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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais Diego Marques Morlim Pereira IMPERIALISMO VS. SOBERANIA: UMA ANÁLISE REALISTA DA POLÍTICA EXTERNA DE SEGURANÇA DO IMPÉRIO DO BRASIL Belo Horizonte 2013

IMPERIALISMO VS. SOBERANIA: UMA ANÁLISE REALISTA DA ... · do Brasil para a região do Prata, ora definindo-a como imperialista, ora como soberanista. Carece a esta discussão, no

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais

Diego Marques Morlim Pereira

IMPERIALISMO VS. SOBERANIA: UMA ANÁLISE REALISTA DA POLÍTICA

EXTERNA DE SEGURANÇA DO IMPÉRIO DO BRASIL

Belo Horizonte 2013

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Diego Marques Morlim Pereira

IMPERIALISMO VS. SOBERANIA: UMA ANÁLISE REALISTA DA POLÍTICA EXTERNA DE SEGURANÇA DO IMPÉRIO DO BRASIL

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Relações Internacionais.

Orientador: Javier A. Vadell

Belo Horizonte 2013

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FICHA CATALOGRÁFICA

Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Pereira, Diego Marques Morlim P436i Imperialismo vs. soberania: uma análise realista da política externa de segurança do império do Brasil / Diego Marques Morlim Pereira. Belo Horizonte,

2014. 85f.: il.

Orientador: Javier Alberto Vadell Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.

Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais.

1. Brasil - História - Império, 1822-1889. 2. Política internacional - Plata, Rio de la, Região (Argentina e Uruguai). 4. Cisplatina, Guerra da, 1825-1828. I. Vadell, Javier Alberto. II. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais. III. Título.

CDU: 981.04

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Diego Marques Morlim Pereira

IMPERIALISMO VS. SOBERANIA: UMA ANÁLISE REALISTA DA POLÍTICA EXTERNA DE SEGURANÇA DO IMPÉRIO DO BRASIL

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Relações Internacionais.

Javier A. Vadell

___________________________________________

Javier A. Vadell (orientador) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Danny Zahreddine

___________________________________________

Danny Zahreddine – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Túlio Ferreira

___________________________________________

Túlio Ferreira – Universidade Federal da Paraíba (UFPB)

Belo Horizonte, 13 de março de 2014

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AGRADECIMENTOS

Agradeço expressamente àqueles que fizeram parte da elaboração e do

desenvolvimento desse trabalho. Aos professores do Programa de Pós-graduação da PUC

Minas por toda minha formação acadêmica até o momento e por conhecimentos e

experiências valiosos que me proporcionaram. Aos amigos e colegas do Mestrado, pelas

críticas, pelas contribuições, pelos debates.

Agradecimentos nominais são merecidos ainda ao professor e orientador Javier Vadell

pela paciência e pelo inestimável auxílio para a finalização deste trabalho; e ao amigo Roberto

Vinícius Gama pelas incontáveis e intermináveis conversas, discussões, deliberações, e

insights, que contribuíram enormemente para o resultado final dessa dissertação.

Por fim, agradeço e dedico este trabalho a minha família. Mais do que nunca pude “me

apoiar nos ombros de gigantes”. Obrigado por tudo.

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RESUMO

A historiografia brasileira é controversa quanto à característica da atuação externa do Império

do Brasil para a região do Prata, ora definindo-a como imperialista, ora como soberanista.

Carece a esta discussão, no entanto, análise sob as lentes de teorias das Relações

Internacionais, o que torna estudos a esse respeito eminentemente descritivos. Discute-se,

portanto, os três principais momentos de intervenções do Império do Brasil na região do Prata

sob as vertentes neorrealista e realista neoclássica e os paradigmas realistas defensivo e

ofensivo, com o objetivo de buscar uma definição sobre qual é a caracterização mais precisa

para o comportamento do Império em relação a questões de segurança no século XIX.

Palavras-chave: Império do Brasil. Política Internacional. Política Externa Brasileira. Região

do Prata. Segurança. Realismo. Realismo Ofensivo. Realismo Defensivo.

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ABSTRACT

Brazilian historiography is controversial regarding the characteristics of the Brazilian Empire

external behavior for the Plata region, because it is sometimes related with imperialist

interests and sometimes with sovereignty interests. It lacks this discussion, nevertheless,

analysis under the lenses of International Relations Theories which makes the studies of this

issue remarkably descriptive. Therefore, this work discusses the three main Brazilian Empire

interventions in the Plata region under neorealist and neoclassic realist perspectives and under

defensive realism and offensive realism paradigms, aiming to define which one is the best and

most precise characterization to the Empirial behavior concerning security issues in the 19th

century.

Keywords: Brazilian Empire. International Politics. Brazilian Foreign Policy. Plata Region.

Security. Realism. Offensive Realism. Defensive Realism.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO..........................................................................................................................7

1 IMPERIALISMO VS. SOBERANIA ...................................................................................15

1.1 Anarquia, percepção e política externa...............................................................................19

1.2 Realismo ofensivo vs. realismo defensivo .........................................................................25

2 O BRASIL E O PRATA NO SÉCULO XIX ........................................................................34

2.1 A região do Prata ................................................................................................................34

2.2 Os Estados do Prata: política, economia e sociedade.........................................................38

2.2.1 Argentina, Uruguai e Paraguai ........................................................................................39

2.2.2 Império do Brasil .............................................................................................................44

2.3 A política externa de segurança do Império para a região do Prata ...................................54

2.3.1 Guerra da Cisplatina ........................................................................................................56

2.3.2 Brasil vs. Buenos Aires ...................................................................................................57

2.3.3 Guerra do Paraguai ..........................................................................................................59

3 O REALISMO NA POLÍTICA EXTERNA DO IMPÉRIO DO BRASIL...........................63

CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................................78

REFERÊNCIAS .......................................................................................................................83

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INTRODUÇÃO

A América do Sul do século XIX é uma unidade de análise interessante, porquanto

comportou a consolidação dos Estados nacionais (DORATIOTO, 2002), nacionalismos e

intervencionismo. A política externa imperial para a região do Prata apresenta reflexos dessas

três variáveis, e questões de segurança foram recorrentes no cálculo dos gabinetes do Império

(CERVO, 2002, p.110-116). Acadêmicos questionam se a preocupação com a soberania, ou

seja, com a segurança, teria sido mesmo central nesse cálculo, devido ao fato de o Brasil ter-

se consolidado como Monarquia entre várias Repúblicas e de ser o maior e mais forte Estado

da região, ou se, pelo mesmo motivo, a atitude não teria sido baseada em projeção de poder,

ou seja, se a política externa imperial não haveria sido agressiva e imperialista. Enquanto

acadêmicos-diplomatas como Gelson Fonseca Júnior (1998) argumentam sobre a

característica pacífica da política externa brasileira com objetivo de defender seus interesses,

acadêmicos como Amado Cervo (2002) parecem pendular entre a crença de uma atitude

principista e pacífica e a crença de intervenções buscando a hegemonia regional por meio de

projeção de poder.

Esta pesquisa justifica-se, pois atualmente existem analistas internacionais que

debatem a política externa brasileira contemporânea para a América do Sul, taxando-a às

vezes de imperialista, às vezes de soberanista. Dada a tese defendida por diplomatas e por

professores da Universidade de Brasília, ou Escola de Brasília, de que a política externa

brasileira é um espectro contínuo, sem rupturas significativas com o passar dos séculos, a

caracterização da política externa para a região do Prata durante o século XIX pode ser um

mecanismo válido para, analogamente, discutir-se a política externa para a região no século

XXI.

O problema de pesquisa estabelecido para este trabalho é o de definir a característica

da política externa do Império do Brasil em relação à região do Prata. Existem duas

possibilidades de se caracterizar a política externa imperial: ofensiva, agressiva e

expansionista; ou defensiva, cujo objetivo principal seria sempre a manutenção da soberania

nacional, da estabilidade regional e do status quo favorável ao Império. Entender a lógica da

atuação brasileira na vizinhança durante o Império pode auxiliar o pesquisador a compreender

a dinâmica da política externa pátria nos tempos atuais, afinal

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(...) um problema não merece uma pesquisa se não for um verdadeiro problema – um problema cuja compreensão forneça novos conhecimentos para o tratamento de questões a ele relacionadas. (LAVILLE, 1999, p.88).

Além disso, Amado Cervo afirma taxativamente que “a revisão historiográfica está em

curso, incorporando conceitos e métodos de análise, que devem ser usados para a leitura

crítica da historiografia disponível, como também para fazer avançar o conhecimento”

(CERVO, 2002, p.128).

A política externa do Império do Brasil para a região do Prata foi caracterizada por

intervenções quase ininterruptas. Há duas historiografias concorrentes sobre a questão: a

primeira liga a política externa com o imperialismo, o que significa que a atuação externa do

Império teria como fim expandir seus domínios territoriais e influenciar a política dos

vizinhos e da região; a segunda, com questões de segurança e de soberania. Alguns analistas

chegam mesmo a apresentar e defender ambas as possibilidades em uma mesma obra1. O

intuito principal deste trabalho é identificar e analisar as forças e as fraquezas de cada

vertente, bem como aproximações e distanciamentos entre elas, e decidir pela avaliação de

qual seja melhor para a explicação da política externa imperial, ou pela proposição de uma

terceira via, diferente das duas primeiras ou que proponha uma síntese delas.

Como objetivo geral, esta dissertação pretende avaliar a política externa do Império do

Brasil para a região do Prata e a adequação das justificativas imperialista e soberanista como

suas causalidades.

Como objetivos específicos, pretende-se (i) avaliar elementos materiais que

transformavam a dinâmica regional em questões de segurança; (ii) analisar em que medida a

política externa intervencionista do Império do Brasil pode ser caracterizada como

imperialista ou soberanista, assim como as forças e fraquezas de cada abordagem; (iii)

analisar as abordagens historiográficas à luz de teorias realistas de Relações Internacionais.

Para que os objetivos deste trabalho sejam atingidos, a pesquisa é fundamentalmente

qualitativa, com a utilização de dados quantitativos quando disponíveis. Isto, pois:

A combinação de metodologias diversas no estudo do mesmo fenômeno, conhecida como triangulação, tem por objetivo abranger a máxima amplitude na descrição, explicação e compreensão do objeto de estudo. (...) A premissa básica da integração repousa na ideia de que os limites de um método poderão ser contrabalançados pelo alcance de outro. (GOLDENBERG, 1999, p.63, grifo do autor).

1 Esse é o caso, por exemplo, de História da política exterior do Brasil (2002), de Amado Cervo e Clodoaldo Bueno.

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Lijphart define o método comparativo, o experimental, o estatístico e o estudo de caso

como métodos básicos para se estabelecer proposições empíricas gerais e explicações

científicas (LIJPHART, 1971, p.682-683). Os três primeiros métodos pautam-se por

“descobrir relações empíricas entre duas ou mais variáveis, mantendo-se todas as demais

controladas, ou seja, constantes” (LIJPHART, 1971, p. 683, tradução livre), o que significa a

análise em condição ceteris paribus, ou seja, todas as variáveis iguais para ambos os lados da

comparação, exceto a variável a ser analisada.

O estudo de caso, todavia, parece ser o mais apropriado como método principal para a

consecução deste trabalho. Enquanto o método comparativo requer que existam dois os mais

casos para serem estudados, o estudo de caso debruça-se sobre um caso somente

(GOLDENBERG, 1999; LEVY, 2002; GERRING, 2004). Nesse sentido, a política externa do

Império do Brasil para o Prata será analisada individualmente para que se chegue a

conclusões sobre suas características mais fundamentais, já que existe concorrência de

explicações na historiografia tradicional a respeito do tema.

Estudos de caso podem trazer contribuições importantes para o estabelecimento de

proposições gerais e, desta forma, de construção de teorias em ciência política. Além disso,

casos podem ser escolhidos por interesse do pesquisador per se ou por interesse em

construções teóricas (LIJPHART, 1971, p.691). No caso desta dissertação, há ambos os

interesses, pois além de interesse pessoal em estudar a política externa brasileira, há interesse

em refinar teorias existentes a respeito do tema e em sugerir novos entendimentos sobre o

mesmo. Por fim,

A grande vantagem do estudo de caso é que ao focar em um único caso, o caso pode ser examinado profundamente, mesmo que os recursos de pesquisa a disposição do pesquisador sejam relativamente limitados. (LIJPHART, 1971, p.691, tradução livre).

Além do método qualitativo, como já discutido, este trabalho utilizar-se-á também de

método quantitativo, como metodologia complementar e de apoio, para que a análise se torne

mais abrangente e defensável. Isto, pois

Os fenômenos políticos mais facilmente descritos são aqueles que são tangíveis e relativamente estáticos, como o tamanho das forças armadas de um país, o número de missões diplomáticas dentro de um Estado, ou o seu Produto Interno Bruto. As variáveis mais difíceis de operacionalizar são as dinâmicas, menos tangíveis, por exemplo, (...) a influência de estratégias empregadas para contenção de Estados. (LENG, 2002, p.118, tradução livre).

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Logo, a integração da pesquisa qualitativa e quantitativa permite que o pesquisador

tenha “maior confiança de que seus dados não são produto de um procedimento específico ou

de alguma situação particular” (GOLDENBERG, 1999, p.62). Se no estudo das Relações

Internacionais um dos grandes debates das décadas de 1960-1970 foi sobre epistemologia,

entre behaviorismo e cientificismo, “nas últimas décadas parte da competitividade perdeu

fôlego e existe tendência crescente de se combinar a abordagem clássica [Bull] com a

científica [Singer]” (LENG, 2002, p.128).

A pergunta de partida para este trabalho é: a atuação externa do Império do Brasil para

a região do Prata foi voluntária e imperialista (ofensiva) ou condicionada por

constrangimentos de segurança e soberanista (defensiva)?

Laville indica uma série de possibilidades de revisão de literatura para que se responda

à pergunta de pesquisa, entre as quais bibliografias temáticas, artigos, resenhas, teses,

periódicos e bancos de dados informatizados (1999, p.111-122). Em maior ou menor grau,

essas fontes serão exploradas para que a pesquisa se torne mais abrangente e completa.

Para a discussão da política externa imperial, utilizar-se-ão fontes primárias, como

documentos, estudos biográficos e relatos relacionados à política externa brasileira do século

XIX, coletados na Fundação Biblioteca Nacional, na Biblioteca do Exército, e na Biblioteca

da FUNAG, assim como fontes secundárias, como livros e artigos dos pesquisadores Sergio

Buarque de Holanda, Boris Fausto, Maria Yeda Linhares, Amado Cervo, Demétrio Magnoli,

entre outros. Concomitantemente, buscar-se-á analisar a atuação externa do Império do Brasil

por intermédio das lentes de John Mearsheimer e Kenneth Waltz, respectivamente realismo

ofensivo e defensivo, que refinam a teoria realista de Relações Internacionais dando a ela

novas possibilidades analíticas.

Desta forma, buscar-se-á associar a tese historiográfica de atuação imperialista e

agressiva com o realismo ofensivo e a tese de defesa da soberania e da manutenção do status

quo com o realismo defensivo. É importante ter em mente que essas abordagens realistas

foram forjadas no século XX, porém a análise do século XIX sob suas lentes parece apontar

para uma possibilidade de análise significativa da política externa brasileira. A análise-teste

das teses historiográficas será realizada, portanto, por intermédio de lente teórica de Relações

Internacionais.

No século XIX, a atuação do Império do Brasil na região do Prata foi intensa, por

meio de intervenções militares sempre com o objetivo de garantir o interesse nacional. Foram

cinco as principais intervenções imperiais: Argentina (1825 e 1852), Uruguai (1851 e 1864) e

Paraguai (1864). Segundo o professor Amado Cervo (2002), a política externa do Primeiro e

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do Segundo Reinado, em relação à região do Prata, pode ser caracterizada como

intervencionista:

A política externa brasileira à época da Independência movia-se em duas zonas de pressão e em algumas aberturas na perifeira. A primeira zona de pressão corresponda às relações com a Europa e a segunda situava-se na região do Prata. (...) Após as independências, Rio de Janeiro e Buenos Aires vão administrar o secular conflito regional entre Portugal e Espanha, relativo ao domínio do estuário do rio da Prata. Historicamente, a opção portuguesa fora o domínio das vias navegáveis, a procura das minas e o controle do contrabando e do comércio regionais. (CERVO, 2002, p.40).

As motivações dessas intervenções geram discussão historiográfica que, no entanto,

pouco debate sob as lentes das teorias de Relações Internacionais. Esse aprofundamento

analítico é, portanto, a principal ambição desse trabalho.

Alguns conceitos devem ser estabelecidos para melhor compreensão do que se

pretende analisar neste trabalho. Entre eles, a região do Prata, o imperialismo, a soberania, o

realismo ofensivo e o realismo defensivo. Isto se deve ao fato de que:

Conceitos são apresentações mentais de um conjunto de realidades em função de suas características comuns essenciais. (...) Os conceitos, para o pesquisador, são instrumentos insubstituíveis para se investigar e conhecer. Uma vez mais, quanto mais se dispõe de conceitos, maiores serão nossas capacidades de ler, questionar e conhecer o social. (LAVILLE, 1999, p.91).

Como região do Prata, serão considerados os territórios banhados pelo rio da Prata e

seus afluentes, ou seja, territórios de Brasil, Uruguai, Argentina e Paraguai. Historicamente, a

região do Prata é uma área de interesse do Brasil e na qual foram verificados diversos

conflitos, tenham sido militares, econômicos, políticos ou diplomáticos. Mais importante,

porém, é que foi na Região do Prata que o Império do Brasil atuou pelo meio da força, com

diversas intervenções durante o século XIX. Com relação aos países vizinhos na fronteira

amazônica, a atuação externa brasileira foi tradicionalmente pautada na diplomacia, com

importante exceção para a Guiana Francesa.

Na literatura de Relações Internacionais existe uma variedade de sentidos para o termo

imperialismo. Para o intuito deste trabalho, o termo imperialismo deve ser associado à atitude

agressiva, à projeção de poder. Desta forma, considerar imperialista a política externa

brasileira para a região platina significa considera-la política de potência, com intenção de

submeter os vizinhos aos interesses nacionais por meio de imposição de poder, seja ele

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econômico ou militar. Por soberania entende-se a existência do Estado, sua segurança e sua

capacidade de administrar seu território e sua população sem que haja ingerência externa.

Por sua vez, o realismo é a teoria mais antiga em Relações Internacionais e, até

hodiernamente, uma das mais utilizadas por analistas internacionais para discutir política

internacional, especialmente questões de segurança. Entre suas principais variáveis estão o

conflito de interesses, o equilíbrio de poder em termos materiais, a busca de poder pelos

Estados, entre várias outras. Durante a década de 1990, partindo-se dos pensamentos de

Mearsheimer e Waltz, dois dos principais teóricos de Relações Internacionais, o realismo foi

dividido em duas vertentes:

O realismo ofensivo, cuja premissa básica, seguindo o pensamento morgenthauniano, indica que os Estados buscam o poder e, por outro lado, o realismo defensivo que tem como principal suposição aquela que afirma que os Estados estão mais orientados pela busca de segurança do que pela busca de poder. (PETROLLINI, 2012, p.1, tradução livre).

Nesse sentido, tanto a análise da historiografia que caracteriza a política externa

brasileira no século XIX como imperialista, nos termos definidos para esse trabalho, por meio

do realismo ofensivo – cuja ênfase é na natureza egoísta e agressiva dos atores internacionais,

que definem seus interesses em termos de poder e adotam postura agressiva para manter sua

segurança –, quanto a análise que relaciona a historiografia que defende o soberanismo da

política externa imperial com o realismo defensivo – cuja ênfase é nos constrangimentos

impostos pelo sistema internacional à atuação dos Estados, e a preocupação dos últimos em

manter o status quo e, consequentemente, sua segurança – parecem adequadas.

A hipótese, definida no momento inicial da pesquisa, que se pretende validar é que a

atuação externa do Império do Brasil para a região do Prata tem característica defensiva, e não

ofensiva em relação aos vizinhos. Buscar-se-á a verificação dessa hipótese, como já

mencionado, por intermédio da análise qualitativa, de fontes primárias e secundárias, assim

como da análise quantitativa, em relação aos dados econômicos e militares dos países da

região do Prata durante o século XIX, que terá a função de apoiar a análise qualitativa, mais

importante para os objetivos deste trabalho.

Em resumo, o problema de pesquisa desta dissertação é a concorrência de teses

historiográficas que caracterizam a política externa brasileira para a região do Prata, ora como

imperialista, ora como soberanista; e a falta de análises que relacionem essa discussão com as

Relações Internacionais. A partir deste problema, pretende-se responder a seguinte pergunta: a

atuação externa do Império do Brasil para a região do Prata foi voluntária (imperialista,

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ofensiva) ou condicionada (soberanista, defensiva)? Por fim, a hipótese que este trabalho

pretende verificar é que a política externa do Império em relação à região do Prata foi

condicionada e caracterizada por atuação realista defensiva.

Em sua essência, um caso é escolhido por “ser útil para gerar hipóteses ou porquanto é

crucial na hora de confirmar ou não confirmar uma teoria” (SARTORI, 1994, p.45, tradução

livre). Como meio auxiliar ao método qualitativo, baseado em pesquisa histórica e análise de

fontes primárias e secundárias, buscar-se-á a utilização de método quantitativo, por

intermédio de levantamento estatístico de capacidades econômicas e militares dos rivais

regionais no século XIX. Espera-se que essa composição de métodos qualitativos e

quantitativos seja útil para validar a hipótese de atuação externa baseada em realismo

defensivo.

No primeiro capítulo desta dissertação serão discutidas as teorias realistas de Relações

Internacionais, especialmente as premissas do neorrealismo e do realismo neoclássico, além

dos paradigmas defensivo e ofensivo, uma vez que essa discussão teórica é a base da análise

que se pretende fazer neste trabalho.

No segundo capítulo discutir-se-á a América do Sul do século XIX, o Império do

Brasil e a política externa imperial para a região do Prata. Nesse capítulo, será realizado

levantamento histórico com o desígnio de se avaliar elementos materiais que transformavam a

dinâmica regional em questões de segurança e motivavam a atuação externa do Império do

Brasil na região do Prata.

No terceiro capítulo, analisar-se-á as vertentes historiográficas que vinculam a política

externa imperial para a região do Prata, ora como imperialista, ora como soberanista, sob a

ótica das teorias realistas ofensiva e defensiva de Relações Internacionais. Com isso, este

trabalho buscará identificar e analisar as forças e as fraquezas de cada tese historiográfica para

compreensão da política externa imperial, bem como aproximações e distanciamentos entre

elas, e decidir pela avaliação de qual seja melhor para a explicação da atuação externa do

Império do Brasil.

Por fim, ao estudar a política externa do Império do Brasil para a região do Prata,

deparou-se com o problema da continuidade da política externa brasileira do século XIX em

relação ao século XXI. Na conclusão desta dissertação, portanto, além de considerações finais

sobre a discussão estabelecida no desenvolvimento do trabalho, será realizada uma breve

explanação sobre as inquietações do autor a respeito dessa tese, assunto que se pretende

desenvolver e aprofundar em projeto futuro.

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Antes de se iniciar o desenvolvimento deste trabalho, é importante ter em mente que

este não é um estudo historiográfico. Isso significa que não se pretende aqui esgotar a

descrição pormenorizada de todos os eventos do século XIX na região do Prata, nem de todas

as variáveis internacionais ou internas possíveis em relação às questões de segurança do Prata.

O intuito é discutir a política internacional e analisar a política externa brasileira de segurança

para a região sob as óticas realistas de Relações Internacionais e, para isso, buscar-se-á

incorporar ao trabalho questões nacionais e regionais, políticas, econômicas e sociais, que, na

perspectiva do autor, podem auxiliar no exercício proposto.

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1 IMPERIALISMO VS. SOBERANIA

A historiografia tradicional costuma ser contraditória sobre a característica da atuação

externa do Brasil, ora taxada como agressiva e imperialista – assegurar a própria

sobrevivência por meio de aquisição e projeção de poder, buscar se tornar hegêmona regional

e subjugar as potências rivais –, ora como defensiva e soberanista – assegurar a própria

sobrevivência por intermédio da manutenção do status quo regional, utilizando-se de políticas

mais conservadoras e não agressivas. Não raramente, pode-se encontrar na mesma obra as

duas caracterizações, como em

O período que vai de 1844 a 1876 caracterizou-se pela ascensão, apogeu e declínio de uma política brasileira de potência periférica regional, autoformulada, contínua e racional, na medida em que se guiava por objetivos próprios, aos quais subordinavam-se os métodos e os meios. O Prata foi a área em que correu solta a política de potência do Estado-Império brasileiro (...) [com] a determinação de assegurar o território disponível. (CERVO, 2002, p.109).

e em

Os desígnios brasileiros com relação ao Prata, apesar das novas ideologias, instituições e visões dos homens de Estado que se faziam presentes na região, permaneciam na década de 1860 os mesmos da década anterior. E a estratégia também: manter como instrumento de conquistas a arma da diplomacia. Daí por que as Forças Armadas, no Brasil, eram negligenciadas e relativamente limitadas, se comparadas às do Paraguai. A crença na superioridade era tal, que não entrava no cálculo dos estadistas brasileiros o perigo da guerra platina. (CERVO, 2002, p.121).

