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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
IMPEDIDAS: O SOM E A EXPERIÊNCIA DA INTERDIÇÃO EM OFFSIDE DE JAFAR
PANAHI
Pedro Silva Marra1
Resumo: Este trabalho explora a forma como os sons são empregadas no filme Offside de Jafar
Panahi a fim de possibilitar aos expectadores a experiência de interdição vivida por mulheres
iranianas. Em seu trabalho com os materiais sonoros, o realizador emprega uma escrita feminina
que entrelaça documentário e ficção. Como resultado, produz um cinema menor a partir do qual
apresenta o indizível das restrições ao feminino em seu país natal.
Palavras-chave: Gênero Feminino. Interdição. Irã. Futebol. Sonoridades.
Uma das principais temáticas do realizador iraniano Jafar Panahi é as dificuldades cotidianas
enfrentadas pelo gênero feminino em seu país, onde uma legislação baseada em preceitos religiosos
impõe uma série de restrições às mulheres. Em Offside o diretor trata a proibição às mulheres desta
nacionalidade de acompanhar partidas de futebol in loco por meio da história de um grupo feminino
detido ao tentar entrar no estádio em que ocorria jogo decisivo entre Irã e Bahrain, pelas eliminatórias
da Copa do Mundo 2006. Durante o filme, o espectador, assim como as protagonistas, quase não vê
imagens da disputa: o foco está nas mulheres presas fora das arquibancadas e a única pista acerca do
que acontece em campo são os sons da torcida.
Este trabalho explora traços de escrita feminina (Branco, 1985; Branco, 1991) – aquela na qual o
material expressivo toma a frente com relação ao plano dos conteúdos – em Offside (2007) do diretor
iraniano Jafar Panahi. Analiso as formas como o filme se constitui a partir do emprego do som como
matéria afetiva e estratégia narrativa, apropriando-se de uma lógica expressiva sonora – mais
propriamente sensível do que cognitiva sobretudo em situações de sensorialidade extrema (Daughtry,
2014) – por meio da manipulação de elementos acústicos tais como: a intensidade da vibração coletiva
oriunda das arquibancadas que torcem para uma partida que não se vê, o timbre, colocação e
tonalidade da voz das personagens. Assim, o diretor apresenta o indizível: o amor das mulheres pelo
esporte e as interdições ao gênero feminino no país, em um cinema menor que entrelaça ficção e
documentário, no qual atoras não profissionais encenam situações que evidenciam seus artifícios para
resistir e burlar tais interdições. Neste jogo entre sonoridades e (falta das) imagens, o expectador
experiencia o político a partir das afecções e trajetórias subjetivas destas mulheres.
Para realizar tal discussão, inicialmente relaciono as ideias de sonoridade, cinema menor e
1 Professor do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, Brasil. E-mail
para contato: [email protected]
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escrita feminina, a partir do indício de que o trabalho cinematográfico com os sons historicamente
apresenta e mantém um aspecto hierarquicamente mais baixo, ainda que omnipresente. O foco no som
como estratégia narrativa e afetiva dos filmes, portanto, pode apresentar-se como um dentre vários
caminhos a partir dos quais se produz um cinema menor, de escrita feminina. Em seguida, apresento
especificidades de uma lógica expressiva eminentemente sonora, sobretudo em situações de
sensorialidade extrema, na qual os aspectos sensíveis do mundo sônico se sobrepõem a sua potência
produtora de sentidos. Este breve estudo servirá de base para a análise do filme Offside, a partir da qual
reflito sobre as possibilidade do cinema oferecer uma experiência das condições de interdição a que
estão submetidas as mulheres no Irã e sobre a questão de tal experiência ser proporcionada por um
realizador de gênero masculino.
