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Luz
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ARTES CNICAS
LUIZ RENATO GOMES MOURA
A ILUMINAO CNICA NO
TRABALHO DO ATOR DE TEATRO
NATAL/RN
2014
1
LUIZ RENATO GOMES MOURA
A iluminao cnica no trabalho do ator de teatro
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Artes Cnicas da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, para a obteno do ttulo de Mestre em Artes Cnicas. Linha de pesquisa: Pedagogias da Cena: corpo e processos de criao. Orientador: Dr. Jos Svio Oliveira de Arajo.
NATAL-RN 2014
2
Catalogao da Publicao na Fonte UFRN / CCHLA/ DEART
Biblioteca Setorial do DEART
Moura, Luiz Renato Gomes. A iluminao cnica no trabalho do ator de teatro / Luiz Renato
Gomes Moura Natal, RN, 2014. 132 f. : il. Orientador: Prof. Dr. Jos Svio Oliveira de Arajo. Dissertao (Mestrado em Artes Cnicas) Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Cincias Humanas, Letras e Artes.
Programa de Ps-Graduao em Artes Cnicas. Departamento de
Artes. 1.Teatro Iluminao Cnica. 2. Engenharia cnica. 3. Ator Teatro. 4. Teatro Sala de Ensaio. I. Arajo, Jos Svio Oliveira de. II. Ttulo. RN/UF/BSDEART 2014/06 CDU 792.022
3
4
AGRADECIMENTOS
Ceclia Raiffer, minha esposa, com a qual fundei a Cia. de Teatro Engenharia
Cnica.
Aos meus pais, Antnio Faustino e Cristiane Gomes Moura, pela confiana.
Aos meus irmos Raul Moura e Rhenam Moura.
Ao Programa de Ps-Graduao em Artes Cnicas PPGArC UFRN.
Ao Professor Dr. Jos Svio Oliveira Arajo, pelas orientaes precisas.
Professora Dra. Marta Maria Castanho Almeida Pernambuco, pela
generosidade oferecida na qualificao.
Ao professor Dr. Eduardo Tudella.
Ao Professor Dr. Robson Carlos Haderchpek, pelo encorajamento.
Aos discentes e docentes do PPGArC-UFRN pela troca de experincias em
sala de aula.
Ao Professor Ms. Benedito Gensio Ferreira, pelo exemplo de pesquisador.
Ao Professor Dr. Fbio Jos Rodrigues da Costa, pela orientao na escrita do
projeto da presente dissertao.
Ao professor Ronaldo Costa pela ateno e orientao.
Ao colega de turma Mauricio Motta pela colaborao.
Ao Professor Alysson Amncio, por ter me apresentado o edital de seleo do
mestrado e ter me encorajado a tentar.
professora Dra. Antnia Pereira Bezerra, pelos endereamentos iniciais na
minha vida de pesquisador acadmico.
Ao Grupo Ninho de Teatro, com o qual a Cia. de Teatro Engenharia Cnica
realizou o espetculo O Menino Fotgrafo, na Casa Ninho, na cidade de
Crato, no Cear.
Ao Centro de Artes Reitora Violeta Arraes de Alencar Gervaiseau da
Universidade Regional do Cariri URCA.
A CAPES pela concesso de bolsa, que me possibilitou a elaborao dessa
pesquisa.
5
RESUMO
A presente pesquisa tem como foco principal, investigar como a iluminao
cnica pode ser articulada no processo de criao do ator de teatro. Para
chegarmos a essa reflexo, se faz necessrio compreendermos o espao da
sala de ensaio, no qual o ator trabalha, como um lugar em que sua formao,
recebe influncias dos demais artistas, que esto tambm criando o
espetculo. So analisados trs processos colaborativos da Cia. de Teatro
Engenharia Cnica: Irremedivel, Doralinas e Marias e O Menino
Fotgrafo, com intuito de compreendermos que o teatro colaborativo
potencializa o cruzamento e a troca de experincias na sala de ensaio,
colaborando ativamente para a formao dos sujeitos envolvidos na criao do
espetculo. A pesquisa prope uma investigao de como o processo criativo
da iluminao cnica ganhou espao na sala de ensaio na linguagem da
encenao teatral, evidenciando principalmente sua criao co-evolutiva com
o processo criativo do ator.
PALAVRAS CHAVES:
Sala de ensaio; Iluminao Cnica; Ator; Teatro Colaborativo
6
ABSTRACT
This research aims to investigate how the stage lighting can be articulated in
the creation of theater actor process. To we reach this reflection, it is necessary
to understand the space of the rehearsal room, where the actor works as a
place where their function receives influences of other artists who are creating
the spectacle.Collaborative processes are analyzed three Cia de Teatro
Engenharia Cnica: Irremedivel, 2007; Doralinas e Marias , 2009; O Menino
Fotgrafo, 2011, aiming to understand the collaborative theater potentializes,
the intersection and the exchange of experiences in the rehearsal room,
collaborating actively for the training of persons involved in creating the show.
The research proposes an investigation of how the creative process of stage
lighting is gaining ground in the rehearsal room in the language of theater
directing, showing mainly how is your "co-evolutionary" creation with the
creative process of the actor.
KEY-WORDS:
Rehearsal Room, Stage Light, Actor; Collaborative Theater
7
SUMRIO
INTRODUO...................................................................................................08 CAPTULO 1: A SALA DE ENSAIO E OS PROCESSOS COLABORATIVOS DA CIA. DE TEATRO ENGENHARIA CNICA: IRREMEDIVEL; DORALINAS E MARIAS E O MENINO FOTGRAFO...................................................................................................13 1.1 Teatro: a arte do encontro no espao cnico da Sala de Ensaio................................................................................................................14 1.2 A Cia. de Teatro Engenharia Cnica: processos colaborativos?.............18 1.3 A Imagem Propulsora...............................................................................26 1.3.1 Irremedivel.........................................................................................31 1.3.2 Doralinas e Marias...............................................................................38 1.3.3 O Menino Fotgrafo.............................................................................45 1.4 - Improvisao e imagem propulsora..........................................................52 CAPTULO 2: O PROCESSO CRIATIVO DA ILUMINAO CNICA NA SALA DE ENSAIO.......................................................................................................56 2.1 A iluminao cnica como linguagem ativa na era da encenao.........................................................................................................56 2.2 Apropriaes da iluminao cnica no processo criativo.........................69 CAPTULO 3: A ILUMINAO CNICA NO TRABALHO DO ATOR DE TEATRO............................................................................................................74 3.1 O trabalho do ator em consonncia com os elementos cenogrficos.....75 3.2 O ator-iluminador......................................................................................83 3.3 - A criao da iluminao cnica nos processos colaborativos da Cia. de Teatro Engenharia Cnica.................................................................................87 3.3.1 Irremedivel o encorajamento.........................................................90 3.3.2 Doralinas e Marias o desafio...........................................................98 3.3.3 O Menino Fotgrafo a investigao de uma potica......................108 CONSIDERAES FINAIS.............................................................................113
REFERNCIAS...............................................................................................118
ANEXO............................................................................................................124
ANEXO A - HISTRIA DA CIA. DE TEATRO ENGENHARIA CNICA..........125
8
INTRODUO
atividade artstica indispensvel uma potica explcita ou implcita, j que o artista pode passar sem um conceito de arte mas no sem um ideal, expresso ou inexpresso, de arte. (...) uma potica eficaz somente se adere espiritualidade do artista e traduz seu gosto em termos normativos e operativos, o que explica como uma potica est ligada ao seu tempo, pois somente nele se realiza aquela aderncia e, por isso, se opera aquela eficcia. (PAREYSON, 2001, p. 18).
9
A presente dissertao de mestrado prope uma investigao da potica
de criao da Cia. de Teatro Engenharia Cnica, com a finalidade de
compreender a concepo da iluminao cnica em consonncia com o
trabalho do ator na sala de ensaio, partindo exclusivamente de trs processos
colaborativos: Irremedivel, Sobral CE, 2007; Doralinas e Marias, Salvador
BA 2009 e O Menino Fotgrafo, Crato CE 2011.
A Cia. de Teatro Engenharia Cnica se torna o grande ponto de partida
para o desenvolvimento da pesquisa, porque eu, autor da presente dissertao,
sou fundador da Cia., e venho ao longo dos seus oito anos de existncia,
participando ativamente dos seus processos criativos e da produo de seus
projetos culturais. Nos espetculos, Irremedivel, Doralinas e Marias e O
Menino Fotgrafo, trabalhei como ator-iluminador cnico, competncia que fui
adquirindo ao longo dos trs processos colaborativos, uma relao
interdisciplinar, da qual parto para desenvolver a dissertao, na tentativa de
compreender a relao entre a iluminao cnica e o trabalho do ator de teatro
na sala de ensaio.
A diretora e tambm fundadora da Cia., Ceclia Raiffer, desenvolveu em
2009, uma dissertao de mestrado, no Programa de Ps-Graduao em Artes
Cnicas da Universidade Federal da Bahia PPGAC/UFBA, intitulada Cena e
Jogo: o imaginrio na carne, na qual aborda o processo de criao do
espetculo Irremedivel. Sua anlise se baseou na investigao dos
percursos trilhados no processo, a partir de cadernos de bordo, dos rascunhos
e das vrias verses da dramaturgia. Essa pesquisa de extrema importncia
para a presente dissertao, sobretudo na articulao de conceitos utilizados
ao longo da escrita, e sem dvida um importante referencial para a
compreenso da espinha dorsal da Cia. de Teatro Engenharia Cnica.
Para chegar reflexo sobre a iluminao cnica no trabalho do ator,
precisaremos fazer um percurso metodolgico que compreendo ser necessrio
para entendermos como o ator, se utiliza da iluminao cnica no seu processo
criativo e como sua atuao no processo de concepo da iluminao, deve
ser ativa. Essa relao extensvel a todos os elementos cenogrficos que
10
influenciam de maneira determinante o sentido do espetculo e que fortalecem
o processo de significao do trabalho do ator em cena.
A metodologia se d em trs etapas, ou seja, em trs captulos que se
estruturam da seguinte forma:
CAPTULO 1 - Apresenta a investigao da sala de ensaio como
um espao que agencia as experincias dos artistas, tendo-as como fontes
inesgotveis de conhecimento, que quando exercidas dialogicamente por meio
da ao-reflexo-ao, acabam por contribuir para a formao de todos os que
esto presentes no processo criativo. Um lugar que investe na construo de
dilogos colaborativos como processo de formao. Refletiremos, portanto,
sobre a potica de criao da Cia. de Teatro Engenharia Cnica, nas
montagens de trs espetculos: Irremedivel, Doralinas e Marias e O
Menino Fotgrafo. Desse modo exploraremos o conceito de Imagem
Propulsora (FERREIRA, 2009, p. 49), como a base inicial para a criao,
especificamente como se d o seu processo de mudana e de materializao
cnica, ou seja, quando passa de apenas uma ideia para cena propriamente
dita.