Essa aparente controvérsia entre a defesa de um argumento ofensivo e de um

defensivo, respectivamente, para a política externa brasileira enseja um estudo mais

aprofundado não somente da história da política exterior brasileira, mas também de um

arcabouço teórico que lhe dê sustentação a suas prerrogativas. Nesse sentido, Scott Burchill

afirma que “sobrevivência e dominação podem ser percebidos como discursos extremados de

orientação defensiva e expansiva”2 (2005, p.43).

Carece à caracterização da política externa do Império do Brasil para a região do Prata,

assim como em geral à análises da política externa brasileira, arcabouço teórico de Relações

Internacionais para tornar estes estudos mais abrangentes e defensáveis e, de certa forma,

menos controversos. Mais do que uma mera exposição histórica da atuação externa do

2 “Survival and domination can be seen as extreme statements of defensive and expansive orientations.”

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Império do Brasil, busca-se neste trabalho discutir a dinâmica da política internacional do

século XIX sob as lentes das teorias realistas de Relações Internacionais.

As teorias das Relações Internacionais têm a finalidade de formular métodos e

conceitos que permitem compreender a natureza e o funcionamento do sistema internacional,

bem como explicar os fenômenos mais importantes que moldam a política mundial. Hans

Morgenthau foi o primeiro a estipular e organizar as premissas centrais do estudo das

Relações Internacionais, em “Política entre as nações”, de 1948, e no estudo das relações

internacionais, historicamente, o realismo se impõe como a visão do mundo dominante entre

analistas e tomadores de decisões.

As variações da teoria realista são o realismo clássico, o neorrealismo (realismo

estrutural) e o realismo neoclássico. A evolução entre as vertentes realistas se deve às críticas

sofridas por elas com o passar dos anos e a ocorrência de eventos internacionais não previstos

ou satisfatoriamente explicados por elas. Algumas premissas permanecem, no entanto,

comuns entre todas as vertentes do pensamento realista, entre as quais a centralidade do

Estado, que tem por objetivo principal sua sobrevivência, a função do poder para garantir a

sobrevivência, e a resultante anarquia internacional. A ênfase realista, especialmente a partir

do neorrealismo desenhado por Waltz, é dada à estrutura, ou seja, ao sistema internacional; o

que ocorre dentro do Estado não é, a princípio, relevante para a análise das relações

internacionais (NOGUEIRA, 2005).

Para os neorrealistas, os Estados são os principais atores das relações internacionais.

Eles atuam para manter a estabilidade doméstica, a sobrevivência e a independência externa.

Os indivíduos – governantes, diplomatas, burocracia – agem em prol dos Estados que

representam. A imagem realista das relações entre Estados é a dos jogos de bilhar: o Estado

seria a bola, onde os processos internos de tomadas de decisão e as motivações políticas são

abstraídos. Os neorrealistas consideram que o Estado é um ator unitário e racional, o que

significa que o Estado age de maneira uniforme e homogênea e em defesa do interesse

nacional (NOGUEIRA, 2005).

Teoria de Política Internacional (1979), de Waltz, é considerada uma das obras mais

importantes no campo das Relações Internacionais. De formação realista clássica, Waltz

escreveu essa obra em meio ao debate behaviorismo vs. cientificismo em Relações

Internacionais e proporcionou à teoria realista o método científico que lhe faltava e que lhe

era criticada.

Waltz defende que “as relações internacionais só podem ser entendidas através de

algum tipo de teoria sistêmica” (WALTZ, 2002, p.113), de modo que os padrões de interações

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nas relações internacionais devem ser estáveis, ou seja, não mudam com a alteração das

unidades do sistema, dos subsistemas e dos indivíduos – como tendência de um ou outro a

comportamento agressivo, por exemplo (BROWN, 2005, p.42).

Estabelecido o sistema internacional como principal variável independente da teoria

neorrealista, Waltz assume que somente existiriam duas possibilidades para sua classificação:

hierárquico e anárquico (BROWN, 2005, p.42). Em um sistema hierárquico as unidades se

organizam sob um ator com autoridade sobre os demais; em um sistema anárquico inexiste tal

autoridade. Para Waltz, o sistema internacional é anárquico desde seus primórdios. O fato de

nenhuma alteração de capabilities entre as unidades do sistema internacional, nenhum

conflito, nenhum acordo, nada ter dirimido a acepção do sistema internacional ser anárquico –

ou seja, da estabilidade dos padrões de interação nas relações internacionais – é uma

comprovação da validade da teoria sustentada por Waltz.

Do fato de o sistema internacional ser anárquico, decorre o fato de também ser um

sistema de autoajuda. Nesse sentido, “como não há uma autoridade superior para gerir o

sistema [internacional], cada unidade só pode contar, em última análise, consigo mesma para

garantir seus objetivos” (DINIZ, 2007, p.47-48). Waltz, dessa forma, assume que o principal

objetivo dos Estados é preservar sua própria segurança, mas não defende que isto seja feito

por intermédio de expansionismo, agressão ou imperialismo:

Isso significa que eles [Estados] estão obrigados a se preocupar com sua própria segurança, e obrigados a considerar outros Estados como ameaças potenciais. Eles devem continuamente ajustar sua posição no mundo de acordo com suas percepções do poder dos outros e do seu próprio poder.3 (BROWN, 2005, p.42-43).

O realismo estrutural de Waltz é um marco para as teorias de Relações Internacionais

e sua importância justifica o ímpeto de outros estudiosos em aprofundar o neorrealismo e em

fazer novas abordagens a partir dele. Um dos principais resultados dessa dinâmica é a divisão

paradigmática entre realismo defensivo e realismo ofensivo. “As duas correntes de

pensamento concordam na suposição básica que os desejos dos Estados por segurança são

compelidos pela estrutura anárquica do sistema internacional”4 (BROWN, 2005, p.44); a

diferença fundamental entre elas é, no entanto, que os realistas defensivos, entre os quais

Waltz, defendem a manutenção da segurança por meio da manutenção da própria posição

3 “This means that they are obliged to be concerned with their security, and obliged to regard other states as potential threats. They must continually adjust their stance in the world in accordance with their reading of the power of others and of their own power.” 4 “The two strands of thought agree on the basic assumption that states’ desire for security is compelled by the anarchic structure of he international system.”

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dentro do sistema de poder em relação aos demais Estados, e os realistas ofensivos, entre os

quais Mearsheimer, defendem que pelo fato de a segurança ser ilusória e relativa, os Estados

deveriam conquistar o maior poder possível por meio de políticas agressivas e expansionistas,

menos dispendiosas e mais recompensatórias (BROWN, 2005, p.44-45). O realismo

defensivo percebe tais políticas como irracionais:

Realistas defensivos argumentam que mais poder pode levar a menos segurança, portanto que o Estado racional tem pouco incentivo para buscar poder adicional uma vez que ele se sente seguro em relação às outras potências do sistema. Contrariamente aos pressupostos dos realistas ofensivos, o sistema internacional não recompensa Estados que buscam a dominação, mas sim aqueles que mantêm o status quo.5 (BROWN, 2005, p.45).

Como será discutido no decorrer deste trabalho, o realismo não pode ser considerado

um modelo hermeticamente fechado, uma vez que o realismo neoclássico, que surge e

amadurece a partir da década de 1990, incorpora variáveis internas aos Estados para aumentar

a capacidade analítica da teoria realista, contestada e criticada por teóricos de outras correntes

explicativas da política internacional à época. Entre as mais duras críticas ao pensamento

realista em Relações Internacionais, pode-se citar as maiores possibilidades de análise que o

realismo teria ao considerar questões de política doméstica, que, conjuntamente com questões

internacionais, definem a política externa dos Estados, o que, no caso das grandes potências,

passa a ter consequências sistêmicas.

A evolução da teoria realista possibilita a incorporação de variáveis às análises nela

baseadas, o que aumenta seu poder de explicação frente aos eventos internacionais. A

principal evolução nesse sentido parece ter ocorrido com o realismo neoclássico, que alia

vaiáveis domésticas ao seu escopo analítico no estudo das relações internacionais.

O debate dentro da tradição realista tende a proporcionar um progresso teórico mais

interessante do que o debate entre teorias que, não raro, buscam questionar os paradigmas

anteriores e não complementá-los e aprofundá-los (TALIAFERRO, 2000, p.129-130).

5 “Defensive realists argue that more power can lead to less security, therefore that the rational state has little incentive to seek additional power once it feels secure relative to other powers within the system. Contrary to offensive realist assumptions, the international system does not reward states who seek to dominate, but rather those who maintain the status quo.”

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1.1 Anarquia, percepção e política externa

A análise da política externa tem duas fundamentações: a primeira relaciona-se aos

constrangimentos impostos aos Estados pelo sistema internacional anárquico; a segunda, às

variáveis internas dos Estados, como a percepção dos tomadores de decisão e a dinâmica

burocrática. A primeira fundamentação refere-se àquela discutida pelo neorrealismo; a

segunda, pelo realismo neoclássico, que explica as relações internacionais por meio de

“elementos e combinações de elementos localizados a nível nacional ou subnacional”

(WALTZ, 2002, p.87).

A complementaridade das abordagens é importante para aprofundar a discussão da

atuação internacional dos Estados, uma vez que o escopo de explicação torna-se ampliado.

Kissinger, por exemplo, defende que “a preservação da paz e a manutenção da estabilidade

internacional dependem das atitudes e das características internas dos Estados” (WALTZ,

2002, p.91-92). Além disso, “estruturalmente, podemos descrever e entender as pressões a que

os Estados estão sujeitos. [Porém] não podemos predizer como irão reagir às pressões sem

conhecermos as suas disposições internas” (WALTZ, 2002, p.103).

Antes de aprofundar a discussão entre as vertentes ofensiva e defensiva dentro da

teoria realista de Relações Internacionais, discussão teórica mais importante para a análise

proposta neste trabalho, faz-se importante a diferenciação entre o neorrealismo e realismo

neoclássico. Os dois realismos compartilham pressupostos quanto à estrutura do sistema

internacional, mas também apresentam diferenças:

Primeiramente, o neorrealismo procura explicar eventos internacionais, como a possibilidade de grandes guerras, as possibilidades de cooperação internacional, e padrões de alianças entre Estados. O realismo neoclássico, por outro lado, procura explicar as estratégias de política externa de Estados individualmente. Em segundo lugar, realistas discordam acerca das implicações lógicas da anarquia. (...) Neorrealismo e realismo neoclássico são complementares; cada um procura explicar um fenômeno que o outro não explica.6 (TALIAFERRO, 2000, p.132).

Nesse sentido, o neorrealismo é uma teoria que se baseia na estrutura do sistema

internacional e de suas unidades, os Estados, para explicar eventos internacionais resultantes

da interação entre seus atores, como guerras, cooperação, e corridas armadas. Esses são

fenômenos que não podem ser atribuídos ao comportamento individual de um Estado sem se 6 “First, neorealism seeks to explain international outcomes, such as the likelihood of major war, the prospect for international cooperation, and aggregate alliance patterns among states. Neoclassical realism, on the other hand, seeks to explain the foreign policy strategies of individual states. Second, realists disagree about the logical implications of anarchy. (…) neorealism and neoclassical realism are complementary; each purports to explain phenomena that the other does not.”

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considerar o comportamento dos demais, ou mesmo, da estrutura internacional

(TALIAFERRO, 2000, p.133).

O neorrealismo enfatiza a estrutura, que “designa um conjunto de condições

constrangedoras” (WALTZ, 2002, p.106) à atuação dos atores internacionais, ou seja, dos

Estados. A estrutura fundamental que afeta e molda o comportamento dos Estados, nesse

sentido, é a anarquia, ou seja, o fato de que “não há qualquer autoridade superior às unidades

do sistema – que, para Waltz, são os Estados” (DINIZ, 2007, p.47).

O neorrealismo, ou realismo estrutural, proposto por Waltz, assume que

(...) uma teoria sistêmica abstrairia as características específicas das unidades em interação, com o propósito de isolar e identificar os efeitos decorrentes exclusivamente da maneira como estão arranjadas as interações entre as unidades, ou seja, os efeitos estruturais. Com isso, (...) é possível prever processos de interação semelhantes, sempre que estiverem presentes estruturas semelhantes e enquanto estas perdurarem. (DINIZ, 2007, p.43, grifo do autor).

A estrutura se define por intermédio de três aspectos: a ordenação de suas interações,

ou seja, se é uma estrutura hierárquica ou coordenada; as funções desempenhadas por cada

unidade do sistema, o que se assemelha por analogia à divisão internacional do trabalho; e a

distribuição de recursos, ou capabilities, entre as unidades do sistema, seja em termos

políticos, diplomáticos, econômicos ou militares (DINIZ, 2007, p.43-45). Esses recursos,

segundo Waltz, são “tamanho da população e território, recursos naturais, capacidade

econômica, força militar, estabilidade política e competência” (WALTZ, 1979, p.131).

O principal desses pontos a ser discutido nesse trabalho é a questão da distribuição de

recursos de poder e a inerente disputa por eles que sugere um ambiente internacional

anárquico:

Em sistemas anárquicos, em função da inexistência de uma instância reguladora central, as próprias regras serão um produto das interações entre as unidades do sistema, e serão determinadas pela maior ou menor capacidade de cada uma de impor suas preferências; o foco, então, recai diretamente sobre o controle dos recursos, e é em torno desse controle que as unidades competem. (DINIZ, 2007, p.43).

Quanto à análise de decisões de política externa, o neorrealismo tem possibilidades

analíticas reduzidas, pois, como afirma Waltz, uma teoria estritamente sistêmica “pode nos

informar que pressões são exercidas e quais possibilidades são apresentadas por sistemas de

diferentes estruturas, mas não pode nos dizer como, e com que efetividade, as unidades de um

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sistema vão responder àquelas pressões e possibilidades”7 (WALTZ apud TALIAFERRO,

2000, p.133).

O realismo neoclássico busca suprir essa lacuna, pois “procura explicar porque

diferentes Estados ou mesmo o mesmo Estado em diferentes épocas utilizam-se de estratégias

particulares na arena internacional”8 (TALIAFERRO, 2000, p.133). Dessa forma, o realismo

neoclássico tem possibilidades restritas de prever resultados da atuação agregada dos Estados

no sistema internacional, mas, pelo contrário, pode analisar o comportamento individual de

um Estado como suas estratégias militares, econômicas e diplomáticas.

É importante ter em mente que “os diferentes sistemas nacionais e internacionais

coexistem e interagem” (WALTZ, 2002, p.60), o que quer dizer que variáveis internas aos

Estados, como as percepções dos líderes políticos e a dinâmica burocrática, influenciam

também a atuação externa dos Estados.

Complementando a abordagem neorrealista que considera a estrutura fundamental

para eventos e decisões em âmbito internacional, para Wohlforth (1993), é a percepção dos

líderes quanto à busca pelo poder de outro Estado e à distribuição de poder no sistema

internacional que moldam as políticas externas de cada Estado, visto que muitas disputas

dizem respeito aos interesses dos Estados, que podem, por exemplo, buscar poder visando

segurança, visando seu próprio bem-estar e estabilidade, ou mesmo visando controle sobre os

demais.

Jervis também procura ampliar as variáveis da abordagem realista em Relações

Internacionais e aumentar, assim, seu escopo explicativo. O autor afirma que “o ambiente

pode influenciar as linhas gerais de um Estado, mas não suas respostas específicas”9 (JERVIS,

1976, p.17). Segundo Jervis, “é quase impossível explicar decisões e políticas cruciais sem

referência nas crenças do tomador de decisão sobre o mundo e a imagem que faz do outro”10

(1976, p.28), ou seja, a cognição é parte fundamental do comportamento relevante e os outros

níveis de análise não podem informar imediatamente a um estudioso como esse

comportamento se daria. As percepções e a realidade dos tomadores de decisão, portanto,

importam. 7 “(...) can tell us what pressures are exerted and what possibilities are posed by systems of different structure, but it cannot tell us just how, and how effectively, the units of a system will respond to those pressures and possibilities.” 8 “(...) seeks to explain why different states or even the same state at different times pursues particular strategies in the international arena.” 9 “The environment may influence the general outline of the state’s policy but not its specific responses.” 10 “(…) it is often impossible to explain crucial decisions and policies without reference to the decision-makers’ beliefs about the world and their images of others.”

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A análise pontual dos níveis organizacional, doméstico e internacional, mesmo que

combinados, segundo Jervis (1976) tem pouca capacidade para configurar explicações para

decisões de política externa sem que se atente para as percepções do tomador de decisão em

relação a cada um deles. O choque de interesses burocráticos, que gera políticas conflitivas

para uma tomada de decisão, também pode ser considerado choque de valores de uma

determinada sociedade e mesmo de determinado tomador de decisão. Se o ambiente

doméstico não influenciasse o comportamento e as tomadas de decisão, mudanças de

governos não deveriam produzir mudanças nas políticas externas de Estados; contudo, na

maioria dos países elas variam enormemente quando de mudanças do governo central. Por

fim, o ambiente internacional, por si só, também parece não proporcionar padrões suficientes

para que se descreva decisões de política externa. Um Estado saberá quando estiver em perigo

ou ameaçado e consequentemente agirá para garantir sua independência e soberania. Porém,

são indivíduos aqueles que definem o que constitui uma ameaça iminente e como contê-la.

Jervis afirma que para se explicar por completo políticas e decisões, é essencial que se

tenha em mente as crenças do tomador de decisão em relação ao mundo e suas percepções do

outro, porquanto o exame das percepções do tomador de decisão, suas causas e efeitos, podem

determinar e explicar mais fielmente padrões de comportamento. Para se prover explicações

mais abrangentes de decisões de política internacional não se pode desconsiderar

completamente as externalidades, assim como não se pode ignorar percepções individuais dos

tomadores de decisão (JERVIS, 1976).

Ainda permeando a linha de pensamento de Jervis, outro autor que aborda a relação

entre percepções e decisões políticas é Hymans. O autor afirma que a análise de políticas

externas requer não só a análise sistêmica em que determinado Estado encontra-se em relação

aos demais, mas a reconstrução da percepção do tomador de decisão no momento

determinado da escolha pela decisão (HYMANS, 2006).

As críticas quanto à capacidade analítica das teorias realistas de Relações

Internacionais – especialmente aquelas quanto à menor possibilidade de análise ao não

incorporar variáveis domésticas – são, portanto, refutadas por teóricos neoclássicos, que

incorporam novas variáveis ao escopo de análise tradicional dos realistas. A estrutura

continua central para se entender a política internacional, uma vez que os constrangimentos

impostos pela anarquia ao comportamento dos Estados não pode ser descartada, entretanto os

realistas neoclássicos admitem a importância de se incorporar a análise de ideias e percepções

para que o estudo das relações internacionais, por intermédio da teoria realista, ganhe

profundidade e complexidade.

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O realismo neoclássico aproxima-se, de certa forma, do construtivismo de Wendt, que

questiona a relação ontológica entre agência e estrutura para explicar a dinâmica da política

internacional. Wendt (1992) também considera a estrutura ontologicamente precedente à

agência, ou seja, as concepções individuais dos agentes – tomadores de decisão, governantes

– são importantes para a análise das relações internacionais, porém essas concepções e

percepções são constrangidas pela estrutura anárquica e de autoajuda que governa o sistema

internacional.

Essa abertura epistemológica, que se avalia como uma evolução e uma força do

realismo neoclássico, é contestada por alguns teóricos das Relações Internacionais11 que

argumentam que a inclusão desses novos elementos – política doméstica, ideias e percepções

– faz com que a teoria seja desacreditada, se torne semelhante ao liberalismo e ao

construtivismo e modifique o núcleo duro da teoria, tornando-se uma nova teoria, muito

diferente do programa de pesquisa realista (RATHBURN, 2008, p.295-299). Além disso,

críticos do realismo neoclássico afirmam que a incorporação das novas variáveis seria “um

esforço de cobrir e explicar resultados que não atendem às [suas] expectativas teóricas”

(RATHBURN, 2008, p.299) e que o uso de variáveis deve ser rígido, para que o núcleo duro

de uma teoria não seja danificado. Dessa forma, o uso das variáveis supramencionadas seria

incompatível com o realismo.

Com o intuito de rebater essas críticas, Rathburn afirma que o realismo neoclássico

não é degenerativo, “mas uma extensão lógica e uma parte necessária na evolução do

realismo” (2008, p.294) e que “a preservação teórica do núcleo realista estrutural é menos

importante que a explicação de acontecimentos cruciais da política internacional” (2008,

p.295). Nesse sentido, todos os paradigmas em Relações Internacionais podem ter acesso às

variáveis “ideias” e “política interna”, ou seja, não se pode dizer que tais abordagens são

exclusivas de teoria construtivista ou liberal. Cada abordagem deve adaptar o uso dessas

variáveis ao seu argumento, ou seja, se a utilização dessas variáveis contribuírem, de forma

coerente, para o aumento do escopo explicativo da teoria, seu uso não acarreta problemas

epistemológicos ou ontológicos. O realismo neoclássico tem, portanto, legitimidade em

incluir em sua abordagem outras variáveis para além das abordagens do realismo clássico e do

neorrealismo.

11 Entre os quais Legro e Moravcsik.

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Uma análise aprofundada de política externa deve, portanto, considerar tanto a

estrutura internacional em que os atores estão envolvidos, quanto variáveis internas ao próprio

Estado. Essas variáveis intervenientes, rejeitadas pelo neorrealismo, são importantes para

avaliar e analisar o comportamento dos atores internacionais, pois “as capacidades materiais

relativas de um Estado definem os parâmetros de sua política externa”12 (ROSE apud

TALIAFERRO, 2000, p.134).

A análise proposta por esse trabalho, considerando os termos definidos acima, pautar-

se-á na abordagem de ambas as vertentes, tanto do neorrealismo como do realismo

neoclássico, em uma situação que o primeiro será a base da discussão e o segundo terá a

função de refinar os argumentos e possibilitar maior profundidade analítica. Nesse sentido, as

motivações internas e as percepções dos gabinetes imperiais que pautaram a atuação externa

brasileira para a região do Prata são importantes para a análise proposta e serão discutidos,

mas o Império do Brasil será, a priori, tratado como uma “bola de bilhar”, um ator racional e

egoísta, segundo as premissas compartilhadas pelas teorias realistas, e que atua externamente

em função das dinâmicas internacionais e dos constrangimentos sistêmicos que enfrenta.

Dessa forma, os Estados são analisados como caixas pretas “que não fornecem informações

sobre suas diferenças internas, exceto por aquelas observáveis devido a suas escolhas de

política externa” (GLASER apud TALIAFERRO, 2000, p.144).

Fica claro, então, que o neorrealismo e realismo neoclássico são complementares, pois

um tem poder de explicar o que o outro não tem: enquanto o neorrealismo procura explicar

eventos internacionais por intermédio da análise da estrutura internacional, o realismo

neoclássico busca a explicação da política externa, por meio de variáveis intervenientes,

intrínsecas aos Estados.

Por sua vez, o realismo ofensivo e o realismo defensivo, a princípio, não são

complementares, mas rivais: se para o primeiro o sistema internacional sempre gera

incentivos para projeção de poder, para o segundo, isso somente ocorre sob algumas

condições. Realismo ofensivo e realismo defensivo definem diferentes formas de atuação

externa para os Estados no sistema internacional e permeiam tanto a análise neorrealista como

a neoclássica.

12 “(...) a state’s relative material capabilities set the parameters of its foreign policy.”

