiva”: “a pintura idealizada de uma

comunidade unificada da aliança não corresponde, infelizmente, de todo à situação

empírica do cristianismo das origens. Tensões e conflitos emergem das cartas de

Paulo”.

Ora, a presença de “pagãos” na comunidade cristã, a partir do ano 30, é motivo

de enfrentamentos entre as diferentes tendências que perpassam as igrejas deste período

apostólico. Podemos resumir a controvérsia entre as opiniões de Paulo e Pedro sobre a

inclusão dos gentios no seio da igreja, e, particularmente, sobre a imposição da

circuncisão aos não judeus convertidos. De fato, tal divergência perpassará diversos

momentos da missão cristã e pode ser assim resumida: a consideração da salvação

somente pela graça do messias (Paulo), assim como a Lei conjunta à salvação (Pedro).

Para Kee (1983, p. 100):

“O tema do grau de abertura da comunidade cristã foi precisamente a causa do conflito entre o vacilante Pedro e o decidido Paulo em Gl 1,2. O mesmo problema das relações entre a pertença à antiga e à nova comunidade emerge em 2Cor 11,22, onde Paulo responde, com amargo sarcasmo, àqueles que o desafiaram a apresentar suas credenciais de apóstolo”.

Para um grupo socialmente tão diverso da “Igreja primitiva”, conseguir unidade

entre as comunidades paulinas e as comunidades plantadas por outros líderes

carismáticos, exigia mais do que meramente um ajustamento social. As comunidades

não paulinas, bem como aquelas sustentadas por carismáticos ambulantes parecem ser a

raiz do conflito inicial (KEE,1983, p. 81). Os extáticos se situavam na tradição de Jesus,

já descrita em outra seção deste capítulo, andarilhos-taumaturgos, hospedando-se

conforme lhes eram propostos os caminhos. Estes aspectos mágicos-itinerantes não se

harmonizavam com o perfil das congregações organizadas por Paulo nas cidades.

Na ordenação sociológica referente ao universo paulino (onde é necessária

“decência e ordem” - 1Cor 14,40), logo no início das comunidades de origem, os

movimentos espontâneos e carismáticos parecem criar polos distintos no ethos de cada

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congregação. O apóstolo precisa emitir sua autoridade apostólica, “emitindo regras

sobre a imagem pública da igreja [...], baseado na submissão aos superiores [..] evitar

conflitos com as autoridades civis, bem com a cuidadosa administração financeira”

(Kee:1983, p. 82) para balizar as comunidades das influências dos extáticos.

Para Kee (1983, p. 82), este é outro ponto conflitante: a efusão dos dons

carismáticos nas comunidades originais. “Paulo acha que estes dons são problemáticos

ou até mesmo embaraçosos”, afirma o pesquisador. A prerrogativa de Paulo em 1Co

14,20-33, “Deus não é Deus da desordem mas de paz”, iluminam o desejo do apóstolo

para que os dons carismáticos devam ser administrados de maneira ordeira; e ainda

salienta que o exercício de alguns deles é um culto ao ego (1Co 14,4). Paulo ainda

“cutuca” seus leitores, afirmando que não haveria muitos sábios na igreja estabelecida

em Corinto (1Co 1,26), e também muitos “nobres e poderosos”, Thiessen sugeri que

“eles constituíam uma minoria dominante” (Thiessen apud Kee,1983, p. 83). Apesar da

igreja inicial contemplar em sua “membresia” uma diversidade étnica (não sem os

conflitos supracitados), o que nos aparenta, segundo a apreciação de Thiessen, que os

mais abastados poderiam incitar também uma estratificação socioeconômica.

Longe de configurarem uma “unidade”, o cristianismo foi progressivamente

convergindo para uma das “grandes religiões”. Tomou forma ao longo dos séculos II e

III, e se dá através da formação de estatutos que qualificavam o que eram as heresias e

dogmas, expulsando às margens outras vertentes como os judaizantes (basilidianos,

ebionitas, elcasaítas, etc.), os gnosticizantes (basilidianos, valentianos, etc.), marcionitas

(seguidores de Marcião), e Montanistas (Montano), etc. Depois de vinte anos ou menos

após a crucificação, a maioria dos centros importantes em torno do mediterrâneo já

comportavam um grupo de seguidores de Jesus. Os textos bíblicos demonstram a

existência de cristãos em Roma, Corinto, Éfeso, Filipos, Antioquia, entre outros. O

império romano foi cristianizado em três séculos.

Portanto, as controvérsias iniciais, sobretudo no interior das comunidades sob a

tutela de Paulo fundamentam brevemente a ruptura com o ensejo universal em

classificar o “Cristianismo primitivo” como uma “Shangri-lá”.

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1.4 - O início de uma igreja segundo o modelo imperial

Voltamos ao contexto do império romano, a esta altura já bastante extenso e com

um sistema de governo baseado em quatro imperadores. Diocleciano, anos antes, havia

estabelecido um tipo de poder quádruplo, a tetrarquia, com dois imperadores no Oriente

e dois no Ocidente, devido as grandes extensões do império. Os deuses de proteção nos

primeiros momentos deste novo sistema era Júpiter e Hércules; estas “filiações”

colaboravam a divinizar o poder dos imperadores. (RAMALHO, pg. 159)

Em 303, Diocleciano decreta um mandato indicando que fossem destruídos os

locais de cultos dos cristãos, suas literaturas e para que fossem enviados à tortura, prisão

e morte aqueles que negassem as imposições Romanas. Aqueles que negassem a fé

cristã, sairiam ilesos. Não é difícil notar que esta perseguição aos cristãos elaborada

pelos Imperadores da Tetrarquia estava imbricada com o sistema sagrado oficial,

baseado em nos deuses Júpiter e Hércules. Era indispensável a todos os imperados uma

filiação divina. Por isso, desde Aureliano (imperador de 270 – 275) o culto a Apolo ou

Sol Invictus se reproduzia entre o governo romano. A proteção de um deus era

indispensável aos imperadores que consideravam legitimar seu poder e vitórias bélicas a

partir de sua filiação ao sobrenatural.

Constantino (280-337) regeu o império desde 311 no ocidente e 324, no oriente

quando derrotou Licínio. Construiu Constantinopla para onde transferiu a capital do

império. Sua suporta conversão ao cristianismo foi progressiva. Consta da narrativa

folclórica a ocasião da volta da batalha da ponte Mílvio em Outubro de 312, junto às

tropas de Roma em direção a Maxêncio, seu opositor, aspirante ao trono que se

aproveitando da morte de Constâncio, pai de Constantino. Diante do processo de

ascensão de Constantino ao trono, Mílvio insurgiu-se como pretendente ao status de

imperador. Quanto ao relato de sua conversão, consta a narrativa no caminho ao embate

contra Mílvio, Constantino olhou para o céu e viu uma luz com os dizeres: “Com isto

vencerás”, mais tarde Cristo apareceu à ele em um sonho portando o sinal de uma cruz

inclinada19. Prontamente o imperador aplicou este sinal aos escudos de seu exército,

seguindo as orientações no sonho e venceu a batalha. Após vencer a batalha contra

19 Lembrando as letras gregas chi (x) e rho (p), a duas primeiras letras da palavra Christos.

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Maxêncio, a partir dos sinais e dos sonhos premonitórios, havia um clima favorável para

a unificação do império caso de sua adesão ao cristianismo.

Para Corbin (2009) Constantino parece, a princípio, ser mais um monoteísta,

crendo em um Deus único, não necessariamente cristão, contudo em clara oposição ao

politeísmo da teatrarquia. Sua nova mística é romana-cristã, emergindo um deus único o

Sol invictus20, que aparece na cunhagem de suas moedas, depois de 308 E. C. Não se

deve dizer que foi uma conversão súbita. Seu principal biógrafo, Eusébio de Cesaréia,

revela que inspirado por essas vivências, verdadeiras ou mitológicas, e, pelo fato de que,

segundo a estimativa de Frank Stark (2006), Cristo já era adorado por miríades de

seguidores e não poderia ser facilmente destruído, Constantino recorreu à oficialização

de um deus fora do panteão romano.

Sua conversão é um denominador comum que tanto garantirá a unidade do

império, com o reconhecimento de um deus único, quanto legitimará seu poder. Sua

abertura gradual é expressa pelo Édito de Milão, que dá liberdade de culto e uma

inclinação monoteísta. A manobra consistia em abraçar a segurança de um deus único e

supremo e não mais pelos deuses da tetrarquia. (CORBIN,2009, p. 50)

A Igreja, depois de séculos como movimento contra cultural, agora legitimada

pelo poder do império, recebe favores de Constantino, doações em dinheiro, terrenos,

palácios, isenção de impostos, financiamento de basílicas em Roma e em Jerusalém. Em

troca, seu envolvimento com assuntos relacionados administração do império é cada vez

mais intenso. Constantino era o mestre da política e do poder. Habilmente constrói uma

segunda religião, mantendo seu título de pontífice maximus, mas indiscutivelmente cede

ao cristianismo uma posição de privilégio. Em sua religião romana–cristã, juntou a

águia de seu estandarte ao lábaro, símbolo cristão.

Constantino foi o pioneiro a dar total abertura a liberdade religiosa entre os

cristãos perseguidos. A adesão definitiva da religião cristã como a oficial do império

Romano é cercada de diversas reviravoltas políticas, mas sabemos que foi

definitivamente realizada pelo imperador Teodósio em 27 de fevereiro de 380, com o

edito de Tessalônica. A partir daí prática do paganismo e de outras religiões passa a ser

20 Verificar anexo II

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motivo de punição. Em 392, os imperadores Teodósio, Arcádio e Honório proíbem

todas as práticas pagãs. (KLEIN:2007, p. 79-81).

*

Ora, quando da oficialização definitiva do cristianismo, já haviam se passado

quatro séculos desde o nascimento de Jesus. O Movimento de Jesus, nômade e

carismático, sofre incontáveis sobreposições. Por fim, percebemos como o binômio “fé”

e “império” evidencia-se na clivagem do invictus imperador com a religião cristão. O

incipiente movimento já se flexibilizou a ponto e a “ponto a ponto”, após três séculos de

mesclagens, concílios e diversificação das comunidades em cada cidade, que nos é

impossível capturar a rede de igrejas familiares ou distritais e a diversidades de estilos

litúrgicos e teológicos que por elas circulam. O que sabemos é que com Constantino é

que se inicia uma religião imperialista e que o seguinte capítulo desta história é a “Era

das Basílicas”. Portanto, das casas às basílicas; dos líderes familiares dotados de “dons

de liderança” a uma liderança forjada pelo estilo Romano de liderar, do Deus-

manjedoura ao Deus-Sol imperial.

Através deste processo, a igreja cristã passou de um movimento marginal e

censurado para se tornar, passo a passo, num processo de longa duração, a instituição

mais poderosa do Ocidente Medieval.

No próximo capítulo veremos a constituição de um movimento que pretende ser

uma restauração destes padrões no Novo Testamento ou conhecido como “Igreja

primitiva” no mundo contemporâneo, as “Igrejas Orgânicas”.

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CAPÍTULO II

“IGREJA ORGÂNICA”: TEORIA E TÉCNICA

O que é e como as “igrejas orgânicas” são pensadas na produção cultural de seus

principais teóricos? Este capítulo pretende responder a essas questões. Nele, dois

objetivos são focados: 10) A formulação de uma tipologia específica para estes grupos;

2º) Descreve-las baseando-se na literatura de seus principais interlocutores.

Antes, um adendo. Desde os primórdios do cristianismo grupos dissidentes

como os de Montano (montanismo), elaboraram sistemas de apropriação particular do

cristianismo, e, caminhando por rotas alternativas ao fluxo central cristão desenvolvido

na história, reivindicaram o primado sobre a herança do cristianismo. O maior exemplo

disso foi a Reforma Protestante, que produziu um profundo questionamento da

instituição cristã então majoritária, a igreja Católica, chamando a atenção para si, como

um revival autêntico. Também podemos citar os grupos restauracionistas, dos quais

surgiram, entre outros, a Congregação Cristã do Brasil, Adventistas e Testemunhas de

Jeová. No entanto o que interessa para esta análise é a atuação dos grupos surgidos a

partir do abatimento gerado pelo declínio e desconfianças em relação ao cristianismo

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“convencional” na Europa e América do Norte no século XX, tal como analisaremos

adiante, na literatura selecionada.

Também é importante verificar a construção da imagem pública e dos discursos

dos principais expoentes do movimento. A descrição de suas trajetórias e da dissidência

das denominações tradicionais colaborará na análise do panorama do êxodo

institucional em direção às expressões informais do Protestantismo europeu, norte-

americano e brasileiro. Acrescenta-se seus esforços para a construção midiática que

denominadas aqui como expressões de uma “contra-cultura” evangélica, que se

expressa na frase exemplar - “Jesus sim, Igreja não”. Este conflito religioso, a partir da

observação de uma tendência de não associação e a rejeição de vínculos fortes com as

denominações religiosas, faz emergir uma cultura mercadológica que propõe capturar o

sentimento e envolver os atores num processo de descomplexificação do emaranhando

que poderia ter se transformado o cristianismo. Desta forma, incorpora-se ao mercado

religioso mais um segmento: o dos desafeitos ao cristianismo institucional e que

valorizam expressões mais autênticas21.

Como exemplo disso podemos citar uma produção cultural voltada a um

Cristianismo “descompromissado”. No mercado literário, por exemplo, acumulam-se

livros que abordam a questão, tais como: Eles gostam de Jesus, mas não da igreja

(KINBALL,2007), Os Sem-Igreja (BOMILCAR,2012), Descrentes (KINNAMAN &

LYONS,2012), Dissidentes da igreja – entendendo e defendendo a igreja

(CORRÊA,2012), Igreja? Tô fora! (AGRESTE,2009), Gente cansada de igreja

(AZEVEDO,2010), Porque você não quer ir à igreja? (JACOBSEN &

COLEMAN,2009), Alma sobrevivente: sou cristão apesar da igreja (YANCEY,2004),

A Cabana (YOUNG,2008). No mercado norte americano, artigos sobre este tema são

facilmente encontrados, tais como: Lost and Found: The Younger Unchurched and the

Churches that Reach (STETZER,2009), You Lost Me: Why Young Christians Are

Leaving Church...and Rethinking Faith (KINNAMAN,2011), Generation Ex-Christian:

Why Young Adults Are Leaving the Faith… and How to Bring Them Back

21 Portanto não nos surpreende quando uma Igreja Batista histórica – a Igreja Batista Água Branca (SP) - afirma-se uma “uma comunidade que deseja ser uma igreja para quem não gosta de igreja e para pessoas de quem quando uma igreja não gosta.” <http://ibab.com.br/blog/post/esse-sonho-tambem-e-meu/>. Acessado em 10/10/2013. Ou a ramificação musical de uma denominação conhecida produz um CD para “para inspirar momentos de adoração em grupos pequenos e reuniões nos lares” <http://www.loja.vineyardmusic.com.br/comprar-cd-adorando-em-casa-vol-1-quebrantado>. Acessado em 10/10/2013.

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(DYCK,2010), para citar apenas alguns exemplos. Algumas dessas publicações tem por

função orientar cristãos “desviados” para que retornem ao convívio de uma igreja local,

outras, pelo contrário, criticam o cristianismo institucionalizado.

Antes de adentrar nesses sub-itens, faz-se necessário ressaltar que as “igrejas

orgânicas” não formam um movimento homogêneo no Brasil. Por isso não procuramos

capturar uma experiência uniforme e nem poderíamos, porque não há um centro ou um

ider. Trata-se de um movimento de margem que dialoga com diversos tipos de

experiências heterogêneas, porém conserva certos traços que o identificam como uma

“igreja orgânica”, como tipo ideal. Temos encontrado em nossas pesquisas versões

pentecostais, conservadoras e fundamentalistas de comunidade que se reúnem em

espaços não convencionais e com viés anticlerical e diversos grupos emancipados. O

movimento também pode formar certos aglomerados em torno de pensamentos e

lideranças, no entendo, uma das principais características do movimento é a

independência de cada grupo.

Outro ponto que vale ressaltar é que a “Igreja Orgânica” não é uma “Igreja em

Células”. Estas ainda mantêm vínculos com uma igreja sede que exerce domínio e

controle sobre o grupo. A “Igreja em Células”, apesar de valorizar os relacionamentos e

também criticar severamente a instituições, mantém em sua dinâmica interna uma série

de processos de treinamentos, sistematizações formais de liderança

(NEIGHBOUR:2001). A IO também não é uma reunião católica conhecida por novena.

Talvez uma boa comparação seja a comunidade eclesial de base, as famosas CEBs, da

Igreja Católica Romana, que praticava reflexão bíblica dentro de uma hermenêutica

popular.

No que tange à temática desta pesquisa, não foram encontrados temas similares

nos diretórios e bancos de dados de teses e dissertações da Capes que tomasse como

objetivo de pesquisa nossas duas linhas que se entrecruzam para atingir nosso objetivo

principal, a “igreja orgânica” e o “Caminho da Graça”. Ponderamos que a realidade da

“Igreja Orgânica” no Brasil ainda é desconhecida, não havendo reflexões acadêmicas

sobre uma de suas expressões o “Caminho da Graça” apesar da proeminência midiática

de seu líder, Caio Fábio D´Araújo Filho, particularmente nos anos de 1980 e 1990. Mas

será que o fenômeno “igreja orgânica” existe no Brasil? Se sim, qual é seu impacto

sobre a expressões tradicionais de fé neste país? De que forma podemos classificar um

grupo orgânico?

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Nos EUA e Europa, pesquisadores já têm tentado registrar academicamente tal

movimento há mais de duas décadas, principalmente entre organizações confessionais e

missionárias. Seminários e centros de pesquisa da religião já registram estudos sobre o

tema. A tese defendida no Fuller Theological Seminary por Jares James Looney, City

harvest: a study os organic church planting in a global city, no Insituto de Estudos

Interculturais, é um exemplo. No entanto, as análises têm um tom de catequese, ou da

tentativa elucidar sociologicamente o fenômeno a fim de captura-lo para fins

estratégicos e missionários.

Assim, diante de tantas expressões livres encontradas, a delimitação para a

pesquisa que empreendemos encontra-se no fato do perfil de nosso objeto de análise, o

Caminho da Graça, liderado e fundado por Caio Fábio D´Araújo, entre as dezenas de

comunidades “informais” espalhadas pelo Brasil, sustenta um tipo particular de

pertencimento, mobilidade, liderança leiga, práticas e lógicas de seus aplicativos

espirituais, que torna viável uma análise empírica.

Não é à toa que cada comunidade local recebe o nome de “Estação da Graça”.

Perfaz, portanto, dezenas de pequenas destas “Estações da Graça” o movimento

“Caminho da Graça” em todos os estados do Brasil. Batiza-las de “Estações” implica

em admitir a livre circulação de fiéis em seu interior, sem obrigatoriedade de

permanecer, a metáfora é de uma estação de trem, onde os passageiros vão e vem,

formando um organismo vivo e pulsante22.

2.1-Igrejas orgânicas como construtoras de uma realidade “livre

A Igreja Orgânica não é uma denominação. É uma forma de pertencer. E um

pertencimento muitas vezes transitório e capilarizado em grupos extremamente

customizados, que celebram a “liberdade e autenticidade em Jesus”. Diversas vezes,

durante nossas observações em campo, as mensagens, falas e canções apontavam para o

enaltecimento de um sentimento de liberdade que não era encontrada nas chamadas

“Igrejas Institucionais”. Portanto nos são caras as contribuições da pesquisadora

francesa Danièle Hervieu-Léger (2008). A “Igreja Orgânica” indica condizer com a

22 Verificaremos estes fatos no próximo capítulo.

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perspectiva dos estudos de Hervieu-Léger (2008, p. 57) em sua obra de referência O

Peregrino e o convertido - Religião em movimento, quando afirma:

“em matéria religiosa, como o tudo o mais na vida social, o desenvolvimento do processo de pulverização individualista produz paradoxalmente a multiplicação de pequenas comunidades fundadas nas afinidades sociais, culturais e espirituais de seus membros”.

Por conseguinte, apesar da gramática religiosa do “Caminho da Graça”

aproximar-se das formas gerais dos protestantes, os discursos de seus líderes

paradoxalmente renegam o estreitamento com os arraiais evangélicos, seguindo uma

tendência de formadores cristãos de opinião afirmarem-se como “ex-evangélicos”.

Acumulam-se líderes e personalidades públicas reconhecidas neste meio que se auto-

declaram dessa forma. O pastor de origem assembleiana Ricardo Gondim afirmou que

“Agora sinto necessidade de distanciar-me do Movimento Evangélico”.23 O pastor

batista Ed Renê Kivitz, por sua vez, em palestra proferida na Igreja Batista Água

Branca, leu e endossou dois artigos sobre seu abandono ao universo evangélico. “Está

insuportável”, de Caio Fábio D ´Araújo24 e “Não quero mais ser evangélico”, assinado

pelo pastor da Comunidade Cristã Reformada, Ariovaldo Ramos25. No primeiro, em

forma de desabafo, D´Araújo diz que “é insuportável ver descarados convites para que

[se] faça novos sacrifícios e que dê dinheiro aos sacerdotes do engano e da ganância.

[...] Ver o estelionato feito no nome de Jesus. É insuportável ver o povo levado debaixo

para o julgo da lei”. Na mesma onda, o músico cristão João Alexandre também afirmou

não mais coadunar-se ao movimento gospel:

“Não faço mais parte, definitivamente, nem em número, nem em gênero e nem em grau, do importado movimento ´GOSPEL´! [...] O termo ´Gospel´ tem uma conotação mercadológica baseada na fama, na grana e na idolatria de artistas, bandas, gravadoras, formatos musicais, mensagens positivistas, entre outras distorções que variam conforme a conveniência dos tempos e dos ´bolsos´ dos brasileiros, cristãos ou não! Só quero, assim como qualquer músico que busca a excelência, fazer o melhor que posso com aquilo que tenho, de forma honesta e verdadeira, dormir com a consciência tranquila de que cumpro a missão que

23 “Tempo de partir”. <http://www.ricardogondim.com.br/estudos/tempo-de-partir/>. Acessado em 10/10/2013. 24 “Ed. René Kivitz – Está insuportável (desabafo de Caio Fábio)” <https://www.youtube.com/watch?v=T_Pp8MoMZRQ#t=368>. Acessado em 10/10/2013 25 “Ed René Kivitz - Não quero mais ser evangélico (desabafo de Ariovaldo Ramos) “. <https://www.youtube.com/watch?v=KHmXXWLQSIo>. Acessado em 10/10/2013.

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Deus me deu (de cantar sempre a Verdade!) e agradecer todos os dias a Ele por aqueles que me deixam fazer parte de seus ouvidos e de suas existências!”.26

Este “espírito” de “contracultura evangélica” tem sido capturado em diferentes

planos. Podemos ainda citar o movimento O $how tem que parar – pela ética na igreja

evangélica brasileira27. O movimento criado por “Vera” desenvolve ações e

intervenções públicas contra os “vendilhões do tempo”, tais com a “contra marcha para

Jesus”, protestos em eventos gospel como a Expo-Cristã, a qual denominam Expo-

Mamon28. Segundo o site oficial, o $how tem que parar:

“É um movimento de cristãos indignados com os atuais vendilhões do templo, que vendem um falso evangelho de facilidades e enriquecem com isso. Buscamos à volta ao Evangelho puro e simples, sem extorsões financeiras, sem gnosticismo e amuletos gospel, sem artistas gospel, sem “papas” locais. Buscamos o retorno da Igreja ao foco em Cristo e não no crescimento de cada denominação. Não somos nenhuma organização, somos apenas pessoas sem títulos ou honrarias eclesiais que não aceitam o que estão fazendo com o Evangelho de Cristo, e que se conhecem através de visitas a blogs apologéticos. A Marcha pela Ética Evangélica Brasileira pretende ser um movimento de indignados, durante a próxima Marcha para Jesus. Nosso protesto será silencioso, através de camisetas, faixas e banners com mensagens contra a corrupção da igreja brasileira”.29

Nestes casos, a contestação referente aos escândalos evangélicos30 e, não

obstante, o soerguimento de uma mensagem, como veremos, “anti igreja”, sugere novos

26Perfil pessoal de João Alexandre no Facebook.

<https://www.facebook.com/joao.alexandre.102?fref=ts>. Acessado em 03/03/2014.

27 <http://estrangeira.wordpress.com/retrospectiva-do-evangelho-puro-e-simples/>. Acessado em 10/08/2013. 28 deus do dinheiro ou da ganância, segundo a cosmologia da bíblica. 29http://estrangeira.wordpress.com/2009/10/11/como-fazer-as-camisetas-para-a-marcha-para-gezuiz/. Acessado em 09/11/2013. 30 O livro da jornalista Marília César (2009), Feridos em nome de Deus, revela bem esta questão. Eis um depoimento encontrado no site de venda do livro: “"Este livro é um perfeito Raio-X da igreja brasileira, e do mal que o movimento pentecostal trouxe ao evangelicalismo (falo com propriedade pois nasci e vivi durante 28 dentro da Assembleia de Deus). Também sofri com abusos dentro da igreja, o que me fez desistir do sistema religioso, mas não de Deus. A abordagem da autora é bem sincera a uma realidade que muitas vezes tem sido ignorada pela liderança eclesiástica dos dias atuais, até mesmo pelo fato de as lideranças serem as maiores culpadas pelos abusos. Parabéns pela coragem de expor a ferida da igreja!"”. < http://www.mundocristao.com.br/produtosdet.asp?cod_produto=10660> . Acessado em 10/09/2013.

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movimentos dentro do campo religioso brasileiro. Para onde “escapam” os

descontentes?