CAPTULO 2 - Passaremos a analisar na era da encenao
(DORT, 1977, p. 61), alguns aspectos de como a iluminao cnica passou a
ser articulada nos processos criativos, possibilitando o entendimento da mesma
como uma linguagem ativa (ARTAUD, 2006, p. 92), de extrema importncia
para a construo de um espetculo teatral. Elaboramos essa base para
investigarmos a iluminao cnica e o seu processo de criao co-evolutivo
(CAMARGO, 2005, p. 11) com o trabalho do ator. O objetivo principal a
anlise da concepo, montagem e execuo da iluminao cnica, em
estreita colaborao com o trabalho do ator.
CAPTULO 3 - Apresenta uma anlise sobre o processo criativo
do ator na sala de ensaio e principalmente como acontece sua relao com os
processos criativos dos elementos cenogrficos (cenrio, iluminao,
maquiagem, figurino e som). Na continuao, nos deteremos aos processos
criativos da iluminao cnica nos espetculos Irremedivel, Doralinas e
11
Marias e O Menino Fotgrafo, sobretudo, como se deu o processo de criao
da personagem em estreita consonncia com a iluminao cnica na sala de
ensaio da Cia. de Teatro Engenharia Cnica. Algumas questes so
levantadas para uma melhor fundamentao da experincia, so perguntas
que sero estendidas tambm s consideraes finais desta dissertao, quais
sejam: como um ator pode conceber a iluminao de um espetculo em que
ele atua? A criao da personagem contribui para a concepo da iluminao
ou vice-versa? Que especificidades podem ser desenvolvidas no trabalho de
um ator que tambm concebe a iluminao? Como se d a criao colaborativa
da iluminao na sala de ensaio?
Observemos que a Cia. de Teatro Engenharia Cnica o escopo central
da pesquisa. Logo no primeiro captulo, ela trazida como uma espinha dorsal,
que sem a qual, no seria possvel estruturar os captulos subsequentes.
Compreendi que manter-se firme sobre um recorte de pesquisa, no caso a Cia.,
me ajudaria muito na escrita e principalmente me colocaria em um lugar de
onde pudesse experimentar teoria sem ter medo de errar. A presente
dissertao investiga uma potica, tentando esclarecer os caminhos que as
experincias nos levam a percorrer, observando como uma prtica pode agir
interdisciplinarmente com outras dentro da sala de ensaio, estabelecendo
dilogos geradores de pesquisas.
Nesse sentido, percorro os caminhos dissertativos, ora em primeira
pessoa, quando me refiro especificamente aos processos colaborativos da Cia.
de Teatro Engenharia Cnica, pois no consigo falar de fora porque sou o
prprio processo tambm. Por vezes me coloco de maneira distanciada na
escrita, principalmente quando abordo conceitos dos quais me utilizo para a
fundamentao terica.
Essa pesquisa recebeu influncias de muitos artistas que, na sala de
ensaio da Cia. de Teatro Engenharia Cnica, trocaram suas experincias
comigo, nos trs espetculos analisados, no decorrer da escrita, o nome
desses artistas aparecero para serem devidamente creditados. So de grande
relevncia tambm os dilogos que estabelecidos com o orientador deste
12
trabalho, prof. Dr. Jos Savio Oliveira Arajo, cuja produo se concentra, nos
ltimos seis anos, no CENOTEC Laboratrio de Estudos Cenogrficos da
Cena, DEART, UFRN, espao esse que abriu minha atuao para o universo
conceitual da iluminao cnica, a partir de seu vasto acervo bibliogrfico,
concentrado na rea dos elementos cenogrficos. E por fim, tive importantes
contribuies dos demais professores do PPGARC nas disciplinas que cursei,
ao longo dos dois anos de mestrado, pois pude dialogar com diferentes
estratgias de pesquisa, e, sobretudo, com diversas poticas de criao, fosse
na dana ou no teatro, o pensar e o fazer arte, fortalecia o meu objetivo para
esta dissertao.
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Captulo 1
A sala de ensaio e os processos colaborativos da Cia. de Teatro Engenharia Cnica: Irremedivel, Doralinas e Marias e O Menino Fotgrafo.
Assim, cada sujeito, ao desenvolver suas aprendizagens, deve ser estimulado a refletir, articular e reinventar os saberes com os quais estar lidando para, assim, desenvolver suas potencialidades criativas, seu discernimento crtico, suas habilidades de socializao e seu crescimento pessoal, instrumentalizando-se para as aes que pode exercer como agente transformador de sua prpria histria. (ARAJO, 2005, p.122)
14
1.1 Teatro: a arte do encontro na sala de ensaio.
A sala de ensaio por sua vez o cadinho1 onde se fundem as ideias
que levam um grupo de artistas a pensarem e a criarem um espetculo cnico.
o lugar em que os erros so sempre o melhor caminho para a criao. Os
artistas no processo criativo em teatro utilizam a sala de ensaio, como o
espao enquanto ferramenta (BROOK, 1994, p. 201) onde a criao acontece
na interseco de pensamentos, na profuso de proposies e, sobretudo, na
troca de experincias, que esto contidas na sala de ensaio ou trazidas para
ela. Para o artista sempre haver a necessidade desse lugar onde ele gesta,
durante todo o processo criativo, sua obra e consequentemente sua potica.
Na sala de ensaio os artistas envolvidos na elaborao de um
espetculo teatral, se relacionam em diferentes dinmicas, e muitas vezes, de
maneira ritualstica, acabam instalando atmosferas, atravs da expressividade
e da contracena de corpos, que fogem da noo de realidade. O diretor quem
conduz todo o processo e os ensaios devem criar uma atmosfera na qual os
atores sintam-se livres para mostrar tudo que puderem trazer para a pea.
(Ibidem. p. 20), no s os atores, mais tambm iluminadores, cengrafos,
figurinistas, sonoplastas e etc. que desejem participar colaborativamente para o
processo de criao do espetculo.
A sala de ensaio devido a essa capacidade de fazer com que artistas
interajam a partir dos seus saberes, em prol da construo de um espetculo,
faz da mesma, um ambiente pedaggico em que todos so aprendizes um dos
outros e de si mesmos, pois descobrem e aprimoram suas poticas, na medida
em que estabelecem contato uns com os outros.
Uma prtica teatral educativa no se caracteriza por uma nica ao isolada e sim como uma ao artstica, que articula diversos atos de conhecimento, cujas particularidades e competncias especficas produzem articulaes entre si e com o todo da cena, constituindo os instrumentos de interveno dos sujeitos na construo de uma representao teatral (ARAJO, 2005, p. 59-60).
Dessa forma, a reflexo de Arajo compreende que a formao de
sujeitos acontece atravs da relao dialgica, mediados pela realidade
1 Recipiente utilizado na qumica para misturar substncias.
15
partilhada. Na sala de ensaio as diferentes poticas possibilitam a criao e
estabelecem o percurso por onde o processo criativo caminhar. Mesmo que o
diretor tenha com muita preciso os seus objetivos prticos, como marcaes,
intenes e etc., ele sempre caminhar por percursos incertos, uma
improvisao ou uma proposio de um cengrafo, de um iluminador, pode
mudar o caminho da criao, atualizando o processo incessantemente.
Na sala de ensaio no existe um pensamento uno, mas sim, uma
coletividade que pensa e age a partir da relao do eu com o tu, como nos
prope Paulo Freire, ao se referir co-laborao, como um pressuposto para
a relao dialgica que gera a formao dos sujeitos:
O eu dialgico [...] sabe que exatamente o tu que o constitui. Sabe tambm que, constitudo por um tu no-eu esse tu que o constitui se constitui, por sua vez, como eu, ao ter no seu eu um tu. Desta forma, o eu e o tu passam a ser, na teoria dialtica destas relaes constitutivas, dois tu que se fazem dois eu. (1981, p. 196)
O espectador comum quando assiste ao espetculo, no consegue
imaginar o processo criativo do mesmo, somente se detm a apreciar um
universo que se desenrola dentro de uma pluralidade de significaes,
produzido pela interdisciplinaridade dos elementos cenogrficos que esto
presentes na cena, quais sejam: atuao, cenografia2, encenao e
dramaturgia. O teatro uma arte feita a partir do encontro, como nos prope o
emblemtico e revolucionrio pensador do teatro moderno Jerzy Grotowski:
O mago o encontro. (...) A essncia do teatro um encontro. (...) O teatro tambm o encontro entre pessoas criativas. Sou eu, o diretor, que me defronto com o ator, e a auto-revelao do ator me d a revelao de mim mesmo. (...) O encontro resulta de um fascnio. Implica numa luta, e tambm em algo to idntico, em profundidade, que existe uma identidade entre aqueles que tomam parte do encontro. (1971, p. 40-41-42).
O processo criativo na linguagem teatral uma busca em que todos os
artistas constroem o encontro com o espetculo. A partir do momento que
passam a colocar suas ideias, e com isso, as suas experincias, as formaes
de todos se ampliam. Vejamos por exemplo o caso do ator: quando o mesmo
2 Cenografia na presente pesquisa entendida como os elementos que compem a organizao do espao
da cena, a saber: iluminao, figurino, maquiagem, cenrio e som.
16
comea a interagir com o processo criativo da luz, passa a entend-la como
uma constituinte de uma gramtica da cena, que contribuir para criao de
sua personagem, principalmente no que diz respeito, aos aspectos de
atmosfera, tempo e emoo. Esse mesmo processo de troca do ator pode ser
estabelecido com todas as demais linguagens, trata-se de uma fuso de
experincias, de uma mistura, que passa a compor sua potica e que
reverberar em muitos outros processos criativos que vier participar.
A sala de ensaio , portanto, o lugar do encontro, do tateio ldico
(FERREIRA, 2009, p. 68) e sua natureza voltil, transmuta-se a cada vez que
os artistas se encontram para continuar a criao do espetculo. como um
atelier no qual o pintor experimenta suas combinaes de pigmentos ou um
escultor se integra argila em busca de uma escultura ou tal como um oleiro
molda seu vaso, o autor escreve seu livro, o cineasta faz seu filme (BROOK,
1994, p. 24).