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1.2 Realismo ofensivo vs. realismo defensivo

A sobrevivência é o objetivo final dos Estados nas relações internacionais e o poder é

o elemento central de análise dos realistas. O poder pode ser definido como a soma dos

recursos do Estado em termos políticos, militares, econômicos e tecnológicos; mas também

pode ser definido em termos relativos, ou seja, em comparação com os demais Estados com

os quais compete. Esta é uma influência realista de Tucidides: o medo de o concorrente se

tornar mais poderoso é a causa da guerra. Morgenthau afirma que os Estados procuram o

poder visando a manutenção do status quo, a expansão ou o prestigio. Waltz define o poder

como capacidade de influenciar mais do que ser influenciado pelo sistema internacional, e

como um meio de garantir a sobrevivência e a segurança (NOGUEIRA, 2005). Mearsheimer,

por sua vez, assume que a consecução de poder deve ser o objetivo final dos Estados no

sistema internacional anárquico como forma de sobreviver às ameaças externas decorrentes

do dilema da segurança.

O dilema da segurança esta presente em situações em que impera o estado de natureza

hobbesiano: sistemas em que não há uma instituição superior aos atores que seja capaz de

implicar regras e constranger comportamentos. Esse sistema ocorre tanto em Estados sem

governo, no exemplo clássico de Hobbes, como na política internacional, por definição

anárquica. O dilema da segurança, então, é caracterizado pela preocupação de grupos ou

indivíduos

(...) com sua segurança quanto a ser atacado, subjugado, dominado ou aniquilado por outros grupos ou indivíduos. Esforçando-se por obter segurança quanto a tais ataques, eles são movidos a adquirir mais e mais poder de modo a escapar ao impacto do poder alheio. Isto, por sua vez, torna os demais mais inseguros e os obriga a prepararem-se para o pior. Como ninguém pode jamais sentir-se inteiramente seguro em tal mundo de unidades em competição, segue-se uma competição por poder, e o círculo vicioso de acumulação de segurança e de poder está instalado (HERZ apud DINIZ, 2007, p.16).

Como visto, na política internacional as preocupações dos Estados pautam-se na

própria sobrevivência, no poder e no dilema de segurança. Nesse sentido, o sistema

internacional anárquico provê incentivos para políticas expansionistas? Caso a resposta seja

positiva, um Estado deveria buscar a garantia de sua segurança no longo prazo por meio de

estratégias agressivas e da busca de oportunidades para enfraquecer potenciais competidores?

(TALIAFERRO, 2000, p.128). Essas perguntas podem, claramente, ser realizadas em relação

ao Brasil do século XIX em relação às potências regionais rivais da região do Prata.

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Taliaferro (2000) afirma que “duas vertentes do realismo contemporâneo possibilitam

diferentes respostas a essas perguntas”13 (2000, p.128): uma por meio do realismo defensivo,

outra do realismo ofensivo. O que se pretende nesta seção é justamente a discussão dessas

percepções para, posteriormente, confrontá-las com a atuação externa do Império do Brasil

para a região do Prata. Depreende-se da historiografia tradicional majoritária a caracterização

da atuação externa brasileira como defensiva, mesmo que raramente utilize-se desse termo

teórico, ou seja, preocupada com sua soberania e com a contenção dos rivais regionais, sem

interesses expansionistas e imperialistas. Buscar-se-á, portanto, por intermédio de argumentos

teóricos, corroborar ou contestar essa tese já tão sedimentada na área de análise de política

externa brasileira.

O resultado previsto da interação dos Estados em ambiente anárquico é a formação de

equilíbrios (DINIZ, 2007, p.60). Em política internacional, o equilíbrio fundamenta-se na

balança de poder e nas dinâmicas para a manutenção do equilíbrio ou para a formação de

novo equilíbrio por intermédio de fortalecimento estatal ou de alianças. Dessa forma, fica

claro que os Estados se encontram em ambiente competitivo.

Como pressuposto óbvio que deve ser tomado para que os Estados alcancem seu

objetivo no plano internacional, seja a dominação ou a sobrevivência, esta a necessidade de

eles existirem. Waltz assegura, dessa forma, que

“a sobrevivência torna-se o objetivo máximo na política internacional. (...) Nesses termos, o poder é apenas um meio útil, mas não o fim último em si mesmo. Quando

houver conflito entre a busca do poder e a busca da sobrevivência (...) a última

prevalecerá sobre a primeira.” (DINIZ, 2007, p.60, grifo do autor).

O fato de o objetivo final dos Estados ser a sobrevivência e não o poder explica, por

exemplo, o porquê de Estados mais fracos se aliarem para balancear o poder de um Estado

mais forte. Caso o objetivo final dos Estados fosse a consecução de poder, poder-se-ia esperar

que os Estados mais fracos se unissem ao mais forte, o que contraria a teoria do equilíbrio de

poder e a empiria histórica.

O neorrealismo de Waltz pode ser associado com o realismo defensivo, portanto,

devido a sua defesa explicita da maior preocupação que os Estados devem ter com a

sobrevivência do que com o poder. “Como o objetivo das unidades no sistema anárquico da

política internacional é maximizar sua sobrevivência, sendo o poder apenas um meio para

13 “Two strands of contemporary realism provide different answers to these questions”.

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tanto, quando a maximização de poder conflitar com a maximização das chances de

sobrevivência, a última deve prevalecer” (DINIZ, 2007, p.76).

Assim, para Waltz, explicitamente, a política internacional não é identificada com a

maximização de poder, mas sim, da sobrevivência, mesmo para aquelas potências que no limite aspirem a dominar todas as demais potências do sistema. Afinal, para consegui-lo, elas têm que continuar a existir, em primeiro lugar, como grandes potências. (DINIZ, 2007, p.76, grifo do autor).

Waltz entende a balança de poder como o “equilíbrio a que se chega a partir [da]

competição pela distribuição dos recursos que aumentam a chance de cada Estado de

sobreviver na política internacional” (DINIZ, 2007, p.62). Dessa forma, percebe-se a maior

importância dos esforços internos dos Estados, isto é, de investimentos em sua própria

segurança, sobre os esforços externos, as alianças, uma vez que “a formação de alianças é

parte do processo político, mas a distribuição de recursos é parte da estrutura. Sendo assim, o

poder de cada Estado equivale a sua participação na distribuição de recursos do sistema”

(DINIZ, 2007, p.62, grifo do autor).

O realismo ofensivo modifica a concepção do realismo defensivo ao assumir que a

anarquia internacional gera incentivos a políticas expansionistas (TALIAFERRO, 2000,

p.128), ou seja, à projeção de poder por meio da força. Dessa forma, o poder e não a

sobrevivência tornar-se-ia o objetivo principal dos Estados em ambiente anárquico. Nesse

sentido, os Estados procuram aumentar seu poder em relação aos demais Estados para garantir

sua soberania e sua sobrevivência:

Todos os Estados empenham-se em maximizar seu poder em relação aos demais Estados porquanto apenas os Estados mais poderosos podem garantir sua sobrevivência. Eles utilizam políticas expansionistas quando e onde os benefícios de fazê-lo superam os custos. Estados sob a anarquia enfrentam a ameaça permanente de que outros Estados usem a força para atingi-los ou conquistá-los. Esse fato compele Estados a melhorarem sua posição de poder relativo por meio de fabricação de armas, diplomacia unilateral, política econômica mercantilista (ou mesmo autárquica), e expansionismo oportunista14. (TALIAFERRO, 2000, p.128-129).

Para os realistas ofensivos, a estrutura internacional anárquica constrange os Estados a

buscar poder em detrimento dos demais. Dessa forma, “maximizar seu poder relativo é a

14 “All states strive to maximize their power relative to other states because only the most powerful states can guarantee their survival. They pursue expansionist policies when and where the benefits of doing so outweigh the costs. States under anarchy face the ever-present threat that other states will use force to harm or conquer them. This compels states to improve their relative power positions through arms buildups, unilateral diplomacy, mercantile (or even autarkic) foreign economic policies, and opportunistic expansion.”

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maneira ótima de maximizar sua segurança” (DINIZ, 2007, p.78), por isso o comportamento

agressivo é determinado pela luta pela própria sobrevivência. Segundo Mearsheimer, “a

situação ideal é ser o estado hegemônico do sistema” (2007, p.47), o que garantiria a

sobrevivência por intermédio do poder: o Estado mais forte não somente teria garantida sua

sobrevivência, mas evitaria ser ameaçado por outros, assim como poderia controlá-los.

Segundo Mearsheimer, as grandes potências “lutam por conquistar poder sobre os seus rivais

e, com sorte, tornar-se estados hegemônicos” (MEARSHEIMER, 2007, p.53).

Para Mearsheimer, “hegemonia significa dominação do sistema, o qual é geralmente

interpretado como significando o mundo inteiro” (2007, p.53). Porém, Mearsheimer afirma

categoricamente que é “praticamente impossível qualquer estado alcançar a hegemonia global

(...) fundamentalmente devido ao poder bloqueador da água” (2007, p.53-54) e refina seu

argumento ao vislumbrar a possibilidade de aplicação do conceito de hegemonia para

“descrever regiões específicas, como a Europa, o Nordeste Asiático e o hemisfério ocidental”

(MEARSHEIMER, 2007, p.53).

Por fim, Mearsheimer reconhece as potencialidades do realismo ofensivo quando este

demonstra que “(...) as grandes potências não praticam a abnegação quando possuem os meios

de alterar o equilíbrio de poder a seu favor e que o apetite de poder não diminui assim que os

estados possuem muito”. (MEARSHEIMER, 2007, p.169).

Ainda segundo Mearsheimer, no sistema internacional anárquico constituído por

Estados, as potências, em regra, possuem alguma capacidade militar ofensiva que permite que

elas ameacem e mesmo ataquem e destruam outros Estados. Como não há certeza sobre as

intenções dos demais atores internacionais, por exemplo, não se sabe se aquela capacidade

militar ofensiva será utilizada para um ataque, a sobrevivência torna-se o objetivo primário

dos Estados, e esta deveria ser assegurada pela aquisição de poder: “as grandes potências

reconhecem que a melhor maneira de garantir sua segurança é obter a hegemonia já [e não se

preocupar com cálculos futuros incertos sobre sua posição relativa no sistema], assim

eliminando qualquer possibilidade de serem desafiadas por uma outra grande potência”

(DINIZ, 2007, p.79). Mais do que isso,

Mesmo na impossibilidade de se tornar o hegêmona – o que é geralmente o caso –, um Estado não cessará de reunir quanto poder consiga: independentemente de fortuna ou circunstâncias, mais poder significa mais capacidade, o que, portanto, torna mais provável que possa resistir com expectativa de sucesso à ofensiva de outrem. (DINIZ, 2007, p.79, grifo do autor).

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O poder, de acordo com Mearsheimer, divide-se em poder concreto e poder potencial.

O poder concreto é mensurado pelas forças armadas dos Estados, especialmente seus

Exércitos, pois são esses aqueles que podem de fato controlar um território, as demais forças

trabalhando como apoio a ele. O poder potencial, também importante para a análise proposta

neste trabalho, associar-se-ia com o “tamanho da riqueza e da população de um Estado, isto é,

à sua capacidade de sustentar aquelas forças no tempo” (DINIZ, 2007, p.80).

Há, entretanto, que se perceber que as potências nem sempre podem projetar poder e

agir agressivamente no sistema internacional. Nesse sentido, algumas variáveis devem ser

consideradas antes de uma atuação imperialista: os custos da agressão podem ser maiores que

os benefícios, pode haver erro de cálculo sobre as próprias forças e sobre as forças dos rivais,

é difícil prever a reação os outros Estados a uma eventual intervenção. “Nessas situações, essa

grande potência buscaria no mínimo preservar o que já detém em termos de recursos de

poder, evitando enfraquecer-se relativamente aos demais” (DINIZ, 2007, p.80, grifo do autor).

Essas considerações aproximam, de certa forma, o realismo ofensivo proposto por

Mearsheimer do realismo defensivo proposto por Waltz.

Devido a constrangimentos físicos, como a existência de oceanos, Mearsheimer

considera difícil a existência de um hegêmona global, ou seja, de unipolaridade. No entanto,

tornar-se hegêmona regional é viável e relativamente mais fácil: o Estado asseguraria a

balança de poder favorável a si e teria mais poder que seus rivais regionais, assegurando

assim sua segurança e sua sobrevivência (MEARSHEIMER, 2007, p.83-137). Finalmente,

nova aproximação entre realismo ofensivo e realismo defensivo ocorre quando se percebe que

“ser o único hegêmona regional é uma posição extremamente vantajosa e tende a torná-lo [o

Estado hegemônico] conservador quanto à dinâmica do sistema” (DINIZ, 2007, p.95, grifo

próprio).

Em resumo, o realismo ofensivo defende que a maximização de poder é uma

consequência lógica da anarquia e do dilema da segurança, uma vez que “o sistema

internacional fornece incentivos fortes para a perseguição de políticas externas expansionistas,

pois somente os Estados mais fortes têm as melhores chances de sobreviver” (TALIAFERRO,

2000, p.152-153). Nesse sentido, a projeção de poder com caráter imperialista é uma forma de

acumular mais poder relativamente a outros Estados.

O realismo defensivo, por sua vez, assegura que os incentivos para expansão somente

ocorrem sob certas condições, mesmo em ambiente anárquico (TALIAFERRO, 2000, p.129).

Isto, pois o realismo defensivo se preocupa com o dilema da segurança uma vez que muitos

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dos meios que um Estado usa para aumentar sua segurança diminuem a segurança de outros

Estados: o fortalecimento de um Estado é percebido como ameaça aos demais que se

fortalecem para contrabalancear o sistema, o que leva ao fortalecimento ainda maior do

primeiro, que se vê novamente ameaçado. Ciclicamente, o sistema internacional anárquico

torna-se ainda mais inseguro. Para evitar esse movimento que gera maior insegurança, “sob a

maioria das circunstâncias, os Estados mais fortes no sistema internacional deveriam

perseguir políticas militares, diplomáticas e econômicas que comunicam contenção”15

(TALIAFERRO, 2000, p.129).

O debate entre essas duas vertentes do realismo é interessante no que diz respeito aos

paradigmas pelos quais Estados buscam sua segurança, uma vez que “o realismo ofensivo e o

realismo defensivo têm prescrições radicalmente diferentes para doutrinas militares, economia

política internacional, intervenções militares, e administração de crises”16 (TALIAFERRO,

2000, p.129).

Uma premissa compartilhada pelas diversas vertentes realistas é a incerteza que a

anarquia gera para os Estados em relação às intenções dos demais atores do sistema, o que os

leva a um comportamento de autoajuda. Uma diferença significativa entre realismo ofensivo e

defensivo é a preocupação que cada uma dessas correntes tem com o dilema da segurança,

definido por Jervis como a situação “na qual os meios pelos quais um Estado busca aumentar

sua segurança diminui a segurança dos outros” (JERVIS apud TALIAFERRO, 2000, p.136).

Pelo que já foi discutido anteriormente, parece que o realismo defensivo percebe o dilema da

segurança como consequência da atuação internacional dos Estados; para que o dilema da

segurança seja menos intenso, essa atuação deveria ser conservadora, soberanista. Por outro

lado, o realismo ofensivo percebe o dilema da segurança como causa da atuação externa dos

Estados; para não se submeter a uma potência mais forte decorrente dessa estrutura, os

Estados deveriam buscar poder por meio de atuação agressiva, imperialista.

Conflitos são inerentes ao sistema internacional anárquico. A probabilidade de sua

ocorrência, no entanto, pode aumentar ou diminuir devido à distribuição de poder no sistema

internacional e a outros fatores como tecnologia militar, proximidade geográfica, e savoir-

faire para explorar recursos de eventuais territórios conquistados (TALIAFERRO, 2000,

p.136-137). Para o realismo defensivo, esses outros fatores influem mais que a própria

15 “Under most circumstances, the stronger states in the international system should pursue military, diplomatic, and foreign economic policies that communicate restraint.” 16 “(...) offensive realism and defensive realism generate radically different prescriptions for military doctrine, foreign economic policy, military intervention, and crisis management.”

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distribuição bruta de poder17 para a probabilidade de ocorrência de cooperação ou conflito. A

existência desses outros fatores “permite que Estados atuem por meio de estratégias

diplomáticas e militares particulares”18 (TALIAFERRO, 2000, p.137), não necessariamente

por intermédio de políticas imperialistas, o que, de certa forma, amenizaria o dilema da

segurança.

Por exemplo, diferentemente do realismo ofensivo, o realismo defensivo admite que

Estados podem cooperar. A cooperação para o realismo ofensivo, especialmente em questões

de segurança, é dificultada ou mesmo impossibilitada devido à sensibilidade com ganhos

relativos de Estados rivais; a cooperação poderia colocar em perigo a sobrevivência de um

Estado (TALIAFERRO, 2000, p.138). O realismo defensivo percebe esse argumento como

incompleto, pois

A cooperação é arriscada, mas a competição também o é. Estados não podem ter certeza antecipada dos resultados de uma corrida armamentista ou de uma guerra, e perder esse tipo de competição pode por em risco a segurança estatal.19 (TALIAFERRO, 2000, p.138).

Mearsheimer argumenta que o fato de Estados se preocuparem com seus rivais devido

à possibilidade de serem eliminados por eles faz com que eles se concentrem mais em

preparação militar de curto prazo do que em prosperar economicamente no longo prazo

(MEARSHEIMER, 2007, p.74-78). Isso significa que investimentos em matéria de defesa

superariam os demais e que, para garantir a própria sobrevivência, Estados atuariam

agressivamente, constrangidos pelo sistema internacional anárquico.

O realismo defensivo argumenta, no entanto, que sob algumas circunstâncias, essa

preponderância da preocupação de curto prazo, com a preparação militar e com políticas

imperialistas, não seria necessária ou benéfica. Nesse sentido, posição geográfica favorável

que dificulte uma intervenção e vizinhos relativamente mais fracos são fatores que

possibilitariam ao Estado se preocupar com objetivos de longo prazo e investir mais para o

progresso do próprio Estado do que para repelir ameaças a sua existência como ator

internacional (TALIAFERRO, 2000, p.140):

Por exemplo, a separação geográfica da Europa e a fraqueza relativa de Canadá e México possibilitaram que os EUA sobrevivessem aos primeiros 150 anos desde sua independência sem desenvolver instituições estatais fortes (isto é, um grande

17 Distribuição relativa de capabilities materiais que cada Estado controla. 18 “(…) enable individual states to carry out particular diplomatic and military strategies.” 19 “Cooperation is risky, but so is competition. States cannot be certain of the outcome of an arms race or war beforehand, and losing such a competition can jeopardize a state’s security”.

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Exército permanente, um sistema tributário eficiente, uma grande burocracia centralizada).20 (TALIAFERRO, 2000, p.140).

Contrariamente, é importante ter em mente que em situações adversas – ou seja,

Estados que tenham uma geografia porosa, pouco defendida, e cujos vizinhos sejam

poderosos – o realismo defensivo argumenta que as preocupações de curto prazo se tornam

mais legítimas e urgentes, assim como atuação externa ofensiva (TALIAFERRO, 2000,

p.140).

A vulnerabilidade externa [da Prússia] forneceu incentivos fortes para o desenvolvimento de instituições estatais eficientes para extrair recursos da própria sociedade, de Exército permanente, e de preferência por doutrinas militares ofensivas. Sucessivos reis prussianos (...) tentaram conquistar territórios adicionais necessários para consolidar (...) as fronteiras do reino, por intermédio de políticas expansionistas oportunistas e alianças astutas.21 (TALIAFERRO, 2000, p.140-141).

Estados, no ambiente anárquico, não são capazes de prever com exatidão as intenções

de outros atores internacionais quanto à busca pela segurança ou à ganância quando atuam

projetando poder, mas existem meios pelos quais a incerteza pode ser arrefecida. Entre esses

meios, esta a transparência do processo de tomada de decisão, assim como dos orçamentos

para cada área, comuns em Estados democráticos hodiernamente (KYDD, 1997). Obviamente

a transparência é limitada, pois quando se trata de questões de segurança, nem todas as

informações são publicizadas.

Outra forma de diminuir incertezas quanto à preocupação com a segurança, e não com

o expansionismo oportunista, é a atitude do Estado frente à dinâmica do sistema internacional.

Nesse sentido, ter políticas benignas diante vizinhos mais fracos, quando poderia anexar

territórios e projetar poder pela força, e ter política militar moderada, no sentido de regular os

quadros do Exército e a fabricação de armas, são demonstrações de atuação externa voltada

para a busca de segurança, e não para a conquista e a dominação (KYDD, 1997). Esse tipo de

comportamento, segundo os realistas defensivos, pode mitigar, mas não eliminar, o dilema da

segurança (TALIAFERRO, 2000, p.147), que permanece latente no sistema internacional

anárquico.

20 “For example, geographic separation from Europe and the relative weakness of Canada and Mexico allowed the United States to survive the first 150 years of its independence without developing strong state institutions (i.e., a large standing army, an efficient tax system, and a large central bureaucracy).” 21 “[Prussia’s] external vulnerability provided strong incentives for the development of efficient state institutions to extract resources from domestic society, a standing army, and a preference for offensive military doctrines. Successive Prussian kings (…) tried to acquire, through opportunistic expansion and shrewd alliances, additional territories needed to consolidate (…) the kingdom’s borders.”

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Em resumo, o realismo ofensivo advoga que o sistema internacional anárquico impõe

constrangimentos aos Estados e que, por isso, os leva a políticas expansionistas e à busca pela

maximização de seu poder relativo, em relação aos demais Estados. O realismo defensivo, por

sua vez, tem percepção mais otimista da política internacional, e defende que Estados devam

maximizar sua segurança relativa, não seu poder relativo, e podem fazê-lo eficientemente por

intermédio de atuação externa moderada, não agressiva.

A historiografia sobre a política externa do Império do Brasil é contraditória no que

diz respeito à orientação ofensiva ou defensiva da atuação internacional brasileira no século

XIX. Acadêmicos costumam, eventualmente em um mesmo ensaio, caracterizar aquela

atuação como imperialista e como soberanista sem, no entanto, se apoiar em referencial

teórico de Relações Internacionais. O que se pretende então, no terceiro capítulo deste

trabalho, é justamente esse esforço histórico-teórico para que se possa analisar a política

externa imperial para a região do Prata sob o amparo teórico e tentar definir se é possível

caracterizá-la em definitivo como imperialista ou soberanista, ofensiva ou defensiva.

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2 O BRASIL E O PRATA NO SÉCULO XIX

A História das relações internacionais na América Latina, especialmente da região do

Prata, é um objeto bastante estudado por historiadores e analistas internacionais, em especial

por ser uma região que contou e conta com controvérsias políticas, territoriais e diplomáticas

entre seus Estados, assim como por ter sido teatro de diversos conflitos nos últimos quatro

séculos. A independência dos países da região no primeiro quarto do século XIX catalisou as

disputas entre os rivais regionais, em especial entre Brasil e Argentina pela influência

regional.

Analisar a política internacional na região, assim como a política externa brasileira

para a mesma, aproveitando-se da controvérsia historiográfica sobre a caracterização da

mesma como imperialista ou como soberanista, é o esforço acadêmico que se pretende com

este trabalho. Escritos sobre a política externa brasileira, especialmente a política externa

imperial, são extremamente descritivos e destituídos de embasamento teórico. Percebida essa

fragilidade, busca-se justamente dotar a descrição historiográfica de caráter teórico,

utilizando-se as teorias realistas de Relações Internacionais para ampliar o escopo científico

desses estudos, assim como para contribuir para a linha de pesquisa de política internacional e

análise de política externa brasileira.

Antes de se discutir a política externa imperial para o Prata no século XIX sob as

lentes realistas, o que será realizado no próximo capítulo, faz-se necessário descrever a região

em apreço e fazer um breve apanhado sobre a conjuntura política, econômica e social dos

rivais regionais na região para que haja maior abrangência tanto da narrativa histórica em

relação à atuação externa do Brasil como da análise proposta sobre o realismo na política

exterior do Império do Brasil para o Prata. As variáveis internas aos Estados da região, como

o tamanho da população e a economia, como discutidos no capítulo anterior, são fatores

relevantes para o entendimento da caracterização defensiva ou ofensiva da política externa

brasileira para a região no período proposto.

2.1 A região do Prata

A região do Prata é, sem dúvida, o território em que mais conflitos houve entre os

países sul-americanos. A historiografia tradicional não é categórica ao definir os limites dessa

região, portanto, para este trabalho, a região do Prata será delimitada pelos territórios que

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compreendem os mais importantes rios formadores da Bacia do Prata, ou seja, Argentina,

Brasil, Paraguai e Uruguai (ver mapa 1). As disputas e conflitos perduraram por mais de dois

séculos nessa região e, via de regra, foram causados por interesses nacionais de controlar a

navegação e de obter hegemonia regional.

Mapa 1: Região do Prata

Fonte: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Riodelaplatabasinmap.png> Acesso em 1 nov. 2013.