Sonoridades, cinema menor, escrita feminina:
Desde a publicação do artigo Quatro falácias e meia de autoria de Rick Altman (1992),
percebe-se um incremento no interesse sobre a temática da sonoridade por parte do campo de
estudos de cinema2. Contudo, o som do filme mantém-se como um aspecto cinematográfico menor,
seja nos contextos da produção audiovisual, crítica, ou acadêmica. Nesta primeira instância, é
comum encontrar profissionais que reivindicam maior reconhecimento de seu fazer: ao questionar
porque são chamados de técnicos de som enquanto os responsáveis pela confecção das imagens são
denominados diretor de fotografia, de arte, de produção, põem em causa hierarquias de saber entre
as diferentes práticas envolvidas na realização de um filme. Tais assimetrias permitem, por
exemplo, que um fotógrafo recuse a realização de uma tomada pela falta de luz natural, mas impede
que o técnico de som tome a mesma atitude pelo excesso de vento em uma locação. Nos outros dois
campos, encontramos análises fílmicas que focam o som do filme e que se obrigam a relacioná-los
com as imagens que se exibem simultaneamente. No entanto, nem sempre os trabalhos que focam
os aspectos imagéticos se impõem uma obrigação simétrica.
Estes indícios apontam para o som como um elemento expressivo menor na língua maior
cinematográfica, (Deleuze e Guattari, 2003, 38) não no sentido de diminuir sua potência como
elemento material produtor de sensorialidades e sentidos neste meio, mas naquele político que
remete a assimetrias de poder no interior de um campo de fazer ou de conhecimento. Deleuze e
Guattari explicam que uma literatura menor se faz sobre três categorias: a desterritorialização da
2 A criação de espaços de debate acadêmico dedicados à discussão do som em eventos como a Socine apontam tal
tendência.
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linguagem, a ligação do individual com o imediato político e o agenciamento coletivo de
enunciação. A primeira destas características remete aos percalços e limitações enfrentadas por uma
minoria ao se expressar, o que remete à impossibilidade da escrita. Altman (1992) afirma que uma
das falácias em torno da relação entre som e imagem na linguagem cinematográfica gira em torno
de uma pretensa ontologia do meio que favorece esta em relação àquele. Assim, cinema sem som
continuaria cinema, ao passo que cinema sem imagem torna-se radiofonia ou fonografia. A
persistência desta assertiva no imaginário de realizadores e público não só produz uma atenção
reduzida aos aspectos sônicos do filme, mas também contribui para que os cineastas apresentem
dificuldades em conferir certo protagonismo à sonoridade de sua obra. Filmar com sons, dar a eles o
mesmo status conferido às imagens, portanto, remete à impossibilidade de filmar em si.
A segunda categoria definidora de uma literatura menor implica que nela “todas as questões
individuais estejam imediatamente ligadas à política. A questão individual, ampliada ao
microscópio, torna-se muito mais necessária, indispensável, porque uma outra história se agita no
seu interior” (Deleuze e Guattari, 2003, 39). Desta forma, conflitos internos remetem diretamente a
assimetrias da ordem de opressões estruturais e expressar tais dimensões íntimas implica em
necessariamente discutir esferas coletivas que cerceiam as potencialidades daquele que enuncia tais
restrições. Finalmente, a última característica – que me parece uma contrapartida da anterior – liga-
se a um sujeito coletivo que se articula a partir da fala de uma personagem singular, de tal forma
que aquilo que diz não remete a uma questão individual, mas a algo que se apresenta como
condição comum a um grupo minoritário a qual o enunciador se associa. Deleuze e Guattari
exemplificam esta característica a partir de personagens de contos de Kafka que a todo momento
renunciam à individualidade em favor de fundir-se a uma comunidade fragilizada.