No caso do teatro h um grande diferencial, o fato do espetculo no ser
um objeto que ficar guardado na sala de ensaio enquanto os atores, diretor, e
demais artistas da cena, voltam para suas casas. O que gerado na sala de
ensaio uma combinao de corpos, de vidas, de experincias, que unidas
presencialmente, do substancialidade ao processo. Os artistas quando vo
embora, levam consigo a criao, essa por sua vez, deixa de ser pensada
numa esfera coletiva e passa a ruminar na individualidade, o que faz do
processo criativo em teatro, algo ininterrupto. Pensar dessa forma nos faz
compreender que o conceito da sala de ensaio extensvel aos corpos dos
artistas, que envolvidos de maneira intrnseca com o processo criativo, vivem
associando, refletindo, burilando... Como um ator que ensaia sempre que tem
uma oportunidade, ou simplesmente em pensamento, vai percebendo e
conhecendo sua personagem, num intenso dilogo entre arte e vida, que gera
conhecimento e auto-revelao.
O homem que realiza um ato de auto-revelao , por assim dizer, o que estabelece contato consigo mesmo. Quer dizer, um extremo confronto, sincero, disciplinado, preciso e total no apenas um confronto com seus pensamentos, mas um encontro que envolve todo o seu ser, desde os seus instintos e seu inconsciente at o seu estado mais lcido. (GROTOWSKI, 1971, p. 41).
17
O aprendizado do artista de teatro gerado nos ensaios de muitos
espetculos, nos encontros estabelecidos com diversos outros artistas, nas
salas de ensaios de todos os processos criativos de sua vida. Essas vivncias
so experincias que sempre sero levadas consigo num intenso processo de
atualizao.
A sala de ensaio da Cia. de Teatro Engenharia Cnica o ponto de
partida para a presente dissertao, investigaremos na mesma, os elementos
necessrios para discutirmos a relao interdisciplinar entre iluminao e
interpretao, portanto, cabe a essa pesquisa, pelo menos, apontar os
princpios tcnicos adotados pela Cia., para compreendermos a sua potica de
criao, que permite que artistas possam agenciar funes dentro dos seus
processos criativos, e dessa forma, ampliarem as suas competncias para a
criao teatral.
18
1.2 A Cia de Teatro Engenharia Cnica: processos
colaborativos?
A Cia. de Teatro Engenharia Cnica tem pesquisado uma maneira de
criar os seus espetculos na sala de ensaio, que aproximaremos com o teatro
colaborativo. No nossa inteno afirmar ou enquadrar a Cia. dentro de um
procedimento tcnico, at porque em se tratando de processos colaborativos,
isso impossvel. Acreditamos que a Cia. tem experimentado outras poticas
de criao3, mas em se tratando dos espetculos, Irremedivel, Doralinas e
Marias e O Menino Fotgrafo, encontramos pontos de ligao dos princpios
adotados pela Cia. com os debates e as discusses acerca do teatro
colaborativo.
A presente dissertao reflete e identifica o Teatro Colaborativo, como
uma entre as vrias possibilidades de construo cnica na
contemporaneidade, que potencializa o imbricamento entre vida e arte. Faz-se
a partir do amlgama entre reflexes e aes que emergem na sala de ensaio,
geradas atravs da juno de artistas-colaboradores: encenador, ator,
cengrafo, iluminador, figurinista, maquiador, etc. Reunidos em um mesmo
espao para gerar tessituras criativas em torno de uma ideia, leitmotiv, imagem
propulsora, temtica, etc.
A expresso processo colaborativo comeou a ser usada na segunda metade da dcada de 90 dentro de um contexto de retomada do movimento de teatro de grupo na cena paulistana. O retorno desta perspectiva grupal, que aparece quase como um contraponto hegemonia do encenador no teatro brasileiro da dcada anterior, vai, aos poucos, ganhando uma dimenso nacional. No que os grupos tenham deixado de existir aps a dcada de 70 entre outros coletivos importantes e atuantes nesse perodo, poderamos destacar o Grupo Galpo, o Imbuaa, o Ponk ou ainda o Oi Nis Aqui Traveiz mas o forte da produo nacional orbitava em torno dos encenadores. So, desse perodo, montagens importantes de Gerald Thomas, Ulysses Cruz, Bia Lessa, Gabriel Vilella, entre outros. (ARAJO, 2002, p.57)
3 Como por exemplo, a montagem do espetculo Perdoa-me Por Me Trares (2012), obra de Nelson
Rodrigues, que foi encenada na ntegra, ou seja, um processo criativo que tinha uma dramaturgia definida
e que o seu procedimento de criao foi diametralmente oposto aos processos criativos dos espetculos
analisados nesta dissertao. Maiores informaes vide anexo.
19
O termo teatro colaborativo passa a ser conhecido a partir das
pesquisas e trabalhos realizados pelo encenador Antnio Arajo, no grupo de
Teatro da Vertigem, da cidade de So Paulo, subvertidas dos primeiros
espetculos do grupo: Paraso Perdido, O Livro de J, Apocalipse 1.114.
Esses processos colaborativos foram desenvolvidos dentro de uma
metodologia de trabalho que articulava a criao total dos espetculos na sala
de ensaio, ou seja, a criao colaborativa que se pauta na troca e na
experincia de cada artista presente na sala de ensaio.
um percurso coerente de experimentao de ideias em espaos pblicos, que se inicia com Paraso Perdido, em 1992, e se desenvolve em processo colaborativo at Apocalipse 1.11, estreado em 2000. A marca mais radical dessa proposta a concepo do teatro como pesquisa coletiva de atores, dramaturgo e encenador em busca de resposta a questes urgentes do pas, especialmente das grandes metrpoles brasileiras, projetadas, porm, num pano de fundo amplo, retalhado de inquietaes metafsicas, ligadas a uma tradio de teatro sagrado que, nesse caso, paradoxalmente, dramatiza a insegurana social e a criminalizao sistemtica das questes pblicas. (...) todos consideram o processo teatral uma pesquisa coletiva, que s tem sentido se experimentada em parceria e, em geral, criam a cena em simbiose com o ator, ainda que haja distines marcantes na concepo. (...) a concepo cnica (...) funciona como uma espcie de edio das contribuies individuais dos parceiros de criao. (FERNANDES, 2010, p. 61-62)
Devido ao espao propositivo aberto a todos na sala de ensaio, a
criao colaborativa gera um processo pedaggico, porm catico, cheio de
crises. Estamos tratando de processos que geram espetculos com uma
polifonia esttica que pode ser qualificada como agonstica (Ibidem. p. 6-7.). A
encenao construda a partir da justaposio de textos, que acabam por
4 Esses trs espetculos foram realizados em espaos pblicos da cidade de So Paulo. O primeiro foi
apresentado na Igreja de Santa Ifignia, esse fato ocasionou um movimento por parte de fieis catlicos
fanticos contra a temporada do espetculo, porque acreditavam que tudo no se passava de profanao
do templo sagrado de Deus. Antnio Arajo, bem como o elenco, receberam ameaas, inclusive cartas
annimas exigindo o cancelamento da programao, alm de ameaas de morte. Depois de uma
apresentao fechada para representantes da Igreja catlica de So Paulo, foi constatado que o espetculo
no conturbava a imagem e muito menos profanava o nome de Deus, pelo contrrio, o fato de o
espetculo tratar da histria de um anjo decado, segundo os padres e bispos, era de extrema importncia
que o homem contemporneo pudesse assistir ao espetculo, para assim, refletir sobre sua condio. J
O Livro de J foi apresentado no hospital desativado Humberto I, localizado na parte central de So Paulo e Apocalipse 1.11 aconteceu no presdio do Hipdromo e a mobilizao principal para a criao do espetculo foram fatos brutais que aconteceram no Brasil como a queima do ndio patax, em Braslia,
e principalmente o massacre dos cento e onze detentos no presdio do Carandiru.
20
estruturar uma dramaturgia que mais est para uma colagem e que foge dos
princpios aristotlicos de comeo, meio e fim. Uma cena que de acordo com
Bernard Dort (apud FERNANDES, 2010, p. 7) supe uma luta pelo sentido,
luta da qual o espectador juiz.5.
Os processos colaborativos comeam, sobretudo, a partir da dcada de
90, em consequncia de um movimento intitulado Criao Coletiva das
dcadas de 70 e 80 no teatro brasileiro, que se tratava da reunio de um grupo
de artistas que montavam um espetculo na sua totalidade, assumindo todas
as funes, negando, portanto, uma hierarquia na sala de ensaio, todos
dirigiam, atuavam, produziam, concebiam luz, cenografia, maquiagem, figurino.
Essa metodologia gerava um processo catico e bastante complexo no seu
acontecer, pois era necessrio um grande exerccio de democracia dentro da
sala de ensaio, pois todas as contribuies deveriam ser acatadas e colocadas
de alguma forma no espetculo. O que vale a pena salientar que esses
grupos se estruturam para pensar um modos operandi de fazer teatro,
fortalecendo o movimento de teatro de grupo no Brasil.
O que diferencia o teatro colaborativo da criao coletiva, que por mais
que o espetculo seja fruto do trabalho de todos na sala de ensaio, no final h
uma hierarquia que define as funes. Vrios outros aspectos so comuns aos
dois tipos de processo, como por exemplo, o principal talvez, a ausncia de
uma dramaturgia como um elemento que determina todos os procedimentos da
construo do espetculo. Os artistas vo para a sala de ensaio apenas com
uma ideia central, uma temtica, e a partir dela, que se desenvolve todo
processo de criao do espetculo.
preciso identificar que essa ruptura da no utilizao de uma
dramaturgia pr-definida para a montagem de um espetculo, e,
5 Um grande exemplo dessa nova perspectiva de encenaes no teatro brasileiro o encenador Gerald
Thomas, que na dcada de 80, revolucionou poeticamente a forma como se pensava e se produzia teatro
no nosso pas. Encenaes que se apoiavam em justaposies de textos e que geravam um espetculo
intitulado de teatro de imagens que se contrapunha a ideia Wagneriana de unidade entre os elementos utilizados na cena, em Thomas o foco era exatamente ressaltar a independncia de cada um, gerando
espetculos em que o espectador convidado a progredir atravs de imagens, sons e movimentos que o obrigam a olhar as coisas de maneira indita. Em todos eles h um princpio de negao que inverte os
significados tradicionais e mostra um processo de investigao transgressora, que submete o teatro de seu
tempo a uma prova de instabilidade (FERNANDES, 2010. p, 11).