O controle da navegação, ou o estabelecimento da livre navegação, nos rios da região

do Prata era importante para os vizinhos regionais devido ao escoamento de recursos para a

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Europa. Para o Brasil, os rios, nos séculos XVIII e XIX, eram as principais vias de acesso a

regiões importantes tanto para a manutenção da unidade territorial, no caso do Mato Grosso,

como para a economia colonial, no caso de São Paulo.

Por sua vez, a disputa pela hegemonia regional foi constante entre os dois principais

países da região: Argentina e Brasil. A Argentina, especificamente Buenos Aires, segundo a

historiografia brasileira, tinha interesse nacional claro de recriar o Vice-reino do Rio da Prata,

o que ia frontalmente de encontro aos interesses do Império do Brasil, que temia o surgimento

de um vizinho poderoso ao ponto de rivalizar com ele mesmo na região (CERVO, 2002,

p.114). Para o Brasil, os interesses geoestratégicos pela região eram fundamentais.

Os conflitos regionais nos séculos XVIII e XIX têm ligação direta com a expansão

territorial da América Portuguesa para além dos limites estabelecidos pelo Tratado de

Tordesilhas (1494). Esta expansão territorial se deveu a fatores políticos, econômicos e

jurídicos, sobretudo. As percepções dos Estados da região sobre as intenções imperialistas dos

rivais regionais podem ser considerados os fatores políticos. A pecuária, as drogas do sertão, a

mineração e o bandeirantismo constituíram os motivos econômicos para a expansão ao oeste.

Com os Tratados de limites, Portugal buscou garantir juridicamente a posse desses territórios

ocupados além da linha de Tordesilhas (GOES, 1991). “Desde o início do século XVIII, a

extensão geográfica da Colônia nada mais tinha a ver com a incerta linha de Tordesilhas”

(FAUSTO, 2003, p.135).

Questões e conflitos lindeiros com a Espanha foram recorrentes especialmente em

relação ao Sul. Diversos Tratados de limites buscaram a definição das fronteiras entre

Portugal e Espanha na América, o mais importante dos quais o Tratado de Madri (1750) que

foi um tratado abrangente que definiu as fronteiras do território brasileiro em semelhança às

fronteiras atuais. O Tratado, entretanto, foi anulado uma década depois, e “as controvérsias a

respeito das fronteiras do Sul não cessaram” (FAUSTO, 2003, p.135).

A principal questão relacionada à fronteira Sul entre Portugal e Espanha no século

XVIII ocorreu em relação à Colônia do Sacramento (BETHELL, 2012, p.158), criada por

Portugal em 1680 para assegurar e consolidar a ocupação lusa na foz do Rio da Prata (ver

mapa 2). A cidade foi conquistada por tropas espanholas por diversas vezes e devolvida a

Portugal, seja devido a negociações diplomáticas ou por meio de conflitos armados. Em 1750,

o Tratado de Madri dispunha que Sacramento fosse entregue a Espanha em troca do território

das Missões, atual Rio Grande do Sul, o que não ocorreu. Após esse episódio, foram várias as

investidas espanholas contra o território português e diversos os motivos de Portugal ter

retomado a região até a eclosão da Guerra da Cisplatina.

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Mapa 2: Sete Povos das Missões e Colônia do Sacramento – século XVIII

Fonte: <http://www.aender.com.br/?p=4302> Acesso em 1 nov. 2013.

Após meio século de conflitos22 pelo território de Sacramento e suas adjacências, a

Colônia do Sacramento voltou à posse portuguesa a partir de 1817, quando dom João

incorporou toda a região do atual Uruguai aos domínios de Portugal como Província

Cisplatina (BETHELL, 2012, p.158). “Os governos das Províncias Unidas do Rio da Prata,

porém, nunca abandonaram a ideia de incorporar a Banda Oriental ao novo Estado”

(BETHELL, 2012, p.158), uma vez que ele fazia parte do antigo Vice-Reino do Rio da Prata.

Entre 1825 e 1828 houve a Guerra da Cisplatina, que resultou na independência do Uruguai.

22 No contexto da Guerra dos 7 Anos (1756-1763) a Espanha toma a região em 1762, sendo obrigada a devolve-la ao fim do conflito. Entre 1776 e 1777, a Espanha, com maior efetivo militar, promoveu uma segunda ofensiva no Prata brasileiro, destruiu Sacramento, tomou as Missões e chegou a Santa Catarina. Portugal foi obrigado a aceitar o Tratado de Santo Ildefonso (1779), imposto pela Espanha, que estipulava a troca de Santa Catarina pelo reconhecimento da posse espanhola dos territórios de Sacramento, Missões e de parte do Rio Grande do Sul.

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Os portugueses mantiveram suas pretensões à Colônia do Sacramento, base estratégica para o contrabando da prata trazida da Bolívia e do Peru pelo rio Paraná. Durante a presença de Dom João VI no Brasil, em duas oportunidades as tropas portuguesas intervieram na região. Mas, de um modo geral, as fronteiras brasileiras estavam definidas (FAUSTO, 2003, p.135).

A região do Prata permaneceu, durante todo o século XIX, como o principal teatro

para a atuação externa do Império do Brasil. As questões políticas internas de Argentina,

Brasil, Uruguai e Paraguai, assim como as percepções de seus tomadores de decisão sobre a

dinâmica do poder na região, são fundamentais para a análise da política internacional da

região, e também da política externa imperial.

2.2 Os Estados do Prata: política, economia e sociedade

Para que a política internacional da região do Prata e a política externa brasileira para a

mesma sejam analisadas de forma mais ampla, é importante ter conhecimento prévio dos

países da região, suas políticas, economias e sociedades. Essas variáveis são importantes para

considerações e para análise da atuação externa brasileira para a região, ademais dos

constrangimentos impostos ao Estado pelo sistema internacional anárquico.

Entre as diferenças fundamentais entre os Estados da região em apreço estão o

processo de consolidação de suas independências e o regime político que adotaram:

É lugar-comum na historiografia brasileira contrastar a relativa facilidade da consolidação da Independência do Brasil com o complicado processo de emancipação da América espanhola. Ressalta-se ainda que, enquanto o Brasil permaneceu unificado, a América espanhola se fragmentou em várias nações. (...) Exemplo único na história da América Latina, o Brasil ficou sendo uma monarquia entre repúblicas (FAUSTO, 2003, p.146).

Enquanto o Brasil se consolidou como uma monarquia relativamente estável, que

contava com o reconhecimento europeu e com investimentos ingleses, o Vice-Reinado do Rio

da Prata, após o fim do domínio de Napoleão Bonaparte à Espanha, verificou tentativa de

recolonização por parte da Metrópole. O período dos cabildos livres, durante a época em que

a Espanha se encontrava sob julgo francês, no entanto, possibilitou que as populações

autóctones controlassem a política colonial e, por isso, questionassem o intuito recolonizador

espanhol:

Esses acontecimentos produziram na América[espanhola] uma crise de legitimidade política. A autoridade provinha tradicionalmente do rei; as leis eram obedecidas

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porque eram leis do rei. Agora não havia um rei a quem obedecer. Isso também pôs em questão a estrutura do poder e sua distribuição entre os funcionários reais e a classe governante local. Os criollos tiveram de decidir sobre o melhor modo de preservar sua herança e manter-se no controle. A América espanhola não podia continuar sendo uma colônia sem uma metrópole, ou uma monarquia sem um monarca. (LYNCH, 2001, p.72).

O resultado das diversas guerras de independência na América espanhola, no primeiro

quarto do século XIX, foi a formação de diversas repúblicas: “o Vice-Reinado do Rio da Prata

não sobreviveu como unidade política ao fim do colonialismo espanhol (...). Naquele espaço

territorial, após longos conflitos, nasceram a Argentina, o Uruguai, o Paraguai e a Bolívia.”

(FAUSTO, 2003, p.209).

2.2.1 Argentina, Uruguai e Paraguai

A Argentina tornou-se independente em 1816, todavia, a criação da República

Argentina ocorreu somente em 1862 depois de “muitos vaivens e guerras, em que se opunham

as correntes unitária e federalista” (FAUSTO, 2003, p.209), até que os unitaristas, sob

Bartolomé Mitre, derrotaram os federalistas e o país foi reunificado. Enquanto os unitários –

representados especialmente pelos comerciantes de Buenos Aires – advogavam pela

centralização do Estado sob Buenos Aires, os federalistas – elites regionais, proprietários de

terras, pequenos industriais e comerciantes – defendiam a descentralização e o liberalismo

(FAUSTO, 2003, p.209-210). A dinâmica assemelha-se, em certo ponto, à ocorrida do Brasil

entre portugueses e brasileiros durante o Primeiro Reinado23. A partir da reunificação

argentina, esta adotou política mais liberal e houve aproximação sua com o Império do Brasil

(FAUSTO, 2003, p.212), variável importante para a edificação da Tríplice Aliança durante a

Guerra do Paraguai.

Quando se tornou independente, a Argentina tinha economia pouco desenvolvida para

os padrões dos países da América espanhola à época. Faltavam recursos como minas para

extração de minérios, mão de obra e manufaturados. A agricultura baseava-se em poucas

fazendas à margem das cidades com produção insuficiente mesmo para abastecer o mercado

urbano. Com a independência, os ingleses assumiram o papel de empresários, antes ocupado

23 Após a Independência, dom Pedro convocou Assembleia Constituinte para criação de uma Constituição. O partido português23 apoiava dom Pedro e suas tendências absolutistas, enquanto o partido brasileiro – elites agrárias – tinha visão mais liberal e desejava enfraquecer os portugueses e o Imperador (FAUSTO, 2003, p.130-131). “A forma de governo desejável, segundo os conservadores, era a monarquia constitucional, com representação limitada, como garantia da ordem e da estabilidade social” (FAUSTO, 2003, p.133); essa posição moderada dos liberais brasileiros foi recorrente durante todo o século XIX.

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pelos espanhóis, e os comerciantes locais se voltaram à agricultura e à pecuária. Buenos Aires

tornou-se uma região mais desenvolvida nesse período, favorecendo-se da guerra de secessão

que afetou outras regiões como Entre Ríos e Corrientes e da invasão portuguesa à Banda

Oriental, ambas importantes regiões de criação de gado (LYNCH, 2001, p.625-626).

A economia argentina era rudimentar e com pouco ou nenhum ganho de escala devido

à falta de investimentos em tecnologia ou em infraestrutura. Não existiam estradas e pontes.

Nesse sentido, Buenos Aires foi incorporando terras ao seu território e expandindo não só sua

produção agropecuária, mas também sua influência sobre o país. Na década de 1840, o gado

era “a principal riqueza da província e a base de uma economia de exportação” (LYNCH,

2001, p.628):

Quando a economia pastoril ingressou num período de desenvolvimento, a expansão se fez de forma mais extensiva que intensiva, pois havia abundância de terra, mas não de capital; e não foi introduzida nenhuma inovação técnica, nem foi feita qualquer tentativa de melhorar o gado ou de modernizar a produção. (LYNCH, 2001, p.627).

O Estado favorecia os criadores de gado em detrimento dos agricultores, o que o

tornava dependente de cereais importados. Como existia falta de capital, pouca tecnologia e

pouca mão de obra, “era uma atitude realista concentrar-se na pecuária, aproveitar os recursos

naturais do país e promover seus produtos de exportação mais importantes” (LYNCH, 2001,

p.631). O livre comércio era favorecido por Buenos Aires, província dominante, mas criticado

por partes da população – especialmente por fazendeiros, e pelas províncias do litoral, entre

elas Entre Ríos e Corrientes – ao passo que punha obstáculos à produção agrícola, retardava a

recuperação e o desenvolvimento das outras províncias (LYNCH, 2001, p.631).

A indústria existia, mas era pouco desenvolvida principalmente nas províncias do

meio-oeste e oeste argentinos. Buenos Aires também contava com indústria insipiente e, em

meados do século XIX, surgiu certo interesse protecionista para salvaguardar a indústria

nacional e a agricultura (LYNCH, 2001, p.633-634):

Buenos Aires tinha um pequeno setor industrial constituído de manufatureiros têxteis, trabalhadores em prata, fabricantes de arreios e ferreiros. Supria as necessidades locais e da classe baixa e, algumas vezes, as do governo; na verdade, foi a guerra que manteve os negócios de muitos deles, que produziam uniformes, equipamentos e ferragens. (LYNCH, 2001, p.633).

A balança de pagamentos deficitária, devido ao livre comércio, somou-se à

preocupação com a defesa da indústria e da agricultura argentina que, em 1835, introduziu

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taxas de importação mais altas. Essas taxas foram mais elevadas que aquelas impostas ao

comércio externo do Império do Brasil, nove anos depois, com a Tarifa Alves Branco.

(LYNCH, 2001, p.634). Assim como ocorreria no Brasil, o protecionismo foi logo afrouxado

e a indústria argentina permaneceu “à margem da vida econômica, confinada às oficinas e aos

artesãos” (LYNCH, 2001, p.635).

Em resumo, a economia argentina conviveu, no século XIX, com desequilíbrios na

balança de pagamentos e enorme déficit comercial. Exportavam-se produtos pecuários,

especialmente couro para a Europa e charque para o Brasil; importava-se todo o resto.

Praticamente inexistia poupança ou acúmulo de capital, ou seja, não havia investimento.

Apenas 3% da importação consistia de matérias primas industriais, o que indica o baixo nível

de industrialização (LYNCH, 2001, p.636-637). Após a chegada de Mitre ao poder, na década

de 1860, houve modernização da economia argentina pautada em “crescimento através das

exportações do setor rural, investimentos numa nova infraestrutura e imigração. (...) Mas o

investimento dependeu, em sua essência, da importação de capital estrangeiro, sobretudo da

Inglaterra” (LYNCH, 2001, p.670).

A sociedade argentina no século XIX era majoritariamente rural e “experimentou um

crescimento demográfico constante, passando de 507.951 habitantes, em 1816, para 570 mil,

em 1825, 1.180.000, em 1857, e 1.736.923, em 1869” (LYNCH, 2001, p.638):

Esse crescimento foi, em substância, o resultado da queda da taxa de mortalidade: numa época em que as condições econômicas estavam experimentando grandes melhoras, não houve epidemias mais sérias (...). Nesse período a imigração foi modesta (...). O maior crescimento populacional foi registrado nas províncias litorâneas (...). Cerca de um terço do total da população concentrava-se em Buenos Aires e em Córdoba. (LYNCH, 2001, p.638).

A partir da década de 1860, a imigração passou a alimentar significativamente o

crescimento populacional argentino e a população tendia a se concentrar no litoral (LYNCH,

2001, p.671).

O exército argentino na década de 1830 era formado por homens recrutados entre as

classes mais baixas e comandados por soldados profissionais. “Se não era um exército

eficiente, era ao menos numeroso – talvez 20 mil homens – e ativo, ocupado constantemente

em guerras com países estrangeiros, em conflitos entre as províncias e na segurança interna”

(LYNCH, 2001, p.654). Os gastos com a defesa garantiam mercados a algumas indústrias

argentinas, com destaque para as têxteis, produtoras de uniformes, assim como indústrias de

armas e equipamentos, que se mantinham ativas. Além disso, o exército regular favorecia os

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criadores de gado, que abasteciam as tropas. Os gastos com defesa eram vultosos –

aproximadamente 50% do orçamento total durante todo o período Rosas – e, em períodos de

retração econômica, permaneciam altos em detrimentos de gastos sociais como com educação

e benefícios sociais. (LYNCH, 2001, p.654-655).

O Uruguai foi criado como “Estado tampão” (BASILE, 1990, p.216; CERVO, 2002,

p.41) entre Brasil e Argentina, em 1828, após a Guerra da Cisplatina. Importante ter em mente

a mediação da Inglaterra para o fim do conflito e a independência do Uruguai, uma vez que “a

Inglaterra viu com bons olhos a criação do país, que deveria servir para estabilizar a área do

estuário do Rio da Prata, onde os ingleses tinham interesses financeiros e comerciais”

(FAUSTO, 2003, p.210). A vida política uruguaia pós independência, no entanto, foi

conturbada, com a oposição permanente entre os partidos colorado – comerciantes, liberais –

e blanco – proprietários, conservadores, ligados ao julgo espanhol – pelo controle do país

(BETHELL, 2012, p.158-159; FAUSTO, 2003, p.210). Essa oposição entre grupos sociais e

políticos levou a intervenções internacionais e desencadeou o mais importante conflito

regional da História da América Latina: a Guerra do Paraguai.

O Uruguai, após a independência, tinha uma economia pastoril e um comércio de

exportação, como era comum na América Latina do século XIX. A disputa pelas terras do

país entre estancieiros antigos e recém-chegados e a proteção dada a cada um desses grupos

por caudilhos locais, gerou a formação de partidos opostos pela disputa do poder. Conflitos

internos devido a questões econômicas foram recorrentes no Uruguai do século XIX

(LYNCH, 2001, p.672-673). Esses conflitos deixaram o Uruguai “exaurido e depauperado e

seu rebanho e sua indústria de charque arruinados, seu governo altamente endividado junto

aos credores nacionais e estrangeiros e sua população em declínio” (LYNCH, 2001, p.674).

O comércio era dominado por comerciantes europeus e empréstimos europeus

mantinham as finanças uruguaias (LYNCH, 2001, p.673). O tesouro uruguaio tinha de pagar

os custos das sucessivas guerras internas e externas que envolviam o país (LYNCH, 2001,

p.675). Na década de 1850, o Uruguai pôs-se em posição subordinada em relação ao Brasil e

(...) assinou com o Brasil um tratado extremamente desfavorável, pelo qual cedia direitos territoriais, concedia uma hipoteca sobre os direitos alfandegários e permitia o livre trânsito (isto é, sem impostos) do gado do Uruguai para o Brasil; tudo isso, em troca de um subsídio mensal, os únicos fundos de que o tesouro uruguaio dispunha. (LYNCH, 2001, p.674)

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A sociedade uruguaia refletia a polaridade política existente no país. Os colorados

eram maioria em Montevidéu, pois estiveram mais firmemente no poder com os apoios do

Império do Brasil e da Argentina, exceto no período Rosas, e os blancos permaneceram em

cidades circunvizinhas:

Os colorados adquiriram uma identidade de partido urbano, receptivo às ideias liberais e estrangeiras, à imigração europeia e ao apoio brasileiro. (...) Por outro lado, a zona rural era blanca. O partido blanco era o partido dos estancieiros, o partido da autoridade e da tradição. (LYNCH, 2001, p.673).

A população uruguaia teve decréscimos importantes, durante o século XIX,

explicados, sobretudo, pelas guerras internas e externas nas quais esteve envolvido. “A

população caiu de 140 mil habitantes, em 1840, para 132 mil, em 1852” (LYNCH, 2001,

p.674), e “subiu para 221.248, em 1860” (LYNCH, 2001, p.676). Muitos imigrantes

estrangeiros abandonavam o país em busca de segurança nos vizinhos da região do Prata,

gerando escassez de mão de obra e desaceleração da economia em períodos de guerra

(LYNCH, 2001, p.674), e voltavam a ingressar no país, dinamizando o comércio devido ao

aumento da demanda interna de produtos importados (LYNCH, 2001, p.676). “Na década de

1850, um grande número de brasileiros, vindos do Rio Grande do Sul, entraram num Uruguai

vazio” (LYNCH, 2001, p.674), o que mais tarde seria uma das causas objetivas24 de nova

intervenção militar brasileira e, em última análise, da Guerra do Paraguai.

O Paraguai foi o primeiro país sul-americano a se tornar independente, em 1810,

contudo adotou política isolacionista, com o objetivo de se desenvolver voltado para dentro, e

teve pouca participação nos conflitos na região do Prata na primeira metade de século XIX

(BETHELL, 2012, p.160). Um dos motivos para esse isolamento era a desconfiança do

Paraguai em relação aos seus vizinhos, “muito maiores, muito mais povoados e

potencialmente predatórios: as Províncias Unidas do Rio da Prata e o Brasil.” (BETHELL,

2012, p.160). O Brasil e as Províncias Unidas reconheceram a independência do Paraguai

somente em 1844 e 1852, respectivamente, tinham reivindicações territoriais contra aquele

país, e atritos quanto à livre navegação nos afluentes do rio da Prata (BETHELL, 2012, p.160-

24 “Os colonos brasileiros alcançaram o total de quase 20 mil (sem contar os que não estavam registrados), constituindo 10 a 15 por cento da população total, ocupando 30 por cento do território uruguaio e tendo em mãos algumas das melhores fazendas do país. À medida que foram criando raízes e começaram a difundir sua língua e seus costumes, passaram a constituir um encrave poderoso, com dois aspectos que preocupavam sobretudo as autoridades uruguaias: a concentração de suas estâncias na região de fronteira e a tendência dos colonos a apelar para seu governo contra qualquer pressão do Uruguai”. (LYNCH, 2001, p.678).

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161). Apesar de pouco ter participado da política regional na primeira metade do século XIX,

o Paraguai era caracterizado por “uma vontade nacional de potência, amparada numa

economia próspera e em efetivos militares extraordinários” (CERVO, 2002, p.121).

Após a independência, o Paraguai tinha uma economia quase de subsistência. Os

principais produtos de sua economia eram a erva-mate e a madeira e o governo estabelecia

cotas de produção de cereais e algodão para substituir os produtos importados. O Estado,

comandado por ditaduras sucessivas25, controlava a economia e logo transformou as estâncias

em unidades eficientes de produção voltadas para o mercado externo, para o suprimento do

exército e para estoques. Houve investimentos em educação e em modernização da economia,

da infraestrutura e das armas, a partir de meados dos anos 1840 (LYNCH, 2001, p.680-683).

Quanto ao setor militar, o Paraguai possuía estaleiro e fábricas para a produção de

canhões e equipamentos navais, desde a década de 1850, graças à importação de tecnologia,

maquinaria e equipamentos ingleses (LYNCH, 2001, p.683). O exército paraguaio à época da

independência consumia grande parcela do orçamento e contava com cerca de 3000 soldados.

Após Solano López chegar ao poder, o efetivo do exército permanente foi aumentado para 28

mil homens. “A modernização esteve na dependência da segurança regional do Paraguai e

procurou realizá-la” (LYNCH, 2001, p.684). López “estava determinado a projetar essa nova

força para o exterior e converter o Paraguai no guardião do equilíbrio de poder no rio da

Prata” (LYNCH, 2001, p.685).

2.2.2 Império do Brasil

No início do século XIX, a extensão geográfica da América portuguesa se

assemelhava com a extensão atual do Brasil devido, sobretudo, a fatores políticos e

econômicos. Os fatores políticos podem ser sumarizados nas diversas negociações e Tratados

lindeiros assinados entre Portugal e Espanha durante o século XVIII e nos conflitos militares

ocorridos entre as Metrópoles em território americano. Já os fatores econômicos podem ser

sumarizados na expansão da pecuária, das drogas do sertão e das expedições bandeirantes, no

século XVII, e na mineração, no século XVIII:

Desde o início do século XVIII, a extensão geográfica da Colônia nada mais tinha a ver com a incerta linha de Tordesilhas. A expansão das bandeiras paulistas, para o oeste, e dos criadores de gado e forças militares, para o sudoeste, ampliaram de fato

25 José Gaspar Rodríguez de Francia (1814-1840); Carlos Antonio López (1844-1862); Francisco Solano López (1862-1869).

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as fronteiras do país. O avanço minerador, a partir do século XVIII, deu mais um empurrão, de modo que a fisionomia territorial do Brasil já se aproximava bastante da atual. (FAUSTO, 2003, p.135).

Essa expansão territorial “não quer dizer que houvesse em todas as partes de território

brasileiro uma população assentada” (FAUSTO, 2003, p.135). Havia no início do século XIX,

e perdurou até meados do século XX, vastas porções do território brasileiro praticamente

inexploradas. O efeito desses espaços explica, de certa forma, a dinâmica de arquipélagos

econômicos e a “escassa integração territorial e econômica do Brasil imperial” (FAUSTO,

2003, p.242): a produção de cana de açúcar no litoral, de algodão no nordeste, de borracha no

norte, a mineração no centro sul; a pecuária no sul; e, mais tarde, o cultivo do café no sudeste

não produziram comunicação entre as regiões, o que gerava prosperidade para poucos

indivíduos e uma prosperidade localizada.

A lógica da agroexportação, ou seja, a dependência do mercado externo, impediu, de

certa forma, que o Império do Brasil tivesse uma economia sólida. Além desses problemas, a

baixa arrecadação alfandegária do Império e os gastos para contenção de revoltas –

especialmente as revoltas do Período Regencial – e em conflitos externos assolavam ainda

mais a economia imperial. Importante ressaltar, também, que “a necessidade de indenizar a

Coroa portuguesa [pela independência] deu origem ao primeiro empréstimo externo,

contraído pelo Brasil em Londres” (FAUSTO, 2003, p.144), empréstimos que se tornariam

recorrentes no século XIX, agravando a situação econômica do Império.