No cinema, algumas sonoridades dominantes são os textos enunciados pelas personagens, os
ruídos que ambientam um espaço ou apontam a presença de objetos dentro ou fora de cena, ou a
trilha sonora – diegética ou não diegética – que silencia todos os outros sons e carrega
emocionalmente uma sequência. Tal recurso, no entanto parece subordinado à imagem, na medida
em que apontam para elementos que se vê ou que se quer revelar em quadro. Assim, as falas colam-
se à corporalidade dos atores que mexem a boca, ao mesmo tempo em que costumam vincular-se ao
desenvolvimento da narrativa em si ou a explicar o que acontece na história. Os sons dos lugares e
dos objetos objetivam conferir veracidade à imagem ou indicar a importância de algo que
desencadeia a ação visível dos personagens. A música em primeiro plano pretende intensificar um
estado emocional já perceptível no corpo em cena que ri, chora ou dança. Este é o lugar que a
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linguagem cinematográfica maior costuma destinar às sonoridades. Em um outro plano de escuta,
no entanto, tomam a frente timbres e colocação de vozes e das sonoridades de lugares – incluindo
música. Neste regime audível, as sonoridades se singularizam umas frente às outras, tomam uma
outra dimensão, na qual não apenas completam o registro audiovisual, mas – em conjunto e em pé
de igualdade com aquilo que é visível - o constitui. Nestes casos, o foco desloca-se do sentido do
som para seus aspectos mais sensíveis, que permitem distinguir neles uma individualidade.
É nesta dimensão que podemos pensar a forma como as sonoridades podem ser empregadas
em uma língua cinematográfica menor. Ao dar ênfase a diferenças tímbricas e de tonalidades de
vozes e objetos, a reverberações distintas de lugares espacialmente diversos o realizador não só
individualiza os corpos que vibram, mas os coloca em relação. Tal procedimento insere neles
marcas estruturais que os localizam em relações de poder. Tomados em primeiro plano, o caráter
gutural do grito do agressor ou o registro agudo e até esganiçado do choro da vítima; o som magro
de um rádio de pilha ou cheio e imersivo de um fone de ouvido de qualidade; o farfalhar do vento
ou o marulho oceânico que distinguem um local tornam-se personagens do filme que escancaram as
assimetrias de poder em jogo nas relações em cena. Este trabalho sônico inscrito na película
encontra possibilidades de ressoar no corpo dos espectadores, evidenciando a natureza vibratória do
mundo sonoro, repleto de sinais que comunicam o movimento de um corpo (Wisnik, 1989) a
outros. Ao produzir tais vibrações em simpatia, harmonizações, sincronias ou disrupções, o som
atua diretamente sobre os corpos de quem experiencia este cinema produzindo um agenciamento
coletivo ao qual filme e público se agregam em bloco.
Em uma análise sobre o papel de gritos em filmes de horror e thriller psicológicos, Mary
Thompson discute como estes sons – sejam aqueles emitidos pelas personagens, sejam aqueles não
diegéticos ou sonoridades outras que os simulam – criam tanto estados de grande intensidade
afetiva quanto de catarse. Enquanto o primeiro caso cria uma continuidade entre o filme e os
expectadores, “o terror da vítima e o terror da narrativa tornam-se indiscerníveis do terror sentido
pelo espectador” (Thompson, 2013, 157), os segundos
não são uma expressão de um estado afetivo de um sujeito retratado; eles não pertencem a
alguém em particular. Estes gritos ou simulações-de-gritos também não são expressivos de
qualquer afecção particular, qualificada – elas nos permitem inferir o que poderia ter as
causado. Nem é tampouco que estas simulações de gritos soem como um grito humano (que
eles imitem com sucesso a forma como gritos humanos soam), mas que eles nos afetam
como gritos (THOMPSON, 2013, p. 158).