21
principalmente, a juno de artistas para a formao de um grupo, pautado
numa potica de fazer teatro coletivamente, se tornou um diferencial, uma
ousadia, no teatro brasileiro feito na dcada de 1980, onde o diretor
funcionava como principal eixo de concepo dos espetculos e concebiam
uma escritura cnica autoral, de grafia inconfundvel, s vezes altamente
formalizada (FERNANDES, 2010, p. 62).
Essa fora motriz do encenador, muito serviu para que o conceito e o
entendimento da era da encenao (DORT, 1977, p. 61), mudasse as
estratgias de criao de espetculos no Brasil na segunda metade do sculo
XX6, sobretudo no entendimento do teatro como pesquisa. So expoentes
desse movimento o TBC7, como tambm o Arena8 e o grupo Oficina de
Teatro9, coletivos que so grandes referncias para se discutir uma concepo
6 A encenao teatral um movimento que se iniciou na Europa no final do sc. XIX e ser discutido no
segundo captulo, porm em se tratando de Brasil, esse conceito s comea a reverberar na cena teatral do
nosso pas, no final da dcada de 1940 com a encenao de Ziembinski para a pea O Vestido de Noiva,
de Nelson Rodrigues. 7 Teatro Brasileiro de Comdia isso o que significa a sigla, fundado pelo empresrio Franco Zampari
com o objetivo de realizar espetculos teatrais de qualidade e que pudessem colaborar para uma
profissionalizao e principalmente para uma mudana de paradigma no teatro brasileiro. De fato,
graas a essa Cia., que temos uma ruptura na cena brasileira, pois a mesma passa a ter o contato e a
aprofundar o conceito de encenao teatral desenvolvido na Europa, que devido s duas grandes guerras
mundiais, principalmente pelo motivo da no comunicao entre pases durante esse perodo, o Brasil no
teve contato com esse movimento que mudou a forma como se fazia e se pensava teatro no ocidente. O
TBC foi uma grande escola para os atores brasileiros a partir do final da dcada de 40, que espalhados
pelo movimento teatral, foram reunidos para pesquisar e experimentar com encenadores estrangeiros,
trazidos exclusivamente para dirigirem os espetculos. Um momento de grande contato com a
dramaturgia produzida l fora e com as pesquisas desenvolvidas em torno da criao de cenrios,
iluminao, maquiagem, figurino e etc. A importncia do TBC grandiosa na colaborao para o
desenvolvimento da Escola de Arte Dramtica da Universidade de So Paulo e tambm para a formao
de vrios grupos aps o final de sua existncia. 8 Importante grupo da histria do teatro brasileiro que passa a surgir na dcada de 1950, cujo seus
principais componentes saram da formao oferecida pela EAD- Escola de Arte Dramtica de Alfredo
Mesquita. Segundo SANTANNA (2012, p. 156-157) tinham iniciado atividades em 1953, experimentando seu palco inovador em apresentaes em escolas, fbricas e outros espaos, at
constiturem sede prpria em 1955, ainda com um repertrio semelhante ao do TBC, embora com
encenaes bem mais econmicas. Em 1958, a partir do sucesso da encenao de Eles No Usam Black-
tie, de Gianfrancesco Guarnieri inspirada em A Moratria, de Jorge Andrade -, com o enfoque de operrios em grave, o grupo sentiu ali o caminho certo e promoveu um Seminrio de Dramaturgia,
visando descobrir e/ou formar atores nacionais que trouxessem cena os problemas contemporneos da
realidade do pas. (...) O Arena visava criar uma dramaturgia que, alm de tudo, pudesse formar um novo
pblico, o popular, que, por sua vez, exigiria mais tarde outra dramaturgia.. 9 Sobre o grupo, prefiro citar as primeiras pginas da edio 26, da revista Dionysos, publicada em 1982:
O Oficina foi organizado em 1958 na Faculdade de Direito (Largo So Francisco) em So Paulo. Mas sem qualquer vnculo direto com o centro Acadmico XI de Agosto. O que permite supor: sem relaes
com questes de poltica estudantil. Estreou no bairro Bexiga num prdio onde antes funcionava um
teatro espirita. Em 1980, ameaado de despejo sumrio (o local seria vendido ao grupo econmico de
Slvio Santos), o grupo empreende uma batalha, em diversas fontes, procurando obter recursos para
22
de experimentao e de pesquisa inovadora na cena teatral brasileira
contempornea. O que vale ressaltar que todo esse movimento gerado por
esses grupos, e por esses encenadores no Brasil, consolidou-se como uma
base muito forte, que deu suporte para o surgimento de vrios artistas e grupos
que passaram a realizar processos criativos com novas abordagens e
procedimentos tcnicos particulares, que diversificaram e enriqueceram de
poticas o teatro brasileiro.
Os processos colaborativos geram na cena contempornea brasileira,
um procedimento que no se trata de uma metodologia cartesiana com manual
de regra a ser seguido para se criar um espetculo. mais um modelo do que
at mesmo um referencial esttico. Apresenta-se muito mais como princpio
tcnico, e que por isso, a interpretao e articulao multidisciplinar. O
encenador quem geralmente conduz o processo colaborativo, acaba criando
um prprio mtodo, uma forma particular de coordenar a criao. A fora motriz
nesse tipo de processo est nas experincias que so trocadas na sala de
ensaio, nesse lugar em que as competncias tcnicas so alargadas, todos
so coautores do espetculo/encenao/dramaturgia da cena. O que se
estabelece na sala de ensaio um espao propositivo horizontal, sem uma
hierarquia fixa, e sim, como prope ARAJO (2002, p. 56) hierarquias
momentneas ou flutuantes que abrem um espao de proposio para todos
os que esto envolvidos no processo criativo e transforma a criao em um
work in progress que se articula atravs de:
Redes de leitmotiv, da superposio de estruturas, de procedimentos gerativos, da hibridizao de contedos, em que o processo, o risco, a permeao, o entremeio criador-obra, a interatividade de construo e a possibilidade de incorporao de acontecimentos de percurso so as ontologias da linguagem. (COHEN, 2006, p. 2)
comprar definitivamente o terreno e a casa de espetculos. Sensibilizou diferentes reas, inclusive
oficiais, e acabou vencendo. (...) Ainda no principio afirmou-se diante da crtica lanando um novo autor
que logo em seguida encerraria sua promissora carreira como dramaturgo para transformar-se no mais
criativo e corajoso, controvertido e polmico, encenador do teatro brasileiro contemporneo (Jos Celso
Martinez Correa). (...) Depois de conturbadas discusses internas o grupo abandonou o amadorismo e, nas
pegadas do Teatro de Arena, assumiu o profissionalismo. Estabeleceu sede prpria, na rua Jaceguai 520.
Transformou-se na mais expressiva companhia de teatro do pas atravs de um trabalho contnuo marcado
por permanente inquietao e sempre surpreendente renovao da linguagem cnica. (PEIXOTO, 1982, p.
37)
23
O que ganha fora no teatro colaborativo o projeto artstico-pedaggico
gerado por um grupo que se forma para criar seus espetculos num espao de
proposio horizontal, onde todos participam e colocam o seu pensar e fazer, o
que leva a construo de uma cena ampliada por diversas experincias e
pontos de vista, enriquecendo o processo de criao e gerando um grupo que
tem como fora o dilogo e o cruzamento de culturas. nesse jogo de
fronteiras entre os partcipes do processo, em que um atua na rea especfica
do outro, que atores acabam por descobrir potencialidades para tambm serem
pensadores de cenografias, de figurinos, luz, assim como cengrafos para
serem atores, e diretores arriscam-se como atores e vice e versa,
sucessivamente.
Quem ao final assina a concepo das linguagens10? nessa rea de
acordos que se estabelece um elo de confiana entre os participantes do
processo colaborativo e o trabalho individual ganha estrutura ampliada para a
concepo do espetculo. importante entender que mesmo a criao no
teatro colaborativo se d num campo propositivo aberto, algum sempre se
responsabiliza pela concepo final de cada elemento, por exemplo, um
cengrafo define com qual material ir trabalhar e de que maneira ele tornar
expressiva as suas ideias. Cabe aos profissionais envolvidos e responsveis
por suas funes, imbricar todas as vontades e desejos do coletivo, mas,
sobretudo materializar cenicamente a concepo final.
No entanto, preciso reconhecer que a autoria no processo colaborativo est localizada numa zona de fronteira, de acordos delicados e tensos, pois tenta lidar com as exigncias do coletivo, ao mesmo tempo em que reclama o reconhecimento individual. Trata tanto da autoria de grupo, medida que todos so criadores e agentes de mltiplas apropriaes e transformaes, quanto da autoria particular, que acontece quando determinado artista opera a reunio, a filtragem ou a organizao dos materiais apresentados pelo coletivo. (RINALDI, 2006, p. 136).
10
Nesta dissertao compreendemos que a cenografia, iluminao cnica, figurino, interpretao,
maquiagem, sonoplastia e etc., so linguagens distintas, ativas, como nos prope Artaud (2006), que possibilitam, individualmente, um vasto campo de pesquisa e tcnica, porm, o mais significante
entendermos que a atuao desses elementos em um espetculo determinante na concepo da
encenao. Nos prximos captulos ressaltaremos ainda mais essa reflexo a respeito da importncia de
articulao dessas linguagens no processo criativo de uma encenao.
24
O teatro colaborativo embora seja uma matriz cada vez mais utilizada
para montagens de espetculos, carrega uma singularidade e que merece um
enfoque: cada grupo ou companhia, de acordo com suas vontades para a
criao, estabelecem seus prprios princpios criativo-metodolgicos. Esses
grupos ao longo de anos de trabalho, apuram atravs das experincias, uma
forma de conduo que se torna a sua potica, que faz com que o processo
criativo ganhe movimento e se estruture a cada novo encontro na sala de
ensaio.
No caso do Teatro da Vertigem, por exemplo, embora todos participem
ativamente dos processos criativos de todos os elementos, no comeo as
funes j so ocupadas, o dramaturgo convidado para o processo, sabendo
que sua funo ser a de construir a dramaturgia, assim como o iluminador, o
figurinista, os atores e etc. o que caracterstico no caso da Cia. de Teatro
Engenharia Cnica, que as competncias so aproveitadas na sala de
ensaio, ou seja, se um ator tem experincia na rea de iluminao cnica, se j
desenvolve pesquisa e se dedica a entender os caminhos para a criao da luz
no teatro, sua funo dentro do processo ser tambm a de conceber a
iluminao do espetculo.