No século XIX, o Império do Brasil foi sustentado economicamente pelo café, por

investimentos e por empréstimos ingleses e pelas inversões do Barão de Mauá, associado ao

capital inglês, na infraestrutura nacional. Ao mesmo tempo, esses fatores foram aqueles que

mais diretamente se fizeram presentes na atuação imperial na região do Prata. Se os lucros do

setor cafeeiro eram em sua maior parte reinvestidos no próprio setor primário e os

investimentos ingleses ocorriam sobretudo na infraestrutura nacional, como na malha

ferroviária, os empréstimos ingleses e a atuação do Banco Mauá foram fundamentais na

atuação externa imperial no Prata: empréstimos externos sustentaram, de certa forma, esforços

de guerra do Brasil na região, enquanto empréstimos do Banco Mauá aos aliados brasileiros

nos conflitos do século XIX possibilitavam uma atuação concertada entre eles, no que ficou

conhecido como diplomacia dos patacões (ALMEIDA, 2001, p.200).

Antes da independência, por conta das guerras napoleônicas, a família real portuguesa

decidiu pela transmigração da Corte para o Brasil (FAUSTO, 2003, p.121). Segundo Maria

Odila Dias (1986), a vinda da família real e as transformações na Colônia aceleraram o

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processo de independência da Colônia. O período joanino foi caracterizado pela

modernização do estado brasileiro, devido às reformas joaninas, que se deram no campo

político, no econômico e no cultural (CARDOSO, 1990, p. 125). As medidas iniciais de dom

João, e suas principais reformas, nesse sentido, foram “a abertura dos portos brasileiros às

nações amigas, abolindo-se assim o exclusivo comercial metropolitano” (CARDOSO, 1990,

p.124), que favoreceu a Inglaterra (FAUSTO, 2003, p.122), e a revogação do alvará de 1785,

que propiciou a instalação de manufaturas em território brasileiro. “A presença da corte, as

medidas de fomento e o próprio aumento demográfico fizeram surgir numerosas manufaturas

na cidade” (CARDOSO, 1990, p.125).

A despeito de continuar extremamente dependente do comércio externo, o Brasil

passaria a necessitar de produzir outros bens, que não os primários, internamente, devido à

situação de a Metrópole estar sitiada por Napoleão e pela presença da Corte na Colônia. As

reformas econômicas tiveram esse intuito e destacam-se a revogação do alvará de proibição

de instalação de manufaturas no Brasil, a criação da fábrica de pólvora na Bahia, para o

abastecimento do arsenal de guerra lusitano, e o cunho de moeda nacional por meio da criação

da Casa da Moeda e do Banco do Brasil.

Como o Brasil passava a ser sede do Império Português, a política externa também foi

deslocada para a América:

A transferência da sede da monarquia portuguesa para o Brasil mudou o quadro das relações internacionais no contexto da América do Sul. A política externa de Portugal passou a ser decidida na Colônia, instalando-se no Rio de Janeiro o Ministério da Guerra e Assuntos Estrangeiros. (FAUSTO, 2003, p.125).

No eixo simétrico26, dom João implementou política externa intervencionista27. Ao

norte, em 1809, Portugal invadiu a Guiana Francesa, tendo tomado Caiena, como retaliação à

invasão de Portugal por Napoleão (BASILE, 1990, p.190). Ao sul, dom João buscou projetar

poder no Prata, intervindo na Banda Oriental em 1811 e 1816 (BASILE, 1990, p.190;

FAUSTO, 2003, p.125). Como resultado, em 1817, Portugal incorporou a região da Colônia

do Sacramento, em posse da Espanha desde 1767, como Província Cisplatina (CARDOSO,

1990, p.125).

26 A divisão da análise de política externa entre os eixos simétrico e assimétrico deve-se à inspiração do artigo do embaixador Rúbens Ricúpero, O Brasil, a América Latina e os Estados Unidos desde 1930 (2006). 27 A criação da Academia Militar, em 1811, é um elemento institucional não desprezível que facilitaria a viabilidade do manu militari na atuação externa portuguesa na América. A falta de Tratado abrangente de fronteira entre Portugal e Espanha possibilita as intervenções sucessivas no Prata.

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Quanto ao eixo assimétrico, ou seja, as relações com países europeus, a relação foi de

submissão e cooperação (BASILE, 1990, p.190). Em 1810, a América Portuguesa submeteu-

se aos Tratados desiguais impostos pela Inglaterra, em que ela teria preferência tarifária em

relação aos produtos importados do resto do mundo, em troca de proteção (BASILE, 1990,

p.189-190): “foram concedidas aos britânicos tarifas alfandegárias preferenciais, inferiores

mesmo, até 1818, as que deviam pagar, nos portos do Brasil, os barcos portugueses”

(CARDOSO, 1990, p.124). “Os tratados de 1810 inauguraram, assim, o período que Alan

Manchester denominou de preeminência inglesa no Brasil” (BASILE, 1990, p.190). Em 1815,

os representantes brasileiros tiveram postura cooperativa durante o Congresso de Viena, que

trouxe impacto significativo para o Brasil: ainda em 1815, Portugal elevou o Brasil a Reino

Unido (CARDOSO, 1990, p.124); em 1817, o Congresso condenou o tráfico, e Portugal

devolveu Caiena (BASILE, 1990, p.190).

O Primeiro Reinado foi um período curto por se tratar de uma Monarquia. Os nove

anos em que dom Pedro I esteve a frente da política imperial foram caracterizados por crises

políticas e econômicas quase ininterruptas que, concomitantemente à crise institucional

ocorrida em seu governo, contribuíram para a abdicação do primeiro rei constitucional

brasileiro.

“A regência de dom Pedro foi inicialmente marcada por um clima de incerteza e

insegurança quanto às inclinações liberais ou despóticas de seu governo” (BASILE, 1990,

p.190): de formação claramente monárquica, aceita o liberalismo no país que se formava, ao

mesmo tempo em que ameaçava vetar decisões da Assembleia Constituinte, convocada logo

após a independência28. Ao perceber a tentativa dos brasileiros de conter o poder do

monarca29 (MONTEIRO, 1990, p.136) ao apresentarem o “Projecto de Constituição”

(BASILE, 1990, p.211), em 1823, dom Pedro I “resolve fechar a constituinte” (MONTEIRO,

1990, p.136) e outorgar30 nova Constituição notabilizada “pela centralização política e

administrativa, e pela concentração de poderes nas mãos do Imperador” (BASILE, 1990,

p.212). A Constituição de 1824, ademais a outras disposições, cria o Conselho de Estado,

28 Dom Pedro pronunciou assim que houve a coroação: “Juro defender a Constituição que esta para ser feita, se for digna do Brasil e de mim” (MONTEIRO, 1990, p.136) 29 “A maioria dos constituintes adotava uma postura liberal moderada, consistente em defender uma monarquia constitucional que garantisse os direitos individuais e estabelecesse limites ao poder do monarca.” (FAUSTO, 2003, p.148). 30 O projeto de Constituição que, até então, estivera em pauta previa um forte controle do parlamento sobre o soberano e um certo grau de autonomia das províncias. O imperador, que já se insurgira contra as Cortes Constitucionais de Portugal, repetia o mesmo feito contra a Constituinte do Império. (MONTEIRO, 1990, p.137).

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órgão de auxilio do Imperador e importante órgão para a formulação da política externa

durante o Império.

A crise política configurou-se, portanto, na falta de elasticidade do monarca em aceitar

uma Constituição que limitasse seus poderes.

A crise econômica deveu-se ao déficit orçamentário ininterrupto vivenciado pelo

período, em virtude da queda da arrecadação alfandegária devido à renovação dos Tratados de

1810 com a Inglaterra, em 1825, e à crise no setor açucareiro (BASILE, 1990, p.217). A

renovação dos tratados com a Inglaterra ocorreu em momento em que o Brasil se tornava

independente e necessitava do reconhecimento dos países europeus; a crise do açúcar no

Primeiro Reinado ocorreu devido à concorrência do açúcar de beterraba europeu ao setor

açucareiro brasileiro. Ambos geraram agravamento da crise econômica daquele período.

Por sua vez, os gastos com o reconhecimento da Independência e com a Guerra da

Cisplatina fizeram com que o Brasil tomasse altos empréstimos na city londrina, tendo

aumentado consideravelmente o endividamento nacional:

Os gastos militares vinham agravar os problemas econômico-financeiros já existentes. O volume físico de alguns produtos de exportação, como o café, aumentou consideravelmente ao longo da década de 1820, mas os preços do algodão, couro, cacau, fumo e do próprio café tenderam a cair. As rendas do governo central, dependentes em grande medida do imposto sobre as importações, eram insuficientes. (FAUSTO, 2003, p.155).

Importante notar que nessa época ocorria o ocaso da mineração, assim como o declínio

da região amazônica (produção de algodão) devido à expulsão dos jesuítas e a retomada da

produção dos EUA. Por outro lado, o café começava a ser produzido no país, produto cujo

apogeu se daria na Regência. Além disso, o emissionismo para a realização das reformas do

período joanino não foi interrompido e gerou inflação, ou seja, aumento dos custos de vida no

Brasil. A inflação implicou em consequências sociais, como o reforço ao antilusitanismo, uma

vez que os portugueses eram responsáveis pelo comércio, e contribuiu para a abdicação.

A crise institucional ocorreu porquanto dom Pedro estava pressionado. Além das

crises política e econômica, com a reabertura do Parlamento em 1826 o Imperador passava a

conviver com as críticas dos setores liberais: “Pedro de Alcântara [assistiu] a um crescente

confronto entre a Câmara dos Deputados e o Monarca” (MONTEIRO, 1990, p.137). Além

disso, mesmo com controle da imprensa, os jornais também criticavam o governo e o próprio

imperador (MONTEIRO, 1990, p.137). Somou-se a esse cenário um “desastre militar (...) e

uma catástrofe financeira” (FAUSTO, 2003, p.154-155) para os brasileiros com a Guerra da

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Cisplatina, e a Revolução de 1830 na França, que influenciou o contexto político nacional e,

consequentemente, a abdicação de dom Pedro (BASILE, 1990, p.219; FAUSTO, 2003,

p.158).

Após a Independência, o Brasil consolida sua inserção periférica no sistema capitalista

dominado pelos ingleses (CERVO, 2002, p.34-38). A manutenção dos Tratados desiguais de

1810, em 1825, favorecia os ingleses mesmo frente a Portugal, cujos produtos importados

pagavam imposto maior do que os ingleses (BASILE, 1990, p.189-190). Em 1828, a extensão

da tarifa de 15% para todos os Estados independentes (BASILE, 1990, p.215) gera queda

vertiginosa na arrecadação e piora a situação econômica do Brasil.

Durante o Primeiro Reinado, o principal momento da política externa brasileira no

eixo simétrico ocorreu com a Guerra da Cisplatina, que culminou na independência do

Uruguai e, por isso, é considerada o fracasso da atuação externa imperial. No eixo

assimétrico, mantinha-se a submissão em relação à Inglaterra.

Com a abdicação de dom Pedro I, em 1831, seu filho, então com 5 anos de idade

assume o trono brasileiro e inicia-se a Regência, que duraria 9 anos. Durante todo o período

regencial, houve hegemonia dos grupos liberais na política imperial: o partido brasileiro

(liberal) tomou a frente da política imperial alijando o partido português (restaurador) das

deliberações. A política ficou a cargo dos liberais moderados, que advogavam pela

manutenção da ordem, ou seja, latifúndio, monocultura, escravidão, voto censitário, unidade

territorial. Enquanto isso, os liberais exaltados, advogando pela democracia e pelo fim da

escravidão, lideraram as revoltas regenciais, que influenciaram negativamente a economia e a

política do período (BASILE, 1990, p.221-223). A facção portuguesa, concertada com a

Metrópole, insistia pelo retorno de dom Pedro I, mas perdeu sua raison d’etre em 1834

quando do falecimento do monarca em Portugal.

O período regencial foi um dos mais agitados da história política do país e também um dos mais importantes. Naqueles anos, esteve em jogo a unidade territorial do Brasil, e o centro do debate político foi dominado pelos temas da centralização ou descentralização do poder, do grau de autonomia das províncias e da organização das Forças Armadas. (FAUSTO, 2003, p.161).

“No período regencial, entre 1831 e 1840, dá-se uma profunda agudização das crises

políticas e sociais que haviam sido tão-somente contornadas durante o reinado de Pedro I”

(MONTEIRO, 1990, p.138). O período regencial foi caracterizado por crise política e

econômica devido ao excessivo liberalismo dos primeiros anos da Regência, denominado

avanço liberal: foi criada a Guarda Nacional formada por brasileiros, o que resultou na

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descentralização militar e no enfraquecimento do Exército (BASILE, 1990, p.225); o Código

de Processo Criminal e a figura do juiz de paz, que descentralizou o Judiciário (BASILE,

1990, p.227); e, finalmente, editou-se o Ato Adicional, que descentralizou o Legislativo ao

extinguir o Conselho de Estado e criar Assembleias Legislativas nas províncias, dando a elas

maior autonomia (MONTEIRO, 1990, p.138-139).

As reformas do início da Regência não poderiam deixar de incidir sobre um dos pontos mais explosivos das disputas políticas do Primeiro Reinado: a relação de forças entre o Executivo e o Legislativo. Neste sentido, a Lei de Regência (...) inverteu essa relação, fortalecendo o poder do Parlamento em detrimento dos regentes. (BASILE, 1990, p.227).

O fortalecimento do Parlamento em detrimento do Imperador e a consequente

descentralização dos poderes no Estado brasileiro acarretaram problemas: a autonomia das

províncias gerava insatisfação de grupos sociais e políticos e eclosão de revoltas em várias

regiões do país, colocando em risco a unidade nacional (MONTEIRO, 1990, p.139;

FAUSTO, 2003, p.161); a crise econômica do Primeiro Reinado é piorada na Regência a

partir do momento em que passa a existir a descentralização das receitas tributarias entre o

governo central e as províncias (BASILE, 1990, p.230; FAUSTO, 2003, p.163); a

instabilidade crônica do período regencial piora ainda mais a economia por causa do custo da

repressão às revoltas.

A crise econômica teve reflexos nos gastos e investimentos do governo, sobretudo no

campo militar que sofreu cortes drásticos no seu custeio ao longo desse período. A extinção

do Conselho de Estado e a baixa arrecadação fragilizavam a política externa regencial.

Segundo Amado Cervo (2002), o período se caracteriza pelo imobilismo da atuação externa

imperial. Esse imobilismo pode ser caracterizado pela política reativa da Regência, em que

pressões externas eram respondidas em detrimento do Estado brasileiro (CERVO, 2002,

p.54).

O imobilismo verificou-se também quanto às tensões no Prata. O Brasil não se

encontrava em posição favorável à confrontação: sem Conselho de Estado, extinto pelo Ato

Adicional; sem receitas, devido aos Tratados desiguais, à fragmentação da receita

alfandegária e à repressão das revoltas; sem Exército, enfraquecido pela Guarda Nacional; e

sem possibilidade de projetar poder, porquanto as tropas estavam incorporadas à Farroupilha.

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O fortalecimento do Estado nacional tem início com o regresso conservador31 nos

últimos anos da Regência, passando pelo golpe da maioridade, que restaurou o poder

moderador (MONTEIRO, 1990, p.141-143), e pelo fim dos Tratados desiguais com a

Inglaterra, em 1842: “tal fato assinala o declínio da preeminência política inglesa no Brasil”

(BASILE, 1990, p.241). A contenção das revoltas e a concentração do poder no Imperador

durante o Segundo Reinado geraram estabilidade. No fim da década de 1850 inicia-se crise

política, que culmina em 6 anos e 6 gabinetes liberais no poder, e enorme instabilidade

institucional na década de 1860.

O Segundo Reinado foi o mais longo período sem rupturas institucionais da História

do Brasil. Na política, dom Pedro II teve restaurado o Poder Moderador assim como o

Conselho de Estado (FAUSTO, 2003, p.179). O Imperador revezava gabinetes liberais e

conservadores para que os dois grupos participassem da condução do país (BASILE, 1990,

p.239), via de regra adotando agendas parecidas, de caráter conservador (BASILE, 1990,

p.242; FAUSTO, 2003, p.181).

Dois importantes momentos políticos que tiveram reflexo na política externa imperial

para o Prata foram o gabinete conservador da Trindade Saquarema, em 1848-1853

(MONTEIRO, 1990, p.142-143), e o gabinete liberal da Liga Progressista, em 1862-1868

(BASILE, 1990, p.254-258). A Trindade Saquarema foi alçada ao poder por ser constituída de

conservadores eminentes32 e que deveriam conter a última revolta do Império – a Praieira – e

resolver questões que se arrastavam por décadas: o tráfico de escravos, as fronteiras

amazônicas e as intervenções no Prata (BASILE, 1990, p.246-251). Foi durante esse gabinete

que ocorreu o retorno das intervenções brasileiras no Prata, contra Buenos Aires e os blancos

no Uruguai. A Liga Progressista chegou ao poder após breve período de tentativa de

conciliação entre conservadores e liberais (BASILE, 1990, p.254-258). Os anos em que a Liga

Progressista esteve no poder foram de instabilidade interna, devido a disputas políticas entre

31 “Chamavam a seu agrupamento de ‘regresso’, mais tarde ‘conservador’. Seu projeto político tinha como base o restabelecimento da autoridade central, por meio da revogação ou reforma das leis da ‘anarquia’, e a defesa da integridade do Estado imperial, por meio da submissão dos grupos rebeldes, pela força, por acordos, pela corrupção e o clientelismo. Para alcançar seu objetivo, escudaram-se no carisma da monarquia, que muito habilmente promoveram e mitificaram, e na força militar que reorganizaram e enviaram a todos os pontos onde a autoridade governamental não era aceita.” (MONTEIRO, 1990, p.140). 32 “Reúne-se, então, respectivamente nas pastas da Justiça, da Fazenda e dos Estrangeiros, a célebre ‘trindade saquarema’ – Eusébio de Queiroz Matoso da Câmara, Joaquim José Rodrigues Torres (futuro visconde de Itaboraí) e José Soares de Sousa (depois visconde de Uruguai). Eram estes os principais líderes dos saquaremas, denominação que se referia, fundamentalmente, a um grupo de políticos conservadores da província fluminense ligados à cafeicultura, mas que logo se generalizou de forma a abranger os políticos conservadores de todo o Império.” (BASILE, 1990, p.246).

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liberais e conservadores, e externas, com a Questão Christie33 e a Guerra do Paraguai.

(BASILE, 1990, p.258-264).

Houve continuidades e rupturas na economia imperial em relação aos períodos

anteriores. A permanência mais marcante foi a manutenção do tripé econômico – latifúndio,

monocultura e escravidão – voltado à exportação. As principais mudanças foram o papel

assumido pelo café (FAUSTO, 2003, p.190-191), que em 1837 se torna o principal produto da

pauta de exportação brasileira (MONTEIRO, 1990, p.140-141), e o pensamento industrialista,

decorrente da implantação da Tarifa Alves Branco34, em 1844, da Era Mauá e de

investimentos estrangeiros, principalmente ingleses, na infraestrutura nacional (FAUSTO,

2003, p.197-199).

A autonomia alfandegária e o aumento das receitas decorrentes da Tarifa Alves

Branco possibilitaram ao país alguma estabilização econômica devido ao aumento da

arrecadação. Além disso, foi um golpe contra a subordinação à Inglaterra, que já durava

algumas décadas (BASILE, 1990, p.241). Os recursos serviram, sobretudo, para a retomada

do intervencionismo no Prata. A nova política externa brasileira (CERVO, 1986) inicia-se em

1844 com a não renovação dos Tratados desiguais e com a edição da Tarifa Alves Branco,

que extinguiram o sistema de Tratados e redefiniram as metas externas do Estado brasileiro.

A política externa, muito diferente da do período anterior devido à recém conquistada

estabilidade do regime, foi intervencionista e efetiva frente às questões platinas (BASILE,

1990, p.250-251).

Nas décadas de 1870 e 1880, os pilares da ordem saquarema passam a ser

questionados:

A partir da década de 1870, começaram a surgir uma série de sintomas de crise do Segundo Reinado. Dentre eles, o início do movimento republicano e os atritos do governo imperial com o Exército e a Igreja. Além disso, o encaminhamento do problema da escravidão provocou desgastes nas relações entre o Estado e suas bases sociais de apoio. Esses fatores não tiveram um peso igual na queda do regime monárquico, explicável também por um conjunto de razões de fundo onde estão presentes as transformações socioeconômicas que deram origem a novos grupos sociais e à receptividade às ideias de reforma. (FAUSTO, 2003, p.217).

33 “Incidente diplomático criado pelo representante britânico na Corte, William Dougal Christie” (BASILE, 1990, p.256), que levou a Liga Progressista a ser taxada de débil ao ceder a pressões britânicas que, aparentemente culpada por incidentes no porto do Rio de Janeiro, cobrou do Império indenização. Para mais, ver BASILE, 1990, p.256-257. 34 “Graças a um aumento nas tarifas dos produtos importados, decretado em meados da década anterior (1844), as rendas governamentais cresceram. Em 1852-1853, elas representavam o dobro do que tinham sido em 1842-1843” (FAUSTO, 2003, p.197).

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Quatro fatores podem ser apontados conjuntamente como motivadores para o fim do

Império do Brasil: o movimento republicano, o fim da escravidão, a questão militar e a

questão religiosa (FAUSTO, 2003, p.217-232). Nas últimas décadas do século XIX, os pilares

da Monarquia se erodiam ao mesmo tempo em que o Exército ganhava força com ideias

abolicionistas e republicanas e o cenário político nacional mudava, com a crescente

insatisfação com o regime vigente (FAUSTO, 2003, p.235-236).

A atuação do Exército foi preponderante para a política externa intervencionista do

Brasil na região do Prata no século XIX. Considera-se, portanto, interessante entender a

dinâmica dessa instituição no período estudado, antes de se discutir especificamente a política

externa imperial para a região do Prata.

Durante o período colonial e o Primeiro Reinado, o Exército foi caracterizado pela

presença de portugueses (CARDOSO, 1990, p.125). Durante a Regência, o Exército perdeu

força com o surgimento da Guarda Nacional, em 1831 (BASILE, 1990, p.225-226). O

Exército só voltaria a ser relevante na década de 1860, com a eclosão da Guerra do Paraguai.

O Exército passou a defender ideias abolicionistas e republicanas e a participar ativamente da

vida política nacional. A partir de 1873 a Guarda Nacional passa a ser acionada apenas em

casos extraordinários e definha. Somente no século XX ela é extinta.

O papel de Exército foi preponderante no Primeiro Reinado por sua participação

política intensa. Externamente, o Exército atuou na intervenção na Cisplatina, em 1825-1828;

internamente, atuou nas guerras de independência e na repressão à Confederação do Equador,

em 1824. A armada inglesa atuou conjuntamente com o Exército neste período (BASILE,

1990, p.214). O episódio político que demonstrou o apoio do Exército à Monarquia ocorreu

em 1823, com o apoio da instituição à outorga da Constituição centralizadora. Era marcante a

presença de portugueses no Exército durante o Primeiro Reinado, e “a presença da tropa nas

agitações populares, após a independência, contribuiu para que a instituição fosse olhada com

desconfiança” (FAUSTO, 2003, p.230).

Assim que os liberais brasileiros chegaram ao poder, o Exército foi enfraquecido com

a criação da Guarda Nacional (FAUSTO, 2003, p.163-164). Importante ressaltar que o

Exército era composto em sua maioria por portugueses, ou seja, em princípio, indivíduos leais

a dom Pedro I, que regressara a Portugal. Limitava-se, portanto, a influência do Exército na

política regencial. O impacto internacional que se seguiu a isso foi que, devido ao

enfraquecimento do Exército e da Marinha, a política externa de intervencionista passa a ser

reativa e imóvel.

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No Segundo Reinado, o Exército continuou a ter atuação política, mas subordinada aos

interesses civis. Na década de 1840, os civis usaram o Exército para estabelecer o primado do

poder central ao sufocar as revoltas regenciais. Na década de 1850, interessava ao governo

brasileiro que o Exército interviesse no Uruguai e na Argentina para garantir os interesses

civis dos saquaremas. Na década de 1860, a atuação militar ocorreu por meio do interesse

civil do Partido Progressista, com intervenção no Uruguai e participação na Guerra do

Paraguai. Na década de 1870, a participação do Exército se restringiu a manter parte de suas

tropas em território paraguaio até 1876. Nesse período surgiu no Exército a defesa do

abolicionismo e da República. Na década de 1880, a atuação externa do Exército foi nula. Nas

décadas de 1870 e 1880, houve diminuição progressiva da atuação militar do Exército

brasileiro, ao mesmo tempo em que aumentava sua atuação política.