Deleuze e Guattari destacam ainda como – a partir da obra de Kafka – certa ênfase na
música como material sonoro, ao invés de conteúdo semiótico, produz desterritorialização “que
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escapa à significação, à composição, ao canto à palavra, sonoridade em ruptura a fim de escapar a
uma sujeição ainda demasiado significante. No som, só conta a intensidade em geral monótona,
sempre insignificante” (Deleuze, 2003, 23). Tal foco nos aspectos sensíveis da audição possui a
capacidade não só de carregar certos conteúdos, mas de transformar os sentidos que transporta por
combinar-se com estes elementos. Nesta dinâmica, reforçam conteúdos menos estruturados ou
formalizados ao mesmo tempo que desestabilizam aqueles mais rígidos. Na linguagem audiovisual,
esta propriedade de um foco à sensorialidade sonora abre a possibilidade de pensar os sons como
mediação entre as idéias de um cinema menor e de escrita feminina. Lúcia Castelo Branco ressalta
que um “percurso pela materialidade da palavra, que procura fazer do signo a própria coisa e não
uma representação da coisa, é típico da escrita feminina” (Branco, 1991, 21). Para a autora, tal tipo
de escritura não se restringe àquela que é praticada por mulheres, muito embora esteja
constantemente relacionada ao gênero feminino. O que importa é a ênfase no “como se diz” ao
invés do “que se diz”. Tal foco traz a frente do sentido, a voz ou o som; a frente do signo, a coisa.
Neste processo, corporifica-se os elementos relacionados na linguagem e, por conseguinte, as
estruturas sociais que os enredam. Aquilo que anteriormente parecia oculto, ou que deveria
permanecer escondido evidencia-se e vem a luz. “A tentativa de dizer o indizível parece ser, de fato,
um traço recorrente da escrita feminina” (Branco, 1985, 31).
Cabe ressaltar, no entanto, que a relação entre sonoridades, escrita feminina e cinema menor
não é necessária. De um lado, o trabalho com matérias expressivas sonoras é apenas um caminho
para a aproximação entre as perspectivas dos autores aqui convocados. Outros elementos
expressivos podem ser acionados a fim de realizar uma operação teórico-metodológica semelhante.
Por outro lado, para que o primeiro termo efetivamente funcione como um mediador entre os dois
outros, torna-se necessário que seja acessado de uma maneira particular, que ressalte as
especificidades de sua lógica expressiva. Tal dinâmica passa pela compreensão de que os sons, em
certas condições muito comuns, atuam como força, suspendendo processos cognitivos em favor de
dinâmicas sensoriais e corpóreas. Nestas condições, as sonoridades apresentam sua dimensão de
signo e de produção de sentido atenuadas e suas propriedades hápticas acentuadas. Como resultado,
passam a atuar como um meio imersivo a partir do qual os corpos se tocam a distância.
Aspectos drásticos, afetos e agência dos sons
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No último trecho de seu artigo citado anteriormente, Rick Altman debate a natureza sígnica
do cinema, apontando controvérsias acerca de seu duplo caráter de ícone e índice. O autor explica
que por um lado o registro audiovisual – por realizar-se no nível técnico a partir da exposição e
consequente escritura de uma película sensível a variações luminosas para a luz e de pressão
atmosférica para o som – se dá a partir de uma conexão indexical que confere à representação
fílmica uma contiguidade direta com aquilo que se representa. Esta dinâmica produz instantâneos da
realidade. No entanto, as relações entre as qualidades das imagens e sons capturados e os próprios
objetos presentes na película são icônicas, pois encerram uma semelhança a partir das formas de
ambos. Esta última característica permite que o produto audiovisual seja posteriormente
“melhorado” ou “embelezado”, a partir do realce de cores, formas das imagens ou de intensidade,
timbres e reverberações dos sons capturados.
Altman explica que apesar de tais possibilidades estarem presentes para o cinema desde seus
primórdios – seja a partir da colorização de películas em preto e branco, seja pela forma como o
cinema “mudo” abordava os sons – uma série de críticos influentes condenaram as relações icônicas
do filme em favor de sua natureza indexical. O principal argumento em jogo nesta controvérsia
indicava que o realce das imagens constituía um artifício, no sentido de farsa: alterar posteriormente
o material registrado constituiria uma trapaça que falsearia a relação entre o cinema e a realidade
representada. No entanto, nos meios fonográficos e radiofônicos tais operações de realce sempre
foram acessadas e até mesmo desejadas, como forma de conferir clareza sonora e, por conseguinte,
produzir uma maior fidelidade às vibrações registradas (Sterne, 2003; Devine, 2013). Tais
melhoramentos, contudo, não significam necessariamente uma maior proximidade do registro a
uma verdade objetiva, mas a um efeito de realidade baseado em sonoridades hiperrealistas, e por
isso, imersivas e capazes de embalar os corpos dos ouvintes. No mundo sonoro, percebemos estas
dinâmicas no corpo que dança – como se estivesse em transe – na boate ou no grande concerto
musical de arena.