Na Cia. de Teatro Engenharia Cnica, as questes que se referem
autoralidade dentro da sala de ensaio, so ainda mais aberta. No comeo cada
sujeito tem uma funo previamente estabelecida, mas no decorrer do
processo criativo, esse artista poder no somente colaborar com os outros
processos, mas tambm assumir a concepo final da cenografia, dramaturgia,
iluminao e etc., em alguns casos, at trs funes na criao do espetculo.
Essa informao importante de frisar, porque potencializa o entendimento de
que cada grupo que desenvolve processos colaborativos tem o seu prprio
procedimento na construo de espetculos. exatamente nesse ponto que
aparece uma relao dentro da sala de ensaio da Cia. de Teatro Engenharia
Cnica, que incentiva e fomenta a possibilidade de um ator poder ser tambm
o iluminador cnico. Dessa forma, os demais artistas passam a colaborar nos
25
outros processos criativos, e com isso, acrescentam s suas competncias,
diferentes experincias que enriquecem sua potica de criao.
A sala de ensaio um espao que oscila entre o que podemos
compreender por espao trivial, ou seja, um lugar comum, geralmente aberto,
sem muitos mveis e objetos e ao mesmo tempo, um lugar que se transforma
com os ensaios, pois instalam diferentes atmosferas a partir da expresso
corporal dos atores, que se mantm em estado alterado e ainda assim,
refletem, burilam, constroem o espetculo em total dilogo colaborativo com
todos os artistas da cena. Esse entendimento da sala de ensaio unido ao
processo colaborativo, que abre caminho para irmos adiante.
26
1.3 A Imagem Propulsora.
A imagem para a criao artstica tem carter impulsionador. Os
processos criativos em teatro esto ligados construo e elaborao de
imagens, sejam elas pictricas ou corporais, sempre abrangem signos que
levam a mltiplas compreenses. Michael Chekhov apresenta alguns exemplos
na histria da arte em que as imagens so fontes de inspirao para a criao:
Estou sempre cercado de imagens, disse Max Reinhardt. Ao longo de toda uma manh, Dickens permaneceu sentado em seu gabinete de trabalho esperando que Oliver Twist aparecesse. Goethe observou que imagens inspiradoras surgem diante de ns por sua prpria iniciativa, exclamando: Aqui estamos! Rafael viu uma imagem passar diante dele em seu quarto, e essa foi a Madonna da Capela Sistina. Michelangelo exclamou, em desespero, que imagens o perseguiam e o foravam a esculpir suas figuras na pedra (2003, p. 27)
O embate entre artista e imagem extremamente dinmico. A imagem
vai se transformando na medida em que ela trabalhada pelo artista, ela
muda sob seu olhar indagador, transforma-se repetidas vezes, at que,
gradualmente (ou subitamente), voc se sente satisfeito com ela (Ibidem. p.
29). No caso do teatro, a busca de materializao da imagem em cena. Na
sala de ensaio ela vai possuir uma corporeidade, que bifurcar gerando outras
imagens, cria narrativas e personagens, num processo constante de
retroalimentao, pondo em movimento o processo criativo e constituindo um
arcabouo de signos imagticos que o prprio espetculo se construindo.
Nessa perspectiva o corpo se torna o lugar onde as imagens ganham
movimento. O ator tambm uma imagem na cena que responsvel por
articular outras imagens e construir sentido para tudo que o espetculo
pretende representar. Para Bergson (2006, p. 20) o corpo a imagem central
sobre ela regulam-se todas as outras; a cada um de seus movimentos tudo
muda, como se girssemos um caleidoscpio, portanto quando uma imagem
fonte primeira para a criao, ela se torna um elemento que se modifica a cada
vez que o artista a manipula e por isso constitui-se num universo de
descobertas que ampliam o sentido e a imaginao.
27
No caso da Cia. De Teatro Engenharia Cnica a palavra propulso est
acompanhada da palavra imagem, exatamente porque dentro da Cia. essa
imagem criada e elaborada, funciona como o primeiro impulso para que todos
os integrantes possam agir na sala de ensaio, ou seja, quando a ideia passa a
ser materializada cenicamente. importante informar que essa imagem
propulsora no corresponde a uma pintura ou uma fotografia, ou seja, no est
relacionada a algo que seja pictrico bidimensionalmente ou
tridimensionalmente, nos processos da Cia. Engenharia Cnica ela um
hipertexto que apresenta uma narrativa sobre a qual se definem a temtica e o
sentido para a construo do espetculo. Esse texto considerado imagem
exatamente por ser ele uma projeo de como se dar o espetculo.
Os espetculos da Cia. Engenharia Cnica (Irremedivel, Doralinas e
Marias e O Menino Fotgrafo) apresentam em comum, processos que tm a
imagem propulsora, como princpio norteador para criao. De acordo com a
pesquisa de FERREIRA (2009) 11, a partir da analise do processo de criao do
espetculo Irremedivel (Sobral, CE, 2007), define-se a imagem propulsora
como:
...uma bssola que norteia a criao, mas ela apenas uma diretriz para o caminho, o percurso ser trilhado ao longo das descobertas que sero interpostas no decorrer do processo de criao na sala de ensaio. Compreendo esse processo como um labirinto de possibilidades que se abrem em encruzilhadas de encaminhamento potico. Testamos as possibilidades e as escolhemos dia-a-dia. Esta escolha movida por nossas percepes e individualidade. (FERREIRA, 2009, p. 49 e 50)
Se tratando dos espetculos da Cia. de Teatro Engenharia Cnica, a
imagem propulsora responsvel por abordar todo o discurso do espetculo.
Pode ser um pequeno texto narrativo, como uma nica frase que apresenta
diretamente todo o universo pelo qual o processo do espetculo caminhar no
que diz respeito criao e tambm ao campo epistemolgico fundamentador
da pesquisa e que d sentido estrutura dramatrgica do espetculo.
No grupo de Teatro da Vertigem da cidade de So Paulo no Brasil, tem-
se o conceito de workshop como o lugar da imagem inicial, ou seja, do ponto
11
Diretora da Cia. de Teatro Engenharia Cnica (nome artstico Ceclia Raiffer)
28
de partida para a construo do espetculo, assemelhando-se ao conceito de
imagem propulsora. Segundo (RINALDI, 2006, p. 136) atriz e pesquisadora do
referido grupo, o workshop uma cena criada pelo ator em resposta a uma
pergunta ou um lema lanados em sala de ensaio. Diversos grupos se
identificam com a criao teatral a partir de processos colaborativos. Muitos
fatores contribuem para o crescimento de espetculos que so criados na
contemporaneidade a partir desses processos, podemos dizer que a relao
com o texto uma questo, pois o encenador ou ator no encontrando mais
uma dramaturgia que apresente um lugar, uma motivao, ou antes, uma
possibilidade de realizao do seu desejo, passa a escrever seu prprio texto,
partindo de improvisaes ou de outros princpios, sempre caminhando dentro
de um percurso norteado por um sentido, pela imagem propulsora, que gera no
sujeito a necessidade de se lanar no processo de experimentao, para a
descoberta do espetculo no seu corpo, potencializando o imbricamento
artista-vida-obra.
A criao na sala de ensaio da Cia. de Teatro Engenharia Cnica gera
uma dramaturgia em processo. A cada improvisao12 as personagens
emergiam em gestos, atitudes, verbos, aes que eram bases para a
construo do texto. A diretora dos espetculos, Ceclia Raiffer, assumia a
funo de dramaturga, cabia a ela ficar atenta s possibilidades textuais que
surgiam no jogo entre atores e imagem propulsora. O texto que elaborado
dessa forma, sempre acaba adquirindo uma estruturao fragmentria que
possibilita uma maior mobilidade no que se diz respeito a uma narratividade.
Nos trs processos analisados nesta pesquisa, a dramaturgia s se definia
aps varias organizaes, cenas que seriam o comeo passaram para o meio
ou at mesmo o fim do espetculo, o trabalho na sala de ensaio de um
processo colaborativo incgnito, imprevisvel, a cada novo encontro tudo se
amplia, trata-se, portanto, no que se diz respeito dramaturgia, de um jogo de
descobertas.
12
Ainda nesse captulo discutiremos a respeito da improvisao como tcnica de articulao da imagem
propulsora.
29
No processo colaborativo, como ainda no h um todo a ser analisado, e sim uma progresso de cenas que vo sendo elaboradas ao longo dos ensaios, a anlise feita de maneira inversa: tem-se somente alguns segmentos, a princpio independentes. Praticamente s cegas, vai-se intuindo um encaixe das cenas apresentadas na tentativa de formar um todo coerente como um quebra-cabea do qual se vai recebendo as peas aos poucos, sempre com a certeza de que haveria um sem nmero de possibilidades de outras configuraes/imagens finais. E essa coerncia, essa unidade pretendida, normalmente tem como norteadora a proposta inicial do grupo geralmente o tema eleito pela equipe, sempre amparado pelas pesquisas e discusses. importante que se tenha em mente esse objetivo geral que possa guiar a anlise tema, proposta formal um fator que fica de fundo na hora do trabalho analtico. A proposta da cena, ela sim, pode ser decomposta pelo dramaturgo, analisada em suas diferentes partes, recomposta e compreendida num processo de fragmentao do que j um fragmento. A cena analisada como um todo, num primeiro momento, e depois pode ser decomposta e analisada em vrios aspectos entre os quais ao, fbula, unidade, personagens, situao, conflito, ncleo dramtico, pertinncia quanto ao tema, relevncia no contexto geral. (NICOLETE, 2005, p. 50)
O tema do qual a pesquisadora se refere, no caso dos processos
colaborativos da Cia. de Teatro Engenharia Cnica, se trata da imagem
propulsora que na sala de ensaio torna-se um elemento que gera crise para a
criao do espetculo. Articula-se na sala de ensaio atravs do trabalho
improvisacional do ator que gera cenas que se tornam as bases para a
concepo da iluminao, cenografia e etc. Nesse entrelaamento de
experincias entre os profissionais (iluminador, cengrafo, encenador, ator,
maquiador, sonoplasta e etc.) emerge uma pedagogia pautada na troca,
confiana e na colaborao, fatores que possibilitam o surgimento de artistas
hbridos, pois so criadores de todas as partes do espetculo, agentes ativos
nas bifurcaes, sujeitos significadores de suas prprias formaes.