Na tentativa de elucidar este “samba do teólogo doido”, na expressão de Gedeon

Alencar31, a sugestão de Clara Mafra (2013), que, em sua intuição sociológica propõe a

substituição do paradigma do “Mapa das Religiões do Brasil” pela metáfora do campo

religioso como um “holograma”, vem a calhar. Mafra refere-se aos resultados do censo

do IBGE de 2010 ao elencar a possibilidade da metáfora, sugerindo proveitosas

análises. Será que o método cunhado pelo órgão federal em uma única questão sobre a

religião do respondente dá conta de oferecer “uma fotografia” do perfil sócio-religioso

brasileiro e elucidar escolhas que muitas vezes se sobrepõem? Quando Mafra (2013)

propõe “Quais as linhas de força, os ancoradouros e os fluxos no campo das religiões no

Brasil?”, alega que um mapa apresenta topografias unidimensionais "com fronteiras que

ocasionalmente se sobrepõem”.

Portanto, a sugestão de Mafra (2013, p. 13-25) pelo holograma tenta evidenciar

as "unidades em constante movimento, com ramificações chegando a ordens

inimagináveis de extensões e nós. Se focarmos na metáfora do holograma, seremos

conduzidos a fazer operação mais ousadas e flexíveis com os números do que as que

temos realizado até o presente momento”. Lembramos que Mafra, neste artigo, trata dos

números censitários sobre os aspectos religiosos da população brasileira e, sobretudo, da

categoria “religião evangélica não determinada”.

“O nosso holograma tende a se formado por muitas versões de cristianismos com focos de outras religiosidades, que continuam a se constituir mutuamente e no contraste com a nossa versão de secularismo. Apenas chamar a atenção que, nas últimas décadas, a capacidade dos evangélicos de criar malhas institucionais sem centros ou com múltiplos centros, com ênfase na subjetividade e na capacidade de auto gestão, coloca-os à frente na dinâmica social” (p. 22)

Uma das hipóteses de Mafra é um “efeito IURD”. A pesquisadora ressalta a

influência cultural do empreendimento de Edir Macedo sobre o universo

neopentecostal, dando novos significados aos lações de pertencimento eclesiástico

31 "Aborto. Assunto sério, virou um "samba do teólogo doido". Entrevista especial com Gedeon Freire de Alencar". <www.ihu.unisinos.br/entrevistas/37253-aborto-assunto-serio-virou-um-samba-do-teologo-doido-entrevista-especial-com-gedeon-freire-de-alencar>. Acessado em 02/02/2013.

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dentro de todo o campo neopentecostal. A igreja Universal do Reino de Deus tem seu

público flutuante, que usufrui de seus serviços, como “Fogueira Santa”, “Love School”

etc, conforme a pauta e necessidade do dia. Inversamente a maioria das Igrejas

Históricas e Pentecostais, que supostamente proporcionam um grau de coesão “forte”

entre seus membros, através de sistema de filiação formal, este “efeito IURD” seria a

normatização da rotatividade dos frequentadores neopentecostais em suas “igrejas

clones” (Campos:2012). Conforme a hipótese, grande parte dos “não determinados” são

frequentadores esporádicos de igrejas, que estabelecem “vínculos fracos” e calibram

suas necessidades espirituais ao longo de várias denominações, de acordo com a

demanda do dia (financeira, cura, ensino, agradecimento). Circular pelo mercado de

bens religioso, em diversas denominações, sem contudo, comprometer-se com nenhuma

delas. Desta forma, tais crentes “passeadores” (Hervieu-Léger), quando abordados pelo

agente do Censo do IBGE, acabam se auto declarando não pertencente à nenhuma

denominação específica.

Leonildo Silveira Campos (2012) analisa a questão, complementando que:

“talvez esses evangélicos não determinados sejam uma expressão dos ‘desigrejados’ que

nos EUA ou Europa são muitos, nestes tempos de individualismo e de formação de um

“rebanho virtual’ levaria ao respondente afirmar-se apenas ‘evangélico’, porém sem

determinar uma igreja específica”. (CAMPOS,2012). Já José Wellington dos Santos

(2013), empreendeu pesquisa que procurou capturar o que motiva os sujeitos a professar

uma fé sem vínculo com qualquer instituição religiosa entre os “sem religião”, porém

ainda “crentes” que se afirmam evangélicos. Sua pesquisa qualitativa entre a juventude

tentou traçar um panorama do fenômeno acima descrito por Campos, o “desigrejado”

estaria em um estado de emancipação e autonomia religiosa, não necessariamente

tornar-se-ia um ateu ou agnóstico.

Ronaldo R. M. de Almeida e Paula Monteiro (2001), elegendo o trânsito

religioso 32como categoria analítica para compreende as circulações existentes entre os

diferentes credos e a circuitos dos fiéis nas mais variadas denominações de metrópole, 32 Para Almeida & Monteiro (2001) o “trânsito religioso” é: “Esse macro-processo de contínua síntese e diferenciação é o fenômeno que aqui nos interessa descrever. A literatura especializada convencionou denominá-lo, por economia, de trânsito religioso. Esta noção aponta, pelo menos, para um duplo movimento: em primeiro lugar, para a circulação de pessoas pelas diversas instituições religiosas, descrita pelas análises sociológicas e demográficas; em segundo lugar, para a metamorfose das práticas e crenças relaboradas nesse processo de justaposições, no tempo e no espaço, de diversas pertenças religiosas, objeto preferencial dos estudos antropológicos.”

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afirmam que: “ocorreu também a multiplicação das alternativas religiosas, encontrando

sua expressão máxima entre os evangélicos, cuja fragmentação institucional é estrutural

ao seu próprio movimento de expansão. Nesse processo sempre renovado de divisão por

"cissiparidade", as denominações continuamente dão origem a novos grupos”. Passados

13 anos da publicação da reconhecida pesquisa sobre “O trânsito religioso no Brasil”,

Almeida e Rogério Barbosa (2014, p. 311-327) retorna à questão da fragmentação,

reforçando a hipótese de desafeição institucional, assim como a inclinação de cada vez

maior à atomização das experiências religiosas protestantes:

“1 em 4 evangélicos não se identifica com nenhuma instituição especificamente [...] eles adotam um conjunto de crenças sem o engajamento moral, afetivo e rotineiro com uma comunidade. Eles transitam entre as alternativas e tendem a calibrar sua religiosidade com mais ou menos música, milagres, ajuda mútua, moralidade, reflexão teológica, entre outros. Assim, já não é mais norma coincidirem no mesmo fiel a identidade, o pertencimento, o comportamento e a doutrina de uma igreja evangélica. Essa identificação mais ampliada com o universo evangélico permite uma circulação interdenominacional e, por conseguinte, a criação de vínculos fracos com uma comunidade religiosa específica” (ALMEIDA & BARBOSA in TEIXEIRA & MENEZES, 2014, p. 324)

Embora não afirmando que os participantes de “Igrejas Orgânicas” representem

um número significativo entre os “não determinados” e ainda que, os frequentadores de

uma “Estação do Caminho”, durante uma pesquisa do IBGE não possa ter respondido “-

sou do Caminho da Graça”, não é inoportuna a pergunta sobre se o recrudescimento dos

“Evangélico não determinados”, que, segundo os dados do IBGE 2010, foram de 700

mil pessoas para mais de 8 milhões, de 3,8% para 23,9%, reflete também o aumento das

práticas alternativas da fé cristã, sobretudo o modelo da “Igreja Orgânica”, que, de tão

customizadas e capilarizadas, se tornam invisíveis ao censo, conforme sua atual

metodologia para o aferimento deste tipo de pertença. Nesse caso, seria um problema

para o pesquisador da religião apoiar-se nos dados quantitativos do IBGE, levando em

consideração que suas amostras obscurecem subjetividades e pormenorizações sobre o

comportamento religiosos, diante da pergunta “qual é sua religião?”

Para Marcelo Camurça (2006, p.45), “A partir dos anos 90 pode-se constatar que

as pesquisas quantitativas ganharam definitivamente um lugar nas Ciências Sociais que

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se ocupam do fenômeno religioso no Brasil”. As ciências humanas encontraram nos

dados estatísticos, uma forma mais apurada de analisar a sociedade. Desta forma a

pesquisa na Sociologia e Antropologia da religião ganharam novas perspectivas

metodológicas complementares aliadas as pesquisas de campo.

Para Almeida33, a relação analítica entre dados censitários aliado à observação

etnográfica ajuda a “compreender o sistema religioso na escala da metrópole”. Desta

forma, a sobreposição de escalas quantitativas e qualitativas e etnográficas favorece a

qualidade da análise porque “mesmo se fosse possível realizar etnografias da cidade

inteira, seria difícil ter uma visão global do problema [...] Todo método é insuficiente”.

Acerca do arsenal das ciências humanas, o antropólogo ainda afirma: “A combinação de

vários deles, no entanto, é uma forma de suprir suas limitações e aproximar-se de uma

completude”.34

Reforçando a reflexão acerca da multiplicação dos grupos religiosos no Brasil,

as respostas para a pergunta “Qual sua religião ou culto?”, ultrapassaram os limites de

avaliação técnica dos dados, foram coletadas cerca de 35 mil possibilidades no Censo

2000, dado a efervescia do campo religioso brasileiro. Como realizar a gestão desta

complexidade de entrelinhas estatística? O Instituto de Estudos da Religião - ISER

atuou como consultoria e compilou, após “eliminar repetições e erros de

denominações”, 500 tipos de respostas, que “devidamente reagrupadas e enxutas

redundaram sua tipologia de 144 categorias. (CAMURÇA, 2006; MAFRA,2004;

JACOB,2004). Em oposição à tese da “diversidade religiosa brasileira”, estas categorias

subjacentes representam três blocos majoritários: 1) Catolicismo, “religião majoritária

no país”; 2) Evangélicos e os nomeados 3) “Sem Religião”. Para Jacob, (JACOB,2006,

p.10) “O recenseamento de 2000 distingue cerca de quinze igrejas pentecostais

diferentes, mas seu número é sem dúvida maior, o que explica as inevitáveis categoriais,

como “evangélica não determinada”, “evangélica sem vínculo institucional”, “outros

evangélicos”, etc.”.

Assim, observando o mecanismo de atuação do IBGE podemos afirmar que um

grande problema a ser discutido é que o Censo não captura as trajetórias e os percursos

percorridos pelos atores religiosos que circulam entre diversas experiências. Diante 33 "Combinação de métodos favorece pesquisa em ciências humanas". <www.fflch.usp.br/centrodametropole/antigo/v1/divercidade/numero18/impressa/2.html>. Acessado em 04/10/2013. 34 Idem.

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disso, podemos sugerir várias hipóteses para o monumental recrudescimento dos

declarados “Sem vínculos” e “Não determinados”. Elas aparecem em várias análises

têm surgindo de reconhecidos pesquisadores a partir dos dados do censo 2010

(TEIXEIRA & MENEZES,2013).

Os sujeitos religiosos questionados podem, através de auto avaliação,

declararem-se “Sem religião” ou “Sem vínculo” por diversos motivos, até pela falta de

tempo para frequentar igrejas cultos e templos. Desta maneira, certos sujeitos mantêm

sua crença e valores religiosos antecedentes e continuam simbolicamente ligados a

determinados troncos religiosos e teológicos confirmando com isso “a existência de

pessoas em redefinição de identidade”. 35

Já aqueles que declararam alheios à religião no Censo 2000, na versão censitária

2010 podem ter encontrado acolhida em determinada religião, mudando-se sua

identidade religiosa.36 Estes indivíduos podem também se declarar frequentadores de

determinada igreja cujo nome não conste nos sistemas eletrônicos do survey nacional. A

situação torna-se ainda mais intricada quando os sujeitos, pertencentes a uma “Igreja

Orgânica”, são arguidos pelo censo. Este é um fenômeno relativamente novo e pouco

pesquisado, sua presença é difícil de ser visualizada em macro escala. Como

compreender a extensão e as informações qualitativas dos participantes destas

alternativas de fé? Mafra (2013, p. 154) afirma que, “O fenômeno religioso está tão

complexo e fugido, que as decisões e melhoras técnicas permitem, apenas, defensiva e

grosseiramente, [produziu] um retrato rascunhado do fenômeno”. É necessário um

mergulho nos dados censitários, trabalhar em escala e com outros arsenais sociológicos

para esta pesquisa.

Sobre os problemas na captura dos dados censitários, assim afirma Lísias

Nogueira Negrão (2008, p. 123-124) “perde assim uma das características mais

originais deste campo, a duplicidade ou mesmo a multiplicidade de crenças e de

participações, além da dinâmica dos percursos e trajetórias realizados” quando as

pesquisas quantitativas “confinam” os resultados a uma única vivência religiosa. Negrão

ainda afirma que os principais “troncos religiosos” do campo religioso brasileiro

representam o “repositório das tradições e fonte de capital sagrado” (2008), porém não 35 “A (re)construção da identidade religiosa inclui dupla ou tripla pertença”. <www.ihu.unisinos.br/entrevistas/511249-estamos-falando-de-re-construcao-de-identidade-religiosa-entrevista-especial-com-silvia-fernandes>. Acessado em 10/10/2013. 36 Idem.

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estão ilesos à tribulação das agências geradoras de autoridade no mundo moderno,

plural e (dito) secularizado.

O Censo pretende ser “um retrato de corpo inteiro do país com o perfil da

população e as características de seus domicílios, ou seja, ele nos diz como somos, onde

estamos e como vivemos”. Na categoria religião, esbarramos com uma série de

subjetividades sobre as quais o Censo auxilia a identificar, de fato, certas tendências. No

entanto, as publicações censitárias são insuficientes para compreender fenômenos

complexos ou subjetivos, como no caso dos “Evangélicos Sem Vínculos” ou os “Sem

Religião”. Estes exprimem uma sociedade que sustém os direitos de livre manifestação

de fé e liberdade de escolha religiosa. Certas questões de expressão do divino não são

capturadas pelos surveys religiosos.

Negrão em sua pesquisa que utilizou formulários direcionados a 1064

domicílios na capital paulista, identificou que 38% dos sujeitos respondentes eram

“mutantes [transitaram entre determinadas religiões] ou não exclusivos [praticam mais

de um tipo de culto ou frequência à mais de um templo]”. Nesse mergulho em grupos

focais de “mutantes religiosos”, o pesquisador pode identificar certas tendências: 1)

Parte dos sujeitos retorna a seus grupos de origem; porém não sem antes permanecer em

um “estágio intermediário” de desfiliação e conflitos em relação à sua confissão

religiosa; 2) Suas constatações levam a crer que “a tendência geral é a de não haver

adesões rápidas nem definitivas a uma determinada membresia e ao simbólico a ela

referido”, com isso ele leva em consideração que “há adesões que tendem a ser

graduais, mas nunca definitivas”, permanecendo a tendência das vivências múltiplas em

intenções em outros campos simbólicos; 3) no Protestantismo a adesão é mais rápida,

seja o sujeito advindo do Catolicismo ou de vivências privadas de fé. Neste último caso:

“assume-se tanto o novo grupo como seu universo simbólico simultânea e

abruptamente”. Podemos concluir esta parte da discussão retornando à questão inicial de

Novaes (2004), afirmando que existe “necessidade de novas abordagens e técnicas de

pesquisa”. Daí o desafio de se elaborar pesquisas sobre novas formas de pertença

religiosa, focalizadas em como os grupos e indivíduos desinstitucionalizados se

reagrupam.

Desta forma, para o pesquisador da Serviço Para a Evangelização da América

Latina - SEPAL, Rubens Muzio (2010, p.127), “as estruturas eclesiais são mais

complexas, nos dias de hoje. Temos pacotes organizacionais muito complicados, um

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emaranhado de opções ministeriais”. Em pesquisa realizada junto a 270 igrejas

brasileiras, Muzio sugere os principais formatos acolhidos pelas igrejas brasileiras, por

ele denominados “Novos Modelos Eclesiais”. Alguns deles são modelos de gestão

empresarial adaptados aos contextos eclesiais. Muzio enumera seis deles: A “Igreja em

Células”; “Igreja com propósitos”; “Rede Ministerial”; “DNI - Desenvolvimento

Natural da Igreja”; “Igrejas Emergentes”; e, por fim, as “Igrejas nos Lares”.

Para Muzio, o modelo das “Igrejas nos lares” figura entre os mais acolhidos nas

experiências religiosas dentro do campo protestante, mas salienta que uma igreja na

casa pode ser um estado embrionário de uma igreja local tradicional e não

necessariamente uma “Igreja Orgânica”. Sobre este ponto Muzio (2010, p. 154-157)

ainda afirma que “Uma grande parte das 200 mil igrejas brasileiras não foi plantada com

estratégias elaboradas [...] ao contrário, a abertura de milhares de congregações ´fundo

de quintal´ [...] da periferia urbana e cidades do interior foi realizada por gente simples”.

Com essas palavras, Muzio ilumina a simpatia já intrínseca no espirito do

protestantismo brasileiro às reuniões domésticas, sobretudo no seio do pentecostalismo,

quando um evangelista não remunerado e formado “no forno” da ação prática atua na

periferia dos grandes centros, sobretudo em residências e “puxadinhos” adaptados para

os cultos pentecostais. Muzio então conclui que este modelo é o de menor custo e

“promove uma forte comunhão a partir dos relacionamentos comunitários e familiares”,

além de evidenciar o crescimento das reuniões que não contam com templos e oficiais

religiosos em diversas regiões da Ásia e no continente Africano, pela “sua

informalidade, liberdade, ausência de estruturas, simplicidade, baixo custo financeiro e

o uso de liderança informal e leiga”. A estes pontos ele acrescenta que não pode deixar

de notar que estas estruturas sócio-religiosas acumulam forte tendência a dissidências e

ao surgimento de novas denominações, pelos laços frouxos e pela falta de formalização

da institucionalização de seus membros.

Retornando ao nosso objetivo central, pautamo-nos na compreensão da

existência de alguns indivíduos, cuja experiência humana é desprovida de uma estrutura

religiosa rígida, ou então afirmam-se cristãos, porém se reconhecem desencantados com

o sistema religioso vigente. Para tornar evidente esse ponto, pretendemos analisar a

produção midiática cultural da liderança dos movimentos que fomentam a dissidência

religiosa e a proposta de uma “Nova igreja”. Recorremos a sua produção textual e

imagéticas, tais como textos em formato de livros, PDF´s ou seus posts capturados em

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suas mídias sociais. Em uma segunda fase, a análise nos fornecera elementos empíricos

para a construção de ‘tipos ideais’ de indivíduos que se declaram afins às “Igrejas

Orgânicas”.

2.2. Análise dos produtores culturais

Da seleção da produção cultural crítica, destacamos três autores. O critério para

a definição do trio foi a circulação de seus conteúdos, observado tanto durante o campo,

quanto na observação de grupos virtuais37 e páginas no Facebook dedicadas ao tema.

Desta forma destacamos os norte-americanos Frank Viola (1964) e Neil Cole (1960) e o

Alemão Wolfgang Simson.

2.2.1 - Frank Viola e a denúncia do “Cristianismo Pagão”.

Um dos grandes expoentes é o autor e conferencista Frank Viola. A sua marca é

a constatação dos desvios sócio históricos da igreja evangélica contemporânea,

classificando-a como “pagã”. Sua produção textual procura averiguar o percurso da

construção histórica da igreja cristã, desde o cristianismo primitivo.

Propomos uma análise de sua produção a fim de explorar os sentidos de suas

mensagens - Quais são, segundo Viola, os desvirtuamentos da igreja contemporânea e

como este autor pode ser articulado à demanda de um espaço religioso em constante

circulação?

Viola é autor e conferencista38, cristão norte-americano, conhecido pela temática

de contestação dos modelos eclesiológicos convencionais39. É reconhecido com um dos

principais expoentes do movimento das Igrejas Orgânicas, após a publicação do livro

37 Um delas foi o grupo "Igrejas Orgânicas / Organic Churches", com cerca de 1.700 membro. <https://www.facebook.com/groups/1464550993778819/?fref=ts>. Acessado em 07/07/2014. 38 <http://frankviola.org/about/>. Acessado em 10/10/2013. Tradução livre do autor. 39 Sua crítica se concentra no universo protestante, segundo a nota de rodapé 7, de sua publicação “Cristianismo Pagão” (2005). “Este livro enfoca as práticas cristãs protestantes. Seu alcance principal é “a igreja hoje” do Protestantismo em vez da “alta igreja” como as denominações Anglicanas, Episcopais, e um tipo de Luteranos. O livro abrange as práticas da “alta Igreja” Católica apenas de passagem.”

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Pagan Christianity?: Exploring the Roots of Our Church Practices (2005), traduzido no

Brasil como Cristianismo Pagão (VIOLA, BARNA:2008), escrito em parceria com

George Barna. A missão de vida de Viola é “ajudar os seguidores de Jesus a conhecer o

seu Senhor com mais intensidade e ganhar novas perspectivas sobre temas antigos ou

ignorados”40

Viola não deixa dúvidas quanto a sua posição em relação ao “cristianismo

institucional”:

“A maioria dos cristãos sabe que algo está errado com o cristianismo contemporâneo. Eles querem se libertar da tirania do status quo. As duas alternativas que dominam a cultura cristã, hoje, é a complacência espiritual, de um lado e a religiosidade baseada no desempenho do outro. O cristianismo moderno tem 10 milhas de largura e uma polegada de profundidade”41.

O livro de Viola é um bem sucedido bestseller. No site Amazon, “Pagan

Christianity?” figura na sétima posição entre o mais vendido na categoria

“eclesiologia”, 23º na categoria “Ritual” e 76º na abrangente categoria “Christianity”.

Sua primeira publicação em inglês foi aos seus 41 anos em 2005, pela editora norte

americana Destiny Image. Depois, outras editoras se interessaram por suas obras, como

as gigantes Thomas Nelson e a Zondervan, Tyndale, David C. Cook, and Baker House.

A construção de sua imagem pública está vinculada ao desmonte das igrejas que atuam

sob um sistema gerencial e mercadológico e a acusação de uma construção histórica na

qual os sentidos originais do cristianismo foram adulterados42. Entre livros seus

impressos, contabilizam-se 18 livros publicados em inglês (muitos deles traduzidos em

diversos idiomas). Também é a notória sua produção no espaço web. Seu Blog

particular é hospedado no prestigioso portal religioso Patheos, ao lado de outros

40 Idem; 41 Idem 42 É preciso ressaltar que as últimas publicações do autor dizem respeito a “vida devocional”.

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pensadores ligados à “Igreja Emergente” e a “Igreja Missional”.43 Também adicionam-

se centenas de posts e podscast em seu blog44.

A construção de sua imagem pública é vinculada ao desmonte das igrejas que

atuam sob um sistema gerencial e mercadológico, e também pela acusação de uma

construção histórica em que os sentidos originais do cristianismo foram adulterados. A

abordagem de sua produção relaciona-se à uma profunda revisão do cerne das próprias

práticas das igrejas locais, bem como a contestação dos modelos eclesiásticos

formulados ao longo da história do cristianismo, alegando que, com o passar do tempo,

a religião cristã perdeu sua essência principal.

Após sua conversão, Viola optou por não frequentar um seminário. Formou-se

em Psicologia na University of South Florida. Apesar de seu autodidatismo, é autor

reverenciado por muitas personalidades do meio teológico. Sua formação autodidata

teológica foi realizada através de estudos particulares, mentorias e sob a influência da

literatura de intelectuais cristãos como A.W. Tozer, Charles Spurgeon, G. Campbell

Morgan, Watchman Nee e sua principal influência, o teólogo Theodore Austin-Sparks

(1888-1971)45.

Viola afirma que frequentou igrejas e organizações eclesiásticas por trinta anos

antes de tomar “a decisão de deixar a igreja institucional” (VIOLA,2008, p. 09), em

1988. Seu descontentamento em relação ao “sistema religioso institucional” é

parcialmente expresso em um trecho da publicação eletrônica “Reimaginando a igreja - 43 O Portal norte americano Patheos <http://www.patheos.com>, desde sua fundação, em 2008, tem se tornado uma importante mídia acerca da religiosidade e espiritualidade mundiais. De linha ecumênica, sem vínculo à nenhuma religião particular. Diversos autores “de margem”, relacionados a Igreja Emergente, ao Cristianismo progressista, Teologia Queer, entre outros, hospedam suas páginas particulares neste Portal. 44 De sua autoria encontramos as publicações em inglês: Living by the Indwelling Life of Christ (2014), When the Pages Are Blank: How to Bring the Bible Back to Life (2013),When the Pages Are Blank: How to Bring the Bible Back to Life (2013), Rethink the will of god (2013), Straight talk to pastor (2013), God's Favorite Place on Earth (2013), Pagan Christianity?: Exploring the Roots of Our Church (2012), Beyond Evangelical (2012), Jesus: A Theography Hardcover (2012) by Leonard Sweet, Revise Us Again: Living from a Renewed Christian (2011), Jesus Manifesto: Restoring the Supremacy and Sovereignty of Jesus Christ (2010), Finding Organic Church: A Comprehensive Guide to Starting and Sustaining Authentic Christian Communities (2009), From Eternity to Here: Rediscovering the Ageless Purpose of God (2009), Reimagining Church: Pursuing the Dream of Organic Christianity (2008), The Untold Story of the New Testament Church: An Extraordinary Guide to Understanding the New Testament (2005), Consta em seu site pessoal 100 podcast (programas para se ouvir em IPod) com duração de 30 minutos cada, com cerca de 900 mil audições. 44Em português temos “Cristianismo Pagão?” (2009), “da eternidade até aqui”, “Reimaginando a igreja 45 <http://frankviola.org/2014/05/28/heroes/> Acessado em 02/08/2014.