No cinema, esta situação de sensorialidade sonora extrema realça aquele caráter de
percepção coletiva onírica ou psicótica que Benjamin (2008, 190) atribui à câmera. Não se trata
portanto de estar diante de uma representação de uma realidade ausente, mas de colocar-se imerso
na apresentação de um outro mundo que se faz presente na sala de exibição. O que Rick Altman
perde com sua crítica à meia falácia de que o filme é um registro do real é que tal desconexão com a
realidade promovida pelos meios digitais de pós-produção não necessariamente dessacraliza o
cinema. Pelo contrário, apresenta a possibilidade de ressacralizá-lo em outra chave, na medida em
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que cria novos mundos que são experienciados como reais durante a exibição, independente do grau
de proximidade que mantêm com o as realidades vividas.
Tal poder das sonoridades evidencia-se quando passamos a privilegiar suas características
de força vibratória, como potência de se agir diretamente sobre os corpos de outros agentes; em
detrimento de seu emprego como signo. Martin Daughtry aponta este caminho em estudo sobre os
sons da guerra no qual ressalta que neste contexto os “estímulos sensórios atacam corpos embebidos
em adrenalina, criando estados afetivos extremos de intensidade e vulnerabilidade, estímulo e
degradação, agressão e medo” (Daughtry, 2014, 25). O autor argumenta que as vibrações sônicas
apresentam um duplo caráter de força e de signo a qual correspondem recepções gnósticas ou
cognitivas e drásticas ou hápticas. Assim, além de produzir sentidos, o mundo sonoro produz
impacto sobre os corpos, já que o som tem tamanho ao ocupar um espaço equivalente à área em que
é escutado; possui massa na medida em que é percebido não só pelos ouvidos mas também na pele
numa interface entre o audível e o tátil, sobretudo no que diz respeito às frequências graves; bem
como apresenta tanto direcionalidade – objetivando um alvo – quanto omnidrecionalidade –
voltando-se também a seu emissor. Neste sentido, algo que soa sempre pressupõe alguém que
escuta e vibra em simpatia, de acordo não só com aquilo que se delineia pelas sonoridades em
questão, mas também com a disponibilidade corporal dos sujeitos imersos em uma cultura.
Simetricamente, a audição envolve ela também a produção de vibrações sonoras em uníssono, em
consonância ou em reação àquilo que se ouve.
Em contextos sensíveis e audíveis extremos, como a guerra – com seus sons repentinos e
muito intensos em meio ao silêncio do campo de batalha –, eventos esportivos – onde multidões
produzem uma sonoridade intensa e incessante –, ou o cinema – no qual o expectador se encontra
em estado de repouso em sala escura, rodeado de caixas de som que ressoam em dinâmicas que vão
do pianíssimo do farfalhar de paisagens naturais ao fortíssimo de explosões – tais propriedades
hápticas tomam a frente em relação ao aspecto cognitivo dos sons pois são “direcionados aos corpos
o que lhes revela como frágeis e vulneráveis à violência com as quais ressoam” (Daughtry, 2014, p.
32). Nestas situações, as sonoridades colonizam os corpos tornando-se capazes de suspender a
racionalidade dos agentes e modular suas ações de acordo com aquilo que suas características
acústicas delineiam. Tal estado de exasperação auditiva ativa também a memória, possivelmente
retornando posteriormente quando sonoridades semelhantes são novamente acessadas. Pensar as
sonoridades nestes termos aponta para um quadro teórico que lida com o som como afeto no qual os
corpos imprimem e deixam-se imprimir efeitos uns pelos outros (Thompson e Biddle, 2013, 9) a
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partir de afinidades que se desenrolam entre os planos físico-químico, biológico e cultural. Neste
quadro de referencia teórico, torna-se necessário interrogar-se não mais sobre o que um som
significa, mas o que um som faz. As sonoridades possuem agência na medida em que “provêm
parâmetros (estilísticos, físicos, convencionais) que são utilizados para enquadrar dimensões da
experiência (interpretação, percepção, avaliação, comportamento, sentimento, energia)” (DeNora,
2000, 27).