No momento inicial dos espetculos Irremedivel, Doralinas e Marias e
O Menino Fotgrafo, foram realizados encontros para debate, pesquisa e
construo de ideias, para s assim, iniciar o processo de materializao das
cenas. O processo do espetculo Irremedivel teve durao de 09 (nove)
meses, Doralinas e Marias teve 09 (nove) e O Menino Fotgrafo 12 (doze)
meses. Como se tratam de Processos Colaborativos, essa etapa especfica
voltada para a pesquisa, para o levantamento de imagens propulsoras,
30
assemelha-se ao momento em que O Teatro da Vertigem, grupo de So Paulo,
referncia na linha de Teatro Colaborativo, desenvolveu o espetculo Paraso
Perdido:
Pretendamos garantir e estimular a participao de cada uma das pessoas do grupo, no apenas na criao material da obra, mas igualmente na reflexo crtica sobre as escolhas estticas e os posicionamentos ideolgicos. (ARAJO, 2002, p. 102).
Percebemos na fala de Silva que a pesquisa no Teatro Colaborativo
base para todo o processo se desenvolver. As leituras so os caminhos para a
construo de ideias, o debate na sala de ensaio desenvolve reflexes em
volta da ideia, da imagem propulsora, e assim o espetculo se estrutura, num
processo em que a pesquisa prtica e teoria sedimentam a criao cnica.
[...] a pesquisa um dos principais fatores a colocar todos os componentes em p de igualdade para a criao. A partir da leitura dos mesmos textos, da anlise dos mesmos filmes, da visita aos mesmos lugares, o grupo desenvolve um vocabulrio comum e forma um manancial de imagens que sero reelaboradas e traduzidos cenicamente. Nessa etapa inicial, cada elemento da equipe pode acrescentar ao material pesquisado os contedos pessoais e sua prpria interpretao de informaes, o que vai gerar uma infinidade de cenas e situaes propostas [...] Enfim, o que se vai pesquisar e como isso vai ser feito pode se configurar de um sem-nmero de formas. Incontestvel parece ser a necessidade da pesquisa, j que preciso conhecer satisfatoriamente o tema que se quer abordar, e isso durante todo o processo. A pesquisa, em suas diversas formas e intensidades, est presente em todas as etapas, no s no incio. A ela cabe, muitas vezes, o aprimoramento contnuo e a busca de soluo para questes surgidas ao longo do trabalho. (NICOLETE, 2005, p. 44-45)
Quando os espetculos da Cia. Engenharia Cnica so levados fruio
do pblico, o ciclo da criao se fortalece. A partir da recepo dos
espectadores, buscamos estratgias de mediao para entendermos os
resultados gerados.
31
1.3.1 Irremedivel 13.
A indefinio do nome do espetculo apresenta o quanto catico e
crtico o processo foi no princpio. No primeiro encontro na sala de ensaio no
tnhamos uma dramaturgia pronta, nem mesmo personagens ou lugar teatral
(MANTOVANI, 1989, p. 7) 14 definidos, apenas uma imagem propulsora que
girava em torno de questionamentos sobre o homem contemporneo e a sua
condio de vida. Nessa poca a Cia. no sabia ainda conceitualmente da
existncia do teatro colaborativo. Essa realidade a mesma de vrios grupos
que no Brasil se estruturaram ao longo das dcadas de 70, 80 e 90 para
criarem seus espetculos a partir de ideias, de imagens, sem estarem ligados
diretamente a uma dramaturgia, simplesmente os artistas se renem na sala de
ensaio e paulatinamente criam seus espetculos desde a dramaturgia
construo de personagens e atmosferas atravs do cenrio e da iluminao.
No espetculo Irremedivel, aps refletirmos demasiado sobre a
condio do homem contemporneo, buscamos referenciais tericos e
exemplos de personagens que pudessem ser fontes inspiradoras e
alimentadoras da imagem propulsora para que pudessem ser criadas aes,
cenas, possibilidades de espaos cnicos, atmosferas e principalmente
personagens. Foi ento que surgiu uma imagem propulsora que estabeleceu
claramente os caminhos e definiu um lugar teatral que significava um dos
principais pontos filosficos sobre a condio do homem na
contemporaneidade: a priso irremedivel do homem contemporneo
aprisionado, vigiado e perdido na terra que gira. (FERREIRA, 2009. p. 30). O
espao no qual os atores atuavam no espetculo, era um losango de 3m, que
13
Espetculo realizado atravs do Prmio Myrian Muniz de Teatro da FUNARTE 2006. Estreou em
Sobral no teatro municipal da cidade: Theatro So Joo, em seguida atravs de um apoio do SESC-CE o
espetculo circulou pelas suas principais instituies (SESC) situadas no estado. Foi apresentado na
mostra competitiva do FETAC (Festival de Teatro de Acopiara) onde ganhou cinco prmios: melhor
direo, ator (Luiz Renato), sonoplastia, iluminao e conjunto cnico; foi apresentado da XII Mostra
SESC Cariri de Cultura e no Festival Nordestino de Guaramiranga; alm de realizar uma temporada na
cidade de Fortaleza capital do estado, e participar da Mostra Nacional Palco Giratrio, tudo no ano de
2007. 14
Entender lugar teatral como o espao que prprio do espetculo. Anna Mantovani no seu livro intitulado Cenografia, do ano de 1998, apresenta a diferena entre espao cnico e lugar teatral, segundo o seu pensamento todo espao serve para a cena acontecer, mas o que se instala nesses espaos
o lugar do espetculo, ou seja, o espao criado e elaborado na sala de ensaio para o seu discurso
dramatrgico, visual , atmosfrico e sgnico.
32
impunha limites para a movimentao cnica dos atores. A imagem propulsora,
depois de muitas escolhas e desapegos ganhou a seguinte estruturao:
[...] trs pontos iniciais inspiradores, trs linhas paralelas [...]: Vida de Galileu de Bertolt Brecht a certeza que a terra no o centro do universo e que as estrelas no esto presas a uma esfera de cristal abala as convices da humanidade; Vigiar e punir de Michel Foucault somos diuturnamente vigiados, conduzidos e elaborados pelo sistema que obriga, sufoca e desnatura; O Mito de Ssifo de Albert Camus a humanidade carrega absurdamente uma pedra para o cume de uma montanha, quando l chegamos, a pedra sempre rola e tudo comea novamente. Quando a razo deixa de ser razo e o homem perde-se de si, dos seus sonhos, da sua vida. Quando a certeza da existncia de bilhes de sis e bilhes de galxias comprovada. Quando o humano deixa de ser humano... Realidade irremedivel da vida. (FERREIRA, 2009. p. 30)
Analisando a imagem propulsora possvel apontarmos caminhos pelos
quais o espetculo foi trilhando ao longo do processo criativo. Os personagens
eram agentes ativos do espetculo Irremedivel, pois eram responsveis de
instalar na cena, o homem aprisionado. Porm, a iluminao cnica passou a
ter uma ao expressiva e determinante na construo de significados do
espetculo, sobretudo, porque editava dentro do pequeno losango, o espao
cnico das personagens15. O espetculo Irremedivel comeou ento a ser
estruturado a partir da imagem propulsora. Os personagens foram inspirados
nas figuras de Galileu e de Ssifo, ambos, sujeitos da histria da humanidade,
que foram aprisionados por um sistema que no possibilitava escapatria.16 Na
dramaturgia de Ceclia Raiffer, seus nomes eram Cego e Aleijado, e em
nenhum momento do espetculo eram pronunciados em cena, serviram muito
mais para o trabalho dos atores, na construo de aes fsicas
(STANISLAVSKI, 2001, p. 2), para a compreenso da identidade desses
personagens. Em cena apenas dois jovens homens presos, tentando se
livrarem daquele lugar, inventando uma fabulao ou um universo imaginrio
como estratgia de livramento, com o passar dos ensaios o espetculo ganha a
seguinte estruturao dramatrgica:
15
Analisaremos no terceiro captulo o processo criativo da iluminao do espetculo Irremedivel em
consonncia com o trabalho do ator na criao de cenas e personagens. 16
Na pea de Bertolt Brecht, Galileu abjura de sua descoberta para no ser morto pela Inquisio. Ssifo
foi condenado por Ades a rolar uma pedra at o cume de uma montanha, depois de chegado ao objetivo, a
pedra rolaria novamente e Ssifo continuaria irremediavelmente a rolar a pedra.
33
Irremedivel (2007). Dois homens de identidade desconhecida habitam um espao inspito, na solido diria buscam estratgias de salvamento para as suas existncias continuarem valendo. Um rapaz, o Cego, espera o vento que sopra do norte e passa toda a vida construindo bonecos, barcos e caixas de papel para serem colocados no rio que corre quando o esperado vento chegar. O outro rapaz, o Aleijado, apresenta surtos psicticos, toma vrios remdios, fala do universo e das estrelas elas esto livres e sem amarras; quer ir para a cidade das portas, mas ao contrrio do outro rapaz no produz possibilidades de sada. Finalmente o vento que sopra do norte chega, os dois rapazes vo para a sonhada cidade das portas, mas so bombardeados pela plateia, e o barco que estava no rio que corre queimado, a luz cai em resistncia, a sonoplastia continua at a ltima centelha, silncio e fim!17
Outros signos foram criados para enfatizar ainda mais a condio de
vigilncia e de punio para os personagens. A sonoplastia do espetculo foi
criada por Daniel Glaydson Ribeiro que na poca do processo de criao do
espetculo, alm de estudante de letras era tambm DJ de msicas
eletrnicas, o fato de ele experimentar a tcnica computadorizada de produzir
variados tipos de sonoridades, fez com que de imediato surgisse um convite
para ele colaborar na sala de ensaio na criao da trilha do espetculo. A
sonoplastia acabou se tornando um elemento que intensificou sobremaneira as
atmosferas de aprisionamento e de desespero por parte das personagens. A
movimentao cnica dos atores ganharam sonoridades, rudos, dialogando
com as emoes que se materializavam cenicamente, os rudos
acompanhavam as sensaes, o que possibilitava uma construo ainda mais
ampliada das noes de personagem. Toda a trilha era operada ao vivo,
portanto, era necessria a presena do DJ em cena, respirando o espetculo a
cada apresentao.
Essa necessidade acabou levando para a cena um signo que ressaltou
ainda mais a construo desse espao enclausurado e principalmente
presentificou os personagens que vigiavam, pois colocando o sonoplasta na
cena o operador de luz tambm ocupou seu espao no meio da plateia,
portanto entre os espectadores existiam os sujeitos com suas mesas de luz e
17
Rubrica retirada da dramaturgia, acervo pessoal da diretora Ceclia Raiffer. No primeiro semestre de
2014 ser lanado o livro Trs pontos sem ponto final que reunir o texto dos trs espetculos Irremedivel, Doralinas e Marias e O Menino Fotgrafo, objetos de analises da presente dissertao.