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para quem busca mais do que simplesmente um grupo religiosos”46. Em primeiro lugar,

não encontrava satisfação nos “cultos dominicais” onde se sentia “dolorosamente

entediado”. Além disso, não via crescimento substancial nos frequentadores dos cultos

religiosos.

Em seus escritos, Viola não deixa dúvidas quanto a seu descontentamento com o

“cristianismo institucional”. Para ele cristianismo estaria na mesma linhagem que o

paganismo e, além deste fato, sofreu diversas “influências humanas”. Em segundo ele,

“Devido a isso, algo de mim ansiava profundamente por uma experiência de igreja que e aproximasse mais a respeito do que eu lia no Novo Testamento. E em nenhuma das igrejas tradicionais que frequentava parecia que eu poderia encontrar isso. Sua convicção de que a igreja contemporânea havia se afastado de suas raízes bíblicas levaram-no a decisão de “romper com a igreja institucional [quando ele passou a se reunir] com um grupo de cristãos de maneira orgânica”. (VIOLA,2008, p.9)

Após sua dissidência, aos 24 anos, Viola iniciou um grupo de estudos bíblicos

na cidade de Brandon. O encontro, voltado aos jovens universitários daquela cidade,

logo cresceu com a adesão daqueles que se simpatizavam com sua mensagem. Nesta

primeira experimentação como comunidade informal, relata que ali não havia liturgia,

não havia clero, que escreviam suas próprias canções. Este grupo inicial chegou a

alcançar cerca de 50 estudantes. Porém, em meados dos anos de 1990, ele mudou seu

foco, de “grupo doméstico” para o conceito de “Igrejas orgânicas”. Desta forma, além

de convocar cristãos a participarem de seus estudos, Viola também tinha o objetivo de

treiná-los para que pudessem liderar outras igrejas orgânicas autônomas, porém sem um

vínculo hierárquico centralizada em sua pessoa ou neste grupo inicial.

Reproduzimos aqui o testemunho de um jovem participante de seu grupo,

extraído do Blog pessoal de Viola47, que engloba as experiências informais destes

primeiros grupos em Brandon:

46 O título original, em inglês não possui o sub título dado pela editora brasileira. O nome original é: “Reimagining the church” (2008) 47 Blog pessoal do Autor. <http://www.patheos.com/blogs/frankviola/frankviolabrandon/>.

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“Eu já não estava satisfeito com a assistir a performance. Nesta reunião orgânica, comecei a querer partilhar com os meus irmãos e irmãs que eu tinha visto do Senhor. Em vez de ser passivo, agora eu pensei que era fácil de funcionar e contribuir. Cada uma de nossas reuniões era livre para ser diferente. Às vezes a gente cantava por horas. Às vezes, os crentes estavam a rebentar pelas costuras de compartilhar o que Jesus tinha feito em suas vidas naquela semana. Às vezes a gente reverenciado grandiosidade do Senhor em silêncio. Ninguém tinha a dizer-nos para fazer essas coisas. O Espírito estava se movendo dessa maneira e eles simplesmente aconteceu espontaneamente. Muitas vezes comemos juntos como uma família. Às vezes nós compartilhamos escrituras com o outro. Outras vezes, promulgada cenas e histórias da Bíblia que lançar luz sobre Cristo. Nós nos encontramos por toda a semana. No período da manhã, os irmãos iria encontrar um outro irmão ou dois, e as irmãs se reuniam com as irmãs. E gostaríamos de buscar o Senhor em oração e contemplar as Escrituras juntos. Gostaríamos de começar o nosso dia com Cristo. À noite, alguns dos membros abriria suas casas e compartilhar Cristo durante o jantar. Tivemos irmãos e irmãs reuniões onde iríamos decidir coletivamente sobre questões relacionadas com a igreja. E gostaríamos de compartilhar responsabilidades para cuidar uns dos outros. Se não houvesse necessidades prementes, teríamos apenas cantar ao Senhor e buscar Sua presença junto. Se houvesse um membro em necessidade, poderíamos pensar em maneiras de ajudá-los. Às vezes nós apenas planejar meios de ajudar uns aos outros para se divertir. Às vezes, as pessoas só iria tomar conta para os pais e dar-lhes uma noite para fora na cidade. Às vezes, quando um dos irmãos, ou irmãs, partiu em uma longa viagem, toda a igreja iria aparecer no aeroporto para recebê-los. E nós teríamos uma reunião da igreja em pleno aeroporto”. (“Jennifer” 48)

Em 1995, Viola muda novamente sua abordagem, deixando sua congregação

local para se concentrar em encontros de “Igrejas Orgânicas” e “missionais” no estado

da Flórida-EUA, mentoriando outros grupos e formando redes destas congregações.

Fica evidente na produção biográfica de Viola que o espectro de segmentação visa

atingir os unchurched ou os descontentes com a “igreja institucional”, termo que, para

Viola, significa “igreja com as quais a maioria das pessoas tem familiaridade

atualmente” (VIOLA,2009, p. 15). A concepção de Viola acerca de “Igreja

Institucional” é especialmente importante para se compreender o conflito entre modelo

“orgânico” em relação aos modelos formais ornados de prédios, pastores oficiais,

liderança formalizada, formato de auditório e, é claro, dízimos. Para abrir nosso

espectro acerca do vocábulo e definir o ambiente filológico do termo, tomemos o que

ele afirma: “eu poderia com a mesma familiaridade denomina-las, ´igreja 48 http://www.patheos.com/blogs/frankviola/frankviolabrandon/

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estabelecidas´,´igrejas tipo-basílicas´, ´igrejas-tradicionais´,´igreja organizadas´,

[...]´igrejas contemporâneas´ ,´igrejas-audiência´, [...] igrejas baseadas em programas´.

(VIOLA,2009, p. 15).

Viola também salienta que sua apropriação do termo “instituição” não é similar

à utilização no universo da Sociologia em geral para descrever qualquer padrão humano

rotinizado. O autor faz uso estreito do termo para expressar o seu sentimento sobre a

falibilidade da “igreja ocidental de modelo basilical”, na qual os entraves burocráticos

operam em primazia aos contratos humanos e relacionamentos de seus membros. Em

outras palavras, sua crítica à “instituição” recai na oposição da primazia da igreja como

elemento jurídico, físico (templos-basílica), culto-show e burocratizada, quando estes

equipamentos sócio-técnicos se sobrepõem à experiência popular diretamente com o

divino, vivenciados em na coletividade em seu sentido stricto, emancipada de um

agente regulador.

Para Viola (2009, p.16):

“Estas igrejas são construídas sobre programas e rituais mais do que sobre relacionamentos. Elas são organizações altamente estruturadas, tipicamente centradas em seu edifício, lideradas por profissionais separados para tal (´ministros e ´pastores´), os quais são ajudados por voluntários (leigos). Elas requerem edifícios, pessoal salários e a administração. Na igreja institucional, os membros assistem por uma ou duas vezes na semana uma performance religiosa conduzida principalmente pelo pastor e depois se retiram para suas casas onde individualmente vivem suas vidas cristãs”.

A afirmação acima é um protesto de Viola (2006, p. 7) sobre a forma

contemporânea de como os cristãos têm “feito” a igreja desde os primeiros séculos.

Logo no prefácio de seu texto, encontramos a radicalidade explícita:” A igreja

institucional moderna não tem qualquer direito bíblico nem histórico para continuar

existindo”. Por outro lado, sua ênfase e apelo literário encontraram solo fértil no EUA,

com a dada tendência existente naquele país da não frequência a denominações

tradicionais. Em pesquisa realizada em 2012 o PEW Research Center identificou que

“O número de americanos que não se identificam com nenhuma religião continua a

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crescer a um ritmo rápido. Um quinto da população dos Estados Unidos - e um terço

dos adultos com menos de 30 – [...] são religiosos não afiliados”.49

Assim, em sua obra mais conhecida, Cristianismo Pagão? Frank Viola faz uma

intensa revisão de cunho histórico para encontrar a gênese de vários costumes das

“Igrejas institucionais”. Seu objetivo é fazer uma engenharia inversa dos costumes, para

poder implodi-los, alegando que a sobreposição cultural se deu porque o cristianismo

alterou a sua essência ao longo de 20 séculos.

2.2.2 - Neil Cole - plantando a fé onde a vida acontece

Nosso segundo expoente é Neil Cole, plantador de igrejas e pastor norte

americano, fundador e diretor do Church Multiplication Association - CMA,

organização que treina e incentiva a multiplicação de “Igrejas Orgânicas” ao redor do

mundo. Cole foi pastor de uma igreja no interior da Califórnia durante 8 anos. No

sétimo ano de seu ministério enfrentou diversos infortúnios, ataques de amigos pessoais

e também profundos questionamentos em relação ao tipo de ministério que desenvolvia.

Em meio a esta crise, que originou uma posterior reviravolta em seu ministério, Cole é

diagnosticado com depressão quimicamente induzida, seria o “começo de algo novo”

(COLE, 2007, p. 48).

Cole decide por uma nova abordagem em suas atividades. Desta forma ele e sua

família foram são comissionados para atuar em Long Beach, Califórnia, em um projeto

para alcançar jovens em crise, plantando novas igrejas batizadas de Awakining Chapels,

espaços onde pregava em diálogo com a cultural pós-moderna. Concomintantemente a

estas atividades, Cole concebeu e fundou a organização CMA. No seu entender era

necessário fundar não apenas uma única “Igreja Orgânica”, mas um movimento de

plantação de igrejas. Desta forma a Church Multiplication Association ofereceria

suporte e pesquisas relacionadas à sua tarefa de evangelização eficiente.

Cole afirma que antes de iniciar sua empreitada como plantador e mentor de

plantadores de igrejas orgânicas foi convidado para dar consultoria a uma nova igreja.

49 "´Nones´ on the Rise". <www.pewforum.org/2012/10/09/nones-on-the-rise/>. Acessado em 10/07/2013.

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Ao entrevistar os membros para conhecer a raiz dos problemas daquela comunidade,

notou que a principal preocupação dos fiéis girava em torno de assuntos burocráticos,

tais como o desejo de terem um estatuto, regimentos, compra de terreno para a sede e,

assim, serem “uma igreja de verdade”. Esta consultoria, segundo o autor, foi um dos

momentos em que teve insights acerca da não existência de uma rede de solidariedade

em muitas igrejas americanas, pois os cultos tornaram-se “shows” e as comunidades

“auditórios”.

As Aweking Chapels foram muito bem sucedidas. Cole não pensou em alugar

um espaço maior. Sua estratégia foi treinar seus discípulos para iniciarem outras igrejas

com o mesmo molde, que conservasse a unidade e “comunhão” dos cristãos e cuja

energia não fosse desperdiçada com a elaboração de programas e construções de

prédios. Dez igrejas foram iniciadas no primeiro ano; 18 em seu segundo ano; e 52

igrejas orgânicas no terceiro ano. No ano de 2002 eram iniciadas 2 igrejas por semana.

O crescimento exponencial veio em 2004, quando cerca de 400 igrejas já haviam sido

iniciadas como suporte da CMA. Cole (2009, p.54) conta que “estas igrejas começaram

bem pequenas (com uma média de 15 pessoas) e simples. O termo ´igreja simples´

começou a se popularizar porque dávamos valor a uma vida simples, seguindo o nosso

Senhor, e fugíamos das complexidades das igrejas tradicionais”. Para Cole (2009, p.54):

“A igreja convencional tem-se tornado tão complicada e difícil de levar que apenas um profissional difícil de ser encontrado consegue fazer isso toda semana. [...] [logo] A igreja não é um culto semanal, mas a família de Deus; o que ela tem feito atualmente é o oposto do objeto para qual foi criada. Quando uma igreja é muito complicada, sua função é tirada das mãos dos cristãos comuns e colocada nas mãos de alguns profissionais talentosos. O resultado é uma igreja passiva, onde membros agem mais como expectadores do que agentes poderosos do Reino”

A partir da experiência com a CMA, Cole (2009, p. 49) afirma que:

“descobrimos maneiras de iniciar igrejas saudáveis e que poderiam se reproduzir. Essas

novas igrejas eram pequenas, e a maioria se encontravam em casas”. Conforme sua

narrativa dos fatos, denominou-as “Igrejas Orgânicas”, para “dar ênfase à natureza

saudável e à naturalidade da multiplicação que queríamos tanto ver”.

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O termo “Igreja Orgânica” for se tornando popular e chegou ao Brasil a partir de

2007 com a publicação de um livro de Cole, intitulado Igreja Orgânica - plantando a fé

onde a vida acontece (2007). A opção por esta palavra, segundo Cole, veio por dois

motivos. O termo “igrejas caseiras” na América no Norte está correlacionado a um

grupo de pessoas insatisfeitas com a igreja institucional. Em segundo lugar, evitou-se

usar o termo “igrejas caseiras” porque não gostaria de alinhar seu movimento a um

espaço físico específico: a residência. Os grupos orgânicos poderiam se encontrar em

qualquer lugar. “Estas Igrejas Orgânicas brotavam onde quer que a semente tivesse sido

plantada”, como em “lanchonetes, campi universitários, escritórios, casas. Acredito que

a igreja deve ser plantada em todos os lugares em que haja vida acontecendo”,

acrescenta Cole.

Segundo Cole (2007, p. 51), o movimento tem se desenvolvido em 32 estados

norte americanos e em 23 países, até 2007, através da CMA. “Rapidamente igreja

orgânicas começaram a aparecer por todos os Estados Unidos e pelo mundo”.

2.2.3 - Simson Wolfgang - “casas que transformam o mundo”

Simson Wolfgang cresceu em Stuttgart, Alemanha, trabalhou com motorista de

taxi e assistente social. Estudou teologia no Free Evangelical Theological Academy

(Basel, Switzerland). O autor é conhecido no Brasil através do livro “Casas que

transformam o mundo - Igreja nos lares” (WOFGANG,2008). Alinhado com os

expoentes citados acima, o pensamento de Wolfgang assenta-se sobre o aumento do

“grau de insatisfação com a ´igreja como a conhecemos´” (WOLFGANG, 2008, p. 27).

De onde partiria este grau de insatisfação? Wolfgang refere-se à decepção de pessoas

que “entraram com lágrimas de alegria pela porta da frente das igrejas e que

desaparecem novamente pela porta dos fundos com lágrimas de decepção”. Conforme o

autor, esta decepção se reflete na pesquisa entre jovens em Amsterdã realizadas nos

anos 1990, onde 100% dos respondentes afirmaram crer em Deus, porém 99% deles

mostraram-se desinteressados em frequentar uma igreja cristã. Walfgang ainda refere-se

a outra pesquisa, desta vez realizada em Madras pelo Theological College (Madras-

Índia), que revelou que na cidade de 8 milhões de habitantes havia 200 mil crentes não

institucionais. A argumentação de grande parte deles para a não frequência recaia sobre

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a própria igreja: “argumentam que [se] sentem atraídos por Jesus, mas sentem repulsa

da Igreja”. (p. 28). Wolgang (2008, p. 36) também elenca uma pesquisa elaborada por

John Campbell na Escócia, cuja conclusão foi a de que “uma das maiores barreiras para

crer em Deus é a própria Igreja”.

Para Wolfgang existe uma necessidade nos tempos atuais de uma “terceira

reforma”. Na primeira reforma, empreendida por Martinho Lutero no século XVI, a

“graça” foi novamente posta como pilar central na doutrina protestante. A segunda

reforma deu-se em meados dos séculos VXII e XVIII, quando movimentos pietistas

redescobriram a espiritualidade fervorosa em Deus, o que deu impulso aos movimentos

avivalistas e missionários da época. Finalmente a Terceira Reforma, como formula o

autor, seria uma reforma na estrutura, na eclesiologia. A necessidade para esta

reorganização da maneira de ser igreja cristã dar-se-ia por alguns motivos enumerados

pelo autor, que nos auxiliaram a compreender a centralidade de seu protesto.

Ao contrário da tendência das mega-igrejas, tais grupos, segundo Wolfgang

(2008, p. 142), precisam manter-se pequenos para assegurar sua fluidez e convívio

autêntico. Seguindo sua argumentação, existe uma “linha invisível entre o cristianismo

organizado e o orgânico”. 41). A partir de estudos sociológicos, o autor afirma que um

grupo pode contar no máximo 20 pessoas para manter um relacionamento informal e

harmonioso. Quando esta quantidade é ultrapassada o grupo passa a se auto

regulamentar e os relacionamentos tornam-se “artificiais”. Desta forma, é importante

manter o grupo abaixo deste número de integrantes para que se possa garantir um estilo

informal e um espírito familiar. Para Wolfgang (2008, p. 42), quando se ultrapassa a

“barreira dos 20”:

“O grupo deixa de funcionar organicamente e começa a requerer que se torne formal e organizado. [...] em decorrência um grupo no lar que passa de cerca de 20 pessoas perde sua atração original, muda seu sistema de valores e subitamente funciona de acordo com leis completamente diferentes. Perde sua própria vida, que era espontânea e informal. [...] subitamente ele requer liderança, uma mão forte”.

Similar ao pensamento de Viola e Cole, Wolfgang também aponta para a

petrificação do modelo atual: “vivemos hoje quase 1.700 anos depois que este

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desenvolvimento teve início. [..] Muitos de nós carregam consigo um monumental

lastro histórico de ´carga eclesiástica´”. O lastro histórico ao qual Wolfgang se refere

são os acúmulos culturais que soterraram o “Movimento de Jesus”. Estes acúmulos

tornaram o cristianismo uma religião híbrida, sobretudo após a suposta conversão do

imperador Constantino que deflagrou o processo de tornar o movimento de discípulos

de Jesus uma religião política estatal. Assim, seu protesto, em consonância com os

demais autores, revela a insatisfação de parte dos evangélicos norte-americanos, que,

como vimos, também refle em determinados “protestos” no campo religioso brasileiro,

quanto ao pertencimento às igrejas institucionais. Também revela a busca espiritual de

nossos interlocutores por experiências mais familiares, íntimas e profundas com Deus,

longe dos “cultos shows”, representados pelas megaigrejas americanas.

Fica a pergunta, segundo Wolfgang: o que são? O que fazem e como funcionam

as Igrejas Orgânicas? A partir de sua experiência o autor elege quatro pontos

fundamentais que servem de arcabouço para suas comunidades: 1) Refeições conjuntas;

2) Ensinamento Dinâmico; 3) Partilha de Benção materiais e espirituais e; 4) Oração

comunitária;

Para Wolfgang (2008, p. 95-96), uma Igreja no Lar é:

“Vida comunitária e cristãos conduzidas por força sobrenatural em casas bem normais. É um estilo de vida redimido, vivido em situações concretas. É o caminho orgânico pelo qual os cristãos seguem Jesus conjuntamente no cotidiano. Pelo fato de mais pertencerem a si próprios, os redimidos adotam consistentemente um estio de vida comunitário. [...]Neste sentido as igrejas nos lares são o leito e a morte do egoísmo - e por consequência, o lugar de nascimento da comunidade eclesial. A verdadeira comunhão começa quando termina o individualismo. [...] Igreja no lar significa que o corpo de Cristo se reúne em casas e que se compreende como pessoas convertidas umas às outras. [...] Em muitos sentidos uma igreja no lar constituí uma família extensa espiritual, na qual se partilha a vida de modo espontâneo e orgânico e onde de fato se está em casa numa rede de relacionamentos saudáveis. A vida cotidiana das igrejas nos lares não requer mais organização, burocracia e cerimônias do que as famílias extensas comuns”.

Para elucidar a polaridade existente entre Igrejas Institucionais (aos quais

Wolfgang denomina de “Igrejas Tradicional de Pastores”) e a “Igreja Orgânica”

(chamadas em sua obra de “Igrejas no lar do Novo Testamento”), vale a pena conferir

uma tabela formulada por Wolfgang, que para nossos fins tipológicos é bastante

esclarecedora:

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Igreja Institucional Igreja Orgânica

Local Reúnem-se em recintos

eclesiásticos

Qualquer lugar

Financiamento Dízimo, oferta Partilha-se o que possui

Estilo de vida Individual Comunitário

Evangelização Campanhas, ações,

programas de especialistas

eclesiásticos

“fazer discípulos”

naturalmente entre vizinhos;

multiplica-se por si

Lema “Tragam mais pessoas para a

igreja!”

“Levem a igreja até as

pessoas!”

Tamanho Grupo grande e apessoal Grupos pequenos com

relacionamentos estreitos

Estilo de ensino Estático, centrado na

pregação

Dinâmico, estilo de pergunta

e respostas

Centro O culto na igreja A vida cotidiana

Tarefa mais importante Fazer boas pregações, visitas

às casas, oferecer um

programa completo

orientar cristãos a assumirem

pessoalmente o serviço

pastoral

Palavra-Chave “Torna-se membros” “ide e fazer discípulos”

Serviço Caráter de apresentação,

impressionar os outros

Centrado na formação,

confere poder a todos.

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Missão Enviar missionários

especiais

Igreja envia a si própria

como unidade multiplicável

Concluindo, podemos eleger algumas definições. As igrejas orgânicas podem

também receber outros nomes como “Igreja nos Lares”, Igreja Simples”, “Igreja

doméstica”, “Igreja não denominacional”, “Simplesmente Igreja”, “Igrejas da cidade”.

Porém, independentemente do nome, o que nos interessa é atentar à experiência cristã

comunitária, feita fora dos espaços considerados sagrados pela maioria das religiões,

com tendências anti clericais e que valorizam a rede de solidariedade formada pela

comunidade religiosa. O termo corresponde à um grupo de cerca de 8 aos 20 cristãos

que reúnem-se regularmente ou espontaneamente em residências ou locais poucos

usuais para reuniões eclesiais, tais como bares, cafés, locais públicos. Estes

agrupamentos possuem traços distintivos: 1º) Não há um clero estabelecido, todos os

fiéis são emponderados, isto é, capazes de participar ativamente no grupo e nas esferas

de liderança. 2º) Durante seus encontros, não há condução litúrgica refinada ou

profissionalizada, as igrejas orgânicas encorajam a que todos os fiéis participem

ativamente sem considerar ninguém como pertencente a uma “classe privilegiada”. 3º)

Também são conduzidos por um sistema de liderança descentralizada e livre, criando

um sistema de autonomia dos indivíduos para auto gerirem os próprios grupos

emancipados. O trânsito religioso que há - de “igrejas Institucionais” para uma “Igreja

Orgânica” é outra forte marca. Também, em alguns casos, redes de igrejas são

estabelecidas nas cidades, “redes apostólicas ou de supervisão”. (VIOLA, 2009; COLE,

2005, SIMSON, 2001; WRIGHT, 1997; CHAMBERS, 1997; LOONEY, 2010; DALE,

2002).

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CAPÍTULO III

CAMINHO DA GRAÇA: TRAJETÓRIA DE UMA IGREJA ORGÂNICA

O “indivíduo moderno, no que se refere à religião, poder crer sem pertencer” (HERVIEU-LÉGER, 2008, p. 156)

Este terceiro capítulo analisa o movimento Caminho da Graça (CdG), que, ao

meu entender, oferece um bom exemplo de “Igreja Orgânica”. Divide-se em duas

partes. Na primeira, é levantado o histórico de seu fundador, Caio Fábio de Araújo

Filho, ou simplesmente Caio Fabio. A partir da observação de sua trajetória é possível

construir uma percepção privilegiada dos deslocamentos do campo religioso brasileiro

no último quarto do século XX. Deste modo, é possível levantar algumas hipóteses

acerca do surgimento das “Igrejas Orgânicas” contemporâneas, categoria na qual

incluímos o CdG. A segunda parte será dedicada a pesquisar a história do CdG com

suas “Estações da Graça”, procurando também levantar hipóteses sobre seu perfil sócio-

religioso à luz dos estudos da Sociologia da Religião.

Para o pesquisador, confirmado através do período meses em observação

participativa, o “Caminho da Graça” é um movimento ligado ao recrudescimento do

descontentamento recente dos cristãos protestantes ao “universo evangélico”. Este

descontentamento, como veremos no transcorrer do capítulo, colabora para a liquefação

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das identidades religiosas dos indivíduos, proporcionando uma intensa busca por

agrupamentos mais “autênticos”, menos “rígidos”, com mais “liberdade” e menos

“hipocrisia”. Ademais, há um convencimento, no entender de seus participantes, de que

tais grupos aproximam-se ao ideal de igreja estabelecido no cristianismo original. Para

esta pesquisa, usamos o termo “Igreja Orgânica” para designar este tipo de micro

comunidades religiosas cristãs e não denominacionais.

Podemos dizer que a história do movimento o “Caminho da Graça” está ligada

diretamente à trajetória e biografia de seu principal líder e fundador, Caio Fábio

D´Araújo Filho (1955). Para Robinson Cavalcanti (in D´ARAÚJO, 2005, p. 05) “Não se

pode pretender escrever a história do cristianismo brasileiro do século XX e XXI sem

referência a esse personagem”. Cavalcanti, talvez com certo exagero, denomina as

décadas de 1980-90 como a “Era Caio Fábio”50, devido à marcante articulação de

D´Araújo dentro do cenário evangélico e da sociedade civil brasileira. Entretanto, talvez

Cavalcanti tenha alguma razão, pois durante os anos 1980-90, dificilmente alguma

liderança protestante do país alcançou tão ampla aceitação fora da instituição e, por não

ficar presa aos seus quadros, projetou-se nacionalmente como articulador na sociedade

civil. Portanto descrever parte da trajetória de Caio Fábio D´Araújo é também buscar

uma tentativa de revisar o processo de mudanças sócio-religiosas que se deram no

Brasil, a partir dos anos de 1990.