Por fim, a população brasileira, como não poderia deixar de ser devido às dimensões

territoriais continentais do país e à entrada de escravos e imigrantes, era muito superior em

números àquela dos vizinhos regionais durante o século XIX. Em 1819 havia uma população

estimada no Brasil de 4,6 milhões de habitantes; em 1872 e 1890 houve os dois primeiros

recenseamentos demográficos e, neles, se constatou que o Brasil havia chegado a 9,93

milhões e a 14,33 milhões, respectivamente (FAUSTO, 2003, p.236). A título de comparação,

como já mencionado, na década de 1820 a Argentina contava com pouco menos de 600 mil

habitantes, e o Uruguai com aproximadamente 140 mil; na década de 1870 a Argentina tinha

população aproximada de 1,7 milhão e o Uruguai, de 221 mil.

2.3 A política externa de segurança do Império para a região do Prata

As relações do Império brasileiro com as repúblicas hispano-americanas independentes na América do Sul eram extremamente reduzidas, exceto no rio da Prata, onde o Brasil travou três guerras no meio século desde a independência – a primeira em 1825-1828 contra as Províncias Unidas do Rio da Prata, recém independentes; a segunda em 1851/1852, em aliança com o Uruguai e as províncias argentinas de Entre Ríos e Corrientes contra a província de Buenos Aires; a terceira e de longe a mais importante, de fato a guerra mais cara e longa da história brasileira, em 1864-1870, em aliança com a Argentina e o Uruguai contra o Paraguai. (BETHELL, 2012, p.157).

No Prata, o Império do Brasil teve três objetivos recorrentes durante o século XIX: (i)

conter a Argentina; (ii) assegurar a livre navegação dos rios; e (iii) manter as fronteiras

(CERVO, 2002, p.116-118). Para que os interesses nacionais em matéria de segurança fossem

assegurados, o Brasil teve de se envolver em conflitos contra seus três rivais regionais. No

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Primeiro Reinado, houve derrota clamorosa do Império do Brasil na Guerra da Cisplatina

(BETHELL, 2012, p.158), que resultou na perda da Província com a independência do

Uruguai. No Segundo Reinado, o Império alterou a estratégia e passou a intervir nos países

vizinhos sempre respaldado por aliança política e militar (CERVO, 2002, p.116), tendo obtido

êxito nas intervenções contra os governos blancos no Uruguai, assim como contra Buenos

Aires e contra o Paraguai.

Entre 1822 e 1889, a política brasileira para os países da Bacia do Prata passou pelas seguintes fases: a) tentativa de cooperação e entendimento para defesa das independências (1822-1824); b) guerra da Cisplatina (1825-1828); c) política de neutralidade (1828-1843); d) passagem da neutralidade à intervenção (1844-1852); e) presença brasileira ativa (1851-1864); f) retorno à política intervencionista (1864-1876); g) retraimento vigilante (1877-1889). (CERVO, 2002, p.109).

Dois fatores são fundamentais para a compreensão do intervencionismo brasileiro na

região do Prata: a política e a economia. Politicamente, a Guerra da Cisplatina ocorreu em

momento de questionamento ao autoritarismo de dom Pedro e do fortalecimento de Buenos

Aires como potência rival. A intervenção contra Buenos Aires, nos anos 1850, ocorreu em

momento de consolidação do Estado nacional brasileiro por meio do gabinete conservador da

Trindade Saquarema e do enfrentamento de questões importantes para a política nacional,

entre as quais, as fronteiras. Já a Guerra do Paraguai eclodiu durante o período mais instável

do Império, sob o governo da Liga Progressista, que necessitava demonstrar força para

estabilizar o regime.

Economicamente, a Guerra da Cisplatina foi custeada por empréstimos externos e

gerou colapso das contas nacionais, já deterioradas devido às baixas tarifas aduaneiras e à

crise do açúcar. A intervenção contra Buenos Aires foi sustentada economicamente pelo café

e por Mauá (CERVO, 2002, p.115), por meio de investimentos dos recursos anteriormente

destinados ao tráfico de escravos e depositados desde a Lei Eusébio de Queiroz. A Guerra do

Paraguai foi financiada com recursos do governo brasileiro, que concedeu empréstimos à

Argentina, mas contou novamente com vultosos empréstimos estrangeiros, especialmente

após a retomada de relações diplomáticas entre o Brasil e a Inglaterra (CERVO, 2002, p.123).

Do ponto de vista econômico, as repercussões internas da aventura platina foram muito negativas: os custos, ainda não quantificados com precisão, desviaram da modernização interna um enorme volume de capital. A alternativa racional apontaria para seu aproveitamento no projeto de 1844, o que sem dúvida teria salvaguardado a segurança do lado do Prata, pela simples construção da potência econômica. (CERVO, 2002, p.125).

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Cabe aqui, ainda, discutir-se superficialmente o papel da Inglaterra, principal potência

da época, nos conflitos ocorridos no Prata durante o século XIX. A participação britânica

quanto à Guerra da Cisplatina foi importante para a mediação do fim do conflito e para a

independência do Uruguai (CERVO, 2002, p.40-41). Nesse contexto, a interrupção do

comércio na região ia de encontro aos interesses da Inglaterra (BETHELL, 2012, p.158).

Quanto à intervenção contra Buenos Aires, Rosas impunha bloqueio naval ao Uruguai,

novamente contrariando interesses econômicos britânicos (BETHELL, 2012, p.159). No

entanto, “a intervenção contra Oribe e Rosas (...) correspondeu a uma política nacional

autônoma, cuidadosamente pensada” (CERVO, 2002, p.114). Finalmente, sobre a Guerra do

Paraguai, o Império do Brasil havia rompido relações diplomáticas com a Inglaterra pouco

antes do início do conflito, devido à Questão Christie e, portanto, esta não teve influência para

a eclosão do conflito (DORATIOTO, 2002). Importante ter em mente, todavia, a importância

da city londrina para a tomada de empréstimos sucessivos para os esforços de guerra do

Império do Brasil.

2.3.1 Guerra da Cisplatina

De certa forma, as guerras “derivavam da rivalidade entre Portugal e Espanha durante

o período colonial” (BETHELL, 2012, p.158). Desde o século XVII, com a fundação por

Portugal da Colônia do Sacramento, em 1680, houve disputas entre as duas metrópoles e a

posse do território foi objeto de conflitos até a independência do Uruguai (FAUSTO, 2003,

p.125). Sacramento pertencia a Portugal desde 1821, após intervenção de dom João, porém as

Províncias Unidas do Rio da Prata, com a intenção de recriar o Vice-Reino do Rio da Prata,

anexaram a Banda Oriental em 1825 (CERVO, 2002, p.40). “Preocupado não só com a perda

do território, mas também com as consequências para o equilíbrio de poder na região e a

ameaça à livre navegação no rio da Prata, imediatamente o Brasil declarou guerra”

(BETHELL, 2012, p.158).

O recém-criado Império brasileiro herdou os problemas gerados com a ocupação da Banda Oriental, sob a forma artificiosa de Província Cisplatina. (...) A guerra [da Cisplatina] foi um desastre militar para os brasileiros (...) e uma catástrofe financeira para as duas partes envolvidas. A paz foi alcançada com a mediação da Inglaterra, interessada em restaurar as transações comerciais normais que o conflito aniquilara. (FAUSTO, 2003, p.155).

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A preocupação com a sobrevivência da Monarquia recém consolidada se voltava à

principal potência rival da região, a Argentina:

A maior preocupação do governo imperial se concentrava na Argentina. Temia-se a unificação do país, que poderia se transformar em uma República forte, capaz de neutralizar a hegemonia brasileira e atrair a inquieta província do Rio Grande do Sul. (FAUSTO, 2003, p.211).

A Guerra da Cisplatina intensificou a contestação nacional ao governo de dom Pedro I.

A guerra provocou recrutamento da população “através de métodos de força” (FAUSTO,

2003, p.155) além de contratação de mercenários europeus, o que a tornava bastante

impopular. Os gastos militares agravavam os problemas econômicos enfrentados pelo Império

devido à baixa arrecadação, aos empréstimos para o reconhecimento da independência e à

crise do açúcar.

A Guerra da Cisplatina, como ficou conhecida pela historiografia brasileira, durou

quase três anos e teve fim após mediação da Inglaterra, que, “como o Brasil, tinha interesse na

estabilidade política e no livre comércio no rio da Prata” (BETHELL, 2012, p.158). O

Uruguai foi criado por Tratado, assinado no Rio de Janeiro, como um Estado tampão entre

Brasil e Argentina. A Guerra da Cisplatina foi “impopular e custosa” (BETHELL, 2012,

p.158) e é considerada um dos fatores35 que contribuíram para a abdicação de dom Pedro I,

em 1831.

2.3.2 Brasil vs. Buenos Aires

Durante o período regencial, a extinção do Conselho de Estado e o fato de as tropas

terem aderido à Revolução Farroupilha (1835-1845) impediu uma política externa mais

efetiva do Império do Brasil:

A revolução farroupilha forçou o Brasil a realizar uma política externa na região platina, bem diferente da tradicional. Durante anos, o Brasil seria forçado a não ter uma política agressiva no Prata e a buscar acordos com Buenos Aires, para ocupar-se de uma revolução no interior de suas fronteiras. (FAUSTO, 2003, p.170).

No Segundo Reinado, o imobilismo da política externa imperial sofreu uma correção

de rumos devido ao fim das revoltas internas, à recriação do Conselho de Estado e a uma 35 Além dos custos e resultados da Guerra da Cisplatina, também foram fatores para a abdicação de d. Pedro I a insatisfação com a assinatura dos tratados desiguais de comércio com a Inglaterra em 1827 e o autoritarismo do Imperador (BETHELL, 2012, p.158).

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economia mais altiva após a Tarifa Alves Branco. A atuação externa no Prata voltaria a ser

intervencionista e efetiva:

O fim da farroupilha reacendeu as pretensões brasileiras de manter forte influência no Uruguai e os temores de que um mesmo poder – a Argentina – controlasse as duas margens do rio da Prata. Estes temores cresciam na medida em que, naquele país, à frente de Buenos Aires e outras províncias, Juan Manuel de Rosas promovia uma tentativa de consolidação do poder. (FAUSTO, 2003, p.170).

O gabinete saquarema assumiu a política imperial em 1848-1853 e buscou a

consolidação do Estado nacional brasileiro. A resolução das questões platinas seria

fundamental para esse intuito no que dizia respeito à soberania nacional, especialmente no

tocante à segurança e à economia.

No Uruguai independente, houve conflitos entre os partidos blanco (conservador) e

colorado (liberal), que deflagrou guerra civil entre 1838 e 1851 (BETHELL, 2012, p.158-

159). Durante a guerra civil, os interesses brasileiros, especialmente aqueles dos estancieiros

gaúchos, estavam em jogo, pois o governador de Buenos Aires, Juan Manuel de Rosas,

“interveio em favor do presidente blanco (...), Manuel Oribe, e iniciou um cerco a

Montevidéu” (BETHELL, 2012, p.159). As políticas protecionistas de Rosas e Oribe iam de

encontro aos interesses brasileiros de livre comércio e livre navegação do rio da Prata. Em um

primeiro momento

O Brasil se manteve neutro, mas cada vez mais preocupado em não deixar o Uruguai cair nas mãos de Rosas, em defender o interesse dos estancieiros do Rio Grande do Sul – e a quantidade crescente de estancieiros brasileiros no Uruguai – num comércio livre entre as fronteiras (...) e em manter o livre acesso aos rios Paraná e Paraguai para a província do Mato Grosso. (BETHELL, 2012, p.159).

Em 1851, os blancos ainda no poder sob Oribe, dificultavam a ação externa do Brasil

por terem postura mais autonomista. Concomitantemente, Rosas mantinha o bloqueio naval

ao Uruguai, e, dessa forma, afetava o interesse brasileiro quanto à livre navegação do rio da

Prata.

No que diz respeito ao Uruguai, houve sempre uma política de influência brasileira no país. Os gaúchos tinham interesses econômicos no Uruguai, como criadores de gado, e viam com maus olhos medidas de repressão ao contrabando na fronteira. O Brasil colocou-se ao lado dos colorados, cuja linha de política se aproximava de seus interesses. (FAUSTO, 2003, p.211).

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Para assegurar os interesses nacionais, o Império do Brasil, ainda em 1851, aliou-se

com o general José Justo de Urquiza, governador de Entre Ríos, e o colorado Fructuoso

Rivera, no Uruguai, e entrou em guerra contra Buenos Aires. Em menos de um ano de

batalha, Buenos Aires36 sofreu derrota total (BETHELL, 2012, p.159). “Cerca de 24 mil

soldados brasileiros, recrutados principalmente no Rio Grande do Sul, participaram do

conflito” (FAUSTO, 2003, p.171). Dessa forma, o Império garantiu a independência do

Uruguai em relação à Buenos Aires e sua subordinação ao Brasil, principalmente no que diz

respeito à economia. “O Brasil tinha se tornado a potência regional dominante, pelo menos

temporariamente” (BETHELL, 2012, p.159):

(...) a penetração econômica brasileira no Uruguai prosseguiu rapidamente após a guerra. No final da década, tinham se estabelecido no país mais de 20 mil brasileiros, na maioria gaúchos do Rio Grande do Sul, junto com seus escravos. Os brasileiros correspondiam a 10% a 15% da população do Uruguai. Possuíam talvez cerca de 30% das terras, inclusive algumas das melhores estâncias, e atravessavam livremente a fronteira para levar o gado aos saladeros (charqueadores) no Rio Grande do Sul. (BETHELL, 2012, p.159).

A política uruguaia, no entanto, não se acalmara e os conflitos entre os dois partidos

permaneciam. Em 1863 houve uma rebelião colorada liderada pelo caudilho general

Venâncio Flores, apoiada pelo Império do Brasil e pela República Argentina, sob Bartolomé

Mitre, eleito em 1862, pela derrubada do governo blanco de Bernardo Berro (BETHELL,

2012, p.160-161). Como exposto anteriormente, os blancos iam de encontro aos interesses

brasileiros na região37, o que justifica o apoio imperial a causa colorada; em relação à

Argentina, os colorados haviam dado apoio a Mitre na guerra civil argentina de 1861 e os

blancos constituíam foco de oposição federalista à república, recém-unificada. A rebelião

colorada e a intervenção do Império do Brasil e da Argentina “[desencadearam] a sequência

dos acontecimentos que levaram à Guerra do Paraguai” (BETHELL, 2012, p.160).

2.3.3 Guerra do Paraguai

Em meados da década de 1860 o Império passava por momento de instabilidade

política. A Liga Progressista comandava a política nacional e existia instabilidade devido ao

36 Rosas não lutou no conflito por ter se retirado antes do combate. Após a Batalha de Caseros, redigiu renúncia e se exilou em Londres. 37 “(...) a questão principal era a rigidez que o governo Berro começara a adotar em relação aos brasileiros no Uruguai, tentando restringir os assentamentos (e a propriedade de escravos), controlar o comércio da fronteira e impor taxas aduaneiras.” (BETHELL, 2012, p.160).

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“frágil predomínio liberal na aliança progressista, de tão heterogênea composição. Nunca

houve de fato ali uma comunhão de princípios e de interesses, e era intensa a troca de

posições partidárias” (BASILE, 1990, p.256). A resolução da Questão Christie, especialmente

o pagamento de indenização à Inglaterra, levou o gabinete liberal a ser considerado débil

também em relação à política externa. Ao que parece, a política expansionista e agressiva de

Solano López proporcionou àquele gabinete a possibilidade de demonstrar o contrário.

No contexto de rebelião do partido colorado e de intervenção de Brasil e Argentina no

Uruguai, o governo blanco “se voltou ao Paraguai como único aliado possível” (BETHELL,

2012, p.160), uma vez que “nos anos 1850, quando o Brasil adotou uma política em relação

ao Uruguai que o Paraguai considerou imperialista, o governo [Carlos Antonio] López se

lançou com grande urgência à modernização econômica e militar do país” (BETHELL, 2012,

p.161). Em 1862, Francisco Solano López assumiu o poder no Paraguai em lugar de seu pai,

morto, e em 1863 se aliou aos blancos uruguaios “contra o que lhe parecia ser uma ameaça

crescente ao equilíbrio de poder existente na região platina, e que garantia a segurança, a

integridade territorial e a independência do Paraguai” (BETHELL, 2012, p.161).

López tinha, portanto, percepção que Brasil e Argentina se uniam para influenciar a

política uruguaia e que a nova posição econômica e militar do Paraguai não era compatível

com sua atuação externa na região. Após ultimato brasileiro ao governo uruguaio ameaçando

intervir, López reage com ultimato ao Brasil contra a intervenção (CERVO, 2002, p.122-123).

Após soldados brasileiros invadirem o Uruguai, em outubro de 1864, “com o objetivo de

ajudar a colocar os colorados no poder” (FAUSTO, 2003, p.212), o Paraguai capturou um

vapor mercante brasileiro, declarou guerra ao Brasil e invadiu o Mato Grosso. A Argentina,

por sua vez, negou autorização para tropas paraguaias para atravessar Missiones, em março de

1865, o que gerou declaração de guerra também a ela e a invasão paraguaia da província de

Corrientes (BETHELL, 2012, p.161):

(...) Solano López fez uma tremenda aposta – e perdeu. Ele superestimou o poderio econômico e militar do Paraguai. Subestimou o poderio militar em potencial, se não efetivo, do Brasil – e sua disposição de lutar. E errou em pensar que a Argentina seria neutra numa guerra entre o Paraguai e o Brasil em disputa pelo Uruguai. (...) A imprudência de Solano López resultou exatamente naquilo que mais ameaçava a segurança e até a existência do Paraguai: a união de seus dois vizinhos poderosos – na verdade, como Flores finalmente conseguira tomar o poder em Montevidéu em fevereiro de 1865, a união de seus três vizinhos – numa aliança em guerra contra ele. (BETHELL, 2012, p.161-162).

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Em 1865, Brasil, Argentina38 e Uruguai formaram a Tríplice Aliança, primeiramente

comandada por Mitre, e depois por Caxias (FAUSTO, 2003, p.212-216). Em 1870 o conflito

chegou ao fim com o Paraguai derrotado e dizimado: 95% de sua população masculina havia

morrido39 (BASILE, 1990, p.262), seu território foi reduzido em 40%, a economia do país

ficou arruinada (BETHELL, 2012, p.166).

O peso econômico e demográfico dos três países da aliança era muito superior ao do Paraguai. (...) Ao que parece, pois não há números seguros, no início da guerra os efetivos dos exércitos eram de 18 mil homens no Brasil, 8 mil na Argentina e 1 mil no Uruguai, enquanto no Paraguai chegavam a 64 mil, afora uma reserva de veteranos, calculada em 28 mil homens. (...) No correr dos anos, as forças da Tríplice Aliança cresceram, com predominância dos brasileiros, que representavam pelo menos dois terços do total. Calcula-se entre 135 mil e 200 mil o número geral de brasileiros mobilizados, para uma população masculina estimada de 4,9 milhões, em 1865. (FAUSTO, 2003, p.213).

A Argentina sofreu relativamente poucas baixas em combate e o território anexado

após a guerra ficou abaixo de suas pretensões (BETHELL, 2012, p.166). O país, no entanto,

teve a economia fortalecida, porquanto se tornou o principal fornecedor de alimentos para as

tropas da Tríplice Aliança (CERVO, 2002, p.123).

Quanto ao Brasil, o Império foi responsável por quase a totalidade das tropas da

Aliança durante o conflito, por isso suas perdas humanas foram grandes, por um lado, mas,

por outro lado, obteve todo o território reivindicado antes do início do conflito e assegurou a

livre navegação dos rios da Prata, importante para o acesso as regiões do Mato Grosso e do

oeste paulista (BETHELL, 2012, p.167-168). Desde o início do século XIX havia

divergências entre os países em relação “a questões de fronteiras e à insistência brasileira na

garantia de livre navegação pelo Rio Paraguai” (FAUSTO, 2003, p.211).

Os principais objetivos da guerra para Brasil e Argentina foram expostos no Tratado

da Tríplice Aliança e consistiam (i) na derrubada da ditadura de Solano López, (ii) na livre

navegação dos rios Paraguai e Paraná, (iii) na anexação de territórios reivindicados por Brasil

e por Argentina – cláusula secreta do tratado (BETHELL, 2012, p.162). O Brasil “tinha

alcançado todos os seus objetivos. (...) E o próprio Paraguai, ainda mais que o Uruguai, agora

38 Desde que Mitre foi eleito presidente e o país reunificado como República Argentina pelo unitaristas, a Argentina “começou a realizar uma política bem vista pelos liberais brasileiros, que haviam assumido o governo naquele mesmo ano [de 1862]. Aproximou-se dos colorados uruguaios e se tornou um defensor da livre negociação dos rios” (FAUSTO, 2003, p.212). Houve, portanto, aproximação política entre o Império do Brasil e a Argentina. 39 “Os cálculos mais confiáveis indicam que metade da população paraguaia morreu, caindo de aproximadamente 406 mil habitantes, em 1864, para 231 mil em 1872. A maioria dos sobreviventes era de velhos, mulheres e crianças.” (FAUSTO, 2003, p.216).

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estava sob o firme controle e influência do Brasil. Assim se consolidava, por ora, sua

indiscutível hegemonia regional” (BETHELL, 2012, p.168).

A guerra constitui um claro exemplo de como a História, sem ser arbitrária, é um trabalho de criação que pode servir a vários fins. Na versão tradicional da historiografia brasileira, o conflito resultou da megalomania e dos planos expansionistas do ditador paraguaio Solano López. (...) Atravessando a fronteira, encontramos no Paraguai uma historiografia oposta. O conflito é aí visto como uma agressão de vizinhos poderosos a um pequeno país independente.” (FAUSTO, 2003, p.208).

Talvez, a melhor explicação para esse evento seja a mais recente, aquela discutida por

Francisco Doratioto e Ricardo Salles (2002). Destituindo-se de ideologias e apoiada em

documentos da época, a Guerra do Paraguai seria o resultado do “processo de formação dos

Estados nacionais da América Latina e da luta entre eles para assumir uma posição dominante

no continente” (FAUSTO, 2003, p.209).

A Guerra do Paraguai não era inevitável. E nem era necessária. Mas só poderia ter sido evitada se: (1) o Brasil tivesse sido menos categórico na defesa dos interesses de seus súditos no Uruguai, e em particular se não tivesse intervindo militarmente em favor deles; (2) a Argentina tivesse se mantido neutra no conflito subsequente entre o Paraguai e o Brasil; e sobretudo (3) o Paraguai tivesse se conduzido com maior prudência, reconhecendo as realidades políticas da região e tentando defender seus interesses dela diplomacia e não pelas armas. (BETHELL, 2012, p.162-163).

O fortalecimento do Exército brasileiro e a participação de escravos favoreceram,

todavia, o desgaste dos pilares que sustentavam a monarquia, o que se somou ao custo

financeiro da guerra, que “sacrificou tremendamente as finanças públicas do país”

(BETHELL, 2012, p.168) e contribuíram para a derrocada do Império do Brasil.

As intervenções na região do Prata podem ser caracterizadas como políticas realistas

do Império do Brasil para assegurar os interesses nacionais. No entanto, acadêmicos e

diplomatas costumam reiterar a tradição pacífica e principista da política externa brasileira,

sua virtude na elaboração de consensos e sua ação norteada pela defesa da soberania nacional,

por intermédio de atuação conciliadora. Dessa forma, pode-se fazer uma analogia desta

atuação externa soberanista do Império com o realismo defensivo, em Relações

Internacionais. O que se pretende, no próximo capítulo, é a análise da política exterior do

Império do Brasil frente às perspectivas realistas defensiva e ofensiva, para que se verifique se

o aparente consenso acadêmico sobre o caráter defensivo da atuação externa imperial se

justifica.

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3 O REALISMO NA POLÍTICA EXTERNA DO IMPÉRIO DO BRASIL

Um possível consenso sobre a característica defensiva da política externa brasileira em

questões de segurança, como já discutido, pode e deve ser questionado. Essa inquietação parte

da discussão teórica sobre as perspectivas realista defensiva e ofensiva e de sua utilização

para analisar a atuação exterior do Império do Brasil para a região do Prata. Como exposto

anteriormente, a controvérsia dentro da própria literatura e historiografia a respeito desta

questão já é motivo suficiente para que análise seja feita de forma mais cuidadosa.