Vozes femininas, sons extremos das arquibancadas
O primeiro aspecto sonoro a se notar na construção da interdição feminina em Offside é a
forma como as mulheres que tentam adentrar o estádio onde acontece o jogo entre Irã e Bahrein,
válido pelas eliminatórias da Copa do Mundo de 2006 na Alemanha, são identificadas pela
qualidade tímbrica de suas vozes. O filme inicia-se com um senhor fora do ônibus que procura a
filha que havia fugido da escola para tentar entrar na partida. Ele entra no veículo que logo cruza
com outro, onde um rapaz percebe um torcedor diferente dos demais. Vestido com roupas
masculinas largas e um boné preto que cobrem todo o corpo e escondem seus contornos, este
passageiro não canta, ao contrário dos outros presentes. O jovem então, percebe que trata-se de uma
garota disfarçada que tentará burlar o bloqueio policial – seu silêncio a denuncia.
A câmera acompanha a menina em sua jornada quando chegam finalmente ao estádio. Ela
segue então em busca de ingressos para o jogo e logo percebe-se porque ela permanecia muda
durante o trajeto: ao encontrar um cambista e pedir a ele as entradas, o vendedor percebe que trata-
se de uma mulher pelo timbre de voz. Contrariado, o homem vende à garota os bilhetes por um
preço muito acima do cobrado de outros torcedores homens. Ele teme ser descoberto e detido pela
polícia. A torcedora parte então para sua tentativa de adentrar as arquibancadas. Busca um caminho
pelo qual cruzará com menos soldados. No percurso, observa os artifícios utilizados por outras
mulheres para enganar a vigilância. Algumas conseguem. A personagem que acompanhamos desde
o princípio do filme, contudo, não. Ao ser abordada por oficiais que a revistariam, a garota paralisa
e pede, com sua voz feminina que os homens não a toquem. Ela tenta fugir em vão, é detida e
encaminhada para uma área de acesso às arquibancadas onde outras garotas também estão presas.
Todas as mulheres presas até o momento possuem timbre agudo. Além disso conversam em
um tom de voz arrebatado, choroso ou de lamentação. Inclusive, todas as vezes que a garota que
toma a cena no início da película fala, este traço está presente em sua performance vocal. As vozes
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femininas contrastam com as dos policiais, que não são necessariamente graves: apresentam um
registro médio agudo e uma colocação anasalada e gritada que lhes confere uma certa agressividade
aos ouvidos – os policiais parecem ao mesmo tempo brutos, débeis e imbecilizados. Surge então
uma nova detenta que caminha com passos firmes e irônicos. Sua voz está no mesmo registro de
frequências que os dos soldados, mas ela carrega uma colocação irônica e sarcástica. Tanto que o
guarda que vigia as moças presas inicialmente não reconhece nela uma mulher.
Em ensaio sobre a questão do gênero do som, Anne Carson (1992), a partir de exemplos
variados extraídos da literatura universal, de casos clínicos psicanalíticos e da mitologia grega e
romana, desenvolve a ideia de que é possível extrair julgamentos acerca das pessoas a partir do som
que produzem. Assim, a qualidade e o uso da voz permitem identificar traços de caráter e sanidade
dos sujeitos, mas sobretudo de seu gênero. A autora afirma que enquanto as vozes masculinas
possuem a virtude da sophorosyne, caracterizada por prudência, moderação, temperança e auto-
controle; as vozes femininas só apresentam tais características quando manifestam obediência ao
masculino. Caso contrário, denotam um caráter monstruoso e exaltado, manifesto como choro e
timbres estridentes. Esta dicotomia vocal expressa nos aspectos sensíveis das sonoridades que
carregam as palavras materializam em vibrações as restrições e interdições que sofrem as mulheres
em uma sociedade eminentemente machista e heteronormativa como a iraniana. Aqui, “parece que a
voz mantêm-se no eixo de nossos laços sociais, e que as vozes são a textura mesma do social, assim
como o núcleo da subjetividade” (Dolar, 2006, 14).