Para compreendermos a dimensão da sua figura pública observaremos alguns

fatos que tornaram D´Araújo, personagem peculiar no campo religioso brasileiro

naquela década. Seu maior empreendimento foi realizado em 1978, com a fundação da

Visão Nacional de Evangelização - VINDE, “missão que por muito tempo serviu de

apoio ao seu ministério de evangelização, tendo realizado através da VINDE,

congressos e cruzadas -por todo o Brasil”, afirma Cavalcanti.51 A VINDE catapultou

um holding de empreendimentos voltados prioritariamente para a comunicação, sendo

um “guarda-chuva” que abrangia a VINDE Sat e VINDE TV, pioneiras nas TV’s via

satélite e por assinatura no segmento evangélico, a revista VINDE, principal canal de

promoção para todos os seus eventos, viagens, promoções, ativismos sociais, e outros

50CAVANCANTI, Robinson. As chamadas “seitas” protestantes. < http://www.ultimato.com.br/revista/artigos/276/as-chamadas-seitas-protestantes>. Acessado em 10/10/2013.

51 <http://www.caiofabio.net/caiofabio.asp>. Acessado em 10/10/2013.

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empreendimentos. Seus congressos, sempre segmentados para “pastores e líderes”,

“juventude”, “empresários”, “casais”, aglomeravam milhares de evangélicos. Ademais,

a “Fábrica da Esperança” (ONG fundada em 1994) implementada na favela do Acari,

tornou-se conhecida nacionalmente, sendo, na época, uma das maiores organizações

não-governamentais da América Latina.

Talvez seu mais ambicioso projeto seja a Associação Evangélica Brasileira -

AEVB, constituída em 1991 com o intuito de reunir os evangélicos dentro de um

ambiente associativo onde poderiam minimamente sintonizar seus propósitos e

percepções teológicas. Estas atividades projetavam Caio Fabio para ocupar um lugar

estratégico no evangelicalismo brasileiro. Para Paul Freston (1995, p.12) "a projeção

nacional de Caio Fábio veio somente em 1994, com entrevistas e extensas reportagens

nas principais revistas semanais e jornais diários e nas redes de televisão, bem como a

introdução de um ´pastor ético´, assim como referências à Fábrica da Esperança em

novela da Globo".

Alexandre Brasil (2003, p. 223-242) destaca a atuação de Caio, da VINDE e de

seu conglomerado de empresas midiáticas. Para atingir os seus objetivos de pesquisa,

Fonseca identifica quatro momentos na história de Caio Fábio: o início de seu

ministério em Manaus (1974-1980); o desenvolvimento de sua presença junto à mídia

radiofônica e televisiva; e sua mudança para o Rio de Janeiro, “com a consolidação de

sua liderança entre os ´evangélicos de esquerda´” (1980-1987), período em que,

segundo Fonseca, “se aproxima com um público melhor situado economicamente”,

após o período de residência nos Estados Unidos. Finalmente entre 1993-1998,

D´Araújo se torna uma “significativa figura na sociedade civil organizada”. Já os anos

de 1998 e 1999 foram marcados pela sua chamada “queda”52, fazendo-o entrar em

novas dinâmicas, quando acusado da tentativa da divulgação do “Dossiê Cayman” e de

crises pessoais que o levaram a uma reviravolta em sua performance pública e na vida

pessoal.

Ainda é possível frisar dois períodos importantes na trajetória de D´Araújo:

(2000-2002) no qual D´Araújo se torna persona non grata entre os evangélicos, por

conta de infortúnios em sua vida pessoal; de reclusão nos Estados Unidos e intensa

recomposição de sua abordagem espiritual; torna-se outsider ao universo evangélico e 52 “Caio Fábio abre o peito sobre a queda de peito aberto”. < http://youtu.be/ytDqvg925uI>. Acessado em 10/10/2014.

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começa a ganhar simpatia de miríades de evangélicos feridos e decepcionadas com as

“igrejas evangélicas institucionais”, sobretudo após o advento da consolidação do

movimento neopentecostal53. Em 2002, recebe uma “revelação” através de um

“profeta”. A suposta profecia antevia sua restauração, assim como a de seu ministério, e

ainda, segundo a premonição, ele voltaria a alcançar milhões com sua nova mensagem.

Outro momento a ser destacado é o “pós 2002”, quando Caio Fábio lançou seu site

(www.caiofabio.com), dando início a uma nova etapa pública, com esse “portal dos

invisíveis”, conforme suas próprias palavras. 54 É nessa fase online de suas atividades

que surge o “Caminho da Graça”, assim como a formulação definitiva de uma

perspectiva que apresentava um “cristianismo de contracultura”.

3.1 - O fundador: Biografia, trajetória e peregrinações

Antes de apresentarmos mais observações sobre a trajetória de Caio Fabio, de

reverendo presbiteriano a mentor de uma antítese da “igreja evangélica institucional”

que se tornou o “Caminho da Graça”, é importante lembrar o que Carlo Ginzburg (1989,

p. 175-176) afirma a respeito das pesquisas no gênero “biografia”. Segundo o autor, “As

linhas se convergem para o nome e que dela partem, compondo uma espécie de teia de

malha fina, dão ao observador a imagem gráfica do tecido social em que o indivíduo

está inserido”. De igual modo, os indivíduos só podem ser compreendidos aliados a uma

rede que os liga de maneira interdependente dentro de seu espaço social, de tal forma

que a sociedade é composta por tramas interligadas entre sujeitos e agências. Desta

forma, é possível realizar leituras de uma sociedade através de análise de trajetórias

individuais. Ressaltando que não podemos tratar de maneira desassociada indivíduos e

sociedade, pois, os aspectos biográficos constroem uma rede de relações. Sendo assim,

mergulhar em experiências individuais permite alcançar espectros mais gerais da

dinâmica cultural dos indivíduos. Desta forma, vagorosamente emerge uma biografia,

seja embora inevitavelmente fragmentada, e a rede de relações que a circunscreve”.

53 Paulo Romeiro (2005), sustenta a tese de que nos últimos anos, com a multiplicação das igrejas neopentecostais e seu discurso messiânico, esse contingente de desiludidos tem crescido em progressão geométrica”. 54 “A semente, o site, você e eu. | O portal dos invisíveis. - www.caiofabio.net”. < http://youtu.be/NN9BMWphfok> . Acessado em 06/06/2014.

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Podemos observar também estar presente na cultura brasileira a necessidade de

interlocutores que se sobressaiam como “mitos”. Kátia Mendonça (2002, p.14), ao

dissertar sobre o “mito do herói” no “imaginário” brasileiro sustenta que:

“na modernidade, o desencantamento do mundo, como previsto por Max Weber, na realidade resultou em um processo na qual o mito, despojado de seu carácter sagrado, submete-se a esfera da racionalidade, se mercantiliza, sendo consumido com volúpia por uma sociedade na qual os indivíduos, com seus laços coletivos rompidos”.

Sendo assim, é inevitável, segundo Mendonça, que as personalidades míticas

ataviem-se à recepção coletiva fetichizada de suas mensagens. Ainda, seguindo nossa

argumentação ressaltamos Joseph Campbell (1997, p. 66), que afirma fazer parte

integrante da experiência humana a convocação para uma jornada heroica destinada a

uma proeza física ou existencial. Campbell chama essa jornada de “ciclo do herói”. Seu

primeiro estágio se “denomina ‘o chamado da aventura’; isso quer dizer que o destino

convoca o herói e desloca seu ‘centro da gravidade’ - do seio da sociedade, para uma

região desconhecida”. Logo, para Mendonça e Campbell, há que se considerar que

diante de narrativas biográficas atavia-se uma convocação a uma jornada convincente,

na qual o “herói” é vocacionado e consagrado.

Posta estas referências podemos acentuar quatro dessas passagens da vida de

Caio Fábio que podemos considerar “mística-fundantes”. Em sua juventude: 1) Aos

dois dias de nascimento seu pai, ateu à época, dedica-o a Deus; 2) aos 18 anos uma

sucuri, em visão “espiritual”, enforca-o, fato que o leva D´Araújo à conversão ao

cristianismo; já em sua maturidade veremos mais duas destas passagens: 3) Num sonho

profético, em 1998, uma voz lhe diz: "Pregue para essa nova geração"55 e 4) Um

“sensitivo” cego, profetiza à Caio Fabio haver em sua história um “portal”, um “portão

dos invisíveis” por onde passariam milhões de pessoas.

55 “Pregue a nova geração!”. <http://youtu.be/CYlNeTE1im4>. Acessado em 10/10/2013.

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3.1.1 - Do Amazonas ao Rio de Janeiro

Caio Fábio D´Araújo Filho nasceu em Manaus em 15/03/1955, primogênito de

Lacy Silva e de Caio Fábio de D´Araújo. Houve, diante da escolha de seu nome, uma

dúvida: se chamaria Hugo ou Caio? Pela tradição de batizar o primogênito com o nome

do pai, ficou Caio. Seu pai, à época, trabalhava como servidor da justiça, desde 1951,

quando foi aprovado em um concurso público, escolhendo atuar profissionalmente em

sua cidade natal, Canutama-AM, onde D´Araújo Filho passou a maior parte de sua

infância e juventude.

É interessante sublinhar em sua trajetória a “consagração a Deus”, narrada, não

sem certa dramaticidade, em sua autobiografia Confissão do Pastor (D´ARAÚJO, 1995,

p. 15-16)56. Sua dedicação foi celebrada por seu pai, que mesmo agnóstico (porém com

a alma “totalmente impregnada pela ideia do sagrado”), toma-lhe nos braços e profere a

seguinte oração: “Eu te dedico meu filho, meu primogênito e peço que faças dele um

homem de Deus, um sacerdote [...] Por isso, sem saber porque Te peço, por favor, Deus,

faze dele um pastor”.

Caio Fábio tinha dois anos quando em 1957 seu pai deixa o emprego público

para dedicar-se a um escritório de advocacia próprio. Com o sucesso desta empreitada,

em 1958 cria a “Colimpa S.A”, exploradora de ouro na região do Parauari. Notório

empreendedor, em 1961, Caio pai abre uma nova empresa, a “Compaina”, exploradora

de borracha e castanhas. Sua família ganha destaque na sociedade amazonense da

época. Fonseca (2003, p. 227) lembra que Caio Filho vem de uma família de boa

situação financeira, “filho de um industrial e advogado de sucesso, sócio do [ex]

senador Bernardo Cabral, e neto do governador do Estado do Amazonas na década de

1940”. Porém, com o advento do golpe de 1964, “perdem quase tudo”.

D´Araújo Filho sustenta que foi seu pai que mais o influenciou neste mundo até

os dias de hoje (D´Araújo, 1995, p. 11). D´Araújo pai foi católico até os 26 anos quando

decidiu se tornar agnóstico. Contudo, lendo a Bíblia “de cabo a rabo”, adquiriu uma

nova visão e se converteu sozinho na cozinha de seu apartamento, em Niterói,

“entregando sua vida a Jesus”. Não disse nada a ninguém sobre o ocorrido. No Natal do

mesmo ano, aceitou o convite de participar de um culto em uma Igreja Presbiteriana. 56 Publicada aos seus 42 anos, best seller na época.

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Durante o evento e através da pregação do reverendo Antônio Elias, decidiu tornar

pública sua conversão. “Com os pés na igreja, seu progresso espiritual foi rápido” e

gradualmente foi perdendo o interesse pela advocacia, pois “não conseguia mais

mentir”. (D´Araújo, 1995, p. 60).

Caio Fábio D´Araújo pai, depois de ler o livro Apóstolo dos pés sangrentos57

decidiu viver a proposta mística do autor indiano e passou a praticar jejuns e orações.

Segundo Caio Fábio Filho, “de alguma forma, aqueles exercícios espirituais deram a

papai novas dimensões sobre o sagrado”. D´Araújo afirma que a nova espiritualidade de

seu pai era cada vez mais intensa e, entre os anos de 1967 e 1970, o exercício do direito

misturava-se com a evangelização e expulsão de demônios de seus clientes, quando um

senso de dever e vocação tomou conta de sua mente. “Eu começava em sonhos me

vendo no interior do Amazonas do rio Purus, de onde sou originário, e me via naquele

rio falando do amor de Deus, em Cristo Jesus. Estas coisas foram se arrumando em meu

coração. Esta coisa se acentuou e fui sentido automaticamente na profissão de

advogado”58 (D´Araújo, 1995, p. 87-89).

Desta forma D´Araújo pai, aos 45 anos, sentiu-se vocacionado à evangelização

dos povos ribeirinhos. Estava impelido em retornar a sua terra natal para ser missionário

entre seus conterrâneos. Obstinado e convencido de que deveria voltar a Manaus,

encontrou entraves burocráticos da igreja institucional presbiteriana, pelo fato de que

não tinha passado por um seminário e ordenação. Não desejando passar pelo protocolo

de quatro anos em um seminário “naquela altura da vida”, deu o veredicto: “já havia

decidido ir por conta própria”. Por conseguinte, os pastores locais decidiram enquadra-

lo em um artigo da constituição Presbiteriana que permitia a consagração de ministro de

“vocação tardia”, sem seminário. Foi o que aconteceu. Cumprida a exigência posta pelo

Presbitério da escrita de uma tese, D´Araújo pai recebeu sua ordenação em 10/01/71.

Em março daquele ano sua família já estava novamente em Manaus (D´Araújo, 1995,

p.108), desenvolvendo seu ministério junto à população ribeirinha. Desenvolto, Caio

Fábio pai em pouco tempo já alcançava projeção e outros postos na liderança

presbiteriana da cidade. 57 “Biografia de um indiano de família nobre, da seita sik, que sofreu perseguições, prisões e privações por ter-se convertido ao Evangelho. Mas seu desejo de evangelizar era superior a qualquer obstáculo, mesmo com os pés sangrando.”, resenha do livro de Bonaerges Ribeiro. < http://www.cpad.com.br/o-apostolo-dos-pes-sangrentos/p#.U_pWG_ldWSo>. Acessado em 10/10/2013. 58 “Caio Fábio (pai) Breve histórico”. <https://www.youtube.com/watch?v=E6IC4F-XeVk>. Acessado em 10/10/2013.

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Porém D´Araújo Filho, levava uma vida de bon vivant arruaceiro. Segundo

Fonseca (2003, p. 228), “envolve-se com drogas, álcool, brigas na rua, assumindo

práticas promíscuas em sua vida cotidiana”. Zuenir Ventura (VENTURA in D´Araújo)

destaca que Caio Filho, em sua juventude “era um jovem rebelde, arruaceiro e dissoluto

que amava ´alucinadamente as mulheres e fumava maconha e cheirava cocaína no

mesmo ritmo que dirigia sua moto – mais que uma alma perdida, era a promessa de um

cafajeste”.

Após uma conturbada estadia no Rio de Janeiro, D´Araújo Filho estava de volta

a Manaus. Experimentava uma relação conflituosa com a religião e também com a

figura do pai, que, após tornar-se pastor, passou a ser opressor e rígido diante da postura

liberal do filho. Nesse contexto, desencadeou-se em Caio Filho um processo de

profunda crise existencial em relação à sua vida desregrada e repleta de excessos que

levava. Diante de tantos infortúnios e desencantos com o mundo, crises e desesperos,

sexo e solidão, Caio Filho inicia seu processo de convencimento de que poderia ter uma

vida mais equilibrada se aderisse ao cristianismo.

Desta forma, a conversão em 1973 é apresentada como um importante momento

na biografia de D´Araújo. Assim relata-nos a sua autobiografia: Aos 18 anos, em vias

de suicidar-se devido aos infortúnios acima descritos, já namorando Alda, sua primeira

mulher, Caio Filho tem uma visão espiritual, que assim ele relata: “uma cobra grande

como uma sucuri me arrochando, enquanto também mordia meu braço esquerdo e

inoculava em mim um veneno mortal. E súbito pensei que não era algo material”. Tal

“espírito imundo” foi expulso por seu pai, que proferiu as seguintes palavras, diante do

possível demoníaco em Caio: “não gerei filhos para serem morada de demônios”. Após

este episódio, Caio fica sereno, vai até um igarapé e se “auto batiza”, seu relato

continua. “Quando voltei à trilha, havia um sentimento de novidade de vida dentro de

mim [...] aquele Caio que fumava maconha, cheirava pó e outras coisas morreu ontem e

eu acabei de sepulta-lo num igarapézinho [...] ele não quer saber mais de maluquices”

(D´ARAÚJO, 1997, p. 181-185)

Após este episódio Caio Filho (1997, p. 193) muda sua vida para sempre:

“dentro de mim havia um permanente desassossego. Dia e noite eu me via pregando

para as multidões”. No ano de 1974, sua mente foi tomada pela ideia de que a pregação

do Evangelho seria sua grande vocação. Quando falava em público parecia estar

“experimentando fortíssimas formas de prazer existencial”, além disso, passou a notar

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seu poder de comunicação em atrair a atenção das pessoas com sua retórica. “E esses

dois sinais me pareciam divinos”.

A partir desta conversão a trajetória biográfica de D´Araújo ganha outra direção,

pois de jovem desvairado ele se torna um pastor de almas. Nos meses que se seguem ele

inicia um vibrante movimento de evangelização entre os jovens e hippies de Manaus. O

carisma demonstrado atraia a atenção dos moradores da cidade. Após um ano de sua

conversão inicia-se sua escalada midiática. O dono da Rede Amazônica de Televisão,

Filipe Dau, ofereceu a Caio um programa semanal aos domingos, com trinta minutos de

duração. (D´ARAÚJO, 1997, p. 194-200). O programa Jesus, a esperança das

gerações59 era veinculado das seis e meia às sete da noite, ao vivo. Caio Fabio comenta

que o programa teve grande repercussão porque

“todas [as pessoas] me conheciam como uma pessoa que tinha uma história mais maluca e agora estava falando de Cristo. Era uma coisa bem chocante. A segunda razão era porque era um caminho novo, não existia no Amazonas nenhum programa evangélico de televisão (entrevista de D´ARAÚJO in FONSECA:2003, p. 228).

Fonseca (2003, p. 228) ainda destaca que suas cruzadas evangelísticas em

Manaus chamavam a atenção de grandes massas. Contudo podemos notar que desde o

início de seu ministério, D´Araújo resistia a certas pressões para institucionalizar seu

“espírito” amazonense selvático e arredio, avesso aos scripts da igreja Presbiteriana. No

entanto, no início de 1975 na reunião do Presbitério de Manaus, observando sua plena

atuação vocacional, decidiu dar-lhe uma oportunidade para pleitear uma ordenação

pastoral formal. A questão da ordenação de Caio Filho, que não cursara faculdade

teológica, foi decidida em uma reunião conciliar que lhe exigiu um acompanhamento

durante três anos, mais a leitura de uma bibliografia própria de um seminário teológico

da Igreja. Porém, sobre este fato, Caio alega que “na verdade nunca tivera qualquer tipo

de fé na instituição religiosa. Sabia que ela era útil apenas para manter a tradição da fé,

mas que era completamente inútil quanto a produzir amor e compaixão no coração das

pessoas” (D´ARAÚJO, 1997, p. 146).

59 Em 1978 o programa Jesus, a esperança das gerações é re-batizado para Pare e Pense.

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Além dos esforços acima, ele precisava propor uma monografia acerca da

“salvação dos pagãos fora da religião”, apresentada a uma banca dia 6 de janeiro de

1977. Nesse texto Caio Fábio Filho defendia a hipótese de que, embora a Igreja seja

uma “agência da graça divina no mundo”, ela não é detentora exclusiva da “graça

divina”. Apesar dessa tese ser entendida como “liberal” ou “universalista” nos meios

calvinistas, Caio foi aprovado, após “dois dias de discussão”, não sem grades debates

empreendidos entre seus examinadores. Será que deveriam aprovar Caio, diante de tanto

ousadia teológica? Diante do seu ministério já proeminente na cidade, recebeu a

aprovação. Sua idade era de 21 anos, quatro após sua conversão.

Naquela altura sua atuação no rádio também era intensa. Ele possuía um

“genuíno marketing cristão”. Seu programa de rádio chegou a receber 1.800 ligações

por dia. Para saturar a sua cidade com a pregação do evangelho, fez parceria com a

Mocidade para Cristo – MPC e a Aliança Bíblica Universitária - ABU, demonstrando

sua inclinação para o evangelho social e para visão progressista da atuação da igreja

evangélica. Contudo “o volume de coisas era tão grande, que às vezes me enrolava todo

pelo caminho”. Segundo suas próprias observações, era necessário “haver uma estrutura

que pairasse acima das bandeiras evangélicas, de modo que pudesse servir a todos, [por

isso] criamos aquilo que no meio se chama de Missão, e que do lado de fora se

convencionou chamar de ONG cristã. Assim nasceu a Visão Nacional de Evangelização

[VINDE]”.

Em sua escalda, em 1982, Caio Fábio Filho fez o encerramento do II Congresso

Brasileiro de Evangelização - CBE, quando foi aclamado e lançado para o cenário

evangélico nacional apontado com um porta-voz de uma espécie de movimento

paralelo. Justamente porque ele agia à revelia das denominações religiosas, porém

alinhado aos evangelicalistas60. Em 1985, D´Araújo é o preletor principal do congresso

do Serviço para a Evangelização da América Latina - SEPAL, outro grande congresso

valorizado no Brasil, o que aumentou a sua influência no meio dos evangélicos.

A VINDE veio para dar suporte às cerca de 300 cartas que seu programa recebia

por semana, e 1.500 telefonemas por dia que seu programa atendia. Ela foi fundada sem

vínculo denominacional para não “confinar aquilo tudo a apenas uma comunidade

evangélica”, no caso a igreja Protestante do Brasil. Mesmo não podendo comprovar a 60 O “evangelicalismo” é uma vertente cristã que tem origem na Grã-Bretanha, no anglicanismo, com forte consciência social e política.

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amplitude das narrativas construídas por Caio, Fonseca conclui que Caio Fábio se dizia

ser “uma pessoa extremamente conhecida na cidade” e que suas cruzadas de

evangelização “só eram menores do que as decisões dos jogos de futebol”.

3.1.2 - No Rio de Janeiro uma nova fase: “A era Caio Fábio”

Devido ao rápido desenvolvimento da VINDE e de suas viagens constantes,

D´Araújo muda-se para o Rio de Janeiro, sustentado por colaborações financeiras

voluntárias de 30 amigos, dizia nada ganhar com a VINDE. Com esses recursos

levantados ele consegue reunir o sustento financiamento para sua família e alugar um

espaço para seu programa no SBT, que ia ao ar todos os domingos de manhã. Nessa

mesma época, o reverendo Antônio Elias, pastor da Igreja Presbiteriana do Brasil - IPB,

o convida para sucede-lo na Igreja Betânia (Niterói). Assumida a liderança dessa igreja,

em pouco tempo ela já contava com três cultos por domingo. Segundo Fonseca (2003,

p. 231), “a permanência de Caio no Rio de Janeiro marca o início de um processo em

que ele se torna uma das principais lideranças evangélicas do Brasil, deixando de ser a

´figura pública´ de Manaus” para ganhar uma projeção nacional e internacional no meio

evangélico.

Em 1981 as viagens de Caio recomeçaram, o que fez com que ele se distanciasse

de seu rebanho local, gerando insatisfações. Qual seria então a vocação de D´Araújo?

Um pastor local ou um pregador itinerante? Durante o ano de 1982 ele alega ter

palestrado para cerca de meio milhão de pessoas. Diante da multiplicação de suas

viagens e do descontentamento de alas de membros da Igreja Betânia, tudo isso somado

ao fato da descoberta de um problema cardíaco em 1984, Caio decide deixar o

ministério pastoral de uma igreja local, em janeiro de 1985, citando John Wesley e sua

conhecida frase: “o mundo é minha paróquia”. (D´ARÁUJO, 2003, p. 282).

Para D´Araújo (2003, p. 288), os anos seguintes foram marcados por sucessivas

viagens e exposição em mídias por todo o Brasil. Segundo ele, as pessoas diziam: “você

é uma unanimidade nacional”. Porém, como consta em sua biografia, ele sempre era

enaltecido por possuir um “espírito amazonense” selvagem e não domesticável.

D´Araújo registra ainda que seu nome era conhecido em todo país, fosse pelos livros

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cristãos que escrevia, [...] “fosse pelo fato que minha presença era obrigatória em

qualquer coisa de peso que fosse acontecer no meio evangélico. Eu, entretanto, sentia

saudades do Amazonas, pois, sem querer e de modo imperceptível a igreja havia me

domesticado”. Afirma que recebia centenas de convites por ano para pregar, porém isso

não lhe trazia satisfação.

D´Araújo (1995, p.290) sustentava ainda que sua alma empreendedora estava

inquieta. Desta forma, criou uma editora para publicar seus livros e lançou a pioneira

televisão via satélite do Brasil, a VINDE SAT, que oferecia um curso bíblico,

transmitido durante duas horas por semana, ao vivo, e ainda contava com interações via

telefone. Porém, em 1987,

“sentiu a necessidade de aprimorar seu inglês. E a VINDE contava com uma boa equipe: Henrique Ziller era o diretor executivo [...], Tissiane Cavalcante era o homem do marketing. E Cristina Christiano [...] secretária. Além disso eu tinha três amigos que estavam dispostos a financiar parte de meus estudos e pagar a folha de pagamento dos vinte funcionários que tínhamos na época”.