A controvérsia a que se refere fica explícita ao se constatar que estudiosos divergem a

respeito do caráter imperialista ou soberanista, isto é, de atuação ofensiva ou defensiva, da

política externa brasileira para a América do Sul. Mais fundamental é que esta controvérsia,

que ainda pode ser percebida atualmente em face de algumas análises, pode ser percebida em

trabalhos historiográficos sobre o período em apreço, ou seja, para a atuação internacional do

Brasil, em matéria de segurança, no século XIX. Mais inquietante é o fato de o mesmo

acadêmico, por vezes, se contradizer em uma mesma obra como ocorre, por exemplo, com

Amado Cervo, em História da política exterior do Brasil, ao afirmar que:

Os objetivos que guiavam a ação brasileira nesses domínios [da região do Prata] eram a defesa intransigente das independências locais, condição favorável ao exercício de sua hegemonia, o acesso a Mato Grosso pelo estuário, tanto para os navios de comércio quanto de guerra, e a liberdade de trabalho dos brasileiros residentes no Uruguai (aproximadamente 20% da população total). Nos objetivos de segurança não figurava a expansão territorial, incompatível com a preservação da independência e integridade dos Estados, uma variável central da geopolítica brasileira. (CERVO, 2002, p.117-118).

e, pouco depois, que:

O exercício da hegemonia brasileira revestiu-se em grau moderado do caráter imperialista, na medida em que: a) a ostentação ou o emprego da força amparavam os objetivos econômicos e geopolíticos; b) a presença brasileira contribuiu para a expansão do capitalismo, promovendo a liberalização das instituições e das relações de produção. (CERVO, 2002, p.125).

Essa contraposição pode também ser encontrada em Marcello Basile, em O Império

brasileiro: Panorama político, em que argumenta que:

(...) a política externa do Brasil Imperial foi marcada, de um lado, por uma face de relativa dependência e submissão em relação à Inglaterra e, de outro, por uma face

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de interferência e dominância relativa perante as questões platinas. (BASILE, 1990, p.250).

mas que essa interferência teria sido motivada por ameaças externas anteriores, postas

especialmente por Buenos Aires, quando diz que:

Quatro anos após a sua incorporação oficial ao Brasil, iniciou essa província [Cisplatina], em 1825, uma rebelião, de que se aproveitou Buenos Aires para anexá-la, em 25 de outubro do mesmo ano, às Províncias Unidas do Rio da Prata. Diante disto, em dezembro o Brasil declarou guerra à Argentina. (BASILE, 1990, p.216).

Segundo exposto no capítulo anterior, três foram os principais conflitos regionais com

participação do Império do Brasil na região do Prata no século XIX: a Guerra da Cisplatina,

as intervenções contra Buenos Aires, e a Guerra do Paraguai. Esses conflitos ocorreram em

contexto internacional semelhante, pois em todos eles a influência na região estava em

disputa, mas em contextos internos, especialmente no que diz respeito ao Brasil, diversos: a

primeira intervenção em momento de crise institucional do Primeiro Reinado, a segunda em

momento de consolidação do Estado nacional brasileiro, a terceira no início da crise do

Império.

As relações internacionais entre Estados ocorrem sob constrangimentos impostos pelo

sistema internacional anárquico. O sistema, nesses termos, pode ser considerado o lócus de

interação entre as unidades, os atores internacionais. Logo,

Um sistema é então definido como um conjunto de unidades em interação. Num primeiro plano, um sistema consiste numa estrutura, sendo a estrutura o nível sistêmico propriamente dito que torna possível pensar nas unidades como formando um conjunto, algo mais do que uma mera coleção. Noutro plano, o sistema consiste em unidades em interação. (WALTZ, 2002, p.62).

A região do Prata, portanto, é um sistema, uma estrutura delimitada, assinalado pela

anarquia. A política externa do Império do Brasil para essa região pode ser caracterizada

como imperialista ou soberanista, ou seja, ela pode ser interpretada sob as perspectivas

realista ofensiva ou realista defensiva, dependendo dos argumentos utilizados. Os

constrangimentos sistêmicos, no entanto, não são os únicos fatores que permeiam a atuação

externa imperial para a região, como defende o neorrealismo; segundo o realismo neoclássico,

variáveis internas ao Estado, como a percepção dos gabinetes imperiais, também são

importantes para uma análise mais profunda da atuação externa do Brasil no século XIX.

“A região do Prata, por sua importância comercial e estratégica, sempre fora alvo da

cobiça portuguesa” (BASILE, 1990, p.190). Mais do que isso, o fato de o Brasil ter se

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consolidado como uma monarquia – ligada à Europa – entre repúblicas, e de os tomadores de

decisão brasileiros perceberem Buenos Aires com objetivo explicito de recriar o Vice-reino

do Prata – segundo parte da historiografia brasileira – unindo ou influenciando a política

dessas repúblicas, tornava a região talvez o mais importante cenário de atuação do Império do

Brasil para garantir sua sobrevivência.

Em uma análise neorrealista, ou seja, aquela que enfatiza nos constrangimentos que a

estrutura, o sistema internacional anárquico, impõe aos Estados – entes unitários, racionais,

egoístas, que atuam em uma lógica de autoajuda e se preocupam com poder e sobrevivência –

parece claro que a rivalidade entre os vizinhos regionais e a falta de um ente que impusesse

regras e estabelecesse comportamentos são as principais variáveis consideradas para a atuação

externa do Império do Brasil para a região do Prata.

Segundo parte da historiografia brasileira, a possibilidade que os governantes

argentinos independentes recriassem o Vice-reino do Prata40 era uma ameaça sistêmica à

sobrevivência do Brasil como Estado soberano, uma vez que aquele Estado se fortaleceria em

detrimento do Estado brasileiro; por isso, o Império tinha a política de evitar o fortalecimento

de Buenos Aires.

Quando a Argentina anexou a Banda Oriental, território até então brasileiro, em 1825,

o Brasil interveio para evitar o fortalecimento de seu rival na região e conter a ameaça que seu

fortalecimento poderia impor à sobrevivência do Estado brasileiro. Eram constrangimentos

sistêmicos, portanto, aqueles que condicionavam a atuação imperial em relação à segurança

na região do Prata.

Diferentemente do início do século, nos anos 1850 a economia brasileira tornava-se

mais robusta que aquela da Argentina, sobretudo devido à cultura do café e a expansão de

investimentos estrangeiros. Naquele período, as pretensões nacionalistas de Rosas,

governador de Buenos Aires, de controlar a navegação dos rios da Prata e influenciar a

política de um de seus vizinhos, o Uruguai, tornaram a Argentina uma ameaça para a

sobrevivência do Brasil, caso ela fosse bem sucedida, especialmente devido à importância da

livre navegação dos rios para a logística e a economia brasileiras, e à complementaridade

econômica e a dependência entre Uruguai e Brasil àquele momento; o Brasil poderia ser

enfraquecido em relação à Argentina no sistema regional, e isso seria um risco que o Império

não estava disposto a correr.

40 Antes mesmo da independência de Argentina e Brasil, existia a preocupação geopolítica a respeito do acesso aos rios da Bacia do Prata entre Espanha e Portugal, o que proporcionou uma série de acordos e assinatura de Tratados no século XVIII.

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A Guerra do Paraguai, por sua vez, pode ser considerada o exemplo mais claro de uma

ameaça à segurança do Estado brasileiro imposta por unidades sistêmicas. O Paraguai abriu

mão de política isolacionista com intenções flagrantes de se tornar uma potência regional;

chegou mesmo a invadir porções dos territórios brasileiro e argentino antes que a guerra fosse

declarada.

Uma análise sistêmica, no entanto, não é suficiente para que se justifique ou se

compreenda os conflitos regionais e a política externa do Império do Brasil para a região do

Prata em se tratando de questões de segurança. Como se argumentou no primeiro capítulo

deste trabalho, a não incorporação de variáveis internas aos Estados é uma das críticas que se

pode fazer às análises neorrealistas, e por isso, a incorporação de variáveis propostas por

William Wohlforth, Robert Jervis, e Jacques Hymans, entre outros, é importante. O realismo

neoclássico corrobora as premissas neorrealistas, mas aumenta o escopo de análise realista ao

incorporar as variáveis identidades, percepções e dinâmica burocrática da tomada de decisões

em política externa.

Na Guerra da Cisplatina, o Império do Brasil passava por crise política, econômica e

institucional e, por mais que não haja documentos ou relatos que o afirmem, nada impede que

a intervenção tenha sido um artifício tentado por dom Pedro para unificar os grupos políticos

rivais frente a um inimigo comum. O fracasso da intervenção, com a consequente

independência uruguaia, no entanto, acelerou o processo de abdicação do imperador.

Nos anos 1850, com a ascensão ao poder do gabinete conservador da Trindade

Saquarema, ao mesmo tempo em que se consolidava o Estado nacional no Brasil, se

consolidava também a rivalidade entre Rio de Janeiro e Buenos Aires. A percepção dos

tomadores de decisão brasileiros quanto à nova tentativa de Buenos Aires – amparada pelas

ideias nacionalistas de Rosas de protecionismo comercial e não liberdade de navegação dos

rios – de estabelecer um contraponto à potência regional que o Brasil se tornava resultou em

intervenção imperial contra o governo de Rosas. Com a ascensão ao poder de Urquiza e

depois de Mitre na Argentina, houve período de concertação e cooperação entre Brasil e

Argentina, que teve seu ápice com a assinatura do Tratado da Tríplice Aliança (1869).

Para a eclosão da Guerra do Paraguai, por sua vez, segundo a historiografia

tradicional, foi importante, sobretudo, a identidade e as percepções de Francisco Solano

López sobre os recursos do Paraguai e suas intenções hegemônicas. Ainda, pode-se

mencionar a crise de legitimidade que sofria o gabinete liberal da Liga Progressista que, por

ser considerada débil após a Questão Christie, necessitava de demonstrar força e decisão para

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o Imperador e para os demais Estados do sistema internacional da época, o que foi

proporcionado pelo envolvimento no conflito.

Como se pode perceber, os constrangimentos sistêmicos são óbvios para se analisar a

atuação externa do Império do Brasil na região do Prata no século XIX, mas variáveis internas

aos Estados são interessantes para que a explicação se torne mais completa e aprofundada.

Identidades, percepções e burocracia nacional, para além de ameaças impostas pela estrutura

internacional, são, portanto, variáveis interessantes de serem avaliadas.

Por definição, teorias realistas têm grandes possibilidades analíticas a respeito de

questões de segurança, o que pode ser sumariamente comprovado nos últimos parágrafos.

Especificamente para a questão em tela – a política externa de segurança do Império do Brasil

para a região do Prata –, no entanto, uma discussão não travada na academia brasileira parece

ter boas possibilidades de agregar novas ideias e argumentos a respeito da análise de política

externa brasileira: a discussão realismo defensivo vs. realismo ofensivo na atuação

internacional do Brasil.

A discussão entre o objetivo final do Estado no sistema internacional anárquico, se

sobrevivência ou poder, é fundamental para se caracterizar a atuação externa imperial como

imperialista e ofensiva ou soberanista e defensiva. Também o são as implicações que políticas

defensivas ou ofensivas geram para o sistema dado o dilema da segurança que perpassa a

existência dos Estados e constrange seus comportamentos.

Na região do Prata temos quatro Estados rivais que, em algum momento, foram

percebidos como ameaças por outros, o que gerou intervenções e conflitos. Mas qual o caráter

dessas intervenções? Teriam elas tido intenções de manter o status quo para que um Estado

assegurasse segurança e sobrevivência por meio de atuação defensiva, ou teriam elas tido

intenções expansionistas para que um Estado se tornasse mais poderoso com o propósito de

subjulgar os demais e atuação ofensiva? Essas atuações são excludentes? O que se pretende

agora é discutir essas questões e as implicações que isso pode ter para a pesquisa sobre a

política externa brasileira.

O poder é definido em termos políticos, militares, econômicos e tecnológicos, e deve

ser avaliado em termos relativos, ou seja, tendo como base o poder dos demais Estados do

sistema. Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai, durante o século XIX, tinham economias

agrárias e voltadas ao mercado externo, pouco investimento em técnica e atraso material. O

fato de terem economias dependentes do setor externo e poucos ganhos de escala

internamente, haja vista suas populações reduzidas, com presença de muitos pobres e escravos

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– especialmente no Brasil –, dificultavam investimentos em Exércitos fortes e coesos. Além

de questões econômicas, crises sociais e políticas, assim como conflitos internos e externos

menores entre os vizinhos impossibilitavam maiores desenvolvimentos materiais.

Supondo que houvesse relativa homogeneidade entre as características principais das

economias desses países, é importante ter em mente outros fatores como a população e a

geopolítica para avaliar recursos de poder entre eles. O Império do Brasil, por ter o território

mais extenso entre estes países, comportava a maior população – e por isso a maior

capacidade de formar um Exército, o que foi comprovado na Guerra do Paraguai com o

alistamento de voluntários da pátria e a incorporação dos escravos aos efetivos militares

nacionais – e a maior economia – não em qualidade, mas em quantidade por questão de

escala. Além disso, o Império fazia fronteira com todos os vizinhos e rivais regionais, e como

não havia tratados abrangentes de limites claros e respeitados entre eles no século XIX, as

fronteiras eram comumente contestadas e soluções de força foram observadas sucessivamente.

Para balancear os maiores recursos de poder que o Império teria em relação aos

vizinhos, devido a questões geopolíticas, na primeira metade do século XIX a Argentina, e

nos anos 1860 o Paraguai, tornaram-se rivais aos quais o Império do Brasil teve de enfrentar.

Marcello Basile afirma que em meados do século XIX “o Império irá adotar uma

política agressiva na região” (BASILE, 1990, p.250). Mas o sistema internacional anárquico,

em especial o sistema platino, gerava incentivos para políticas expansionistas, e as estratégias

que o Império do Brasil utilizou para garantir sua sobrevivência de longo prazo foram

agressivas, com vistas a enfraquecer os principais competidores?

A historiografia tradicional sobre política externa brasileira afirma, em geral, que não,

que a atuação internacional do Brasil é pacífica e principista, tradicional, sem grandes

alterações de paradigmas no decorrer da história (FONSECA JÚNIOR, 1998). Nesse sentido,

pode-se considerar que as intervenções imperiais no século XIX tiveram o intuito de evitar

que os rivais regionais se fortalecessem em detrimento do Estado brasileiro. A manutenção do

status quo, desta forma, garantiria a sobrevivência do Brasil no sistema internacional da

época.

Nesse sentido, a premência da busca da sobrevivência sobre a busca do poder vai ao

encontro do que afirma Kenneth Waltz (2002) sobre a importância de o Estado existir para

que ele alcance seu objetivo no plano internacional, seja este objetivo a sobrevivência ou a

dominação. Logo, a sobrevivência teria sido o principal objetivo do Império do Brasil, que

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atuou para assegura-la, e não para submeter os demais Estados da região ou para se tornar

hegemônico.

Nesse sentido, a intervenção imperial na Banda Oriental, em 1825, pode ser analisada

como defensiva, ou seja, para manter o status quo e, assim, sua segurança na região. A

anexação do território que viria a se tornar o Uruguai pela Argentina tornaria esta última mais

poderosa em relação ao Império ao alterar a balança do poder regional. Dessa forma, a

intervenção na Banda Oriental não teve objetivos expansionistas, nem de acumular poder e

enfraquecer a Argentina, como argumentariam os realistas ofensivos.

Em meados do século XIX, Rosas e os blancos uruguaios passam a adotar políticas

nacionalistas com controle da navegação dos rios da Prata e protecionismo comercial. A

aproximação entre as duas repúblicas rivais do Império do Brasil foi percebida como ameaça

aos olhos dos tomadores de decisão brasileiros e o Brasil novamente interveio na região,

contra Rosas e contra Oribe, para manter a balança de poder regional favorável a ele e, desta

forma, garantir sua segurança. Em meados do século XIX, portanto, a intervenção imperial no

Prata, pode ser caracterizada novamente como realista defensiva.

Na terceira e última intervenção imperial na região do Prata durante o século XIX, a

Guerra do Paraguai, mais do que a defesa da própria segurança frente ao expansionismo

paraguaio que se tornava uma ameaça ao Estado brasileiro, a intervenção pode ser

caracterizada pelo que, contemporaneamente, denomina-se legítima defesa.

O poder – político, diplomático, militar, todos eles presentes em cada uma das

intervenções do Império do Brasil na região do Prata no século XIX – foi, portanto, um meio

para se garantir a sobrevivência do Estado, mas não o fim último do Brasil naqueles

momentos:

Coordenando uma ação diplomática intensa com as finanças e o comércio, exercia o Estado brasileiro sua hegemonia, obtendo ganhos sem ter de fazer a guerra, à sombra de sua força, cujo emprego estava reservado somente a soluções de última instância. (CERVO, 2002, p.116).

A literatura sobre essa questão é, todavia, controversa, como já explicitado. Essa

perspectiva da historiografia tradicional sobre a atuação externa soberanista do Império do

Brasil pode ser questionada ao se discutir a política externa brasileira sob as lentes do

realismo ofensivo proposto por Mearsheimer (2007).

Partindo-se deste paradigma, a anarquia internacional gera incentivos para políticas

imperialistas, expansionistas e agressivas e, para assegurar a própria sobrevivência, o Estado

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deveria aumentar seu poder em relação aos demais Estados. Neste sentido, o poder, e não a

sobrevivência, seria o objetivo final do Império do Brasil no século XIX, porquanto, segundo

Jeffrey Taliaferro (2000), os Estados tendem a maximizar poder em relação aos demais, pois

somente os mais poderosos podem garantir sua sobrevivência.

Ainda, segundo Taliaferro (2000), as políticas agressivas seriam utilizadas sempre que

os benefícios superassem os custos e, como os Estados em anarquia enfrentam a ameaça de

uso da força por seus rivais, isso os compele a melhorar sua posição de poder relativo. As

intervenções imperiais nos países do Prata, dessa forma, antes de se justificarem pela busca da

sobrevivência, se justificariam pela conquista do poder e pelo enfraquecimento relativo dos

rivais regionais para, assim, evitar a concorrência dos demais, nos termos de John

Mearsheimer (2007).

Como afirma Eugênio Diniz (2007), maximizar o poder relativo é a melhor maneira de

maximizar a própria segurança. Por isso, o comportamento agressivo do Império do Brasil

frente às ameaças externas que lhes foram impostas na região do Prata durante o século XIX

era determinado pela luta pela própria sobrevivência, o que corrobora o argumento realista da

importância de garantir a sobrevivência em ambiente internacional anárquico.

Especialmente em relação ao Uruguai, a política intervencionista do Império do Brasil

poderia ser caracterizada como imperialista e ofensiva. Isto, pois, no início do século XIX o

Brasil se colocou contra a anexação da Banda Oriental pela Argentina e a consequente perda

deste território; o Brasil tinha interesses claros em manter suas posses meridionais por ser

uma área de economia agropecuária dinâmica. Os conflitos contra Buenos Aires em meados

daquele século, por sua vez, foram, de certa forma, motivados por uma política argentina de

interferência e controle do Uruguai, ao apoiar os blancos, contrários aos interesses brasileiros

em relação ao comércio externo: Rosas e os blancos no Uruguai adotavam políticas

nacionalistas de controle da navegação dos rios e protecionismo comercial. John Lynch

afirma, a esse respeito:

O Brasil tinha suas próprias contas a acertar com Rosas. Determinado a impedir que os satélites de Buenos Aires começassem a entrincheirar-se no Uruguai e no litoral e ansioso por garantir a livre navegação do complexo fluvial do Mato Grosso para o mar, o Brasil estava pronto a agir contra o “imperialismo” de Rosas, ou talvez tenha sido impelido a fazê-lo por seu próprio imperialismo. (LYNCH, 2001, p.660).

O “imperialismo”, que Lynch relaciona à política argentina e à brasileira, vincula-se

aos seus interesses rivais a respeito da livre navegação dos rios do Prata, por um lado, e aos

interesses, também rivais, de influenciar a política uruguaia, por outro lado. A atuação

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brasileira pode, portanto, ser considerada realista ofensiva, na medida em que buscou

aumentar seu poder em relação àquele da Argentina, que já influenciava os blancos no poder

no Uruguai. Passar a influenciar o Uruguai, até então sob a órbita da política argentina, foi um

ganho de recurso de poder relativo do Império naquele momento frente à Argentina, a

principal potência regional rival.

Após a derrubada dos blancos no Uruguai e de Rosas, os colorados tomaram o poder

no Uruguai e Urquiza na Argentina; mais tarde, após guerra civil entre federalistas e

unitaristas, Mitre, consolidou a Argentina unificada. Este foi um período de concertação e

cooperação entre Brasil e Argentina, que culminou com a aliança entre os dois Estados contra

Solano López.

A posição relativa do Uruguai nos cálculos de segurança do Império do Brasil na

década anterior à eclosão da Guerra da Tríplice Aliança também é discutida por Lynch:

O Brasil tornou-se uma metrópole informal e o Uruguai uma espécie de seu satélite, a vítima da penetração econômica, da dependência financeira e da subordinação política. O Uruguai sofreu não só a pressão do subsídio mas também a herança dos tratados de 1851, a presença de um exército brasileiro de cinco mil homens (até 1855) e uma quinta-coluna brasileira na forma de centenas de estancieiros, cuja presença transformou o norte do Uruguai num quase-apêndice do Rio Grande do Sul. Numa época em que a Argentina, a tradicional rival do Brasil no Prata, estava às voltas com uma debilitante guerra civil, o Uruguai corria o perigo real de perder sua independência. (LYNCH, 2001, p.675-676).

Além disso, Lynch afirma que entre as razões do Império do Brasil para defender as

causas e os interesses dos imigrantes brasileiros no Uruguai, encontrava-se o interesse

nacional de “[buscar] mais terras agrícolas na zona temperada” (LYNCH, 2001, p.678), o que

pode ser caracterizada como uma atitude eminentemente imperialista.

A política externa agressiva do Império do Brasil frente a seus rivais regionais, no

século XIX, colocou o Brasil em posição de potência na região do Prata, pois:

O Império estabeleceu seu domínio ostensivo no Prata, que iria se prolongar durante todo o terceiro quartel do século. O Uruguai foi colocado na condição de um semiprotetorado brasileiro (...). A Confederação Argentina ficou também sob certo controle, recorrendo Urquiza aos empréstimos de Mauá e do governo brasileiro, permitindo a livre navegação e o comércio regular, aceitando a ingerência brasileira sobre o Uruguai e reconhecendo a Independência do Paraguai. E deste obteve o Brasil um tratado de navegação e comércio e uma convenção de limites. (BASILE, 1990, p.251).

Outras questões discutidas pela historiografia tradicional que podem corroborar a tese

de atuação ofensiva do Império do Brasil para a região do Prata no século XIX dizem respeito

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às consequências da Guerra do Paraguai para as relações do Estado brasileiro com Paraguai e

com Uruguai. Após a Guerra do Paraguai, o Brasil “obteve do Paraguai todo o território que

reivindicava (...) e passou a exercer um controle sobre o Paraguai ainda maior do que o que

tinha no Uruguai, além de ver estimulada a sua produção fabril têxtil e de artigos bélicos”

(BASILE, 1990, p.262). Já com relação ao Uruguai, “o charque platino tinha mercado cativo

nas regiões escravistas do Brasil e de Cuba, sendo dispensável o emprego de métodos

imperialistas para obtê-lo” (CERVO, 2002, p.126).

Leslie Bethell é categórico ao afirmar que “o Brasil se nomeava um Império e tinha

ambições imperialistas” (BETHELL, 2012, p.170). Esta posição de poder no sistema

internacional, especialmente reconhecendo a região do Prata como um sistema estável, em

que havia interações entre suas unidades, permitia que a política externa imperial para a

região tivesse caráter justificadamente agressivo, para que a consecução de mais poder

relativo garantisse a segurança do Estado. A atuação externa imperial pode, então, ser

considerada ofensiva, nos termos da literatura realista ofensiva de Relações Internacionais.

A historiografia brasileira por vezes denomina a atuação brasileira como imperialista e

com intenções hegemônicas. Partindo-se do conceito de hegemonia de Mearsheimer, essa

caracterização é, no entanto, equivocada. “Hegemonia significa dominação do sistema”

(MEARSHEIMER, 2007, p.53), mas Mearsheimer considera possível “aplicar o conceito de

sistema de forma mais restrita e usá-lo para descrever regiões específicas” (MEARSHEIMER,

2007, p.53), e assim chega ao conceito de hegemonia regional. Em relação ao continente

americano, Mearsheimer o considera um sistema único sobre a qual os EUA são

reconhecidamente a única potência regional a mais de um século. Partindo do argumento de

Mearsheimer, é possível, no entanto, discutir a balança de poder da região do Prata como uma

região específica.