34
pick up. A iluminao cnica foi tambm um elemento de aprisionamento para
as personagens. Editava o espao cnico com seus recortes em formato de
losango, ampliava e o diminua constantemente, a luz era fria para ressaltar a
atmosfera de solido e quente quando os surtos de ambos os personagens na
tentativa de sarem dali se presentificavam. Trilha sonora e iluminao
dialogavam cenicamente. Luz e som acompanhavam todo o ritmo da
interpretao dos atores, no existia um momento de silncio no espetculo.
Para melhor compreenso do espetculo Irremedivel, principalmente no que
se diz respeito ao seu lugar teatral (MANTOVANI, 1998, p. 7), bem como a
encenao, faz-se necessrio observar uma fotografia retirada por Hudson
Costa na primeira temporada do trabalho no Theatro So Joo na cidade de
Sobral CE.
Figura 1- foto Hudson Costa: Lugar teatral em formato de losango, o pblico sentava-se
exatamente em volta do losango sobre almofadas pretas evidenciando o aprisionamento e o estado
de vigilncia. As bolas distribudas pelas almofadas eram utilizadas na cena final pelo pblico como
bombas.
O ator Jander Alcntara Personagem: Cego,
representao de Galileu Galileu de Bertolt
Brecht Atrs um guarda-chuva feito de contas
para simbolizar a via lctea e as estrelas.
Operador de luz Maicon
Rocha Ator Luiz Renato
Personagem Aleijado,
representao de
Ssifo de Albert
Camus.
Pick-up e notebook do
sonoplasta Daniel Glaydson
Ribeiro
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A presena desses dois artistas (operador de luz e sonoplasta) se deu
desde o meio do processo, quando o espetculo j apresentava cenas
construdas. Entraram na sala de ensaio para colaborarem com todos os outros
elementos da cena, dialogavam com todas as esferas da criao que se
desenvolviam a partir da relao com a imagem propulsora. Todos tinham
espao para propor e refletir sobre as cenas elaboradas, contribuam com suas
colocaes no sentido de mostrarem outras possibilidades. Mesmo com esse
espao de proposio aberto, no final a diretora Ceclia Raiffer sempre quem
coordenava o processo, era a responsvel por ligar os elementos um ao outro
e nessa teia de agenciamentos, construir o sentido geral da encenao.
Figura 2 foto Hudson Costa: Cena em que o personagem criado por Luiz Renato que se chama Aleijado (Ssifo), de p, tenta construir um barco para fugir do aprisionamento, no cho o ator
Jander Alcntara com o personagem Cego (Galileu), em um transe gerado pela ao do Aleijado.
36
Figura 3 Foto Hudson Costa: Momento de grande desespero quando os dois personagens buscam
estratgias para sarem do lugar teatral claustrofbico.
Figura 4 Foto Hudson Costa: Cena em que o personagem Cego, representao de Galileu Galilei, atravs de um guarda-chuva repleto de contas e pedras semipreciosas, faz referncia a Via-Lctea.
37
Uma forte caracterstica desse processo o fato de que no tnhamos
ainda noo dos processos colaborativos. Alguns elementos como a
cenografia, por exemplo, foi concebida por todos, no existiu no processo
algum que se responsabilizasse por essa concepo, o que levou a uma
criao coletiva, ou seja, todos foram os autores desse elemento.
Esse processo apresenta um caos em sua totalidade, pois no tnhamos
condies de entender at quando teramos condies de criar na sala de
ensaio. A cada novo encontro, surgiam muitas possibilidades de continuao, o
que levou a Cia. em alguns momentos a desistir, dar pausas longas para que
pudssemos assimilar o caminho que estava sendo trilhado pelos artistas
envolvidos. Foi com muitas dificuldades, sobretudo na finalizao da
dramaturgia e consequentemente da encenao que o espetculo chegou a
uma estrutura final.18.
18
Uma anlise mais elaborada a respeito do processo criativo do espetculo Irremedivel encontra-se na
dissertao: FERREIRA, Ceclia Maria de Arajo. Cena e jogo: o imaginrio na carne. 2009. 163f.
Dissertao (Mestrado) Escola de Teatro, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2009. Disponvel no acervo do Programa de Ps-Graduao em Artes Cnicas PPGAC/UFBA, no seguinte endereo eletrnico: https://repositorio.ufba.br/ri/handle/ri/9434.
38
1.3.2 Doralinas e Marias19 .
Diferente do espetculo Irremedivel, o processo de criao de
Doralinas e Marias em 2009, na cidade de Salvador, BA, a Cia. Engenharia
Cnica (ncleo fixo) j sabia, a partir da experincia adquirida com o
Irremedivel, o caminho que deveria ser percorrido, no que diz respeito,
criao de todo o espetculo. A imagem propulsora j era algo aceito por
todos, tnhamos em mente que sua elaborao era de extrema importncia
para que o processo pudesse ser iniciado. A Engenharia Cnica com a
experincia do primeiro processo de criao, em que s tnhamos a convico
de que um grupo de artistas reunidos numa sala de ensaio, agenciando
experincias a partir de uma ideia, estruturaria um espetculo, fez com que em
Doralinas e Marias comessemos a perceber os caminhos pelos quais o seu
processo de criao se guiaria e principalmente reconhecer que nesse novo
trabalho, estvamos consolidando uma potica, mas tambm um pensar, um
refletir do como.
Foi ento que em Doralinas e Marias a Engenharia Cnica passa a ter
conhecimento do que o Teatro Colaborativo e encontra no mesmo, sua
potica criativa, tal como os grupos Teatro da Vertigem da cidade de So Paulo
e os Finos Trapos20 da cidade de Salvador, que embora tenham processos
criativos conduzidos de forma absolutamente diferentes, apresentam um
processo de construo total do espetculo dentro da sala de ensaio, lugar
este que unir uma equipe em torno de uma ideia, de uma imagem propulsora,
19
Sob a direo de Ceclia Raiffer, Doralinas e Marias foi realizado atravs do Prmio Manoel Lopes
Pontes da Fundao Cultural do Estado da Bahia na categoria montagem de espetculo. Sua temporada de
estreia se deu nos teatros Martim Gonalves da Escola de Teatro da UFBA (18 de junho a 5 de julho) e
SESC-Senac Pelourinho (de 9 de julho a 1 de agosto) no ano de 2009. O espetculo fez participao no
Festival Internacional de Artes Cnicas - FiacBa ano 2 nos dias 24 e 25 de outubro de 2009; na 11 mostra
SESC Cariri de Cultura 2009 nos dias 14 de outubro no Memorial Padre Ccero em Juazeiro do Norte e
no dia 15 de novembro no Teatro Municipal Salviano Arraes na cidade do Crato-Ce; e em maro de 2010
participou da Mostra SESC-ATU de Teatro de Uberlndia em Minas Gerais. 20
No caso do grupo Finos Trapos da cidade de Salvador-Ba, podemos citar a pesquisa de mestrado do diretor Roberto Ives Abreu Schettini intitulada O TEATRO COMO ARTE DO ENCONTRO:
dramaturgia da sala de ensaio, uma abordagem metodolgica para a composio do espetculo Genesius histrinica epopeia de um martrio em flor junto ao grupo Finos Trapos.
39
e far a cada novo encontro se descortinar atravs da colaborao: a
dramaturgia, personagens, cena, cenografia, iluminao e etc.21.
A imagem propulsora do espetculo Doralinas e Marias a seguinte:
A mulher e sua relao com o tempo O tempo de espera, o tempo
de chegada e o tempo de partida.
Para inspirao e estruturao da imagem propulsora foram utilizadas
algumas obras que foram fontes de pesquisa, ou seja, um campo de encontro
do imaginrio de toda a equipe e que trazem relaes de sujeitos com o tempo,
no caso, adaptado para a figura da mulher:
O livro Casa e Tempo de Snia Rangel;
O poema O Caso do Vestido para a investigao do Tempo de
Espera;
A msica Valsinha de Chico Buarque de Holanda para a
investigao do Tempo de Chegada;
A msica Triste Partida de Patativa do Assar cantada por Luiz
Gonzaga para a investigao do Tempo de Partida.
A partir dessas obras estabeleceram-se trs pontos centrais que
serviram como base para a criao do espetculo: tempo de chegada, tempo
de partida e tempo de espera. Cada um desses temas estavam ligados a uma
personagem, quais sejam: Alice, Doralina, Sofia, Doralice (me de Doralina que
no espetculo luz) e Manoel, o nico personagem masculino que simbolizava
o prprio tempo das mulheres. O espetculo estreou com a seguinte
estruturao dramatrgica:
Doralinas e Marias (2009): Quatro mulheres e uma casa. Essas mulheres
fazem parte da mesma famlia. Doralice me de Doralina, Sofia filha de
Doralina e Alice filha de Sofia. Esse lao familiar traz a relao dessas
21
Podemos citar as pesquisas do diretor do Teatro da Vertigem Antnio Arajo que refletem o fazer desse
grupo atravs da trilogia bblica Paraso Perdido, Livro de J e Apocalipse 1.11 todos desenvolvidos colaborativamente na sala de ensaio.
40
personagens a partir de ciclos de 17 anos de idade entre uma personagem e
outra. Assuntos como o nascimento e a morte, a espera e a chegada, a
maternidade e a desiluso do amor compem o texto do espetculo. Doralina,
representa o tempo de chegada, aps viver muito, deseja ficar em sua casa, no
jardim, e l descansar at a morte; Sofia simbolizando o tempo de espera,
aguarda na janela o marido que foi, mas disse que ia voltar e no volta; Alice
traz o tempo de partida, uma jovem de 17 anos, vive na varanda da casa em
contato com a lua e o seu maior desejo o de voar para o vasto e grande
mundo; Doralice morreu quando paria Doralina aos 17 anos, sua narrativa e
presentificao desenvolve-se atravs da iluminao num jogo que estabelece
atravs da luz a contracena com as demais personagens; Manoel o menino e
velho tempo, rege essas mulheres nas suas vidas dirias.22
Figura 5 - foto Zlia Ucha: Em primeiro plano no lado esquerdo a atriz Adriana Amorim,
personagem Sofia, carregava uma longa trana que simbolizava o tempo de espera da vinda do seu
amado; no lado direito a atriz Meran Vargens, personagem Doralina, vivia no seu jardim embaixo
do p de goiaba branca misturado com goiaba vermelha, desse lugar no quer mais sair, vive tomando ch e simboliza o tempo de chegada; em segundo plano a atriz Daniele Frana com a
personagem Alice, a jovem de 17 anos que quer conhecer o mundo, simbolizava o tempo de partida;
o ator Luiz Renato com o personagem Manoel, esse nome significa em hebraico Deus presente, Manoel a materializao do tempo, o senhor absoluto na narrativa das personagens femininas,
ele dorme velho e acorda criana.