Em 1987, Caio Fábio Filho se mudou para os EUA (Passadena) onde se

matriculou no Fuller Theological Seminary (Passadena), período que vai de 1988 até

1990. No entanto, julgava o ambiente acadêmico muito “vagaroso”, de modo que se

decidiu por estudar por conta própria, paralelamente a seu mestrado, a vida de Jaques

Ellul, um dos preponentes de um cristianismo desistitucionalizado e anárquico, lendo 45

livros de seus livros. Também nesta época, segundo sua biografia, Caio Fábio admite o

desejo de conduzir seu ministério em direção à ação social mais efetiva e menos

“filosófica”. Queria fazer algo “forte na área social”, dizia, “o que eu quero é integrar a

fé aos temas da natureza social, entretanto sem aderir a teologia da libertação. Caso sua

escolha fosse ficar definitivamente na América do Norte, segundo alegavam “certos

amigos” do autor, Caio Fábio poderia se tornar um dos dez cristãos mais influentes do

mundo. Isso era uma tentação para que ele não retornasse ao Brasil. Porém, neste

período, ele é alertado por um de seus assessores de que “tem uns negócios esquisitos

acontecendo aqui. [...] um tal de Edir Macedo botando pra [sic] quebrar”. Além disso,

em 1990, o presidente Fernando Collor de Mello confiscou a poupança de todos, o que

obrigou-o a retornar. (D´ARAÚJO, 1995, p. 292)

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Fonseca (2003, p. 232) afirma que, segundo o pastor Ariovaldo Ramos,

D´Araújo foi para os EUA cooptado por uma bolsa concedida pelo evangelista Leighton

Ford61. Segundo Ariovaldo, a estadia de Caio Fábio na América do Norte proporcionou

uma mudança de seu discurso e prática com o convívio com Leighton Ford e Billy

Graham Ministries e “outros ministérios cristãos personalistas”. Aqui observamos

novamente Ariovaldo Ramos em depoimento registrado por Fonseca (2003, p. 232)

“O Caio até 87 era um cara assumidamente de esquerda. Com aquela visão que nós temos que mudar, promover justiça neste país, a situação tem que mudar, a igreja tem que se engajar... e a TV era vista como grande difusora dessas ideias e acima de tudo uma evangelização que fosse ao mesmo tempo carismática, consistente e que desse perfeitamente, para o cara que tivesse ouvindo, a ideia de que o evangelho era algo que não cabia uns estereótipos que até então os crentes sofriam, que o Evangelho era uma coisa profunda, que Jesus Cristo era o verdadeiro caminho e aceita-lo era a coisa mais inteligente a fazer”.

Fonseca ressalta (2003, p. 233) que após o período nos EUA, Caio Fábio retorna

com “novos e claros objetivos”. Antes seu modelo de gestão e liderança era informal,

como uma “comunidade”, então passam a “existi[r] setores, gravatas, divisões e

divisórias cargos de chefia e um presidente quase que inacessível”. Porém, conforme

Ramos (via Fonseca, 2003, p. 235): “dos quinze funcionários de 1990, em 1994 eram

duzentos, chegando a quatrocentos em 1997”. A partir daquele momento, “Agora era

uma mensagem bem Lausanne62, bem evangelical... Caio agora fala com uma

linguagem mais empresarial e menos social”, Fonseca conclui, reafirmando que este

novo cenário atinge novas frentes e classes mais altas. Segundo Caio Fábio

(D´ARAÚJO, p. 292), quando retornou dos EUA formulou três objetivos:

“1) Incrementar as ações da Vinde e fazê-la crescer para ser a maior organização paraeclesiástica e não governamental do país, no meio evangélico. Sobretudo, queria transforma-la em uma grande geradora de informação entre os cristãos;

61 Ligado ao ministério Billy Graham e ao Lausanne Moviment, fomentador do evangelho social e também dos debates em torno da teologia da “Missão Integral”. 62 A referência é a do "Pacto de Laussane", que, em um dos seus principais eixos teológicos uma conclamação acerca da "A Responsabilidade Social Cristã". <www.lausanne.org/pt/pt/1662-covenant.html>. Acessado em 13/10/2013.

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2) Usar o capital relacional que eu tinha desenvolvido em toda nação para promover a criação de uma entidade que representasse os evangélicos preocupados com a ética e, se possível, envolver o máximo possível de líderes e igrejas, tentando ser maioria;

3) Envolver-me o máximo possível com iniciativas de natureza social e assim demonstrar a séria preocupação dos cristãos com a coletividade”.

A esta altura, a ciranda neopentecostal circulava e crescia livremente na sociedade

brasileira. Caio Fábio incumbido pela vocação da vigilância panóptica dos espaços

evangélicos. A Igreja Universal do Reino de Deus, já há duas décadas, inferia no campo

religioso brasileiro, porém com suas estratégias de fagocitose religiosa avançava fileiras

e fazia escola. A compra da TV Record em 1989, pela Igreja Universal do Reino de

Deus transformou Caio Fábio em adversário de Edir Macedo. Para Zuenir Ventura

(VENTURA, 1998, p. 245), apesar desse “sucesso pastoral, o presbiteriano Caio Fábio

se impressionava com a avassaladora expansão da concorrência pentecostal, responsável

já por 70% da massa evangélica”.

3.1.3-Controvérsias – Associação Evangélica Brasileira (AEVB) x Igreja Universal

do Reino de Deus (IURD)

Pierre Bourdieu se refere ao campo religioso como um espaço de batalha entre

concorrentes que disputam o seu controle. Essa “luta” é bem perceptível no conflito

entre a AEVB e a IURD, feita por meio da competição entre suas duas lideranças: Caio

Fábio de um lado e Edir Macedo de outro. Para Paul Freston (1995, p. 11): “Se o Bispo

Edir Macedo fora a encarnação principal da imagem negativa que a mídia circulou a

partir de 1987, o seu contraponto mais positivo veiculado a partir de 1994 é Caio Fábio

D´Araújo Filho, o presidente da Associação Evangélica Brasileira”. Caio Fábio,

segundo Freston, representou então a tentativa mais recente de aglutinação do campo

protestante. Todavia a tensão entre a AEVB e a Universal iniciou-se algum tempo antes.

Em 17/05/91 a fundação da AEVB foi oficializada. Para tanto, devido às críticas

na mídia, os escândalos relacionados à Igreja Universal do Reino de Deus fizeram

D´Araújo tentar uma “negociação” com Edir Macedo, fundador da IURD. No decorrer

da sua estadia nos EUA, ele recebia notícias de pastores e líderes brasileiros

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preocupados com as “novidades teológicas” da IURD. Estes incrementos imprimiam

dúvidas sobre se tal igreja era, de fato, uma igreja evangélica, uma seita, um teatro ou

um mercado, utilizando as metáforas de Campos (1997). D´Araújo (1997, p. 299) assim

exprime suas preocupações:

“Edir tinha criado a Igreja Universal do Reino de Deus — IURD, que era uma espécie de síntese entre várias químicas religiosas. Havia de tudo um pouco: um grito de guerra (Jesus Cristo é o Senhor!) e um fervor na ação (Vamos ganhar o mundo para Jesus!), que eram genuinamente evangélicos; combinados a uma teologia católico-medieval (Deus não faz nada de graça, sem sacrifício, e o dinheiro é a moeda de troca entre o homem e as bênçãos divinas) e a uma simbologia afro-ameríndia, com farta utilização de elementos mágicos das religiões populares, tais como sal grosso, ramo de arruda, óleo sagrado, caminhos físicos pavimentados com sal, que abençoam aqueles que por eles caminham, e o oferecimento de dezenas de outros objetos feitos santos, que iam desde o estilingue de Davi até uma lavagem das mãos com o sangue de Cristo numa bacia. Todas essas coisas eram consideradas por eles como pontos de contato entre a pregação da Universal e a necessidade mística dos brasileiros. Do ponto de vista meramente marketeiro, era fantástico, mas visto sob o ponto de vista dos conteúdos da fé evangélica, era um escândalo de promiscuidade doutrinária”.

Em uma reunião realizada na recém adquirida TV Record, D´Araújo foi ao

encontro de Edir Macedo para de alguma forma tentar compreender suas intenções.

Outro objetivo deste encontro era tentar aproximar a Universal da AEVB, na tentativa

de convencer a igreja de Edir assinar a carta de propósito da associação. Edir concordou

e enviou os bispos Laprovita Vieira e Ronaldo Didini ao encontro. Durante a reunião

encontro, Macedo emite a seguinte opinião sobre as práticas da Universal (D´ARAÚJO,

1997, p. 301):

“Olha, cada um pesca com o que tem e como sabe. Você pesca com camarão. Fala bem, é preparado e ganha gente preparada. Outro pesca com pão. Outro com minhoca. E tem peixe que só gosta de minhoca. E tem outros que pescam como eu, com fezes. Tem gente que só gosta do que eu ofereço. O povo que eu quero não vai te ouvir. É gente que ninguém quer. Eu quero. É o pessoal que eu consigo pescar do meu jeito, com as coisas que eu ofereço — ele falou quase como se estivesse filosofando sobre algo absolutamente novo. — Mas você não acha que dizendo que cada um dá o que tem e o que as pessoas querem, você está dizendo que o evangelho não tem conteúdo? E que a gente pode adulterar a mensagem como quiser pra [sic] atender aos gostos deste mundo? É isso que você tá dizendo? — indaguei sem querer ser rude, mas achando crucial a

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resposta dele. Afinal, era a primeira vez que eu ouvia um líder religioso ocidental confessar com sinceridade e honestidade que os fins justificavam os meios. Muitos agiam segundo a mesma filosofia, mas maquiavam muito bem suas ações. Macedo, entretanto, era honesto em suas convicções e não tentava me iludir a respeito. — Eu não tenho paciência pra filosofia. Aqui a gente não tá querendo pensar muito nessas coisas. A Nova Vida parou porque ficou com essas perguntas todas. O negócio é ganhar gente. Também não gosto desse negócio de Escola Bíblica Dominical e nem de seminário. Teologia tira a garra do obreiro. Eu não tenho essas coisas na Universal — declarou e já foi logo pegando o telefone e dizendo que “o pessoal” poderia entrar. — Eu queria que vocês conhecessem o Caio Fábio — disse para Renato Suhett, Didini e Gonçalves, que acabavam de entrar. Conversamos generalidades por mais uns trinta minutos”.

O trecho citado não deixa dúvidas sobre as fórmulas praticadas pela IURD para

“ganhar gente”, evitando filosofias alongadas e teologias complexas. O segredo está na

oferta e na demanda; e pescar o “peixe”, conforme o que o “peixe” quer.

A presença de representantes da IURD no ato de fundação da AEVB no dia 17

de maio criou um mal estar entre as diversas denominações representadas naquele

encontro além de confundir as agências de notícias: afinal, a Universal, que a esta altura

já estava atrelada a escândalos de ordem financeiras e com a evidente criação de um

singular sincretismo, filiar-se-ia à organização de Caio? Conforme ALMEIDA (2009, p.

112) “o culto da Universal [...] expressa de certa maneira essa dinâmica ao sintetizar e

cristalizar, num ritual, o diálogo baseado no conflito entre um desdobramento do

pentecostalismo e as religiões afro-brasileiras –tudo isso operando no contexto plural

das crenças existentes no país”. Apresentando este perfil apresentado por Almeida, a

IURD constaria nos quadros da recém criada Aliança?

Tais controvérsias tem seu ápice com a prisão de Edir Macedo em 24 de maio.

Para o jornal Folha de São Paulo a principal acusação “é a de que o bispo teria

adquirido grande patrimônio graças à sua atividade à frente da Igreja Universal”. (Folha

de S. Paulo, 17/09/1995). Em suas memórias, Macedo (2012, p. 26) afirma ter sido

acusado de ser charlatão, curandeiro e estelionatário e que essas acusações não faziam

sentido, pois Jesus, e várias outras personagens da bíblia, curavam os enfermos. Anos

mais tarde, Macedo (2012, p. 13) atribuiria sua prisão à perseguição desencadeada pela

Igreja Católica.

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“Era um tempo de ataques a Igreja Universal, a mim e a minha família. Desde que o trabalho começou a crescer, entramos na mira. O clero romano mandava e desmandava no Brasil, mais do que nos dias de hoje. Eram políticos de prestígio, empresários da elite econômica e social, intelectuais, juízes, desembargadores e outras autoridades do poder judiciário que tomavam decisões sob a influência do alto comando católico. A Cúria não admitia o surgimento de um povo livre da escravidão religiosa impostas por eles. Mas eu nunca olhei para isso. Minha missão sempre foi dum só: pregar a verdade do Evangelho a todos que sofrem. Antes mesma da compra da Rede Record, em novembro de 1989, já havíamos sido vítimas de diversos tipos de abuso. A polícia tinha invadido meu apartamento, os escritórios da Igreja e as empresas relacionadas que existiam para a opor o trabalho evangelístico. Sabia que as perseguições jamais teriam ponto-final, mas nunca imaginei que essas agressões terminariam em prisão. O meu nome foi surrado por anos”

Um momento de maior aproximação entre a AEVB e a IURD se deu nesse

contexto. A comunidade evangélica estava intrigada com a prisão de Macedo,

subentendendo que o argumento utilizado para a reclusão de Macedo, poderia criar um

antecedente para desmobilizar o campo evangélico de uma maneira geral. Para Carlos

Tadeu Siepierski (SIEPIERSKI, 2012, p. 123), cerca de “duzentos pastores protestaram

na Assembleia Legislativa de São Paulo, pontuando que a prisão fora manipulada por

grupos ligados à área de comunicações que a propriedade da Record estava ameaçando,

e a setores religiosos, que teriam seus membros captados pelo discurso na Universal”.

D´Araújo (D´ARAÚJO:1997, p. 309) e a AEVB tomou partido em favor de

Macedo, pois, em seu entendimento, as acusações do ministério público poderiam

abranger qualquer fenômeno ou movimento religioso:

“Qual é a diferença entre o misticismo dos fiéis da Igreja Universal do Reino de Deus e o daqueles que vão às procissões de Aparecida ou do Círio de Nazaré? Qual é a diferença entre as empresas do Vaticano (compradas também com dinheiro do povo) e as empresas da Igreja Universal do Reino de Deus? Qual é a diferença entre uma santa de gesso que chora e os alegados milagres de cura da IURD? Qual é a diferença entre os milhões de dólares da Igreja Católica e os milhões de dólares da IURD? Por acaso não são ambos dinheiro do povo? Por acaso não é também dinheiro que resulta de doações movidas pela crença? Por acaso não é também, muitas vezes, dinheiro usado para adquirir propriedades cuja administração nem sempre está aberta a auditorias públicas e nem ao gerenciamento dos fiéis?

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Ora, tudo o que tenho dito até aqui não tem a finalidade de defender a IURD, que nem é associada à AEVB. Nossa intenção é mostrar apenas três aspectos básicos da atual situação de perseguição que sofre a Igreja Universal:

1. A prevalecerem tais critérios, o princípio de liberdade religiosa no Brasil sofrerá ameaças terríveis. Especialmente quando se sabe que quem deflagrou a acusação de charlatanismo, curandeirismo e estelionato contra a IURD foi uma outra entidade religiosa (A Associação dos Umbandistas).

2. A prevalecerem tais critérios de julgamento, a fim de que houvesse justiça prática e objetiva, todos os grupos religiosos do Brasil, incluindo a Igreja Católica e todas as denominações evangélicas, deveriam ser processadas e seus líderes levados às barras do tribunal, porque o que para uns é fé, para outros é balela e charlatanismo.

3. Se a IURD e seu líder espiritual, Edir Macedo, são passíveis de alguma punição da lei, tal punição deve acontecer nos níveis da justiça, e de acordo com a Constituição, em áreas mensuráveis de modo prático: sua contabilidade, seu patrimônio e seus impostos, e não nas áreas subjetivas, nas quais só Deus pode fazer diferença entre o charlatão e o homem de Deus, entre o curandeiro e o homem de fé ousada, entre o salafrário e o profeta.”

D´Araújo então sentencia, e sugere que a Universal passe por uma auditoria

interna e pare de atacar os cultos afro brasileiros. A AEVB se pronuncia nestes termos:

“A Associação Evangélica Brasileira se propõe a intervir neste caso, pedindo à IURD que abra sua contabilidade a uma auditoria independente, contratada pela AEVB, e que posteriormente venha a público trazer os resultados de tal auditoria. Com isso se pretende que o caso da IURD e o bispo Edir Macedo sejam julgados com os mesmos critérios objetivos com os quais a justiça brasileira venha a julgar os muitos corruptos que encontram guarida à sombra do poder.”

Mas a nosso ver, considerando a associação entre organização religiosa e

empresarial existente na IURD, concordando com Campos (1997): essa “sugestão”

jamais teria condições de prosperar. O período entre 1994 e 1998 marcado pelo declínio

do ministério de Caio Fábio. Foram anos turbulentos, com intensa interlocução política.

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Porém, certas inquietações de ordem intima começam a emergir na história de

D´Araújo, que culminam em uma relação extra conjugal, sob o clima do envolvimento

da elaboração do “Dossiê Cayman”. Tal Dossiê, segundo a segundo o jornal A Folha de

São Paulo de 12/12/2011, seria um "conjunto de papéis forjados para implicar tucanos

com supostas movimentações financeiras no exterior."63

3.2-Estrutura da Visão Nacional de Evangelização -VINDE

A partir de 1978, a VINDE tornou-se a principal difusora das mensagens de

D´Araújo. Pretendemos aqui, descrever suas principais atividades. Que relação

poderíamos estabelecer estre essas entidades e a trajetória de Caio Fábio? É isso que

pretendemos analisar. Em boletim de circulação oficial, “convergência” a ONG

religiosa assim se definia:

A visão Nacional de Evangelização – por trás deste nome existem milhões de pessoas alcançadas pela mensagem do Evangelho. Apesar de todo seu compromisso ético-social, a VINDE é, acima de tudo, uma missão que existe para evangelizar. Por isso, desde sua fundação em 1978, a VINDE tem promovido cruzadas por todo país. Do norte, nordeste, centro-oeste, sul e sudoeste do Brasil recebemos constantemente inúmeros testemunhos de pessoas que foram alcançadas pela Palavra de Deus através das Cruzadas Vinde. Alguns destes testemunhos são fantásticos e nos motivam a seguir adiante. Jesus disse que há alegria entre os anjos de Deus quando um pecador se arrepende. Agora, imagine a alegria deles e nossa quando milhares de pessoas são alcançadas pela Palavra de Deus através deste ministério. Só em 1995, foram 200 eventos evangelísticos com uma audiência total de 300 mil pessoas. Alguns milhares delas receberam a Cristo e começaram uma vida completamente nova!”

63 "Collor recebeu dossiê Cayman, afirma PF". <www1.folha.uol.com.br/fsp/poder/14416-collor-

recebeu-dossie-cayman-afirma-pf.shtml>. Acessado em 10/09/2013.

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3.2.1-A VINDE na televisão

“Não é você que muda o canal, é o canal que muda você”. O projeto da VINDE

TV configurou-se como o primeiro canal evangélico por assinatura do país, levado ao ar

no dia 23/12/96. Foi resultado de uma parceria entre a Vinde e a NET Brasil, que à

época tinha cerca de um milhão de assinantes. D´Araújo já dirigia e apresentava o

programa Pare & Pense, que ia ao ar aos sábados, pela Rede Manchete. Porém, com

esta nova possiblidade midiática, alcançaria uma programação de 24 horas no ar. No

período que se seguiu ao seu lançamento, cerca de quatro horas eram realizadas ao vivo.

A inauguração do canal contou com uma plateia de convidados, entre eles o reverendo

Guilhermino Cunha, na época presidente do Supremo Concílio da Igreja Presbiteriana

do Brasil, Ariovaldo Ramos, Darcy Dusilek e Josué Rodrigues, nomes então em

destaque no meio evangélico (Revista VINDE, ano II, n. 15, Junho de 1997, p. 22).

Cerca de 100 funcionários estavam empregados no projeto que era dirigido pelo

filho de D´Araújo, Davi D´Araújo. Um dos carros chefes da programação era o “ao vivo

com Caio” que ia ao ar toda quarta-feira, às 22h, com reprises aos domingos, 13h30. O

programa era feito em formato de talk show convencional, no qual o reverendo reunia

convidados para debater temas diversos. Havia também o programa Acústico,

transmitido de segunda a sexta, das 9h30 às 10h, apresentado pelo músico Josué

Rodrigues, então pastor da Igreja Presbiteriana Betânia, que fora Igreja de Caio Fábio.

O público jovem também era contemplado com o programa Zapeando, “versão gospel

do Programa Livre, do Serginho Groisman”. (Revista VINDE, ano II, n. 19, Junho de

1997, p. 68).

Segundo Fonseca (1997, p. 225), a VINDE TV encerrou suas atividades em

maio de 2000. Antes da venda, foi controlada pela produtora Comunhão Cristã

Produções (CCP), pertencente aos pastores Arles Conde Marques e Marcos Camargo e

Silva, em 1999. Porém, por conta do o montante de suas dívidas o negócio foi desfeito.

O quadro abaixo mostra a programação da TV tal, de acordo com o que foi

publicado em 1997 . (Revista VINDE, ano II, núm. 15 – Janeiro/Fevereiro 1997).

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6h – Palavra do Pastor (5

min,)

15h – Classi vinde 21h35 – Caio Fábio ao vivo

6h30 – Vinde TV Clássicos 15h05Vinde TV - replay 22h30 – VM Show

8h – Classi Vinde 16h – Espaço Esperto 23h30 Vinde TV –

Clássicos

9h30 -Espaço Aberto 16h30 Ela disse – Ele disse 24h – independentes

10h30 –Caio Fábio ao vivo 18h – VM Show 1h – Vinde Clássicos

12h – Classi Vinde 19h – TeleVinde 2h – Palavra do Pastor

12h30 – Figura, com Luiz

Andreoli

20h30 – Figura 2h05 - Independentes

13h30 – Tele Vinde 21h30 – Classi Vinde 2h30 – Vinde TV - replay

Um anúncio da VINDE TV nos oferece uma percepção acerca da maneira como

Caio Fábio Filho fazia TV:

(Revista VINDE, ano II, núm. 18 – Janeiro/Fevereiro 1997).

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3.2.2-VINDE Revista

A Revista VINDE teve sua primeira versão impressa em Manaus, em 1976,

quando Caio Fábio D´Araújo lança um jornal como protótipo do que, mais tarde, tornar-

se-ia a publicação. O objetivo era “evangelizar as pessoas da cidade [...] especialmente

as que não gostavam de ir a um culto ou reunião”. Todavia, ele desejava que fosse algo

mais sofisticado. Já no início dos anos 1990 os ventos estavam favoráveis para a

realização da revista com maior envergadura quando D´Araújo afirma oferecer o

periódico à Editora Abril que aceitaram edita-la, via Editora Azul. Porém, já em vias de

fechar com a Abril, Domingo Alzugagay, da “Editora Três” lhe “fez uma boa proposta”

e firma a parceria com a VINDE para a publicação da revista64.

A ideia inicial era fazer uma revista com formato “secular”, entrecortada com

notícias e matérias voltadas ao meio cristão. De fato, acessando o acervo das revistas

VINDE, nota-se em suas páginas que os mais variados assuntos se faziam presentes,

desde notas culturais, esportivas, variedades e musical65. Duas frentes editoriais também

são presentes na publicação: 1) informações acerca dos trabalhos de Caio Fábio e

notícias relacionadas ao seu ministério. 2) Seu forte engajamento com a política carioca

dos anos de 1990.

A revista foi vendida ao grupo Bom Pastor66 sendo depois descontinuada.

3.2.3-A VINDE na área de assistência social: A Fábrica da Esperança

A ONG cristã “Fábrica da Esperança” começou a funcionar em 17/12/1999. O

objetivo era oferecer cursos gratuitos, no complexo do Acari, habitado por 180 mil

pessoas, zona norte da cidade do Rio de Janeiro. Para D´Araújo67, uma Fábrica de

Esperança seria uma extensão de seus ministérios que, já operavam desde 1980 sob a

plataforma operacional da VINDE.

64 “Vozes do passado: acerca da Revista VINDE”.<http://www.caiofabio.net/conteudo.asp?codigo=03166>. Acessado em 28/08/2014. 65 Não podemos deixar de notar duas grandes áreas cobertas pelas cerca de 80 revistas que pudemos analisar, do ano I ao ano IV. 66 Não encontramos a data da aquisição da revista pelo grupo Bom Pastor. 67 “Entrevista com Pr. Caio Fábio para a CH | Parte 1”. https://www.youtube.com/watch?v=eLZhFtM5YC8. Acessado em 10/07/2013.

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Porém a sua história começou em 1992, quando, a propósito de um conflito entre

diferentes facções que dominavam áreas diversas, a favela foi invadida por um bando

rival e 22 pessoas que se encontravam na porta de um bar e que estavam dormindo

dentro de uma casa foram mortas. Nenhum bandido foi morto, somente trabalhadores.

Maria Lucia Montes destaca que (2012, p. 79) “A casa, pertencente a uma família de

evangélicos, onde haviam sido baleadas seis pessoas, entre as quais duas crianças, fora

comprada, por intermédio do pastor Caio Fábio, e depois reconstruída para se tornar a

Casa da Paz”. Nesse local passou a funcionar um centro de saúde, uma biblioteca,

cursos de arte e computação. O projeto foi liderado por um morador local, Caio Ferraz.

Atualmente neste espaço funciona o AfroReggea68.

Outras duas chacinas sucederam aquele incidente, uma na Candelária e outra no

Acari. Foi neste contexto que Caio Fábio recebeu como comodato o espaço de uma

fábrica de fórmica de 55 mil metros quadrados aproximadamente, que fora incendiada

por um possível ato criminoso. O local, cercado por aproximadamente 30 favelas,

aguçou o interesse de Caio Fábio. Foi então, que ele recebeu o commodite e iniciou a

instalação de diversos projetos de cunho social. Seu primeiro parceiro foi a “Bhrama

Chopp”, fazendo marketing de seu guaraná.

Cerca de 66 projetos eram desenvolvidos na “Fábrica de Esperança”, atendendo

à cerca de 24 mil pessoas por dia. Entre os projetos, havia Escola de cinema; Escolas de

cabelereiros e manicure; atividades psicossociais com parceiros, entre os quais o

governo do estado do Rio de Janeiro e o Instituto Ayrton Senna. Até o governo do Rio

de Janeiro se interessou em instalar uma agência de empregos e tele-salas de aula69.