Noto, no entanto, que a presença de uma personagem feminina que não fala como mulher
não só borra a normatividade de gênero exposta no filme, mas remete ao próprio estado de espírito
destas mulheres que enfrentam um momento que as deixa a flor da pele: burlar leis injustas do país,
ser pega em flagrante em seu delito, encontrar-se tão perto de seu objetivo, sem contudo concretizá-
lo. As garotas detidas localizam-se em um cercado em um anel de acesso às arquibancadas.
Privadas de assistir ao jogo, elas ainda assim escutam a vibração dos torcedores – volumosa, pesada
e enorme – que vem da área adjacente. Este fato as deixa curiosas e ansiosas em saber o que se
passa dentro de campo. Assim, a sensorialidade extrema da multidão que grita, canta e torce com
sonoridades muito intensas aguça ainda mais o timbre estridente e o tom melancólico excessivo de
suas vozes. Este fato evidencia ao expectador que as meninas falam com estas características
sônicas não porque seu gênero assim determina, mas porque a situação pede.
O caráter excessivo das vozes das garotas é dirigido aos policiais e os irrita; as vozes destes
tornam-se também cada vez mais exacerbadas nas características sônicas que lhes confere
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agressividade. A fim de calá-las, os oficiais começam a ceder a algumas das vontades das
prisioneiras. Primeiro começam a narrar os eventos em campo, depois de as mulheres pedirem
insistentemente para saber como a partida se desenrolava. Depois, uma das meninas demanda ir ao
banheiro, em tom de voz choroso e desesperado. Um dos soldados a conduz pelas arquibancadas
trajando uma máscara feita a partir do pôster de um jogador da seleção iraniana. O oficial tenta
evitar que torcedores homens percebam a presença de uma mulher no toalete e por isso se distrai. A
torcedora, assim, aproveita a oportunidade e escapa com o auxílio dos outros homens para se perder
na multidão presente no estádio. O soldado volta sozinho para o local onde se encontrava
anteriormente e é repreendido por outro. No entanto, leal, a garota retorna depois de alguns minutos
para evitar que os policiais fossem punidos.
Em seguida um veículo aparece para remover as prisioneiras para a sede da Patrulha do
Vício, como forma de punição. Um garoto também é transportado, sob a acusação de trazer consigo
bombinhas e fogos de artifício. No caminho, as prisioneiras, visando acompanhar o final da partida,
dirigem uma verdadeira algazarra aos soldados para fazê-los ligar o rádio. Um dos oficiais cede
novamente aos desejos das garotas e se esforça em consertar o aparelho defeituoso segurando sua
antena em uma posição determinada. Atentas ao desenrolar do jogo, as mulheres abaixam o tom e
se acalmam. Quando a disputa termina e o Irã se vê classificado para a Copa do Mundo seguinte, o
veículo se vê preso pela multidão ruidosa que sai às ruas para festejar. Contagiados pelo ruído
celebratório intenso os soldados e as prisioneiras deixam a viatura e juntam-se à comemoração.
O que se percebe nestas passagens acima descritas é como o ânimo das prisioneiras é
modulado pelas intensidades e vibrações coletivas extremas produzidas pela prática esportiva.