Corroborando o argumento de Mearsheimer sobre a dificuldade de se tornar hegêmona

global – entre outras coisas por causa do poder bloqueador das águas –, para qualquer um dos

Estados platinos no século XIX tornar-se hegêmona do sistema seria, a princípio, inviável.

Deve-se fazer uma análise, portanto, da eventual tentativa de tornar-se hegêmona regional.

Segundo Mearsheimer, “um hegemon é um estado tão poderoso que domina todos os outros

estados no sistema” (MEARSHEIMER, 2007, p.53) e que não pode ser combatido por

nenhum outro por não existir poder semelhante a ele. Na região do Prata essa prerrogativa, em

momento nenhum durante o século XIX, foi verdadeira, ou seja, é impossível falar em

hegemonia brasileira na região do Prata.

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Concomitantemente a essa dedução, uma argumentação de Mearsheimer é sintomática

para a análise da balança de poder na região Prata:

Um estado substancialmente mais forte que as outras grandes potências no sistema não é um estado hegemônico, uma vez que, por definição, enfrenta outras grandes potências. O Reino Unido de meados do século XIX, por exemplo, é por vezes considerado um estado hegemônico, mas não o era, pois existiam outras quatro grandes potências na época na Europa – a Áustria, a França, a Prússia e a Rússia – e o Reino Unido não as dominava de modo algum. (MEARSHEIMER, 2007, p.53).

Assumindo-se que ao menos Brasil e Argentina fossem potências regionais no Prata,

no século XIX, devido aos recursos de poder que tinham disponíveis, assim como na Europa,

na região do Prata em nenhum momento pode-se perceber o domínio completo do sistema

regional por um Estado, o que configura a inexistência de um hegêmona regional.

Por fim, a atuação internacional do Império do Brasil para a região do Prata pode ser

analisada como defensiva ou ofensiva sob o amparo da argumentação sobre o dilema da

segurança. Por um lado, a atuação imperial, se defensiva, não indicaria aos rivais o interesse

por mais poder relativo nem a uma pretensa posição hegemônica no sistema, mas somente a

manutenção de uma situação que assegurasse sua sobrevivência. Com isso, o dilema da

segurança poderia ser amenizado, uma vez que o Império do Brasil não necessariamente seria

percebido como uma ameaça externa à existência dos demais Estados da região. Por outro

lado, se a política externa imperial em relação à segurança fosse ofensiva, o dilema da

segurança estaria em pleno funcionamento, uma vez que a aquisição de poder do Império do

Brasil e suas pretensões de se tornar hegêmona, submeter e, em última análise, eliminar seus

rivais regionais tornaria o Estado brasileiro uma ameaça sistêmica a seus vizinhos que,

necessariamente, buscariam se fortalecer seja por meio de alianças ou de investimentos

militares para balancear o poder na região; o fortalecimento dos outros Estados levaria à

maior busca pelo poder do Império do Brasil, e assim sucessivamente.

O que se depreende da histórica é que o dilema da segurança é uma constante nas

relações internacionais, por essas serem caracterizadas pela anarquia. No caso platino, a maior

rivalidade no século XIX ocorreu entre o Brasil e a Argentina e não há dados disponíveis que

confirmem investimentos militares argentinos para balancear o poderio brasileiro; no entanto,

a Argentina em alguns momentos buscou-se aliar a seus vizinhos – seja para refundar o Vice-

reino do Prata, seja para enfrentar os interesses brasileiros na região, como ocorreu com a

aliança entre Rosas e o partido blanco no Uruguai – e em outros momentos enfrentou

militarmente o Brasil por territórios em litígio – como na Guerra da Cisplatina. Ao que

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parece, independentemente da caracterização da atuação externa imperial, defensiva ou

ofensiva, o dilema da segurança se fez presente na região do Prata durante o século XIX.

Em alguns momentos, no entanto, houve cooperação entre os dois Estados,

notadamente quando surgiu um inimigo comum, o Paraguai. Nos anos 1860, talvez fosse mais

lógico aliança entre Argentina e Paraguai para balancear o poder brasileiro; fatores como

proximidades políticas entre o Brasil e a Argentina, naquele momento, porém, possibilitaram

dinâmica diferente da esperada pela teoria. Vale lembrar que o realismo ofensivo não acredita

na possibilidade de cooperação entre os Estados, haja vista a preocupação com o poder

relativo e com o ambiente internacional marcado pela autoajuda. O realismo defensivo, por

sua vez, admite que Estados possam cooperar. As alianças ocorridas em meio ao dilema da

segurança na região do Prata no século XIX são desafios colocados à abordagem realista

ofensiva, portanto.

O Império do Brasil não teve grandes investimentos em Exército no século XIX,

sobretudo após a criação da Guarda Nacional. Essa tendência só foi descontinuada41 durante a

Guerra do Paraguai, quando havia aliança entre o Brasil e a principal potência competidora na

região. Esse fato também contraria o argumento ofensivo defendido por Mearsheimer a

respeito a maior propensão dos Estados a se concentrarem mais em preparação militar de

curto prazo do que em desenvolvimento econômico de longo prazo, apesar de Amado Cervo

deixar claro que a política intervencionista no Prata foi, em última análise, prejudicial ao

desenvolvimento econômico do Brasil no século XIX (CERVO, 2002, p.125). Nesse caso,

mais se sobressaem os gastos econômicos com a guerra, em termos de logística e

mantimentos, do que propriamente os gastos em armas.

Como argumenta Taliaferro (2000) em defesa de uma perspectiva realista defensiva,

vizinhos relativamente mais fracos possibilitavam ao Império que se preocupasse mais com

objetivos de longo prazo quanto ao progresso do Estado – com a industrialização, por meio da

edição da Tarifa Alves Branco (1844), e com a escala da economia nacional e a questão

social, por intermédio da edição da Lei Eusébio de Queiroz (1850) e da Lei de Terras, no

mesmo ano – e menos em repelir ameaças a sua existência como ator internacional.

Contrariamente, o fato de as fronteiras na região do Prata serem porosas e objeto

constante de disputas entre as unidades do sistema, facilitaram uma atuação externa ofensiva

do Império do Brasil contra seus rivais regionais. Segundo Taliaferro (2000), o realismo

41 Até meados do século XIX existia a percepção da ameaça colocada pela Argentina e por sua intenção de recriar o Vice-reino do Prata, e mesmo assim não houve vultosos investimentos em armas pelo Império do Brasil, haja vista a importância relativa da Guarda Nacional naquele momento.

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defensivo defende que somente em alguns casos os Estados agiriam por meio de políticas

imperialistas e ofensivas, enquanto para os realistas ofensivos, o sistema internacional

anárquico constrange os Estados a atuarem sempre de maneira agressiva para garantir sua

sobrevivência. A situação de porosidade das fronteiras na região platina pode ser considerada

um desses casos onde a atuação ofensiva é esperada, mesmo sob um ponto de vista realista

defensivo.

Entre os conflitos ocorridos na região do Prata, no século XIX, notadamente as

intervenções no Uruguai e a Guerra do Paraguai, em especial suas consequências, podem

desafiar o paradigma realista defensivo, afinal, (i) o Império do Brasil tinha interesses

imperialistas nas pastagens da região portenha, que comportava grande número de imigrantes

brasileiros à época; e (ii) uma das cláusulas secretas do Tratado da Tríplice Aliança era a

divisão de territórios paraguaios entre Brasil e Argentina, o que configura aquisição de poder

por meio de conquista territorial, e corrobora a análise realista ofensiva.

A principal questão que sustenta esse trabalho se faz importante nesse momento: é

possível determinar se a atuação externa brasileira tem uma característica definitiva –

imperialista e ofensiva, ou soberanista e defensiva? Afinal, é possível definir se o objetivo

final da atuação internacional do Império do Brasil era a garantia da sobrevivência ou a

conquista do poder?

Após as considerações feitas no decorrer deste capítulo, sustenta-se que não é possível

ser taxativo e afirmar que a atuação brasileira para a região do Prata no século XIX, em

questões de segurança, tem característica soberanista e defensiva, ou imperialista e ofensiva.

O que parece é que, como afirma Scott Burchill, as perspectivas realista defensiva e realista

ofensiva devam ser compostas em uma única teoria que explique quando cada comportamento

deveria ser esperado (BURCHILL, 2005, p.43) a partir dos constrangimentos sistêmicos, das

dinâmicas de poder e das características internas dos Estados em cada evento tomado

individualmente.

Por um lado, em perspectiva defensiva, a política externa imperial para o Prata tem

interesse soberanista, de manter o status quo e, desta forma, garantir a própria sobrevivência.

Além disso, o fato de a participação do Brasil em todos os conflitos em apreço ter sido

motivada por agressões anteriores caracteriza uma política reativa, e não uma política

agressiva. Ademais, a existência de momentos de cooperação, especialmente entre os dois

principais rivais regionais, Brasil e Argentina, corrobora a força da argumentação realista

defensiva, uma vez que o realismo ofensivo questiona a possibilidade desse tipo de acordo

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devido às preocupações que os Estado têm com ganhos relativos e com a lógica de autoajuda

que o sistema internacional lhes impõe.

Por outro lado, partindo-se da argumentação do realismo ofensivo, a projeção de poder

do Império do Brasil na região do Prata pode ser considerada imperialista e agressiva,

buscando aumentar seu poder relativo e enfraquecer os rivais regionais, e garantir a própria

segurança devido à impossibilidade de ter seu poderio contestado pelos demais Estados da

região. A política externa imperial para o Uruguai, de submeter o país a Tratados desiguais e

de intervir no país quando seus interesses eram contrariados, e a cláusula secreta do Tratado

da Tríplice Aliança – que definia cessão de partes do território paraguaio para o Brasil após o

conflito – e a submissão imposta àquele Estado após a guerra, corroboram, por sua vez, a

análise embasada no realismo ofensivo.

As implicações dessas conclusões para a pesquisa sobre política externa brasileira são

relevantes porque, em primeiro lugar, cai por terra a defesa do caráter eminentemente

soberanista e defensivo da atuação externa brasileira. A partir deste estudo fica claro que a

atuação internacional do Brasil, pelo menos durante o século XIX, foi caracterizada por

momentos de atuação defensiva e momentos de atuação ofensiva. Diferentemente dos EUA,

que na mesma época, tinham uma política de Estado pautada pela marcha para o oeste e pelo

extermínio dos povos indígenas para a conquista de territórios e consecução de poder, o Brasil

no século XIX não buscou, por meio das intervenções, em geral, a conquista de territórios e

seu objetivo final não parecia ser o obtenção de poder; porém, em momentos esporádicos

como na Guerra da Cisplatina e na Guerra do Paraguai, a manutenção de territórios e a

aquisição de territórios pela conquista, respectivamente, estiveram entre os interesses e

objetivos nacionais.

Em segundo lugar, e talvez mais interessante para o campo de pesquisa de política

internacional e análise de política externa brasileira, esta indefinição a respeito da

característica da atuação internacional do Brasil em questões de segurança no século XIX

questiona o consenso sobre a continuidade da política exterior do Brasil, existente na

literatura e na historiografia brasileiras sobre essa questão. Se a atuação internacional do

Brasil não pode ser taxada em definitivo como imperialista ou como soberanista, a tese de

continuidade de uma atuação internacional pautada pelo diálogo e por atuação conservadora e

não agressiva encontra problemas empíricos.

A controvérsia aparente na historiografia e na literatura brasileira a respeito da política

externa do Brasil para a região do Prata no século XIX, se não se justifica, pode ser

compreendida pela complexidade da questão em apresso. Uma pesquisa meramente factual,

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que enfatiza a descrição dos eventos e baseia-se em fontes primárias e secundárias, sem que a

teoria seja aplicada de maneira controlada, possibilita que pensamentos controversos se

sobreponham e dificulta, portanto, tanto a exposição dos pesquisadores como a compreensão

dos leitores.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

São características fundamentais das relações internacionais, segundo o realismo, a

“ausência de um tribunal ou de uma força policial no direito de recorrer à força, [a]

pluralidade de centros de decisão autônomos, [a] alternância e contínua interação entre guerra

e paz” (ARON apud WALTZ, 2002, p.90). Dessa forma, os constrangimentos impostos pelo

sistema internacional anárquico ao comportamento dos Estados é imprescindível para a

análise das relações internacionais, e também o são as interações entre as unidades desse

sistema, os Estados.

O neorrealismo, ou realismo estrutural, proposto por Waltz, enfatiza a estrutura na

análise da política internacional. Por isso, as relações internacionais somente poderiam ser

compreendidas a partir de uma teoria sistêmica, que deve ser caracterizada pela estabilidade

temporal e por interações entre suas unidades. Por definição, o sistema internacional é

anárquico e suas unidades são atores racionais, que atuam em uma lógica de autoajuda e são

constrangidos pelo dilema da segurança em sua atuação internacional.

Como discutido, a estrutura não é suficiente como variável para se analisar a política

internacional e, principalmente, a política externa de Estados individualmente. A não

incorporação de variáveis domésticas é uma das principais críticas sofridas pelo neorrealismo.

Para ampliar o escopo de análise da teoria realista, a realismo neoclássico surge e incorpora

variáveis internas aos Estados, como as percepções dos tomadores de decisão e a dinâmica

burocrática em política interna, o que permite à teoria realista maiores possibilidades de

predição e de compreensão de eventos internacionais. O neorrealismo e o realismo

neoclássico não são, portanto, vertentes contrastantes da teoria realista de Relações

Internacionais, mas sim complementares.

Estruturalmente, podemos descrever e entender as pressões a que os Estados estão sujeitos. Não podemos predizer como irão reagir às pressões sem conhecermos as suas disposições internas. Uma teoria sistêmica explica mudanças entre vários sistemas, não dentro deles, e, no entanto, a vida internacional dentro de um dado sistema não é, de forma alguma, toda ela feita de repetições. Descontinuidades importantes ocorrem. Se ocorrem dentro de um sistema que perdura, as suas causas estão ao nível das unidades. (WALTZ, 2002, p.103).

O construtivismo e algumas teorias pós-modernas costumam focar somente no nível

das unidades e não considerar constrangimentos postos aos Estados pela estrutura anárquica

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do sistema internacional. A partir de uma perspectiva positivista, especificamente do

realismo, essa é uma concepção equivocada, pois

As causas ao nível das unidades e dos sistemas interagem, e porque o fazem, a explicação só ao nível das unidades é enganadora. Se a nossa abordagem permite a análise das causas ao nível unitário e ao nível sistêmico, então pode lidar com as mudanças e as continuidades que ocorrem num sistema. (WALTZ, 2002, p.99).

As teorias realistas têm, portanto, grandes possibilidades analíticas quando se discute

questões de segurança. Principalmente a partir dos estudos de Waltz e a consolidação do

realismo como uma abordagem científica, muitos acadêmicos buscaram complementar essa

abordagem por meio de novos estudos e novas perspectivas para a compreensão desses

eventos. Daí surgiu o debate entre o paradigma realista defensivo e o realista ofensivo.

O realismo defensivo, proposto por Waltz, enfatiza a preocupação dos Estados com a

garantia da sobrevivência por intermédio da manutenção do status quo e por políticas

soberanistas e conservadoras. O realismo ofensivo, proposto por Mearsheimer, por sua vez,

defende que o principal objetivo dos Estados deveria ser a consecução de poder relativo por

intermédio de políticas imperialistas, expansionistas e agressivas, porque só os Estados

poderosos poderiam garantir sua sobrevivência.

As duas vertentes aceitam as prerrogativas realistas de sistema internacional

anárquico, atores racionais, importância do poder relativo para a manutenção da sobrevivência

e dilema da segurança. Suas concepções sobre algumas dessas prerrogativas, no entanto,

divergem de maneira, a princípio, inconciliáveis.

No que diz respeito à importância do poder para a manutenção da segurança, o

realismo defensivo assume que o poder é um meio para o fim último da sobrevivência. Nesse

sentido, a manutenção da balança de poder em um sistema seria suficiente para a garantia da

própria soberania. Por sua vez, o realismo ofensivo defende a aquisição do poder como fim,

como objetivo a ser conquistado pelos Estados para que eles evitem ser atacados por outros

Estados mais poderosos; assegurando maior poder relativo, os Estados estariam garantindo,

em consequência, a própria sobrevivência.

Em relação ao dilema da segurança, parece que as concepções também são

conflitantes. O realismo defensivo se preocupa com as políticas adotadas pelos Estados para

arrefecer o dilema da segurança. Dessa forma, a atuação soberanista, conservadora, que não

impusesse ameaça aos demais Estados, teria a faculdade de amenizar o dilema da segurança.

Já o realismo ofensivo assume o dilema da segurança como inerente ao sistema internacional

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anárquico: um Estado forte é uma ameaça ao outro que se fortalece e ameaça o primeiro. O

risco de extinção pelo ataque de um rival é fator suficiente para que o Estado busque se

fortalecer relativamente aos demais.

O realismo ofensivo assume que Estados devam adotar políticas expansionistas e

buscar maximização de seu poder relativo, em relação aos demais Estados, devido aos

constrangimentos que o sistema internacional anárquico lhes impõe. O realismo defensivo,

contrariamente, defende que Estados devam maximizar sua segurança relativa, não seu poder

relativo, e podem fazê-lo eficientemente por meio de atuação externa moderada, não

agressiva. Partindo dessa diferenciação, qual paradigma caracterizaria mais corretamente a

política externa do Império do Brasil para a região do Prata?

No Brasil, política internacional e política externa nem sempre são abordadas de

maneira claramente científica, e o que pode ocorrer são estudos que relatam eventos

internacionais sem analisá-los sob perspectivas teóricas fundamentadas. A controvérsia na

historiografia brasileira a respeito da característica imperialista ou soberanista da atuação

externa do Império do Brasil no século XIX para a região do Prata é flagrante e, como se

provou, ocorre eventualmente com um mesmo autor e em uma mesma obra. Para tentar

dirimir essa controvérsia e caracterizar em definitivo a política externa imperial para a região

do Prata em matéria de segurança, fez-se um esforço histórico-teórico analisando-se a atuação

externa do Brasil no século XIX sob as lentes neorrealista e neoclássica e, mais

especificamente, os paradigmas realista defensivo e ofensivo.

A atuação externa do Império do Brasil nas três principais intervenções na região do

Prata no século XIX podem ser caracterizadas como soberanistas e defensivas. Na Guerra da

Cisplatina a percepção dos tomadores de decisão brasileiros de uma possível tentativa dos

argentinos de recriar o Vice-reino do Prata poria em risco a sobrevivência do Estado

brasileiro. Além disso, a anexação do território da Banda Oriental pela Argentina

desequilibraria a balança de poder na região, o que impeliu o Império do Brasil a intervir de

maneira reativa para evitar a ameaça de um rival regional, mantendo o status quo regional.

Nas intervenções contra Buenos Aires e os blancos uruguaios, na década de 1850, Rosas e

Oribe adotavam políticas nacionalistas contrárias aos interesses brasileiros e, mais do que

isso, a influência da Argentina sobre o Uruguai era percebida como uma aliança para

contestar o poder do Brasil, superior àquele momento. Novamente, a intervenção teve caráter

soberanista e preocupação última com a sobrevivência do Estado nacional. Por fim, na Guerra

do Paraguai, a intervenção brasileira foi a resposta a uma agressão externa no intuito de

manter o status quo regional frente a intenções expansionistas paraguaias.

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Porém, essas intervenções tiveram também um quê de imperialistas e ofensivas, se nos

ativermos a outras variáveis em jogo. Especialmente no que tange ao Uruguai, a política

imperial sempre foi imperialista no sentido de manter aquele país como uma espécie de

protetorado brasileiro. A intervenção na Guerra da Cisplatina teve caráter imperialista e

agressivo se considerarmos os interesses dos estancieiros brasileiros que viviam na região e a

importância do livre comércio entre as regiões para a economia do Império do Brasil. Foi uma

intervenção ofensiva também contra os blancos, ao derrubar um governo contrário aos

interesses imperiais e submeter o Uruguai ao Império do Brasil. Rosas, que adotava políticas

nacionalistas e protecionistas e, segundo a historiografia brasileira, pretendia recriar o Vice-

reino do Prata, também foi derrubado por intervenção militar. O Brasil, a partir dessas

intervenções, aumentou seu poder relativo ao garantir que o Uruguai se tornasse dependente e

a Argentina subserviente aos interesses brasileiros. A Guerra do Paraguai foi, todavia, o

conflito que mais explicitou o caráter ofensivo da intervenção brasileira devido à tomada de

territórios em consequência de cláusula secreta do Tratado da Tríplice Aliança.

O debate interno entre realistas defensivos e ofensivos é comumente apresentado

como uma questão da escolha pela melhor abordagem ou teoria para um determinado Estado,

dadas suas características e seus recursos de poder. Políticas defensivas, se adotadas por todos

os países, levariam a uma situação irreal de paz mundial. Políticas ofensivas, por sua vez,

aproximariam o sistema internacional do estado de natureza hobbesiano de guerra de todos

contra todos, o que também não ocorre. Dessa forma, o realismo precisa considerar ambas as

percepções para completar seu escopo de análise (BURCHILL, 2005, p.43).

Em resumo, não se considera possível decretar uma única característica que defina a

política externa imperial de segurança para o Prata, pois, dependendo dos argumentos e das

variáveis utilizadas, ambas tem poder de explicação relativamente confiáveis. O que se

propõe é que as perspectivas realista defensiva e realista ofensiva sejam compostas em uma

única teoria que explique quando cada comportamento deveria ser esperado, o que ratifica

uma das possibilidades levantadas por Burchill (2005, p.43) para lidar com essas vertentes

teóricas.

A dificuldade, ou a impossibilidade, de ser taxativo quanto à característica da atuação

externa do Império do Brasil para a região do Prata, se imperialista e ofensiva ou soberanista e

defensiva, se não justifica a controvérsia encontrada na historiografia e na literatura brasileira

a respeito dessa questão, ao menos demonstra a complexidade de se discutir esse assunto.

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O objetivo geral estabelecido para este trabalho foi o de avaliar a política externa do

Império do Brasil para a região do Prata e a adequação das justificativas imperialista e

soberanista como suas causalidades. Entre os objetivos específicos, estiveram avaliar

elementos materiais que influenciassem na dinâmica de segurança regional, e analisar a

política externa imperial para a região do Prata como imperialista ou soberanista por

intermédio de um estudo histórico-teórico sob as lentes do realismo ofensivo e do realismo

defensivo, respectivamente.

Nesse sentido, percebe-se que os objetivos traçados foram cumpridos, apesar de a

hipótese inicial, de possibilidade de se caracterizar definitivamente a política externa imperial

como soberanista e defensiva, não ter sido comprovada. Por mais que existisse o interesse de

comprovar a hipótese em apresso, os dados disponíveis e a análise realizada permitiram

conclusão diversa da esperada, mas ainda assim essa possibilidade havia sido prevista quando

se propôs a “decidir pela avaliação de qual seja melhor para a explicação da política externa

imperial, ou pela proposição de uma terceira via, diferente das duas primeiras ou que

proponha uma síntese delas” (p.9).

Com relação à metodologia, como esperado, este trabalho teve um foco mais voltado

ao método qualitativo que ao quantitativo. Em relação aos dados quantitativos, em especial

aos dados sobre população, economia e armas, deve-se reconhecer a dificuldade de obtê-los,

sobretudo devido ao período temporal analisado e às limitações das fontes disponíveis. Nesse

sentido, devido a constrangimentos logísticos sobretudo, as fontes primárias, que se pretendia

utilizar com mais intensidade, foram relativamente pouco exploradas, o que certamente

diminui a ambição que se pretendia ter, mas que não desqualifica o trabalho.

Por fim, uma inquietação que surgiu neste autor com o desenvolvimento desta

dissertação e com as conclusões a que se chegou diz respeito à tese de continuidade da

política externa brasileira, defendida por acadêmicos e por diplomatas. Esse quase consenso

pode e deve ser questionado uma vez que não seja possível dotar a política externa imperial

de caracterização definitiva, ofensiva ou defensiva. Dessa forma, a tese da continuidade de

uma política externa defensiva, principista, tradicional, voltada ao diálogo e a formação de

consensos, merece considerações teóricas mais pormenorizadas e um estudo mais abrangente

que a qualifique e a complemente, se necessário.

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