Através dessas ações, conforme D´Araújo teria havido uma significativa diminuição da

criminalidade na comunidade.

Novos cursos se iniciavam e diversas parcerias eram estabelecidas. A Revista

VINDE (Abril de 1997), anunciava estarem “abertas as inscrições para o curso de

Liderança Cristã para as favelas [...] As aulas deveriam começar dia 9 de abril e entre os

temas abordados estarão Primeiros Socorros, Liderança, Relações com a mídia e

História das favelas, entre outros. O curso tem três meses com estágios nos morros

Dona Marta, em botafogo, Borel, na Tijuca, e em Parada de Lucas”

68 Idem. 69 Revista VINDE, Ano II, n 22, Setembro de 1997. P. 60.

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Em 23/11/95, a Fábrica foi objeto de investigação, sendo invadida por policias

militares que buscavam bandidos. Suspeitava-se de que havia gente escondida nas

dependências da Fábrica. Pouco menos de duas horas depois, os policiai encontraram

quase dois quilos de cocaína e certa quantidade de maconha escondidos em uma

cadeira. Dois dos funcionários da Fábrica receberam voz de prisão, sob a alegação de

estarem obstruindo o trabalho policial. Os funcionários alegavam não dar permissão

para a entrada na Fábrica sem autorização prévia da direção. Aquele episódio ganhou

repercussão nacional, pelo fato de o projeto social estar associado ao nome de Caio

Fabio. Porém, em maio de 1997, os vigiais foram inocentados, por falta de provas,

conforme a Revista VINDE (ano II, n. 20, julho de 1997) .

Ainda quanto a este episódio a edição de número três da Revista VINDE em seu

editorial “Reage Fábrica”, procurava apaziguar a situação envolvendo a Fábrica e o

tráfico de drogas. Jorge Antônio Barros assina a “epístola da redação” que alega que o

governador Marcello Alencar aproveitou-se da situação para sequestrar moralmente

Caio Faio. Diante disso, “a reação incompreensível do governador deixou ao menos

uma coisa boa: pela primeira vez, evangélicos aderiram a um ato público pela cidadania.

Uma ira santa em favor da Fábrica da Esperança ou levou ao ´Reage Rio´ que, mesmo

com chuva, teve milhares de manifestantes no centro da cidade”. (Revista VINDE, ano

I, núm. 3, Janeiro de 1996, p. 3).

Charge de Chico Caruso: Caio, Betinho e Rubem César, em alusão ao “Reage Rio”.

(Revista VINDE, ano I, núm. Três, Janeiro de 1996).

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A acusação de que Caio Fábio teria forjado a confecção do Dossiê e de que ele o

teria oferecido aos adversários dos políticos do PSDB a um preço exclusivo, em dólares,

foi usado na formulação de um processo na justiça, do qual ele acabou sendo

inocentado.

Talvez, por esse e outros motivos, após o ano de 1998, o projeto Fábrica da

Esperança entrou em declínio. Em 2000, “o prédio voltou para as mãos da Formitex,

que utilizou o imóvel para pagar dívidas com o Unibanco. Apenas um projeto continuou

funcionando até a última semana. Uma creche com cerca de 200 crianças, que foi

transferida para um prédio próximo ao local”70.

Segundo Caio Fábio, “O fim da Fábrica foi responsabilidade de Garotinho, que,

em 99 me disse que o Estado assumiria tudo. Passei tudo para ele. Mas [...] outros

interesses e, pasmem, influências dos evangélicos que morcegavam o Garotinho foram

determinantes para demolir a Fábrica contra o desejo geral dos moradores.”71 A

demolição daquele prédio aconteceu em 17/03/2002, para dar lugar ao Hospital Central

da Zona Norte.

3.3-A queda de Caio Fábio

Após 1994, Caio Fábio D´Araújo Filho não apresentava o vigor “manauara”.

Constam em sua biografia dois eventos cruciais que desabonaram sua figura diante dos

evangélicos, os quais lhe davam sustentação: O primeiro deles foi um relacionamento

extra conjugal, “pecado abjeto” entre os evangélicos. O segundo foi seu envolvimento

com o documento conhecido como “Dossiê Cayman”. Esse escândalo político estava

relacionado a uma série de documentos compilados com o objetivo de incriminar

candidatos tucanos nas eleições de 1994. Tais documentos acusavam Fernando

Henrique Cardoso, na época candidato à reeleição para a Presidência da República;

Mário Covas, governador de São Paulo; José Serra e Sérgio Motta, nomes de destaque

do PSDB. O suposto dossiê acusava os tucanos de crimes fiscais. Entretanto o suporto

dossiê foi para a política.

70 "Fábrica de Esperança" é implodida para dar lugar a hospital no Rio. <www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u47792.shtml>. Acessado em 10/06/2013. 71 <https://www.facebook.com/caiofabio.vvtv/posts/381919638562579>. Acessado em 10/08/2014.

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D´Araújo foi condenado a quatro anos de prisão, por crime de calúnia, sendo

recentemente inocentado. Toda essa trajetória de infortúnios levou Caio Fábio a uma

crise interior e, sobretudo, arranhou sua imagem de “pastor ético” construída durante os

anos 1980-90. Os evangélicos também não perdoariam o adultério, que é tido como

incompatível com a imagem de um pastor evangélico em todas as denominações.

Assim, a trajetória de Caio Fábio D´Araújo Filho e seu holding religioso chega

ao fim. Enquanto isso, ocorria um rearranjo global no campo religioso brasileiro,

preparando caminho para movimentos religiosos pendulares: entre os fenômenos de

massa estão as megachurches, e, de outro lado, a privatização e subjetivação da religião

em pequenos grupos ou de iniciativas individuais.

Essa incursão na trajetória biográfica de Caio Fabio parece não estar ligado a sua

atual situação de “guerrilheiro” contra as instituições religiosas. Porém, sua trajetória já

aponta para um novo cenário no campo religioso brasileiro, cuja mobilidade e fluidez

das identidades religiosas são proeminentes.

3.4-História do “Caminho da Graça”

Desencadeada pela acusação de seu envolvimento com o “Dossiê Cayman”, aliada a

particularidades de sua vida íntima, a crise leva D´Araújo, depois do agitado ano de

1998, a um período de afastamento do país, nos EUA, no ano de 1999. Em 2001 ele já

não contava com o status anterior; até porque a moral evangélica é rígida em relação à

prática do sexo fora do casamento. A VINDE foi esmagada pelo afastamento dos

patrocinadores e pela falta de empatia de seu público alvo, que era composto

praticamente por evangélicos e, que a esta altura, desconsiderava-o de suas fileiras. O

principal parceiro do holding, a D’Ávila Tour, responsável pelas viagens para Israel

com D´Araújo, afastou-se do grupo, pois os tours pela “terra santa” já não contavam

com sua presença. Ademais, a Revista VINDE foi vendida72, depois de quase 10 anos

72 Conforme a Revista Veja de novembro de 1999, o valor da venda foi de quinhentos mil reais in "A volta do pecador". <veja.abril.com.br/171199/p_168.html.> Acessado em 03/03/2014.

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de seu lançamento, em 1999 para o grupo Força Editorial e depois para o grupo Bom

Pastor que mudou o nome da revista para Eclésia.73

Já a AEVB, em meados de 2002, alterou seu nome para “Aliança Evangélica

Brasileira”. Porém, sem o carisma de seu principal convocador e apesar dos esforços em

conclamar os “evangélicos brasileiros” a “perseverar, para que nós possamos ter no dia

de amanhã uma AEVB forte, que sirva como sinal de instrumento de unidade

evangélica entre nós. Cremos [que] temos a necessidade de um mínimo de visibilidade

estruturada”, 74 a associação perde vitalidade75. Contudo, mesmo sem Caio Fábio, são

eleitas novas diretorias e executivos, como Ariovaldo Ramos, Carlos Bregantim, Dr.

Key Yuassa e Luiz Mattos, entre outros, afim de reergue-la. Os resultados, no entanto,

não foram satisfatórios. A quebra da imagem do “Pastor ético” (FRESTON, 1995,

p.11), emoldurada por Caio Fabio, provoca uma mudança axial em seu ministério, com

consequências para o grupo de evangélicos que o seguiam.

Vale a pena ressaltar que no início deste período houve um deslocamento sem

precedentes da imagem dos evangélicos no Brasil diante da sociedade geral. Para fins

de comparação, tomamos de Weber (2004) o tipo protestante calvinista do século

XVIII-XIX. Este protestante é o “bom pagador” (p. 42); disciplinado, correto e

trabalhando arduamente por ser “vocacionado”. Com a consolidação do

neopentecostalismo iurdiano e seus clones, que surgem no cenário nacional com seus

métodos heterodoxos de arrecadação de dinheiro, agressão a praticantes de culto afro,

compras milionárias e problemas fiscais, acabam por surgir desconfianças na população

em relação ao crescente movimento, e também, porque não dizer, uma desconfiança em

relação aos “evangélicos” em geral. Ainda mais depois da exibição de alguns vídeos, na

primeira metade dos anos de 1990, amplamente divulgados pela Rede Globo de

Televisão, nos quais Macedo contava uma montanha de dólares em um hotel e outro em

que ensinava seus pastores e bispos a persuadirem financeiramente suas ovelhas, “-ou

dá, ou desce”, era a frase emitida pelo bipo da Universal. Estes fatos descritos

73 "Vozes do passado: acerca da revista VINDE". www.caiofabio.net/conteudo.asp?codigo=03166. Acessado em 20/06/2014. 74“Fortalecendo os nossos laços e reafirmando os nossos propósitos”. https://web.archive.org/web/20030409205340/http://www.aevb.com.br/aevb10anos.htm. Acessado em 05/05/2014. 75 Em 30 de Novembro de 2010 é fundada uma nova tentativa de agrupar os evangélicos brasileiro, sob a sigla de Aliança Cristã Evangélica Brasileira. http://www.aliancaevangelica.org.br/index.php/template/institucional/nossa-historia>. Acessado em 10/09/2013.

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compuseram umas das principais controvérsias religiosas nos anos de 1990. Para

Mariano (2004, p. 125) “durante toda a metade dos anos de 1990, a igreja [IURD] e

seus dirigentes estiveram no centro de intensas controvérsias, envolvendo os mais

diferentes agentes dos campos religiosos, empresarial, midiático, policial, jurídico e

político”.

Mesmo no campo político houve reflexos na relação políticos evangélicos (na

câmara federal) por causa do envolvimento deles com o chamado escândalo do

mensalão. Por outro lado, as formas de arrecadação de Igrejas como a IURD

começaram a também a provocar uma erosão na imagem dos evangélicos. Leonildo

Campos (2010) analisou efeitos dessa desmoralização na relação deputados evangélicos

na câmara federal.

Assim, se Caio Fábio em seu período “áureo” já criticava ferozmente a

institucionalização do Movimento de Jesus, com o seu retorno “guerrilheiro”

observamos que o protesto se acentua. Durante os anos 1980-90 já se podia encontrar

facilmente agudos questionamentos sobre a relevância social das “igrejas evangélicas”

em suas palestras e livros. Ainda notava-se em seu discurso um espírito “a la Wesley”,

por assim dizer, com sua reconhecida frase “o mundo é minha paróquia. (D´ARAUJO,

1987; D´ARAÚJO, 1998). Caio, nesta repaginação, torna mais explicito seu

descontentamento e protesto.

Em Agosto de 2001, Caio Fábio volta à atividade pública, como pregador no Centro

Evangelístico Unido (CEU) e esporadicamente em outras igrejas, como a Union Church

e a Igreja Batista do Horto (ambas no Rio). Pouco a pouco vai retornando ao cenário

protestante. Em 2001, assume também alguns minutos no programa “E tudo mudou”,

exibido pela Bandeirantes e apresentado pelo velho amigo Washington de Sousa. Para

D´Araújo, mesmo após seu “terremoto” existencial”, “pregar é o que sei fazer, é meu

ministério. Para isto é que fui chamado, lá em Manaus, há quase 30 anos”76.

Em meados de 2000, D´Araújo inicia um encontro denominado “Café com Graça”

no bairro Copacabana na cidade do Rio de Janeiro. O evento basicamente girava ao

redor da sua pregação, reunindo cerca de 80 pessoas, em sua maioria de classe média

alta. O “Café” acontecia em um jardim de inverno, aos fundos da livraria “Razão

Cultural”. Os encontros aconteciam todas as quartas, sábados e domingos e era uma

76 Revista VINDE, ano VI, n. 62, Janeiro de 2001. P 38.

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“igreja de perfil alternativo”, “uma igreja sem cara de igreja”, como dizia. Segundo a

revista Eclésia (Abril de 2002), D´Araújo “brinda os frequentadores do Café com Graça

com discursos teológicos densos, carregados de ilustrações e menções filosóficas sobre

os dramas e dilemas existenciais do ser humano”.77

Regina Novaes (2013, p. 115) enfatiza ser este período em que vivemos no Brasil

como um momento marcado pela multiplicação das denominações e micro-

denominações, sobretudo pentecostais que “descatolizavam” o país potencializando um

léxico que antes não era tão evidente nas experiências religiosas, tais quais

“desconversão”, “desfiliação”, “desafeição”, “ser sem pertencer”, etc. Já o contexto

anterior, para Novaes:

“o catolicismo expressava a memória coletiva (religião dos brasileiros) e era a referência mais importante para a conformação da territorialidade. Enquanto religião dominante, o catolicismo subordinou – e não eliminou as possibilidades de convivência desigual – as religiões de matrizes afro-brasileiras e mediúnicas. Só a expansão do pentecostalismo foi marcada pela ruptura da conversão e pela marca de exclusividade do pertencimento. No entanto, os jovens de hoje já foram socializados em novo contexto. Diferentemente de seus avós e pais, que viviam em territórios marcados pela presença dominante da Igreja Católica, os jovens de hoje já cresceram em um momento de proliferação de outras igrejas nos espaços onde vivem.

Sobre esse tema temos ainda a observação de Carlos Rodrigues Brandão (2013, p.98),

que acrescenta o seguinte:

“Até o advento das igrejas neopentecostais e, sobretudo, aquelas aferradas a uma aguerrida ´teologia da prosperidade´ (´Deus´ não está preocupado com sua salvação eterna, mas com o seu sucesso na vida enquanto estás vivo, aqui e agora´), o catolicismo era entre nós quase que a única religião que estendia seu leque de alternativas de pertença, afiliação e presença em celebrações [....]. Agora há concorrentes. E com visíveis vantagens, pois bastante mais adequadas a cultos teatrais – e não raro em teatros”.

Ainda debatendo este quadro, ressaltamos as pesquisas elaboradas por Paulo

Romeiro (2005) sobre os conflitos provocados pela ascensão neopentecostal. Segundo a

77 IBIDEM.

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avalição de Ariovaldo Ramos, que pode ser comparada a um período marcado pela

“decepção com a graça” (in ROMERO, 2005, p.12-13):

“Diante deste quadro desanimador, [...] [a]o abordar um grupo cada vez mais numeroso, formado pelas pessoas que se frustraram com as falsas promessas, [...]sua longevidade pode ser compreendida pela justificação que o movimento neopentecostal dá ao capitalismo e sua vertente mais moderna — o neoliberalismo. Dinheiro é bênção e não maldição. Além de justificar o capital, o neopentecostalismo justifica o individualismo — a bênção é para o que tem fé, ela é inalienável e intransferível.

Em nossas observações participantes munimos dados que confirmam os achados

desses pesquisadores. Em uma delas “Paulo” (nome fictício - 50 anos) frequentador de

uma “Estação do Caminho”, afirma que: “a maioria das instituições usa o velho

testamento para atrair mais fieis, pregando prosperidade e na verdade deveria estar

pregando a salvação em cristo jesus. Eles usam um versículo do Velho Testamento para

pedir dizimo e ofertas... e na verdade vivemos no novo testamento onde nenhum

apostolo do senhor jesus falou incentive o povo dar o dizimo”. Já uma a qual chamamos

ficticiamente de “Roberta” (25), dissidente de uma igreja presbiteriana: “é que ela [a

igreja institucional] retira do cotidiano a espiritualidade, além de criar diferenças

hierárquicas entre as pessoas. Isso cria uma fé muito artificial.”78

Voltando ao nosso relato, no ano de 2004, D´Araújo teve uma rápida passagem pela

IEC - Igreja Episcopal Carismática de Recife (PE), uma denominação dissidente da

Igreja Episcopal Anglicana. A notícia causou estranhamento face a todas as críticas

tecidas por ele contra o “sistema religioso” institucional. O ponto de contato entre Caio

Fábio Filho e a denominação é o próprio líder da IEC, bispo Paulo Garcia Ruiz. Na

Catedral Episcopal, D´Araújo pregava duas vezes por semana e a denominação

planejava até construir um novo templo com capacidade para duas mil pessoas em uma

área melhor localizada na cidade e que seria “erguida em um quarteirão inteiro” para

acolher o ministério de Caio Fábio. Quando indagado sobre compor os quadros

novamente em uma “igreja institucional”, após desferir discursos contra as

denominações, Caio Fábio afirmou: “Igreja é no que creio e sempre falarei. Até que a 78 Caderno de campo, observação do dia 11/08/2013.

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´igreja´ reconheça que não tem sido Igreja”.79 Assim, apesar de sua filiação a Igreja no

Recife, Caio Fábio afirmou continuar com a “comunidade alternativa”, o Café com

Graça, em Copacabana, que durou apenas 4 anos. Seu ministério em Recife ocorreu

durante o ano de 2004.

Em meados de 2004, Caio é convidado pelos amigos para uma série de pregações

em Brasília. Entusiasmado com a recepção de sua mensagem logo no primeiro encontro,

convida as cerca de 120 pessoas presentes no primeiro encontro a continuar. Desta

forma os encontros, agigantados, passam a ser no Hotel Fenice; depois no Centro

Educacional Maria Auxiliadora (CEMA) e finalmente, após alguns meses, no auditório

do Colégio La Salle80.

Quem era o público de seus primeiros encontros? Caio Fabio nota que a maioria das

pessoas que os frequentavam eram aquelas machucadas pela religião81, “aqui ninguém

se mete na vida de ninguém”82, diz D´Araújo em uma pregação, coibindo o vilipêndio

entre irmãos por conta do período sensível que muitos experimentavam. Com o sucesso

e aceitação de sua pregação, D´Araújo e sua família mudam-se definitivamente para

Brasília, hoje sua cidade.

Nessa mesma época, em entrevista ao site Teologia Brasileira, D´Araújo está mais

desinibido para expor suas críticas ao cristianismo contemporâneo. Segundo a nota

abaixo, o cristianismo hoje seria um sistema completamente corrompido. Logo,

precisaria não de uma nova reforma, mas de uma “revolução”. Caio Fábio em uma

entrevista, dada a Ricardo Muniz, afirma que:83

“Reformar o cristianismo nada muda, apenas se adia o comprometimento radical que o Evangelho demanda. A própria Reforma Protestante foi um remendo de pano novo em veste velha. E a tragédia embutida nisso é que o cristianismo, uma tentativa vitoriosa do diabo de diminuir a loucura da pregação e o escândalo da Cruz, manteve-se. O mundo não teve ainda a chance de conhecer o Evangelho conforme as dinâmicas livres e libertadoras do Caminho, segundo as narrativas dos evangelhos, nas quais o único convite que existe é para seguir a Jesus. O que os

79 Revista Eclésia, ano IX, n. 98, Janeiro de 2001. P 12-13. 80 "Quem é Caio Fábio e o Caminho da Graça? 4/4". <https://www.youtube.com/watch?v=7djqMTc2gPo> Acessado em 09/10/2013. 81 "Quem é Caio Fábio e o Caminho da Graça? 3/4". <https://www.youtube.com/watch?v=Pmuit9eoNO8> Acessado em 10/10/2013. 82 Idem. 83 “Entrevista: Caio Fábio quer revolução: por Ricardo Muniz” <www.caiofabio.net/conteudo.asp?codigo=02927> Acessado em 03/03/2014.

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cristãos precisam saber é que Jesus não teve interesse em algo que se assemelhasse à civilização cristã ou mesmo com a ‘Igreja’ como a conhecemos de 332 de nossa era até hoje. O cristianismo já é uma perversão, transformando o Evangelho puro e simples numa religião com dogmas, doutrinas, usos, costumes, tradições imutáveis, moral própria e muita barganha com os homens. Pratica-se assim uma obra de estelionato contra o Evangelho de Cristo. É difícil imaginar que Jesus tenha qualquer coisa a ver com o que nós chamamos de Igreja, seja aquela que se abriga no Vaticano, ou sejam aquelas que têm tantas sedes quantos pastores, bispos e apóstolos megalomaníacos. O ensino de Jesus, inversamente, é caracterizado por desinstalação, mobilidade, liberdade de aplicação sem legalismo, confiança do Semeador no poder da semente-palavra, ênfase na igualdade de todos, denúncia dos poderes religiosos e pertinência à vida. Na prática, isso significava a cura da mente, do corpo e do espírito. Significava o anúncio da destruição do Templo como lugar de Deus. Significava a beatificação de samaritanos e a demonização de religiosos sem coração. A coragem revolucionária que o Evangelho demanda de cada geração é aquela que se lança ao vento e caminha pela fé, e que se dispõe a se deixar reinventar conforme o espírito do Evangelho, posto que ele não propõe uma religião, mas o Caminho. Isso significa que cada nova geração tem que ter a coragem de vestir o Pano Novo do Evangelho no seu tempo e beber o Vinho Novo do Reino em odres novos. Na hora em que milhões que assim crerem passarem a viver livres conforme o Evangelho, então, sem pai, sem mãe e sem fundador, a revolução se estabelecerá, sem sede, sem geografia, sem dono, sem tutor e sem reguladores da fé. Não creio em reformas. Creio, sim, numa Revolução do Evangelho que só incluirá os cristãos se eles tiverem a coragem de desistir do cristianismo e abraçar o risco de apenas andar conforme a revelação da Graça de Deus em Cristo, conforme a Palavra do Evangelho. Tal fé é incompreensível pelas mentes viciadas no cristianismo e é desinstaladora demais para aqueles que vivem do negócio clerical cristão84.

Ponderamos a hipótese, presente nessas citações, que seu discurso assemelha-se de

uma maneira geral, as técnicas e teorias que observamos no capítulo anterior, quando

procuramos sucintamente compreender as “Igrejas Orgânicas”. D´Araújo não se inibe

em alegar a perversão do cristianismo como fenômeno sócio histórico, dando a entender

que a “revolução” por ele proposta é superar as estruturas denominacionais sufocantes;

a imposição dos credos, os “pareceres humanos”.

Não é incomum, em seus textos ou suas falas no programa “Papo de Graça”, na

“Vem e Vê TV”85, encontrar a afirmação de que “Jesus é seu horizonte

hermenêutico”86. Esta afirmação nos leva ao entendimento de que seu desejo é uma

“teologia existencialista”, em que o evangelho de Jesus esteja ligado ontologicamente à

84 Idem. 85 A cyber religiosidade envolvida no “Caminho da Graça”, será analisada logo mais. 86 "CAIO FÁBIO - JESUS COMO CHAVE HERMENÊUTICA". <https://www.youtube.com/watch?v=tNLMHMV_AOw>. Acessado em 10/10/2013.

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experiência humana, experimentada supra-dogmaticamente. Evidentemente, suas

opções teológicas proporcionam reações das alas conservadoras, que valorizam somente

a hermenêutica da Bíblia como sendo a expressão do evangelho. Não iremos analisar a

teologia de D´Araújo, porém é preciso que se destaque sua teologia existencial, calcada

no espírito humano de encontro com o “espírito de Deus”, logo, de certa forma

incapturável. Em outras palavras, levando em consideração a hermenêutica “em Jesus”,

torna-se inviável a construção de dogmas, eclesiologias e padrões definidos, pois a

experiência humana é conflituosa como uma realidade subjetiva e particular, como

sustenta e demonstra Walter Salles (2009):

“No contexto cristão, se tomarmos emprestado a idéia [sic] de fusão de horizontes, oriunda de Gadamer e desenvolvida por Ricoeur, podemos afirmar que a hermenêutica de si promove a fusão do horizonte da vida do cristão com o horizonte da vida de Jesus Cristo, unindo-se sob o mesmo horizonte hermenêutica e antropologia, uma vez que no relacionamento com Jesus Cristo é o próprio ser do fiel que está em questão, constituindo-se em passagem obrigatória para a construção de uma identidade cristã”.

Dito isto, retornemos novamente à sua trajetória. Em 2003, o lançamento do site

www.caiofabio.com87 marca indelevelmente sua fase atual. Em pesquisa participante,

uma das lideranças nacionais nos disse que: “O ´Caminho da Graça´ nasceu do site!”.

Ora, através desta declaração podemos notar a importância das experiências online para

a produção da religiosidade no caso do “Caminho da Graça”. É importante destacar que,

como sugere o próprio Caio Fábio, seu retorno à atividade se deu quando começou a

responder cartas e e-mails e a publica-los em seu site. O site foi doado por Robson,

proprietário da empresa “sitemais”, e conta com uma equipe reduzida e praticamente

voluntária que cuidava do design, atualizações e vendas de seus antigos livros.

Para D´Araújo o site seria o “Portal dos Invisíveis”,88 profetizado três anos antes,

quando ele visitava um sensitivo “profeta”. Na ocasião recebe a “revelação” que seria

criado um “portal” por onde passariam milhões de pessoas para encontrarem “bebida e

comida espiritual”. Sobre esse site, D´Araújo89 argumenta que:

eEm 2010, o domínio é substituído por outro, www.caiofabio.net 88 “A SEMENTE, O SITE, VOCÊ E EU!”. http://www.caiofabio.net/conteudo.asp?codigo=04297 89 Ibidem.