Enquanto prevalecem características sensórias extremas em tais sonoridades – o imenso, volumoso
e pesado som da multidão no estádio e na celebração final –, as prisioneiras são arrebatadas por
afetos incontroláveis agenciados pelo esporte e soam também de maneira exacerbada. Assim que
aspectos cognitivos dominam as sonoridades – a voz do soldado e o som do rádio narrando o jogo –
as mulheres se acalmam. No entanto, esta dinâmica sônica não se configura como uma estratégia
masculina para silenciar as mulheres. Pelo contrário, é a voz exaltada feminina dirigida aos
soldados que funciona como uma arma e artifício para a conquista daquilo que as mulheres
pretendiam. Aqui o que opera não é a voz sedutora da sereia a ludibriar homens virtuosos, mas a
voz desmedida e coletiva de “monstruosas” garotas em grande estado de excitação a dobrar
soldados embrutecidos e imbecilizados. As sonoridades, portanto, agenciam tais embates e vitórias.
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Considerações Finais: Um duplo impedimento
Por meio do trabalho sonoro de Offside, o cinema proporciona a possibilidade de acessarmos
a experiência de interdição vivida pelas mulheres iranianas. Junto a elas, somos impedidos de
acompanhar a partida de futebol que está disponível ao expectador somente a partir dos sons da
arquibancada que nos chegam volumosos, enormes e pesados. Importante notar que uma das
justificativas dos policiais para a proibição de mulheres no estádio é a quantidade de insultos e
palavrões ali proferidos. Contudo, o que as arrasta para a partida, as aflige com relação ao resultado
e as iguala aos torcedores homens é a intensidade sônica da multidão e não o conteúdo daquilo que
é proferido. Suas súplicas chorosas por poder assistir a partida recolocam o público nesta
experiência de impedimento, não importa o partido que tomemos. Tomados pela ansiedade das
torcedoras detidas, somos também interditados de acompanhar o que se desenrola em campo.
Irritados com a voz aguda, estridente e sentimental das garotas, os expectadores compactuam com
os policiais e também interditam o futebol às torcedoras daquele país. Assim, o dispositivo fílmico
insere o público no centro mesmo da lei machista do país do Oriente Médio e exige dele um
posicionamento que se dá no campo da afetividade.
Finalmente, uma outra questão se coloca neste momento: pode um filme dirigido por um
homem proporcionar uma experiência eminentemente feminina? Um resposta positiva fácil poderia
ser obtida se levamos em conta que Jafar Panahi em Offside utiliza atoras não profissionais que
possuem relações íntimas com o futebol. O realizador abre-se também para o acaso ao realizar as
filmagens durante o evento esportivo, como em um documentário com personagens fictícias3. E no
processo, cria um mundo entre o sonho e a realidade, no qual mulheres dobram homens
imbecilizados com o poder se sua voz. No entanto, preferimos focar aqui um outro impedimento às
iranianas: sua interdição de realizar filmes em seu país natal. Mulheres desta nacionalidade apenas
podem produzir audiovisual fora de seu país natal, como é o caso de Persépolis, de Marjane Satrapi
que o realiza na França. Desta forma, aquilo que poderia atentar contra o lugar de fala feminino, na
verdade explicita as especificidades restritivas da mulher iraniana a quem é vedado qualquer forma
de expressão que não seja aquela que implica obedecer ao gênero masculino. Não se trata aqui de
um homem dando voz a mulheres, mas de um dispositivo de exibição da interdição feminina em
toda a sua crueldade e misoginia.
3 Estas informações foram obtidas em entrevista com o diretor, disponível em: https://www.opendemocracy.net/arts-
Film/offside_3620.jsp. Última visualização: 5 de julho de 2017.
12
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
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Offside: sound and the experience of interdiction on a film by Jafar Panahi
Astract: This paper explores the way sounds are employed in the film Offside, by Jafar Panahi in
order to make the Iranian women experience of interdiction available to the audience. In his use of
sonic material, the film maker employs a female writing in which documentary and fiction are
intertwined. As a result, the director produces a minor cinema through which he presents what is
unspeakable: the restrictions to the feminine in his native country.
Keywords: Feminine Gender. Interdiction. Iran. Soccer. Sonorities.