22
Rubrica retirada do texto. Arquivo pessoal da diretora Ceclia Raiffer que ser publicado no primeiro
semestre de 2014.
41
Cada personagem possua um lugar especfico dentro da casa. Doralina
vivia no jardim, Sofia na janela a esperar e Alice na varanda. Esses lugares
foram materializados a partir da iluminao cnica de maneira que para cada
um, foi criada uma atmosfera especfica de acordo com as emoes geradas
pelas personagens nas suas narrativas atreladas ao tempo. No jardim a cor
amarela simbolizava um tempo vivo e pulsante, na janela um mbar esmaecido
provocava a sensao de um lugar antigo e na varanda um azul-claro quase
branco foi utilizado para simbolizar a luz da lua.
Figura 6 - foto Zlia Ucha: Doralina no seu jardim escrevendo no seu dirio
42
Figura 7 - foto Zlia Ucha: Sofia sentada na cadeira de frente para a janela a esperar Leonam seu
marido que se foi e que disse que voltaria
Figura 8 - foto Zlia Ucha: Alice na varanda, atravs de uma lira ala seus voos imaginrios em
direo lua.
43
Figura 9 - foto Zlia Ucha: o ator Luiz Renato com o personagem Manoel que tinha todo o
controle do tempo e da ao da luz atravs de gestos e movimentaes, controlava o tempo das trs
mulheres.
Figura 10 Foto Zlia Ucha: cena inicial do espetculo quando a personagem Doralina conversa com o pblico sobre os desconhecidos que permeiam nossas vidas.
44
Figura 11 Foto Zlia Ucha: Cena em que Alice domina Manoel que no espetculo a metfora do tempo. Ao fundo Doralina observando as aes da neta.
O que deve ser ressaltado e que tem uma grande importncia no
processo colaborativo de Doralinas e Marias, a tomada de conscincia da
Cia. de Teatro Engenharia Cnica em relao pesquisa e o comeo de um
amadurecimento conceitual e metodolgico na maneira como cria os seus
trabalhos, aprofundando e investigando o teatro colaborativo e elaborando os
seus prprios princpios para a criao dos seus espetculos.
45
1.3.3 O Menino Fotgrafo.
A primeira coisa que se deve falar sobre a juno de dois grupos para
a criao desse espetculo. A parceria com o Grupo Ninho de Teatro surgiu
porque o mesmo gostaria de ter uma experincia com um processo
colaborativo, e o fato da Engenharia Cnica estar situada desde 2011, na
regio do cariri cearense, exatamente no trecho CRAJUBAR, que se refere a
trs cidades muito prximas, Crato, Juazeiro do Norte e Barbalha, foi que se
tornou possvel essa colaborao de dois coletivos para a pesquisa e
montagem do espetculo O Menino Fotgrafo.
O Grupo Ninho de Teatro tem sede prpria na cidade do Crato,
especificamente na Casa Ninho e a Engenharia Cnica na cidade de Juazeiro
do Norte, a distncia entre um lugar e outro de aproximadamente 11 km.
Com a deciso de montarmos um trabalho, passamos ento a buscar
estruturar a primeira etapa do processo, exatamente a que corresponde
escolha daquilo que gostaramos de abordar cenicamente, um contexto, uma
ideia, precisamente uma imagem propulsora.
A regio do Cariri, sobretudo a cidade de Juazeiro do Norte permeada
por um imaginrio religioso muito forte, isso em decorrncia da presena da
figura de Padre Ccero Romo Batista, um grande visionrio que atravs da f
e da poltica, segundo nos conta a histria, protagonista de casos de milagres
como o da hstia que virou sangue na boca da beata Maria do Arajo, fato que
reverberou intensamente por todo o nordeste, fazendo com que muitos
romeiros migrassem para essa regio a procura de curas, milagres, realizao
de sonhos e f. Todo esse movimento acabou aumentando sobremaneira a
populao local que em quase total maioria, ainda , muito religiosa.
Devido a isso se foi construindo em torno dessa regio um universo
mtico-religioso, que para o espetculo O Menino Fotgrafo se tornou base de
pesquisa e observao. Os dois grupos sentiam a necessidade de trabalhar
com essas temticas religiosas que permeiam essa regio, investigando
principalmente o percurso que vai do nascer ao morrer. Podemos ento dizer
46
que esse percurso tornou-se inicialmente uma frase que impulsionou a
estruturao da imagem propulsora.
No decorrer da pesquisa nos deparamos com dois fatos que
simbolizavam exatamente a vida e a morte, quais sejam: o movimento
messinico Caldeiro da Santa Cruz do Deserto, dos anos 30 do sculo XX, e
os Campos de Concentrao da mesma poca. O primeiro surge na regio do
cariri cearense. A mando de Padre Ccero, cria-se na chapada do Araripe um
pequeno lugarejo comandado por Frei Loureno que abrigaria exatamente
parte dessa populao de romeiros que chegavam regio do cariri, sem
trabalho, sem moradia, sem dinheiro. Nesse local o grupo de pessoas que
chegou a contabilizar um nmero de mil, viveram em prol da comunidade,
atravs do trabalho, plantaram e colheram a prpria comida, tudo era
absolutamente dividido entre todos e a religiosidade era base de sustentao.
At que o governo do estado do Cear na poca, acreditando ser um
movimento comunista que comeara a se formar e que isso prejudicaria a
poltica do estado, manda, a partir de um ataque areo, bombardear o local,
matando quase todos que ali se encontravam. Os Campos de Concentrao,
por sua vez, so tambm conhecidos como Currais do Governo. Sua existncia
est ligada s duas grandes secas que assolaram o Cear (1915 e 1932).
Estes campos so considerados por estudiosos como um ato poltico,
patrocinado pelo governo, de extrema desumanidade contra os flagelados da
seca. O objetivo principal desses Currais era sitiar, em um mesmo local, esses
cearenses, com a inteno de evitar uma manifestao de grande porte na
capital do estado, Fortaleza, contra a precria situao em que estavam
inseridos em decorrncia da seca. Estrategicamente, esses campos foram
construdos em cidades que possuam linhas frreas, pois facilitavam tanto o
deslocamento das foras armadas quanto o envio da miservel alimentao
disponibilizada para os flagelados concentrados. Segundo Cordeiro:
a comida era composta de alguma variedade de alimentos farinha de mandioca, macarro, arroz, feijo e sardinha, mas apenas aqueles de menor valor nutricional e financeiro chegavam aos destinatrios. No campo, a nica comida disponibilizada era farinha de mandioca antiga e de baixa qualidade. A maioria dos retirantes, que l era confinada
47
desnutrida, adoecia com indigesto, empanzinada pela farinha. Sem higiene, pesteados e abandonados, muitos morriam e eram enterrados em valas comuns. Paralelamente, o Caldeiro oferecia guarita para uma multido de flagelados famintos: alimentao suficiente, gua, moradia, remdios, trabalho para os que quisessem ficar e amparo espiritual. Isto fez com que, aps a seca, sua populao tivesse aumentado bastante. Era uma comunidade auto-sustentvel. (2008, p. 05)
O que nos chamou a ateno foi exatamente a potncia de vida que
existia no Caldeiro da Santa Cruz do Deserto e a morte latente que abarcava
os Campos de Concentrao. Criamos ento o percurso que vai da
possibilidade de vida possibilidade de morte, com base nessas duas
referncias, buscamos histrias de vida, relatos, estudos histricos que nos
apresentassem a realidade de ambos os casos.
A imagem propulsora ganha ento a seguinte estrutura:
O percurso da vida para a morte: Caldeiro da Santa Cruz do
Deserto e os Campos de Concentrao.
E apresenta a seguinte estrutura dramatrgica elaborada pela diretora
Ceclia Raiffer para o programa do espetculo:
O Menino Fotgrafo uma dramaturgia simbolista-fantstica, entrecortada
por fragmentos de cenas simultneas, tudo contado/vivido pela ris de um
velho que um dia foi criana, viu os Dentes-de-Leo no cu azul sem nuvens,
mas viu tambm nuvens de fumaa formadas pelos pssaros de fogo em um
ataque areo que ceifou parte da sua famlia, histria e memria. A narrativa
cnica composta por dois ncleos em ao simultnea, o plano do sonho
composto por aparies, projees do passado, lembranas e personagens
imaginrias Ins, a mulher com o olho de flor e as facas na saia, nas
lembranas um amor perdido para a inexorvel morte; a menina Alva com os
seus incessantes Cata Ventos e os seus sopros... O do corao e dos ventos,
uma metfora da morte; a velha Vbia tece os fios da vida, canta as melodias
da existncia, metfora ao correr da vida. No outro ncleo complementar
encontram-se Sampro e Amanda, vendedores ambulantes de quinquilharias e
mquinas fantsticas, fazem ventos, pores de amor, aprisionam almas com
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as suas invencionices. Na vila, debaixo de um enorme P-de-Juazeiro, Manoel
e Ulisses, av e neto, dividem a existncia entre Dentes-de-Leo e confisses
de um tempo que j passou. 23
Figura 12 foto Vernica Leite: Cenrio do espetculo O Menino Fotgrafo que faz citao ao universo mtico religioso da regio do cariri cearense, inspirao para a criao.
23
Rubrica retirada do texto. Arquivo pessoal da diretora Ceclia Raiffer a ser publicado em livro no
primeiro semestre de 2014.
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Figura 13 foto Vernica Leite: Cena que faz citao as almas do Caldeiro da Santa Cruz do Deserto e dos Campos de Concentrao.
Figura 14 foto Vernica Leite: Cena das facas, momento em que a figura do sertanejo citada com a presena de sua nica arma para lutar contra os ataques, retrata sua vida atravs da f e da
morte.
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Figura 15 foto de Vernica Leite: Cena em que Ulisses (Luiz Renato) olha para o cu e observa o ataque areo.
Figura 16 Foto de Nvea Ucha: Cena que simbolizava a felicidade dos habitantes do Stio Baixa Dantas, conhecido como Caldeiro da Santa Cruz do Deserto. A atriz Zizi Telcio portadora de
necessidades especiais participava do espetculo fazendo a personagem Vbia, nesta fotografia,
sendo levantada pelo ator Elizieldon Dantas que faz o personagem Sampro.
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