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“Quando joguei a primeira semente no chão do site, fui dormir e nada esperava. Apenas julguei que o lugar da semente era no chão e não na minha mão. [...] Todos os dias milhares de pessoas em todos os lugares acessam esse meio de Graça simples e livre, e, por tal ato sincero, muitos têm provado o sentido de terem encontrado o seu chão na vida. [...] E milhões de hits já estão passando por ele; e milhões de pessoas por ele passarão!”.

Como fica evidenciado acima, sua nova mídia virtual começou a alcançar novos

espaços e, concomitantemente, a chamar atenção daqueles “órfãos” das mensagens e da

presença de D´Araújo no universo religioso, além de conquistar novos públicos com um

discurso de oposição à “Igreja Institucional”. Em pouco tempo o site alcançou milhões

de visitas já em sua primeira versão90.

Assim, conforme Caio Fábio, o “Caminho da Graça” “não quer ser um movimento

religioso, quer ser um caminho de fé, de consciência, por isso é que tem milhares de

pessoas chamadas ´desigrejadas´ pelas igrejas, que estão todas dentro desse

movimento”91 e acrescenta, sobre o risco deste “movimento” não ser também uma

denominação, ou correr o risco de se tornar uma denominação, afirmando que “Igreja

sou eu, Igreja é você. Igreja é impossível não haver. Igreja somos nós. Igreja é encontro.

Eu me encontrei aqui contigo, esse é um encontro-igreja”92. O que o nosso sujeito-

objeto elabora é um blend teológico do conceito denominado “sacerdócio universal” e

uma “eclesiologia” horizontalizada e, principalmente, descentralizada que seria próxima

as “redes de igrejas” paulinas ao cristianismo original do qual os núcleos

institucionalizados de resistência.

Em 24/06/2014, D´Araújo é entrevistado pelo programa The Noite, exibido pelo

Sistema Brasileiro de Televisão (SBT). A fala inicial na entrevista, parece englobar sua

sentença final acerca de seu período de transição, da “era Caio Fabio”, para “pós Caio”

e o que, no entender dele, se transformou a “igreja evangélica”:

“Até 1998 eu fiquei 33 anos rodando o Brasil, indo presencialmente aos lugares. Mas eu tinha um objetivo. Eu achava que a comunidade evangélica era alienada como era, imbecilizada, marionetada, massa de manobra como era, abjeta como era, porque faltava instrução. Faltava ensino. Aí eu fiquei trinta e tantos anos ensinando.

90 01ª parte - Entrevista Caio Fábio Biografia - Tema: Internet. https://www.youtube.com/watch?v=yquYr1cYx64. Acessado em 10/10/2013. 91 "Transcrição da entrevista do Caio ao Danilo Gentili, no ´The Noite´". www.caiofabio.net/conteudo.asp?codigo=06433. Acessado em 10/07/2014. 92 Idem.

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Dos Luteranos aos Neopentecostais. De um extremo ao outro. Criamos uma organização, que era a Associação Evangélica Brasileira, pra ver se dava parâmetros de saúde mental pro pessoal. Mas na realidade, eu descobri que ninguém quer isso, pois desmonta o circo, a estrutura, a exploração... Instrução ajuda o povo a andar com as próprias pernas. Instrução liberta. Instrução tira as dependências desses gurus tiranos de sobre a cabeça das pessoas. Bom, durante 30 anos eles não tinham o que dizer a meu respeito, não podiam me pegar por nada para me relativizar, até que eu me divorciei. Quando eu me divorciei em 1998, era tudo que essa corja queria. Eles não podiam me acusar de corrupção, de roubo, de exploração, de ênfase em dinheiro, de nada disso. Mas pegaram nesse santo-do-pau-oco: "O Caio se divorciou, logo, ele não tem mais nada a nos dizer”.93

Logo, a este conjunto de ações ao redor de D´Araújo operando na realidade concreta

deu-se o nome de “Caminho da Graça”, em hipótese, amparado na premissa da

“religiosidade não religiosa”, podemos recorrer neste momento as análises de Collin

Campbell (1997) sobre uma possível orientalização do ocidente. Para André Luis Caes

(2009): “ao florescimento de uma concepção mística e imanentista da relação entre o ser

humano, a natureza e o divino, em contraposição ao enfoque materialista presente na

cultura ocidental”. Desta forma, abrem-se novas perspectivas para a formação de uma

“consciência global” com a integração mística de todos os humanos. Podemos perceber

em D´Araújo, sobretudo em seu programa diário uma evidente construção de imagem

que corresponde a de um “guru” pós-moderno.94Para Peter Berger (1985, p. 70-71):

“A teodicéia afeta diretamente o indivíduo na sua vida concreta na sociedade. Uma teodicéia plausível (que, é claro, requer uma estrutura de plausibilidade apropriada) permite ao indivíduo integrar as experiências anômicas de sua biografia no nomos socialmente estabelecido e o seu correlato subjetivo na sua própria consciência. Essas experiências, por penosas que possam ser, ao menos têm sentido agora em termos que são tanto social como subjetivamente convincentes. É importante salientar que isto de modo algum significa necessariamente que o indivíduo esteja agora feliz ou mesmo satisfeito ao passar por tais experiências. Não é a felicidade que a teodicéia proporciona antes de tudo, mas significado. E é provável [...] que, nas situações de imenso sofrimento, a necessidade de significado é tão forte quanto a necessidade de felicidade, ou talvez maior. [...] Os “ganhos” da teodicéia para a sociedade devem ser entendidos de um modo análogo aos que são proporcionados ao indivíduo. Coletividades inteiras adquirem a possibilidade de integrar eventos anômicos,

93 Id. Ibid. 94 No programa “Papo de Graça”, Caio Fábio ocasionalmente usa togas étnicas e batas similares as indianas. O cenário é composto por vários elementos de sua própria casa, com destaque a um fogareiro acesso, que fica ao centro da mesa do cenário principal. Intermitentemente ao seu programa, a trilha sonora continua é a canção Panoramic do produtor musical inglês Atticus Ross, que dá um clima “zen”.

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agudos ou crônicos, no nomos estabelecido na sua sociedade. Esses eventos recebem agora “um lugar” no esquema das coisas, que é conseqüentemente protegido da ameaça de desintegração caótica sempre implícita em tais eventos”.

3.5-Estações do Caminho – novo (não) lugares religiosos

As “Estações do Caminho” são agências religiosas iniciadas por Caio Fábio em

meados de 2005, após sua decisão de permanecer em Brasília e por conta de seu retorno

do período de “reclusão”. Com a repercussão da experiência bem sucedia naquela

cidade, surge a necessidade da implementação de “Estações” em outros estados. Tal

expansão das “Estações” está diretamente ligada à criação da TV online “Vem & Vê

TV” no ano de 2006, assim como ao início das transmissões 24h das mensagens de

D´Araújo via web. A “Vêm & Vê” foi incorporado ao site (“portal”) no mesmo ano.

Desta forma seu portal cresceu em visitas, tanto pelos visitantes que buscavam ler as

“cartas” respondidas por Caio Fábio, quanto, a partir da inserção da web TV, pelo

crescente interesse de novos expectadores por suas mensagens em vídeo.

O “carro chefe” da Vem e Vê TV é o programa “Papo de Graça”, transmitido ao

vivo de segunda a sexta, das dez horas da manhã até às 13 hora. O programa é divido

em três blocos, com cerca de uma hora cada. No primeiro terço, Caio Fábio comenta

vídeos variados, a maioria postados95 por seu público em seu Facebook. Na segunda

parte, é realizada uma mensagem inspirativa, ou, em alguns episódios, são transmitidos

documentários curtos que recebem comentários do apresentador, após a exibição. No

último terço, Caio Fábio dedica-se a responder perguntas enviadas via chat. A leitura

destas mensagens, acompanhada por interações com toques humorísticos, fica a cargo

do segundo apresentador, Bráulio Nápoles. Nesta altura do programa, Caio reponde

questionamentos enviados por seus ouvintes tais como: “Fui em um culto, dei meu tênis

como oferta e meu pai quase me mandou pra fora de casa descalço."96; ou então "Vi

várias curas no culto do Valdemiro. Isso é paranormalidade, indução ou Espírito

95 Refiro-me ao neologismo digital “postar”, significa enviar uma mensagem eletrônica. 96 "Fui em um culto, dei meu tênis como oferta e meu pai quase me mandou pra fora de casa descalço.".https://www.youtube.com/watch?v=46oLft5Tsjs&list=UUT2iDke9SuPfp0XO0rr8YSA, Acessado em 27/08/2014.

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Santo?"97 e "Me afastei da igreja e não consigo mais frequentar nenhum lugar. E

agora?".98

A Vem & Vê TV conta com três canais que transmitem constantemente os

programas relacionados a Caio Fábio. No índice dos programas disponível no site,

encontramos: “O caminho da graça”, "No caminho", "Vem & Vê clássicos”, “Cabra

macho”, “Dribate”, apresentado por sua esposa, “Vem & Vê documentários”, “Vem &

Vê estudos bíblicos”, “Reflexões na Terra Santa”, Espaço das estações”, “O caminho do

discípulo”, “Pense Comigo” e “Caminho consciência”. 99

O programa “Papo de Graça” é “fatiado” em pedaços menores, disponibilizados do

Youtube, para facilitar a audiência dos usuários web que, normalmente estão habituados

com mensagens mais curtas e dinâmicas. Desta forma, fica fácil compartilhar seus

vídeos em suas mídias sociais. Assim, com a circulação da mensagem de Caio Fábio

muitos se afinaram com sua linha de pensamento, surgindo a necessidade pela

“plantação” de comunidade de afins ao ethos da “contra-cultura” evangélica.

Atualmente existem cerca de 70 Estações da Graça espalhadas em todas as regiões do

Brasil, e também no exterior.100

Assim como nos tempos “áureos” da VINDE, quando Caio sustentava diferentes

atividades, também encontramos no “Caminho da Graça” diversas frentes de ação,

articuladas através da mobilização da rede dos participantes das “Estação da Graça”.

Podemos citar o "Caminho Nações" que “sintetiza as iniciativas humanitárias do

Caminho da Graça entre as Nações”.101 Entre as atividades do “Caminho Nações”

encontra-se o projeto “Pequeninos da Nigéria”, cujo objetivo é o resgate de crianças

acusadas de serem bruxas, por pastores neopentecostais na Nigéria e no Senegal102; na

área social também podemos citar o “SOS Religar”, com atuação no sertão do Brasil.

Também podemos incluir nestas frentes de atividades do “Caminho” o “AlSakra”,

“Caminho consciência” e “Capelania do Caminho”.

97 "Vi várias curas no culto do Valdemiro. Isso é paranormalidade, indução ou Espírito Santo?". https://www.youtube.com/watch?v=90WTQUD9uos. Acessado em 27/08/2014. 98 "Me afastei da igreja e não consigo mais frequentar nenhum lugar. E agora?". https://www.youtube.com/watch?v=Usy7PhvrUQ0. Acessado em 27/08/2014. 99 www.vemevemtv.com.br. Acessado 20/05/2014. 100 < http://blogcaminho.blogspot.com.br/p/grupos-do-caminho.html>. Acessado em 14/10/2013. 101 < https://www.facebook.com/caminhonacoes.wn?fref=ts>. Acessado em 10/07/2014. 102 < http://www.caminhonacoes.com/>. Acessado em 10/07/2014.

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Observado as atividades do “Caminho da Graça”, passamos para o próximo passo.

Nossa pesquisa de campo, de inspiração etnográfica participante, foi realizada entre

junho de 2013 até fevereiro de 2014 na “Estação da Graça”, em um Campinas, cidade

no interior de São Paulo, em um grupo com cerca de 30 pessoas; além disso realizamos

pesquisas na “Estação da Graça”, em São Paulo-Capital, e ainda em uma outra, ainda

em fase de “plantação”. Para cumprir o objetivo estabelecido, também acompanhamos

sua mídia social, e assistimos a incontáveis vídeos no youtube e a programas da “Vem e

Vê TV”; contamos também com anotações no caderno de campo e conversas informais

com seus principais expoentes; esta análise é seguramente uma fotografia, pois o

movimento está em constante remodelagem.

Nosso primeiro desafio foi delimitar o campo. Havia vários grupos de inspiração

“Orgânicas” ou “Simples” nas mídias sociais ou na busca no Google, em diversas

cidades e estilos. Procurávamos por um grupo cristão com perfil alternativo, no qual as

pessoas se encontrassem em residências ou locais alternativos, com tendência anti-

clerical, conforme convencionamos ser próprio da “Igreja Orgânica”. A esta altura já

havíamos decidido que a delimitação do tema seria o movimento “Caminho da Graça”

por já estarmos convencidos de que, pelo material midiático assistido e através de

conversas com seus frequentadores, tínhamos encontrado nosso “objeto”. Não foi difícil

encontrar via internet o endereço e os contatos da liderança da comunidade na cidade.

No website deste grupo, encontra-se uma auto-definição, apresentada a seguir:

“Sobre - O ´Caminho da Graça´ no Brasil é um movimento que existe para anunciar que ´Deus estava em Cristo, reconciliando consigo mesmo o mundo, e não imputando aos homens as suas transgressões´.

Missão - Cremos que nossa missão na existência é o Amor, segundo os ensinamentos de Jesus Cristo, Deus Encarnado. Não há evangelho sem amor, e o amor implica em ações práticas para com o próximo.

Informação Geral - Temos Estações e grupos de contato em todo Brasil e fora do Brasil. Se desejar saber se perto de você tem algum grupo se reunindo, informe-se no link: http://blogcaminho.blogspot.com.br/p/grupos-do-caminho.html”103

103 https://www.facebook.com/ocaminhodagraca/info. Acessado em 10/10/2013.

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A despeito da formulação teológica acima disposta, supondo que o recenseador

indagasse sobre o pertencimento religioso dos frequentadores do “Caminho da Graça”,

eles poderiam auto “declararem-se” “evangélicos, porém o sub grupo ou a denominação

seria o “Caminho da Graça”, ou a “Estação do Caminho’? Ou apenas declarar-se-iam

cristão. Porém, com as afirmações de D´Araújo de que o cristianismo é o

desvirtuamento do Movimento de Jesus, fica incerto sabermos, de início, se tais grupos

das “Estações”, ou os “desigrejados”, perfazem as fileiras dos “evangélicos não

determinados”.

Assim, observando o conteúdo do blog “Estação do Caminho”, notamos que sua

descrição oficial se aproximava a um discurso legítimo das lideranças e também muito

próximo das questões levantadas na “Estação”:

“O Caminho é mais que um lugar ou um clube de iluminados. Trata-se de um movimento de subversão do Reino de Deus na Terra. Por esta razão, "o Caminho" é feito de gente chamada a assumir seu papel de sal que se dissolve e some para poder salgar; de fermento que se imiscui na massa e desaparece a fim de subverter; de pequena semente que se torna grande e generosa árvore que a todos acolhe; de Casa do Pai para os filhos Pródigos e também para os Irmãos Mais Velhos que se alegrarem com a Graça do perdão; e um ambiente espiritual no qual até o "administrador infiel" possa se consertar, e, assim, tentar fazer o melhor do que restou.

No Caminho todos são irmãos, e ninguém é juiz do outro. Assim, ajudam-se, mas não se esmagam uns aos outros, posto que no Caminho todos caem e levantam, todos se enfraquecem, mas não desanimam, todos são humanos, e, com humanidade são tratados, conforme o Dogma do Amor.

Desse modo, "os do Caminho" andam no mundo, no chão da terra, em meio à sociedade humana; e isto sem fazer propaganda religiosa, mas, antes e sobretudo, "sendo" povo de Deus entre os homens vivendo mediante a "fé que atua pelo amor".

Jesus nunca quis fundar uma religião. Nada foi mais danoso para a genuína fé do que terem-na feito tornar-se uma religião, entre as demais.

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Seguir Jesus é aceitar um modo de ser, é assumir como vida as Suas palavras, e é dar testemunho do Evangelho não como uma "estratégia de evangelização", mas sim como a natural vocação da Vida em Cristo.

O "Caminho da Graça" é a simples busca de viver o Evangelho com tal consciência entre os homens. Nada mais e nada menos do que isto!

Portanto, se o que você aqui ler for algo que receba o testemunho interior do Espírito Santo como sendo verdade conforme o espírito do Evangelho, então, una-se àqueles que desejam apenas andar conforme o chamado original dos "do Caminho", conforme o livro de Atos.”104

Isso posto, contatamos a liderança via chat no Facebook, que me atendeu muito

bem, e estendeu o convite - de uma conversa virtual para uma visita presencial no

domingo. Assim procedi. O grupo da “Estação da Graça” de Campinas se reúne em uma

associação comercial, no centro da cidade. Ao chegar ao local de encontro, notei que

não havia placas de identificação na porta, e que se tratava da Estação por conta da

movimentação no hall de entrada. Soube que o grupo se encontrava em um lugar

público, alugado, e não nas residências, porque naquela altura, a quantidade de

“caminhantes” já extrapolava o limite da capacidade de realizar as reuniões nos lares

dos irmãos; logo, decidiram por alugar uma vez por semana um espaço comercial no

centro da cidade “para ficar perto para todos”, por R$ 80,00 mensais.

Esse grupo do ”Caminho da Graça”, reunido em um lugar central do munícipio,

estava localizado em um quadrilátero onde se encontram as igrejas centrais da cidade, as

Católicas sedes, as Batistas, Metodistas, Presbiterianas e outras da cidade. Por vezes,

nos momentos em que entrávamos ou saíamos dos encontros, percebíamos a

movimentação típica dos fiéis em direção aos seus cultos, ou deles retornando. No

entanto, o culto na “Estação” acontecia em um lugar neutro do “sagrado”.

Nas discussões antropológicas sobre a religião, a relação dos indivíduos com os

lugares religiosos tem um espaço privilegiado. As basílicas, os roteiros sagrados (como

as peregrinações em Juazeiro, o caminho de “Santiago”, entre outros), evidenciam a

relação sujeito-espaço como tema fulcral do debate sobre a religião no espaço público

104 "O que é o Caminho?".<ocaminhodagraca.blogspot.com.br>. Acessado em 11/10/2013.

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urbano. Na Antropologia religiosa habitual, o lugar do culto é fixo, porém, quanto ao

“Caminho da Graça”, o grupo reúne-se em um espaço de circulação pública não ornado

de elementos caracterizados como religiosos, tais como crucifixos, púlpitos,

confessionários, batistério, etc. Encontramos nas observações de campo, tão somente

uma sala de reunião, por assim dizer, “secularizada”, localizada dentro de uma

associação comercial. A forma como os sujeitos tramam suas relações pode estar

diretamente vinculada ao espaço em que estão inseridos, podendo constituir um

paradoxo produzir uma experiência com o sagrado em um espaço a ele não delimitado.

Marc Augé (2003) lança mão da ideia de “não lugares”, que mesmo não se

tratando uma discussão religiosa, entendemos ser perfeitamente aplicável para elucidar

a relação dos espaços na religiosidade urbana. Em sua análise, ele formula dois tipos: os

“lugares” e “não-lugares”. Os “lugares” são espaços definidos “duros”, os “não lugares”

são espaços de transitoriedade, de fluxo, com identidades múltiplas. Para Augé (2003, p.

98): “Na realidade concreta [...], os lugares e os espaços os lugares e os não-lugares

misturam-se, interpenetram-se. A possibilidade do não-lugar nunca está ausente de

qualquer lugar que seja. A volta ao lugar é o recurso de quem frequenta os não-lugares”.

É nesta interpenetração evidenciada por Augé que se pode situar os lugares de encontro

das “Estações do Caminho”, nenhum deles, pelo menos em nossas pesquisas, possui um

“lugar sagrado” para a realização de seus encontros. Os espaços de circulação pública

são “não lugares”, porém se transformam em “lugares” para que os aplicativos de fé de

seus sujeitos religiosos sobrevivam diante da secularização e da constante necessidade

de adaptação.

A observação de Campos (2006, p. 163) colabora para elucidar a questão:

“A religiosidade volta a fazer parte da paisagem urbana e do convívio dos cidadãos, tornando-se a cidade, novamente, um local em que ganham força sistemas simbólicos até então tidos como definitivamente eliminados da vida urbana... Por outro lado, é possível que esse renascimento do misticismo ou da religião na cidade esteja ligado também à globalização ou à mundialização... Como resultado desse processo, novas configurações religiosas tomam conta do contexto urbano”

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Porém, em uma espécie de gramática ritual, ao iniciar-se o encontro (ou “culto”)

a reverência mudava; após a oração inicial, o local é o espaço de culto: “onde estiverem

dois ou mais, lá eu estarei”, como afirma Jesus Cristo em Mateus 18,20. Em outro grupo

orgânico, na mesma cidade, os encontros acontecem em uma cafeteria, o grupo não tem

vínculos, nem um nome específico. Entre uma conversa e outra, realizam suas orações,

estudos da bíblia, tudo entre o vai e vem dos garçons e demais frequentadores do local.

Ressaltamos também grupos que operam a religiosidade cristã em locais “não

religiosos”, observados no grupo “Igreja Orgânica Brasil” (IOB).105 Neste espaço

virtual, os “membros” disponibilizam fotos de seus encontros. É relevante ressaltar que

na maioria dos grupos “orgânicos” observados em diversos estados do Brasil na IOB, os

interlocutores se reúnem “com simplicidade” em residências ou locais “não sagrados”,

como cafeterias, pizzarias, praças, escolas. Nestes casos, a configuração espacial

normalmente conta com cadeiras ou sofás em rodas, revelando uma necessidade de

“falta de centro”, ou disposto em círculo para conferir ao grupo maior interação, sem a

tradicional disposição em um formato de auditório, encontrada na maioria das Igrejas.

O local do encontro do “Caminho da Graça – Estação Campinas”, onde

realizamos nossa observação principal, é uma sala de aula adaptada, alugada de um

centro comercial. As cadeiras da sala são rearranjadas em formato de círculo. Fora as

cadeiras, o lugar permanecia intacto, tal como usado cotidianamente. No lado esquerdo

havia uma lousa, o que me fez deduzir que lá poderiam funcionar cursos gratuitos

durante a semana. Antes de chegar nesta sala, havia um hall, com três poltronas, onde

os participantes interagem antes de iniciarem o culto, as 19h, e que, depois, ao final,

proporcionava ambiente para um momento de refeição comunitária, na qual cada

participante contibuia com um alimento/bebida. No total, os encontros duravam cerca

de 1 hora e 20 minutos.

Em alguns encontros o líder destacava algumas atividades sociais do “Caminho

da Graça” que necessitavam de suporte financeiro e orações, para mobilizar o grupo.

Assim, passava vídeos dessas atividades, tais como, por exemplo, o trabalho

desenvolvido na Nigéria, citado acima.

Em cada encontro que participamos, notamos que não havia uma liturgia

estabelecida. Em algumas ocasiões o responsável pelas canções estava presente, em

105 < https://www.facebook.com/groups/1464550993778819/photos/>. Acessado em 20/08/2014.

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outras não. Não era problema levar o encontro sem música ou sem “momento de

adoração”. Em conversa com um de seus líderes, fiquei sabendo que um dos músicos

gostaria de montar uma “banda fixa” para as liturgias do culto. Este líder não

concordou, porque preferia que o tal músico dedicasse o tempo no qual estivesse nas

reuniões investindo em relacionamentos e, quando se sentisse “inspirado”, poderia

conduzir alguns cânticos. Para acompanhar os cânticos às vezes distribuíam uma folha

contendo as letras das canções. No “Caminho da Graça” em São Paulo, conversando

com um dos líderes, soube que lá também não havia banda. “-Nem banda, nem nada”. O

líder me explicou que lá as coisas também funcionavam através dos “dons”, com

naturalidade. Não havia eleições para cargos, liderança formal, equipes, obreiros, etc.

Para o líder o que “importava era a vida” real, não os aparatos religiosos.

É oportuno salientar um certo contraponto. Em tempos da “espetacularização da

fé”, em que os evangélicos estão fortemente influenciados pela lógica de mercado, após

a “explosão gospel” (CUNHA, 2007), no qual os cultos assentam-se em modelos

teatrais (CAMPOS, 1997), vale-me o que Guy Debord (1997) chama de “sociedade dos

espetáculos”. Debord demonstra que a redes de significados sociais passam por um

processo em que o cotidiano é experimentado através de uma acumulação de

espetáculos. A espetacularização cria um encantamento do fiel, a partir da

dramaticidade do culto, da eloquência pastoral, utilização de traquejos retóricos, música,

luzes, etc, tudo para gerar confiança (ou fidelização?), empatia e sensação de

estupefação religiosa. Assim Debord (1997, p. 14) conceitua o espetáculo: “uma relação

social entre pessoas, mediatizada por imagens”.

Seria possível pensar o desejo por comportamento religioso “simplificado”,

através do engajamento de certos setores da sociedade por uma busca de uma “vida

simples”, de “menos stress”, “minimalista”, que se opõe à sociedade de consumo, como

nos aponta Renata Silva (2012)? Se a sociedade em geral tem pautado pelos excessos do

consumo, inversamente é possível que certos sujeitos almejem menos tecnologia, menos

stress e mais relacionamentos e qualidade de vida. Poderíamos perceber um ethos, ou

pelo menos um buraco de fechadura para que possamos pensar a predileção pela

quietude e simplicidade religiosa.

Retomo a descrição da “Estação do Caminho. Os encontros iniciavam com

palavra de boas vindas do líder. Em seguida, normalmente o grupo entoava de três a

quatro músicas. Estas eram ocasionalmente intercaladas por uma explicação sobre seu

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conteúdo ou alguma “palavra de inspiração”. Algumas vezes o “violeiro” não escolhia

as canções e solicitava que o grupo as sugerisse. Interessante destacar que, no repertório

musical da “Estação” pesquisada, também havia canções “seculares”: (a maioria de

MPB, das décadas de 80 e 90), canções de Almir Satter (“Tocando em frente”), Lulu

Santos (“Tudo bem”); Legião Urbana (“Pais e Filhos”); Roberto Carlos (“É precisa

saber viver”). Elas eram entoadas durante o “momento de louvor”, junto às outras

canções de cunho mais religioso.

Segundo um de seus líderes106:

“A gente faz da mesma forma que o Caio faz em Brasília e como aprendemos com ele, usamos música que tem a ver com o Evangelho, caso haja alguma canção que tem a ver com o momento em que estamos vivendo e sentido, nós usaremos a música, independente das classificações. O que vai dizer se usaremos ou não a canção e seu conteúdo e não está nesta bobeira desta divisão entre música ´gospel´ e ´secular´, graças a Deus com o Caio e o Caminho da Graça, encontramos um jeito de compartilharmos desta maneira”

Ora, uma das características apontadas por Prócoro Velasquez Filho (1990)

acerca da implementação do protestantismo no Brasil é que o convertido era

subordinado a uma vida santa, que significava opor-se a cultura brasileira (católica) e

adotar a cultura anglo saxã (do missionário “transcultural”). Daí a importante

colaboração de Antônio Gouvêa Mendonça (2008) sobre a inserção do protestantismo

no Brasil, assimilado através de canções religiosas americanas e europeias. Até

recentemente, antes da penetração da cultura dos “cânticos” nas igrejas evangélicas, tais

“hinos” estrangeiros eram entoados, ao passo que a musicalidade brasileira era

abominada.

Para Marina de Oliveira (2013, p.16), existe um movimento cultural cristão que

pretende valorizar a arte “para Deus, porém desprovida da gramática religiosa”,

admitindo que a transcendência cristã também pode ser alcançada pela beleza estética.

Segundo Oliveira, o “Hope Rock” ou o “Novo Movimento” segue esta premissa. As

106 As conversas com participantes dos encontros foram escritas em um caderno, que demos o nome de caderno de campo.

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bandas cristãs elencadas por Oliveira107 costumam tocar canções de artistas não cristãos

da MPB:

“Diversas bandas têm produzido música que seja acessível a todos os públicos, e mesmo sendo cristãos evangélicos, dispensam o rótulo do gospel, embora em suas composições se perceba o extrato da filosofia cristã e temas relacionados à fé, como a beleza da criação divina, a esperança de dias melhores, o amor ao próximo. Este novo modo de fazer música tem sido chamado por uns de Hope Rock, por outros de Novo Movimento, porém não se trata de um movimento que tenha nome oficial e talvez nem seja essa a pretensão das bandas da cena. Mas em comum, há o desejo de se cantar uma música que fale de esperança, produzindo arte a partir de uma perspectiva cristã, mas deixando de lado o proselitismo religioso.”

Em visita a uma outra “Igreja Orgânica”, conversei com um participante, que já

visitara a “Estação do Caminho”, e que taxou esse movimento como herege, justamente

exatamente pelo contexto que descrevi acima, da utilização de música secular durante

os encontros. No dia em que este participante estava presente no encontro do “Caminho

da Graça”, entoaram uma música não cristã. Segundo este participante:

“A palavra pregada no Caminho da Graça” naquele dia até que foi boa. Nada a discordar. E ouvir um irmão pregar, isento de terno, gravata foi algo positivo. Nenhuma crítica nesse ponto. Mas e aí? Nos momentos dos louvores... Que tal tocar um Raul Seixas? Na sequência um INXS? Depois Mariza Monte? Show né? Mais show ainda é atribuir essas lindas canções à ação do Espírito Santo... Rolou até um som do ´Nirvana´, e até um ateu se sentou à mesa para participar da ceia. Na minha opinião o sistema orgânico pode se tornar tão herético, quanto o sistema institucional”. (“Luiz”, 33 anos)

A Estação São Paulo também se reúne em um clube alugado, devido ao número

de frequentadores. Fica ao segundo andar de um salão comercial, sendo necessário subir

uma escada de cerca de 30 degraus para alcançar o local de culto. O salão possui uma

grande mesa ao centro onde todos ficam ao redor. Um detalhe interessante de sua

liturgia é que em todos os domingos, dia dos encontros, a reunião é interrompida no

meio, havendo um intervalo para cear. A “ceia”, neste caso, se compõe de lanches e

107 “Palavra Antiga”, “Crombie”, “Tanlan”, entre outras.

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sucos colocados na mesa do centro. Após cerca de 30 minutos de “ceia” o encontro é

retomado. O CG São Paulo, Santos e a “sede” em Brasílias são as maiores “Estações do

Caminho”. Em São Paulo, cerca de 200 pessoas se reúnem por final de semana, em

Santos, cerca de 100 pessoas. Em Brasília, onde quem prega é Caio Fábio, o auditório,

sempre cheio, conta com de cerca de 500 lugares.

No caso do grupo em plantação que visitamos no interior de São Paulo, o

encontro era realizado em uma residência, com cerca de 12 pessoas. A mensagem foi

proferida pelo mentor daquela “Estação”. Em alguns momentos, o líder destacava que lá

não era com uma “Igreja Institucional” e há qualquer momento ele poderia ser

interrompido para perguntas e colaboração em sua reflexão. O mesmo observamos no

outro campo, no auditório alugado em Campinas. Já em São Paulo a pregação foi linear,

sem interrupções,, talvez devido ao número de pessoas presentes, que provavelmente

contribuiriam com muitas interações, caso fosse possível.

As “Estações do Caminho” são conduzidas por mentores “não ordenados”. Em

sua grande maioria trata-se de indivíduos com ímpeto de liderança, que se simpatizaram

com a mensagem de Caio Fábio. Também encontramos diversos ex-pastores

evangélicos que abdicaram de suas ordenações. Carlos Bregantim, mentor da Estação

São Paulo é clérigo full-time, porém não recebe salário do “Caminho da Graça”, seus

proventos advêm de outras fontes, assim como no caso do próprio Caio Fábio.

Diferentemente da maioria das denominações, os próprios mentores “não ordenados”

são os que partilham a ceia e realizam os batismos dos convertidos. Pude presenciar por

diversas vezes a realização do momento de “ceia do Senhor”, que na maioria das igrejas

evangélicas é “monopólio” do clero, ao passo que nas “Estações” são administradas

pelos próprios membros, com menor pompa.

Contudo, entre os mentores das “Estações do Caminho”, embora não exista um

governo, há, porém, uma “supervisão do caminho”. Os supervisores atuam

nacionalmente ou regionalmente, oferecendo suportes aos mentores de cada “Estação”.

A Supervisão é um “serviço”, como um “pastoreio”, tanto de escuta quanto de

orientação. O objetivo é oferecer suporte aos grupos que se reúnem sob a proposta do

“Caminho”. Conforme um de seus supervisores:

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“A supervisão, identifica, testifica, coparticipa e se disponibiliza em alegria e devoção as estações. Já tivemos vários grupos que se aproximavam com a proposta de Caminhar conforme o evangelho, porém eram tudo....menos grupos que se reuniam segundo esta proposta, conforme falei acima Neste caso, supervisão serve para o acompanhamento dos grupos, dos mentores com escuta pastoral, de orientação etc. Nosso compromisso é com a saúde do evangelho entre os propostos grupo do Caminho da graça. Não é controle, é serviço compromissado. Acontece da seguinte forma: Tem a supervisão geral do movimento, no Brasil e fora dele. Eu estou supervisor geral, desde 2011. E temos supervisores regionais, que são responsáveis por várias estações e estão em contato com os mentores sempre colhendo informações. Eu faço reuniões mensais com estes supervisores, que me informam sobre estas estações, e as visitam quando possível. Eles me mantêm informada sobre tudo, não só nestas reuniões, mas em contatos diretos e diários quando necessário. Além disso temos encontros, tanto somente de supervisão, como de mentores e supervisão de 1 a 2 vezes por ano, dependendo da viabilidade. ”108

Por outro lado, vale a pena atentar à expressão “estação”, utilizada para designar

estas comunidades. Nas palavras da própria liderança, o termo invoca um sentimento de

lugar transitório, como uma estação de trem, onde as pessoas vêm e vão. “Quem quer

vem, quem não quer não precisa vir”. 109 É caro à sociologia da religião realizar suas

analises a partir da construção das identidades dos indivíduos circunscritos ao ethos

denominacional (pentecostal e a anomia; histórico e a racionalidade, etc). Ernest

Troeltsch (1987), reconhecido por sublinhar as tipologias “igreja” e “seita, sendo esta de

vínculos mais soltos e aquela de vínculos mais “rígidos”; em sua terceira tipologia, a

“mística”, encontramos um conceito chave que talvez possibilite uma melhor

compreensão deste “pertencimento”. Vejamos o que afirma Sérgio da Matta (2008):

“Com a crise dos modelos eclesiásticos tradicionais, o caminho pareceria estar aberto para a terceira das manifestações sociológicas concretas do ideal cristão: a mística. Não se trata, para Troeltsch, de uma simples religiosidade espontânea, de uma ´mística sem forma nem conteúdo´. Trata-se de uma ´mística do Cristo´ supostamente capaz de unir indivíduos em torno de um culto”.

108 Depoimento coletado via Skype, com supervisor do “Caminho da Graça”. 109"Estação Salvador Centro - encontro dia 17.07.10".<https://www.youtube.com/watch?v=FhT6PFpZ7bw>. Acessado em 10/10/2013.

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Logo, a presença de comunidades “orgânicas” ou as “Estações do Caminho”

reforçam a hipótese pós-moderna de transitoriedade e liquidez (Bauman) social110, onde

as identidades se estabelecem não mais em “garagens”, mas em “estações” transitórias,

não sem antes experimentarem, neste momento transitório, um sentimento de pertença e

agregação. Conforme destaca Michel Maffesoli (2000, p. 43), que forjou o termo

“neotribalismo”, caracterizado pela “fluidez, pelos ajuntamentos pontuais e pela

dispersão”, é no seio de um ajuntamento que podem ocorrer “condensações

instantâneas”, frágeis, porém no momento em que acontecem são profundamente

emocionais. É possível afirmar que cada um é ao mesmo tempo ator e espectador. A

concatenação de símbolos orgânicos dentro de uma sociedade, a natureza, a sociedade,

os grupos e as massas formam uma “nebulosa” cujo efeito é indubitável sobre a

construção do imaginário coletivo. É nesta característica da valorização de comunidade

de pequenas dimensões que queremos insistir. A estes ajuntamentos Maffesoli

denomina “união em pontilhado”, ou uma biografia religiosa escrita a lápis. Para

François Houtart (2002, p. 23)

“O local, o imediato são o valor por excelência da dimensão religiosa. Adverte-se que mesmo nas grandes religiões existe, hoje em dia, uma demanda de identidade religiosa particular. Além disso, observa-se novos movimentos religiosos que são ênfase à pequena comunidade. O resultado de tudo isso é que as grandes instituições estão cada vez mais perdendo o sentido”

Robert D. Putnam (1995, p.8), ao analisar o declínio das organizações

associativas na América do Norte, afirma que os grupos reduzidos apresentam um

grande potencial diante da corrosão das organizações de grande vulto:

“Evidentemente, o engajamento religioso significa mais do que freqüentar os cultos semanais, pois muitos americanos envolvem-se intensamente numa ampla variedade de outros grupos associados às igrejas, tais como escolas dominicais, grupos de estudo da Bíblia, grupos de solteiros etc. Na década de 1980, o movimento desses pequenos grupos pode ter crescido muito, especialmente quando os líderes religiosos viram seu potencial para revitalizar as congregações em declínio e de obter um crescimento rápido de

110 Verificar também o conceito de “homem flexível” de Richard Sennet (1999).

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congregações novas. [...] Evidentemente, o engajamento religioso significa mais do que freqüentar os cultos semanais, pois muitos americanos envolvem-se intensamente numa ampla variedade de outros grupos associados às igrejas, tais como escolas dominicais, grupos de estudo da Bíblia, grupos de solteiros etc. Na década de 1980, o movimento desses pequenos grupos pode ter crescido muito, especialmente quando os líderes religiosos viram seu potencial para revitalizar as congregações em declínio e de obter um crescimento rápido de congregações novas.”

Outro supervisor, em conversa disse, em conversa: “O Grupo, é só um abrigo,

um apoio pra quem precisa ser ajudado na sua caminhada pessoal”. Isso reforça

significativamente a hipótese de Grace Davie (1990), do “crer sem pertencer”, no cotejo

metodológico com nosso caso. Davie antevê, analisando a religião britânica o

desaparecimento progressivo dos laços religiosos fortes, assim como o surgimento de

vínculos precários e pertenças religiosas instáveis, como sugere a conhecida metáfora de

Zygmunt Bauman (2005, p. 17-20), da “vida líquida”:

“Líquido moderno é uma sociedade em que as condições sob as quais age seus membros mudam num tempo mais curto do que aquele necessário para a consolidação, em hábitos e rotinas [...] as realizações individuais não podem solidificar-se [...] em suma: a vida líquida é uma vida precária, vivida em condições de incertezas constantes”.

Acerca do perfil dos frequentadores da “Estação” em São Paulo, um dos

mentores nos aponta o “fogo amigo”, como uma das principais causas para o “trânsito

religioso”. Ao ser questionado sobre o público de frequentadores, afirmou: “são

pessoas, é gente que de algum modo se ´desencantou´ ou se ´desencontrou´, gente que

´faliu´, gente que ´feriu´ ou que foi ´ferida´”. Outro líder fez esta outra afirmação: “Este

povo que a igreja institucional não acolhe, que as lideranças pastorais não acolhem, que

vão se deparando com suas próprias complexidades e falências pessoais drama, dores,

perdas, loucuras. A igreja tende a acolher os bons, os legais. Na pior nas hipóteses a

igreja abre os braços para que foi ofendido não para que ofendido, abre os braços para

foi ferido, não para que fere, o evangelho é também para os imperdoáveis”.

*

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Concluindo, conforme Hervieu-Léger, temos um movimento religioso de

“peregrino” e “convertido”, com intensa recomposição e circulação simbólica em seu

habitus religioso. Se a religião por muito tempo foi analisada pelo fato de que

proporcionava coesão social (Durkheim), ou para solucionar condições de anomia entre

seus praticantes, proporcionando um ambiente de segurança existencial, com a “pós

modernidade”, a experiência religiosa fica cada vez mais capilarizadas, ao longo de

grupos cada vez mais pormenorizados. Podemos, como último apontamento, levar em

consideração o recrudescimento do incentivo do “empreendedorismo” no país,

substituindo uma carreira profissional estável pela capacidade dos indivíduos de

“construírem com suas próprias mãos” seu próprio negócio. Podemos aventar este fato

social e atrela-lo também à capacidade dos sujeitos de, descontentes com sua agência de

fé, “abrirem” seu próprio grupo, emancipados dos eixos das principais denominações,

ou recorrendo à linguagem empresarial, criando sua comunidade “à sua imagem e

semelhança”.111

111 Notamos que muitos dos mentores do “Caminho” ou líderes de “Igrejas Orgânicas” em suas atividades profissionais, exercem algum tipo de “empreendedorismo”: são concurseiros, comerciantes, profissionais liberais, etc.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A luz do que foi analisado podemos concluir que um novo horizonte se abre aos

pesquisadores acerca das recomposições dos dissidentes do universo evangélico, que

podem, em hipótese, fazer parte dos cerca de 9,3 milhões de “Evangélicos não

determinados” (Ponderamos que há muitas críticas em relação ao método de coleta do

IBGE no quesito “religião”). Os “desviados” podem desenvolver uma vida espiritual

solo, ou customizar sua fé em comunidades cada vez mais atomizadas, como mostram

os resultados da pesquisa. Portanto, podemos concluir que a possiblidade de

pertencimento religioso, experimentado nas frestas dos grandes eixos denominacionais,

amiúde, se entrecruzaram, produzindo novos percursos. Nos últimos anos,

especialmente, aceleraram-se os “trincametos” e as “múltiplas vias”, como demonstram

as amostras censitárias, apontando os números crescentes dos autodeclarados de

“múltiplas pertenças”, “Sem religião” e “evangélicos não determinados”.

Interessante é que, desde o cristianismo original, notamos a hibridização da

religião cristã; desde o momento inicial, com Jesus Cristo e seus apóstolos, passando

pelo período apostólico, através da assimilação de diversas culturas que aderiram ao

eixo central do cristianismo, até a incorporação definitiva da religião cristã ao panteão

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romano, quando da conversão do Imperador Constantino. Os três séculos de

hibridizações, no qual se dá o “Cristianismo primitivo”, torna o processo de sua

reconstrução de tarefa de grande envergadura, para não dizer impossível, tornando-o um

tempo mítico e romanceado pelos cristãos das mais variadas épocas.

Frisamos ainda que a cultura das mega igrejas neopentecostais no Brasil, além

de arrebanhar vários fiéis pela porta da frente, enfrenta um outro fluxo, o da porta dos

fundos; em um movimento similar a uma porta giratória, retroalimentada pelos fiéis à

procura de respostas diversas. No entanto, como destacamos, incluímos a este fluxo,

uma sub-via: a da dissidência. Cada vez mais avantajadas, à medida que as práticas de

determinadas igrejas, de apóstolos, de correntes financeiras, “rosas ungidas”, tornam-se

“bizarras” e chocantes aos frequentadores. Por outro lado o impacto de igrejas

conservadoras e fundamentalistas, em uma sociedade que celebra a liberdade religiosa

plena, pode proporcionar um “desânimo religioso”, por conta das regras rígidas e das

vigilâncias morais de outros segmentos religiosos.

Por isso foi importante destacar as técnicas e teorias das “Igrejas Orgânicas”,

que ao mesmo tempo pretendem ser uma restauração da fé neotestamentária, mas

também, um espaço de “liberdade”, com menos “hipocrisia” e menos vigilância moral,

retomando um espírito familiar e associativo, que, conforme Robert Putnam (2000),

encontra-se em declínio nas sociedades ocidentais.

Também, destacamos que a religiosidade em sociedade ocidentais anglo-saxãs,

marcadas pela aceleração da modernidade também sofrem a ingerência das experiências

online, o que acentua um trânsito religioso sem precedentes; através do vertiginoso

aumento das páginas, grupos e outras formas de pertencer que, conduto “não revela

exatamente um ´individualismo´, mas sim novas maneiras de se relacionar, que já não

dependem mais apenas do contato direto. Muitas vezes, em lugar de promover um

individualismo, a comunicação por celular potencializa as relações sociais”112. Ainda, é

importante o que nos diz Sherry Turkle (2012), sobre a ação das experiências online,

sobretudo de mobiles, tablets e dispositivos de comunicação digital móveis nas

112 FERREIRA, Pedro P. "NTICs e socialidade contemporânea: uma entrevista". <pedropeixotoferreira.wordpress.com/2014/04/06/ntics-e-socialidade-contemporanea-uma-entrevista>. acessado em 10/08/2014.

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sociedades contemporâneas: "nossos pequenos dispositivos de bolso são tão poderosos

que não apenas modificam o que fazemos, mas modificam quem somos."113

A comunidade “Caminho da Graça” pretende ser um espaço para convivência de

fé cristã evangélica sem “ser religiosa”. Isso tem suas implicações. Nos estudos das

religiões os pesquisadores empenham-se em descrever os dogmas, padronizações e

declarações doutrinárias, como bem exemplificado por Rubem Alves (1979), citando

com tipo ideal o “Protestantismo de Reta Doutrina”. No contexto de nossa pesquisa, o

empenho foi relatar uma comunidade cujo “horizonte hermenêutico é Jesus”, entretanto

minimamente influenciada por teologias sistematizadas, e cujos encontros não seguiam

uma liturgia pré-formatada. Ora, as religiões em sua grande maioria, se constroem do

centro para fora, do “líder” para seus “seguidores”. Ponderamos que o movimento

gravita em torno de seu fundador, Caio Fábio. Porém, ele mesmo afirma que as

“Estações” são uma organização substituível e que podem, a qualquer momento, serem

substituídas por “algo novo”. Isto demonstra o desejo “pós-moderno” pela valorização

de sua “autenticidade”, “liberdade” e de circunscrever-se, sem medo do “castigo

divino”, em formas de coesão religiosa que constantemente estão se reatualizando, sem

a regulamentação de uma rigidez de conduta, que para Weber (2004) foi o propulsor do

Capitalismo, com a inserção do Protestantismo Pietista intra mundano, nos séculos XVI

e XVII.

A pesquisa aqui realizada possibilitou uma ampliação dos conceitos e da história

da igreja protestante recente, valorizando os novos fenômenos aqui descritos: o

aparecimento das “Igrejas Orgânicas”, dando plano de destaque ao movimento

“Caminho da Graça”, com suas comunidades locais as “Estações do Caminho”. Em

recente entrevista, Caio Fábio “retornou” à grande mídia, alcançando grande número de

views em programa de exibição nacional,114 demonstrando a emergências da sociedade

por debates acerca da “contracultura” evangélica.

113 TURKLE, Sherry, "Connected, but alone?". <www.ted.com/talks/sherry_turkle_alone_together#t-

151273>. Acessado em 10/10/2013.

114 Refiro-me do programa estilo talk-show The Noite, sua entrevista já soma quase um milhão de exibições.

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Concluímos afirmando a carência por mais pesquisas sobre este fecundo

panorama que aqui não se dá por terminado. O “Caminho da Graça”, tanto quanto o

fenômeno mais geral das igrejas não institucionais, exige outras tantas análises, pois no

nosso entender, segue como “tendência” dentro campo religioso evangélico brasileiro.

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ANEXO I - “Constantino o décimo terceiro apóstolo”

(Transcrição de um trecho de longa duração de um Programa “Papo de Graça” da “Vem

e Vê TV”. A declaração engloba o parecer de D´Araújo acerca da constantinização da

igreja cristã que, segundo seu olhar, representa um desvio fundamente para que o

cristianismo apostólico perdesse suas cores originais. O pesquisador observou diversas

versões desta mesmo declaração, também nas observações participativas e nas análises

das postagens das mídias sociais, que acusam o “cristianismo ocidental” de ser uma

contaminação do movimento inicial de Jesus e seus apóstolos).

“Você que é cristão, fique sabendo de uma coisa: o que sobrou do evangelho, da fé em

Jesus, da fé puro e simples do cristianismo é um verniz de nada, basicamente nosso

arcabouço todo, nossas confissões de fé, nossas declarações doutrinárias, todas estas

coisas vêm do imperador Constantino e de seus bispos. Ele foi ungido o décimo terceiro

apóstolo de Jesus e basicamente dele vem a semente original que fomentou, a partir do

quarto século, todo este ´monstro´ que é o cristianismo mundial, que é um remanescente

do império romano, que encontrou um modo de inocular-se na antítese do próprio

império romano que era a fé em Jesus. A sutileza foi tão grande que eles pegaram um

elemento mais antitético em relação a que o império romano representado, e este

elemento passa a carregar o império romano. O império romano está vivo entre nós [...]

em nome de Constantino. E não somente na igreja Católica, mas na cristandade oriental

e ocidental, no próprio protestantismo, e no nosso meio da igreja Evangélica e de um

modo especial, você vê os perfis de Constantino, que poderíamos chamar de

´macedinhos´, os perfis estão presentes. [...] A grande subversão de Constantino, foi a

grande subversão que colocou [a igreja] em um caminho de infindas outras subversões

que chegaram até os nossos dias, com esta coisa que parece bruxaria, que carrega o

nome de Jesus, mas não tem nada a ver com o evangelho. Um documentário simples

como este [a fala de Caio foi antecedida por um documentário] e vê como a igreja é a

cara do cristianismo, neste sentido ela se manteve em coerência com este cristianismo e

totalmente divorciada do evangelho. Pra mim isso só tem que ser sepultado esquecido,

com muitos perdões à Deus: ´Senhor perdoa-nos por termos sido discípulo do

estelionato durante tantos anos, temos chamado de igreja este império de ambição, de

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poder, de volúpia que corrompeu tudo o que havia de bom e de puro [grifo meu],

porque os bispos oprimidos até então, da noite para o dia viraram eminências no

império Romano. [...] ou a gente se converte, esquece esta porcaria toda e volta pro

evangelho puro e simples [...] Isso deve ser praticado como um zeramento [sic] com um

compromisso nosso com o que não é evangelho na história o que implica e reconhecer

esta história muito bem, para abandoná-la totalmente, com a consciência que é uma

história anti-evangelho. [...] É a história da grande meretriz, do falso profeta, é a história

dos anticristos que saíram se nosso meio, o pior inimigo do evangelho na Terra é o

cristianismo [grifo meu]. Este ´pacote´ é anti cristão, leva a alcunha de Jesus mas não

tem nada a ver com Jesus, o que a gente vê aí é o ´está escrito´ deturpado, eu estou

´metendo o pau´ nesta igreja de Constantino. Esta igreja que está ai [atualmente] é

irreformável. [...] O cristianismo é pra ser abandonado se alguém, de fato quiser fazer o

caminho simples de Jesus. [...] E nó voltamos à um período Constantiniano com poucas

outras vezes na história, e aqui no Brasil no estamos em franco processo Constantino

Macediano [uma referência ao fundador da Igreja Universal do Reino de Deus, Edir

Macedo], criando, já há algum tempo, o mesmo surto de poder, de domínio, de

controle”. (Constantino ou Jesus.

https://www.youtube.com/watch?v=fqsZyUTZalo&feature=kp. Acessado em

03/03/2014)

Anexo II